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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

ARTIGOS TEMÁTICOS: SEXUALIDADE E GÊNERO

 

Seria o falo uma questão anatômica ou não? Levando ao extremo certa desconfiança de Butler sobre a teoria lacaniana

 

Would the phallus be a matter of anatomy or not? Taking a certain mistrust of Butler's of Lacanian theory to its logical extreme

 

¿Sería el falo una cuestión anatómica o no? Tomando a la extrema alguna desconfianza de Butler de la teoría lacaniana

 

 

Ronaldo Manzi Filho

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e pela Radboud Universiteit Nijmegen (cotutela). Coorganizou os livros A filosofia após Freud (São Paulo: Humanitas, 2008) e Paisagens da fenomenologia francesa (Curitiba: Ed.UFPR, 2011). Participa do grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (USP). Membro da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.

Correspondência

 

 


RESUMO

É comumente bem aceita a ideia de que o significante falo na teoria lacaniana não tem nenhum resquício anatômico. Assim, se em Freud o complexo de Édipo estava ligado à percepção da ausência e da presença do pênis (ter ou não ter o pênis), Lacan teria literalmente excluído do campo psicanalítico esta dependência anatômica ao pensar a função do falo como independente de qualquer referência empírica (a questão passa a ser a posição do sujeito na dialética entre ser e ter o falo). Entretanto, alguns pensadores, em especial Butler, colocam em questão esta independência do falo da anatomia na teoria psicanalítica lacaniana. Este texto pretende avaliar a crítica da feminista no interior do próprio pensamento de Lacan.

Palavras-chave: pênis; falo; percepção; função; complexo de Édipo feminino.


ABSTRACT

It is a commonly accepted idea that the phallus signifier in Lacanian theory has no anatomical remnant. Thus, if in Freud the Oedipus complex was linked to the perception of the presence and absence of the penis (to have or to not have a penis), in Lacan, when he thinks the function of the phallus as independent of any empirical reference, this dependence on anatomy is literally excluded from the field of psychoanalysis (the question becomes the subject's position in the dialectic of being or having the phallus). Some thinkers, however, and Judith Butler in particular, question this independence of the phallus from anatomy in Lacanian psychoanalytic theory. This paper intends to evaluate the feminist author's critique from within a strictly Lacanian perspective.

Keywords: penis; phallus; perception; function; feminine Oedipus complex.


RESUMEN

Comúnmente es bien aceptada la idea de que el significante falo en la teoría lacaniana no tiene ningún vestigio anatómico. Entre tanto si en Freud el complejo de Edipo estaba ligado a la percepción de la ausencia y de la presencia del pene (tener o no tener pene), Lacan literalmente excluyo esta dependencia anatómica del campo psicoanalítico al pensar la función del falo como independiente de cualquier referencia empírica (la cuestión pasa a ser la posición del sujeto en la dialéctica entre ser o tener el falo). Así mismo algunos pensadores, en especial Butler, colocan en cuestión esta dependencia del falo de la anatomía en la teoría psicoanalítica lacaniana. Es así como este texto pretende evaluar la crítica de la feminista en el interior del propio pensamiento de Lacan.

Palabras clave: pene; falo; percepción; función; complejo de Edipo femenino.


 

 

Dentre as várias críticas que Judith Butler realiza à psicanálise de Jacques Lacan em sua obra Bodies that Matter: On the Discursive Limits of "Sex", uma delas se destaca: o estatuto do falo na reflexão lacaniana. Assim ela escreve:

se o falo somente significa na medida em que não é o pênis, e o pênis é qualificado como a parte do corpo que ele não pode ser, então o falo é fundamentalmente dependente do pênis para simbolizar em geral. Na verdade, o falo não seria nada sem o pênis (Butler, 1993, p. 84. Tradução nossa).

Esta é uma crítica contraintuitiva se levarmos em consideração a definição de falo na obra de Lacan. Entretanto, isto não me parece simplesmente uma leitura apressada de Butler das reflexões de Lacan. Há, talvez, um fundamento para esta desconfiança, ao menos na sua obra da década de 1960. Este texto pretende levar esta desconfiança ao extremo a partir da própria teoria lacaniana.

Comecemos lembrando como Lacan define o falo em seus seminários, especialmente no seu seminário IV, em que estabelece os célebres três tempos de Édipo.

 

O falo

Quando estudamos o complexo de Édipo em Freud, em muitas passagens percebemos como o autor tende a mencionar um primado do falo. Mesmo que este primado só surja "tardiamente" na obra de Freud, Lacan não deixa de observar que o que está em jogo na passagem da fase pré-edipiana para a edipiana é o falo: "a afirmação paradoxal do falicismo é o pivô mesmo em torno do qual a interpretação deve se desenvolver" (Lacan, 1994, p. 97. Tradução nossa). O falo seria, assim, o significante central para pensarmos o complexo de Édipo e o de castração - algo em torno da metáfora paterna. Recordemos que, para Freud, no auge do desenvolvimento da sexualidade, a criança elege uma zona erógena como privilegiada: a genital. Desse modo, seu pênis torna-se a zona erógena dominante - é a partir do prazer deste órgão que ela estabelece uma referência a todos os outros prazeres do seu corpo. Na verdade, o apego da criança pelos prazeres proporcionados por este órgão a leva a considerá-lo o mais importante do seu corpo, sendo impossível para ela imaginar que qualquer ser poderia ser privado deste órgão.

É nesse sentido que Freud irá dizer da primazia do falo: a característica principal da organização genital infantil "consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo" (Freud, 1923/1996a, p. 158).

Lembremos ainda que, num primeiro momento, na organização pré-genital sádico-anal, não existe para a criança algo como masculino e feminino. Na fase fálica, que coincide com a fase do complexo de Édipo, passa a existir a masculinidade para ambos os sexos. Sabemos como essa organização da sexualidade infantil é exatamente o momento em que a criança, menino ou menina, assume que todos os seres possuem um pênis. Com isso, a criança se vê diante de uma antítese entre ter pênis ou não tê-lo.

Isso significa que a criança introduz, na linguagem lacaniana, um significante, ou seja, um elemento que determina as ações e as falas do sujeito e que o guia na ordem simbólica. Ou seja, ela possui algo em torno do qual ela se guia em relação àquele lugar que denominamos vazio: o pai morto, ou seja, a um pai morto internalizado que nos julga sem estar presente em lugar nenhum, senão na realidade psíquica.

No famoso caso Hans, recordemos que ele age numa gramática em torno da diferença entre os seres animados e os seres inanimados. Agindo assim, Hans busca este quarto elemento simbólico (criança-mãe-pai-falo): o falo simbólico. Todas as suas questões sobre a presença e a ausência do pênis são o que ordena os demais significantes de sua fala, precisamente no plano em que a falta de um órgão provoca na representação psíquica da criança.

Neste sentido, há a introdução de uma falta diante do objeto fálico, introduzindo algo para além da realidade anatômica. A falta de um pênis numa menina, por exemplo, não é uma percepção de uma ausência, mas a concepção ou assunção de uma falta: a criança concebe como faltante o que ela imagina que deveria estar presente. Lacan, comentando esta curiosidade de Hans, afirma: "não estamos falando senão do falo. [...] o falo é verdadeiramente o pivô, o objeto central, da organização do seu mundo" (Lacan, 1994, p. 225. Tradução nossa).

Isto nos mostra claramente como a criança, tanto feminina quanto masculina, não está se referindo a ter ou não ter um pênis, tal como tende a descrever Freud. O que está em jogo não é a presença ou a ausência de um órgão, mas de um significante que organiza sua compreensão dos outros significantes. Nesta concepção, o falo organiza estruturalmente a vida social do sujeito, assim como um valor imaginário, pois serve de guia nas imagens ideais do sujeito, imagens estas que o norteiam em seu comportamento e sua personalidade. É ele que organiza, portanto, as posições do sujeito em relação à sua vida social. Há uma diferença enorme entre afirmarmos que o sujeito supõe que porta o falo, ou que o dá, ou que o deseja ou que o substitui (está no lugar dele).

A função do falo é central: ele é o significante primordial do desejo em torno do qual a criança, a mãe e o pai instauram suas posições. É a partir desta posição frente ao falo que podemos compreender o lugar deste no desejo de cada um dos personagens do Édipo. É em relação a este jogo de posições que se desenvolverá uma dialética entre ter e/ou ser o falo.

Diante desta descrição do que é o falo, seria natural assumirmos que aquela crítica de Butler não tem sentido. Entretanto, se pensarmos como Lacan descreve o complexo de Édipo feminino, podemos sim desconfiar desta concepção do falo. Para isto, façamos um pequeno esboço do que seriam o primeiro e o segundo tempo de Édipo para Lacan.

 

Primeira relação de objeto

Lacan descreve a primeira relação objetal da criança enquanto uma frustração - uma falta de objeto vivida enquanto dano imaginário, só possível porque a criança já passou de algum modo pelo estádio do espelho (porque é só a partir desse episódio que a criança seria capaz de ter noção do que é uma unidade).

Nesse momento, na frustração, a criança tem como dano a perda de um objeto real, o seio materno. Com essa falta, a criança é capaz de realizar um jogo simples, mas primordial para sua entrada no registro simbólico: ela é capaz de simbolizar a presença-ausência da mãe. Aliás, "[...] uma relação primordial que, na vida do sujeito, dará os tipos principais de modos de relação do sujeito com a realidade" (Lacan, 1998, p. 215. Tradução nossa).

O que conta nesta operação de presença-ausência é que a mãe, esta toda-potência, o torna carente, o decepciona. Uma frustração no nível imaginário que passa, por esta presença-ausência, a ser uma potência e, por isto mesmo, algo num outro registro. É este o ponto central, porque "[...] esta simbolização primordial abre, apesar disso, à criança a dimensão do que a mãe pode desejar de outrem, como se diz, sobre o plano imaginário" (Lacan, 1998, p. 182. Tradução nossa).

Portanto, é vivenciado pela criança algo que é mais decepcionante do que a sua descoberta de não ser o único objeto da mãe, mas que o interesse da mãe é por outra coisa. Isto levaria a criança a realizar um tipo de "cálculo" para "roubar os olhos maternos": "o que a mãe busca que não sou eu?".

É neste momento que a criança se coloca imaginariamente no registro do desejo da mãe. Ela passa a ocupar este lugar imaginário depois de ter sofrido um dano imaginário a ela mesma. A criança passa a se identificar com um objeto que satisfaz a mãe, pois "no primeiro tempo e na primeira etapa, trata-se então disto - o sujeito se identifica em espelho ao que é o objeto de desejo da mãe" (Lacan, 1998, p. 192. Tradução nossa).

Neste momento ainda, ela percebe claramente que, como a ela, a outrem pode faltar algo. Eis outro "cálculo" que surge na criança: se falta algo à mãe, é isto que ela deve desejar. Sua "lógica" é relativamente simples, mas objetiva: se desejo o seio, é porque algo me falta; se algo me falta, algo também deve faltar a outrem; se a mãe dá tanta atenção para mim, é porque eu devo completar sua falta.

Claro que todo esse cálculo é inconsciente. Nada disto é posto conscientemente, mesmo porque a criança não teria maturação suficiente para realizar tal operação. O que está em cena é um jogo de sedução. Como se a criança fizesse este tipo de questão: "o que eu preciso ser para 'roubar' os olhos da minha mãe, para que ela cuide de mim e dedique seu amor a mim?".

É diante disto que Lacan resume o primeiro tempo de Édipo: "primeiro tempo. O que a criança busca, enquanto desejo de desejo, é o poder de satisfazer o desejo de sua mãe, quer dizer, to be or not to be o objeto do desejo da mãe" (Lacan, 1998, p. 191. Tradução nossa).

Ao se colocar nesta posição do desejo da mãe, algo é instituído: a subjetividade no seu primeiro nível ou no seu estado mais primitivo (cf. Lacan, 1998, p. 181). Ora, "o que o sujeito deseja?", pergunta Lacan. Nesse momento, sua resposta é: seu desejo é desejo do desejo da mãe (cf. Lacan, 1998, p. 182). Mas qual é este objeto de desejo da mãe?

 

O desejo da mãe

Lembremos como, no complexo de Édipo feminino descrito por Freud, ele chega à conclusão de que há uma construção da feminilidade a partir da dissimetria entre os sexos. Quer dizer, ele afirma que a menina se identifica primeiramente com a posição masculina e, noutro momento, ela assume que não possui um pênis e passa a desejar tê-lo, construindo assim sua feminilidade. O que isto significa e por que estamos retomando isto aqui?

Primeiramente, recordemos que estamos no registro do primado do falo. Neste sentido, Freud fala que há uma diferença entre a assunção da percepção infantil: o menino teme a possibilidade de ser castrado - algo da ordem simbólica de um objeto imaginário; a menina, por sua vez, aceita esta privação - algo que ela jamais teve e, por isto, uma privação de algo simbólico seguindo Lacan.

Percebamos que, por um lado, há temor; por outro, há inveja. Como se as meninas agissem segundo uma privação: como ela nunca teve "isto", então, o que ela pode fazer é aceitar o fato ou deslocar esta falta constitutiva para o desejo de tê-lo.

Deste ponto de vista, a questão do significante falo está presente também em Freud, pois a menina desliza a renúncia ao pênis no desejo de ter um bebê (cf. Freud, 1924/1996b, p. 198). E Freud completa sua reflexão afirmando que o complexo de Édipo feminino culmina em um desej o de receber do pai um bebê como presente (cf. Freud, 1924/1996b, p. 198). A menina teria, assim, visto a presença do falo; sabe de sua existência; assume que não o tem; e decide ter um.

"Querer ter um" significa, para Freud, um deslocamento ou deslize do seu desejo: pênis-criança. Realizando esse deslocamento, ela exige da mãe algo que, destaquemos, ela jamais poderia lhe dar: um falo.

A menina aparece assim na teoria freudiana como ressentida: ela culpa alguém pela falta que lhe é constitutiva e busca no pai um objeto que ela poderia ter. Curioso notarmos como Freud dá um destino ressentido à feminilidade. Algo que a psicanalista Maria Rita Kehl desenvolve nestes termos: "o que produz ressentimento são as tentativas de estabelecer uma solução de compromisso entre os sentimentos de revolta/insatisfação e a subordinação às condições impostas pelo poder" (Kehl, 2004, p. 209). Reparemos como é este o caminho de Freud:

[...] desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou e que agora espera obter de seu pai. No entanto, a situação feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o lugar do pênis, consoante uma primitiva equivalência simbólica (Freud, 1933/1996d, p. 128).

Como se vê, o desejo da menina é de possuir um falo, algo de que foi privada. Ora, se o desejo da mãe é o falo, isto se dá exatamente, para Lacan, porque o seu desejo não é ter um pênis, porque deste ela foi privada, além de ser anulado e colocado em seu lugar um significante que entra no lugar desta privação: o falo. Significante este que jamais pode se correlacionar a algo empírico ou ter qualquer tipo de designação extensiva - ele é sempre aquilo que o objeto não é: uma função.

Lacan observa, assim como Freud, que este tipo de conclusão aparece de modo claro em casos extremos, tal como na homossexualidade feminina. Leiamos como Lacan descreve isto: "ao extremo do amor, no amor o mais idealizado, o que é buscado na mulher, é o que lhe falta. O que é buscado para além dela é o objeto central de toda economia libidinal - o falo" (Lacan, 1994, p. 110. Tradução nossa).

Aliás, poderiamos perguntar por que este seria o objeto central na economia libidinal do sujeito. E acredito que poderiamos responder do seguinte modo: porque é em torno dele, do falo, que ocorre toda troca social; é em torno dele que está a ordem simbólica, este falo do qual a menina é privada na entrada do complexo de Édipo determina o desejo da criança em seu primeiro tempo lógico deste mesmo complexo.

Acompanhemos de que maneira é este desejo materno que aparece neste tempo, para Lacan, como a entrada da criança num jogo de reconhecimento do desejo: "a criança, com um pouco de astúcia ou sorte, pode chegar muito cedo a entrever o que é o x imaginário e, uma vez que ela o compreende, a se fazer falo" da mãe (Lacan, 1998, p. 175. Tradução nossa). Ou seja, a criança passa a ser literalmente a criança-falo que a saída do Édipo feminino promete à mulher. A primeira experiência de desejo da criança de ambos os sexos depende, portanto, necessariamente, da saída do complexo de Édipo feminino: o desejo de possuir um falo.

É este desejo que está em jogo para a criança: ela não se encontra só face à sua mãe, pois há um significante do desejo materno em jogo, o falo, sempre presente e aparentemente jamais abandonado (cf. Lacan, 1998, p. 285). Se isso é verdade, se a criança está aberta ao que a mãe pode desejar do outro; no fundo, a criança, não busca a mãe, mas seu desejo. Talvez uma forma astuta de afirmar que o desejo da criança é o desejo do desejo da mãe. Que o seja, mas ao se colocar neste lugar, de ser o falo imaginário materno, a criança é "sujeitada porque ela experimenta e se sente, primeiramente, como profundamente sujeitada ao capricho daquilo de que ela depende, mesmo se esse capricho seja um capricho articulado" (Lacan, 1998, p. 189. Tradução nossa). Ela depende, nessa lógica, literalmente, de algo que ela não controla, estando à mercê do desejo do outro.

Percebamos, contudo, que o pai está velado neste momento, pois a criança é o falo que a mãe deseja e, esta última, sendo aquela que (supostamente) não o tem, se satisfaria ao tê-lo: falo-criança. É neste sentido que o menino "[...] oferece à sua mãe o objeto imaginário do falo, para lhe dar sua satisfação completa e sob a forma de engodo" (Lacan, 1994, p. 208. Tradução nossa). Lacan falará assim que "a criança se apresenta à mãe como lhe oferecendo o falo nele mesmo, em graus e em posições diversas" (Lacan, 1994, p. 224. Tradução nossa).

Mas ao oferecer-se nesta posição, como é possível que a criança, que tem o desejo de ser objeto do desejo da mãe, venha a ter qualquer tipo de satisfação? Se se trata de vir no lugar do objeto de seu desejo, como ela se coloca nesse lugar? Ora, se seu desejo é o desejo do desejo da mãe, sua satisfação seria ocupar esse lugar. Literalmente, ser esse lugar de satisfação no plano imaginário.

 

"Evitando" ser devorado pelo desejo materno

Ao mesmo tempo, essa posição é angustiante para a criança. Este lugar que ela procura preencher de modo fantasmático é um lugar que Lacan descreve como devorador: de ser devorado pelo desejo materno (cf. Lacan, 1994, p. 195). Significa, aliás, que a criança jamais poderá ter contato com seu próprio desejo. Sim, a própria definição do que é o desejo para Lacan: "o desejo do homem é o desejo do outro".

Lembremos que, no estudo do estádio do espelho, chega-se à conclusão de que o Eu é a instância que desconhece a si mesma. Uma instância que se forma a partir do outro. Neste momento do complexo de Édipo, chegamos a uma conclusão análoga: o desejo da criança é o desejo de outro. Ou seja, aquilo que poderia ser o mais próprio do sujeito, seu desejo, se submete ao capricho do Outro (no caso, ao da mãe).

Não é estranho assim que Lacan descreva a entrada do pai nesta relação devoradora da mãe como uma saída lógica. O pai, literalmente, priva a mãe desta relação colocando o falo em outro lugar. Sublinhemos que, mesmo que o pai apareça como aquele pai despótico do Totem e tabu, que interdita a mãe de realmente devorar o filho, ele surge de um modo que pode "tirar" a criança de uma posição que ela não poderia sustentar.

O pai real - digamos, este que ocupa a função de pai - desponta-se como pai imaginário, tal como no mito do pai primevo. Notemos: ele só aparece no jogo porque priva a criança de seu lugar: "você não é o falo; eu o sou". É diante deste ser algo que a criança buscará se identificar: com um pai que é senhor da Lei - aquele que "verdadeiramente" possui o falo e que dita as regras, inclusive do desejo da criança. Mas é também aquele à qual a criança lança um olhar e se pergunta: "quem é este que possui a lei e que pode me privar de ser o objeto de desejo da minha mãe?". Enfim, o que é isto, o pai?

Percebamos que, no primeiro tempo de Édipo, o que estava em jogo era uma relação a três, sendo o pai um estrangeiro. Porém, falar que o pai é um estrangeiro, até o momento, talvez seja o modo mais claro de afirmar que nós nos inscrevemos nas leis - elas jamais foram postas em jogo e somos nós que nos instalamos nelas. Algo de fora nos é "apresentado" como proibido! "Você não pode ocupar este lugar"; "aja como eu para poder ter isto" etc. - um convite à identificação e ao jogo de poder.

Temos outro modo de falar isso: só podemos nos instalar na lei social porque, de algum modo, pela frustração e pela privação, fomos capazes de deslocar o desejo do desejo do outro. Modo de dizer que o falo circula. E, no caso, rumo ao cultural. É nestes termos que Lacan se refere implicitamente a Lévi-Strauss: "ora, o complexo de Édipo não é, apesar disto [da sua interdição] unicamente uma catástrofe, porque é o fundamento da nossa relação à cultura, como se diz" (Lacan, 1998, p. 174. Tradução nossa).

Tudo se passa como se o que guiasse toda dialética subjetiva fosse um objeto metonímico, de circulação, que não se vincula a nada (pois um termo está sempre em contiguidade com outro) - por isso Lacan diz que o desejo é vagabundo, fugidio, inacessível perverso: não tem um fim determinado e se liga a qualquer fantasia desde que seja "guiado" (cf. Lacan, 1998, p. 320).

O falo teria, assim, o estatuto de um significante pivô em torno do qual toda dialética do sujeito gira (todas suas posições possíveis). Um significante do significado em geral, mas que pode ser nomeado, mesmo que seja para se referir a um lugar vazio que se nomeia por substituição, pois "ela [a metonimia] concerne à substituição a alguma coisa que se trata de nomear - estamos, com efeito, no nível do nome. Nomeia-se uma coisa por outra em que o contém [sic], ou a parte, ou que está em conexão com" (Lacan, 1981, p. 250. Tradução nossa).

É nessa circulação que surge o pai. Mais especificamente, no segundo tempo de Édipo, ele surge como aquele que interdita ou priva a mãe de ter este falo imaginário. Assim Lacan descreve esse período: momento em que o pai intervém, em "o pai todo-potência é aquele que priva" (cf. Lacan, 1998, p. 194).

 

A privação da mãe do falo imaginário

Segundo Lacan, a privação é a falta do objeto que se dá no registro real. Dessa maneira, a privação é como um buraco ou uma ausência real de um objeto simbólico, o falo, realizado por um agente imaginário, o pai.

Portanto, privar-se de algo real, por mais que desorganize o sujeito, é um modo de afirmar que este algo já foi simbolizado: aquilo de que se é privado apresenta-se como uma falta de objeto que sempre foi simbolizada, ainda que esta falta seja vivida como uma ausência.

Tentemos tomar um exemplo. A menina, na sua entrada no complexo de Édipo, vê-se privada do falo - algo que é vivido como real, mas trata-se de um objeto simbólico. Assim, sublinha Lacan,

quando eu digo que, se tratando da privação, a falta está no real, isto quer dizer que ela não está no sujeito. Para que o sujeito aceda à privação, é preciso que ele conceba o real como podendo ser outro que ele não é, quer dizer, que ele já o simbolize (Lacan, 1994, p. 55. Tradução nossa).

Para Lacan, o que é fundamental nesta falta específica, a privação do objeto, é que ela não pode ser concebida como uma falta de objeto real, tal como o seio real. É necessário que a criança possa conceber um objeto simbólico. Na frustração, como vimos, a criança entra de modo primário, mas sem retorno, no registro simbólico: momento em que ela consegue simbolizar a presença-ausência da mãe. É somente diante dessa simbolização que o falo simbólico poderá circular na privação. O que acontece para haver esta circulação?

Não por acaso destacamos que, no momento anterior à privação, a criança está numa posição imaginária em relação à mãe. A criança é o falo materno e o é de forma imaginária, porque o falo simbólico só pode circular com a presença do pai. Reparemos como a dialética de reconhecimento do desejo está aparecendo: a mãe, neste caso, tem o falo - criança-falo. No entanto, ela deixa de tê-lo quando surge uma interdição que faz com que haja a circulação do falo, pois "como objeto, ela [a mãe] está para ele [o pai], ela não está para a criança" (Lacan, 1998, p. 173. Tradução nossa).

O pai entra nesse jogo triangular como alguém que interdita a satisfação da mãe de possuir o falo. Uma interdição que é sentida no registro real pela mãe, mas de um objeto simbólico: "neste nível, o pai priva alguém do que, afinal de contas, ele não tem, quer dizer, de algo que não tem existência senão na medida em que surge enquanto símbolo" (Lacan, 1998, pp. 184-185. Tradução nossa).

Tenhamos em mente: o pai interdita a mãe de possuir o falo. É por isso que Lacan fala do agente dessa falta de objeto como pai imaginário. Lembremos novamente de Totem e tabu. O pai imaginário é aquele pai despótico, pai que possui todas as mulheres e expulsa todos os jovens que possam lhe ameaçar. É o pai temido e invejado, porque é ele quem possui o falo e quem priva todos os outros de possuir as mulheres. É este o agente da privação.

Antes de continuarmos, insisto como Lacan é preciso ao nomear esses três modos de falta de objeto (frustração, privação e castração). O que falamos sobre a frustração não poderia entrar aqui. Esse pai imaginário, despótico, jamais seria um pai frustrador de um objeto real. Ele é quem interdita alguém de ter um objeto. Alguém, a mãe, que já está no registro simbólico e guiado pelo significante mestre ou absoluto, como nomeia Lacan em alguns momentos. A precisão de Lacan não é retórica: talvez ninguém tenha pensado com tanta minúcia as relações de objeto.

Tendo isso em vista, notemos que é nesse momento que Freud descreve o complexo de Édipo: é com a entrada do pai, de um terceiro, que há um conflito. Na teoria lacaniana, por outro lado, o terceiro está presente antes disto, quando a criança se toma como desejo do desejo da mãe, ou seja, como falo imaginário materno. O segundo tempo de Édipo de Lacan seria o começo da descrição de Freud: a entrada do pai despótico.

É diante da presença desse pai que a criança vive um impasse. Eu me arriscaria a dizer um impasse existencial, por mais que nossos estudos sigam uma dinâmica lógica e estrutural. São estruturais os tempos de Édipo, mas uma decisão, sem dúvida, é sempre existencial. Uma decisão que marcará a estrutura psíquica da criança: aceitar ou não esta privação da mãe?

Nada lógico pode ser colocado nessa decisão. Ela depende notavelmente de um drama individual. Algo que uma vez disse um dos mais influentes intérpretes da psicanálise na França, Georges Politzer: "o indivíduo é singular, porque sua vida é singular, e esta vida, por sua vez, não é singular senão por seu conteúdo: sua singularidade não é então qualitativa, mas dramática" (Politzer, 1968, p. 51. Tradução nossa).

É diante desse drama existencial que Lacan denomina o ponto nodal do complexo de Édipo:

neste nível, a questão que se coloca é - ser ou não ser, to be or not to be o falo. Sobre o plano imaginário, trata-se para o sujeito de ser ou de não ser o falo. A fase que se está atravessando coloca o sujeito na posição de escolher (Lacan, 1998, p. 186. Tradução nossa).

Aceitar a privação materna significa aceitar que o pai é quem possui o falo e não que ela, a criança, seja o falo. É neste sentido que Lacan denomina o complexo de Édipo como uma dialética entre ser e ter o falo. A cada etapa, a criança pode ou não se colocar numa posição diante do falo, seja imaginário, simbólico ou real.

Se a criança não aceita esta privação por algum motivo, ela continua sendo o falo materno, independente de ser menino ou menina. Se a criança renuncia a ser o falo imaginário materno, por outro lado, ela tem uma alternativa: ter ou não ter o falo simbólico. Aceitar ou não a privação da mãe de ter ou não ter o falo?

De qualquer modo, notemos que o pai entra em jogo, certamente, como portador da lei - essa é a sua função neste momento: interditar algo. O pai surge como lei, como o sujeito que priva a mãe de ter aquele falo, pois "[...] o pai pode dar à mãe o que ela deseja, e pode dar porque ele o possui. Aqui intervém, então, a existência da potência no sentido genital da palavra - digamos que o pai é um pai potente" (Lacan, 1998, p. 194. Tradução nossa).

Se toda questão de Freud está em torno da pergunta o que é ser um pai, então vale que repitamos e insistamos: qual é o papel do pai nesta fase do Édipo? Por que introduzir este estrangeiro nessa relação?

Para respondermos isto, reparemos que há, inicialmente, um deslocamento: se o desejo da mãe é o pai, então o desejo da criança se desloca para aquilo que a mãe deseja. Ela deseja ter o falo que supostamente está na posição deste que interdita e que a mãe autoriza dizer em nome da lei. A criança, assim, não é mais o falo e muito menos tem o falo, sendo somente o pai o portador desse significante.

Esta passagem é fundamental, porque a criança assume, neste momento, que o falo circula, ou seja, que ele é um significante que se pode ser ou ter. O falo passa a ser não algo imaginário, tal como sua posição diante da mãe, mas se faz instrumento da ordem simbólica de trocas, sendo o pai o pivô desse drama: trata-se agora de a criança perceber que este elemento imaginário tem valor simbólico.

Enquanto agente real, o pai desloca o valor do falo imaginário com o qual a criança se identificava, para colocá-lo em circulação. Ele entra para retirar uma angústia existencial da criança - a lei paterna seria como uma lei que livra a criança de se colocar nessa posição de objeto de desejo da mãe.

Observemos: o pai aparece no mundo infantil para instaurar outra lógica e desterrar o lugar que a pequena criatura ocupava no plano imaginário - algo que possa mediar a criança com o desejo da mãe que ameaça devorá-lo (cf. Lacan, 1994, p. 195). Daí aceitar a lei paterna é aceitar, como diz Peter Dews:

[...] a subordinação a uma ordem que não pode ser fundada na experiência, e abandonar uma relação de complementaridade imaginária com a mãe, desde que é o pai que é o portador do falo de que ambos, a mãe e a criança, são desprovidos (Dews, 1987, p. 85. Tradução nossa).

 

A entrada da menina no complexo de Édipo

Neste momento, com a interdição paterna, Lacan irá destacar que a problemática da menina no complexo de Édipo é muito mais simples que a do menino, ao contrário do que defendia Freud. Se este último a viu de modo complicado foi porque ele descobriu a particularidade das meninas mais tardiamente. Ou seja, "Freud, com efeito, descobriu Édipo antes do que é pré-edipiano e como poderia ser de outro modo?" (Lacan, 1994, p. 202. Tradução nossa). O que isto quer dizer?

Lembremos que, no texto sobre "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos", de 1925, Freud afirmava que o complexo de Édipo levanta um problema a mais nas meninas. Para ele, a complicação estava nesta observação: "em ambos os casos, a mãe é o objeto original, e não constitui causa de surpresa que os meninos retenham esse objeto no complexo de Édipo. Como ocorre, então, que as meninas o abandonem e, ao invés, tomem o pai como objeto?" (Freud, 1925/1996c, p. 280).

Freud propõe que, na fase pré-edipiana, a menina nota o pênis do menino e imediatamente o identifica como o correspondente superior de seu próprio órgão pequeno e imperceptível. Diante disso, ela passa a ter inveja do pênis - pelo menos é assim que agimos, como se isto fosse verdade. Freud não esconde, deste modo, que o problema se volta à assunção da percepção - é por isto que, para ele, a anatomia é o destino.

Sabemos como Freud afirma que a feminilidade é uma construção, pois a menina se identifica primeiramente com a posição masculina. Noutro momento, ela assume que não possui um pênis e passa a desejar tê-lo. Sabemos também que há um deslocamento ou deslize do seu desejo: pênis-criança. É só diante desse deslocamento, após o complexo de castração, que temos uma triangulação propriamente edipiana: amor ao pai e ciúmes da mãe. Eis então por que Freud afirma que o complexo de castração é a entrada da menina no complexo de Édipo, ao contrário dos meninos. É somente depois desta castração que há realmente uma triangulação.

Entretanto, essa inversão de objeto é, para Lacan, uma consequência do primeiro tempo de Édipo. Reparemos: na fase pré-edipiana, ambos os sexos se tornam o falo imaginário da mãe, ou seja, o desejo do desejo da mãe. No segundo tempo, quando o pai intervém nesta triangulação, a menina simplesmente busca aquilo que ela não tem: o falo. É exatamente o que Freud diz, como uma complicação a mais, o desdobramento normal do segundo tempo de Édipo para Lacan. Assim, o que Freud afirma ser uma complicação seria a entrada da menina no Édipo, o caminho mais fácil e mais lógico do que no menino. Por quê?

O menino precisa se identificar com o pai, o que significa não só aceitar a privação da mãe como buscar se identificar com aquele que supostamente possui o falo. A inversão para Lacan ocorre nos meninos e não nas meninas, pois elas "só"precisam aceitar que o pai as priva da mãe e acreditar que é ele quem tem o falo. Por isso, ele fala que "[...] a filha encontra o pênis real lá onde ele está, para além, naquele que lhe pode dar um filho, a saber, nos diz Freud, no pai" (Lacan, 1994, p. 202. Tradução nossa).

Neste momento de crença, a menina entra no Édipo, amando o pai e buscando-o como aquele que pode lhe dar um filho-falo. "A filha é assim suficientemente introduzida ao Édipo" (Lacan, 1994, p. 203. Tradução nossa). Isto não quer dizer que o caminho do complexo de Édipo feminino seja sem complicações e não sujeito a variações e impasses. O que Lacan descreve, neste momento, é o caminho mais direto e o mais simples de resolução da sexualidade feminina.

É esse o caminho da feminilidade para Lacan. Ou seja, o que é essencial no complexo de Édipo, a seu ver, é tornar-se viril, no caso do menino, e a feminilidade, no caso da menina. Um "tornar-se" que pressupõe uma normatização das identidades sexuais. "Em outros termos, no momento da saída normativa do Édipo, a criança reconhece não ter - não ter verdadeiramente o que ele tem, no caso do menino - o que ela não tem, no caso da menina" (Lacan, 1998, p. 174. Tradução nossa). Será em torno da castração, este último modo de falta de objeto, que podemos afirmar uma saída de Édipo.

Esta dissimetria nos leva a pensar numa concepção diferente da entrada e da saída no complexo de Édipo masculino e feminino em Freud. Lacan destaca isto claramente nesta passagem:

é na medida em que a criança feminina não possui o falo que ela é introduzida ao simbólico da dádiva. É na medida em que ela faliciza a situação, quer dizer, que se trata de ter ou de não ter o falo, que ela entra no complexo de Édipo. O menino, como sublinha Freud, não é por isso que ele entra, é por isto que ele sai. No fim do complexo de Édipo, no momento em que ele realiza sobre certo plano o simbólico da dádiva, é preciso que ele faça dádiva do que ele tem. A filha, se ela entra no complexo de Édipo, é na medida em que aquilo que ela não tem, ela tem de encontrá-lo no complexo de Édipo (Lacan, 1994, p. 123. Tradução nossa).

É neste momento que parece haver um "pulo". Não por acaso, um comentador como Philippe Van Haute acredita que, tanto para Lacan como para Freud, a anatomia é sim o destino. Van Haute se baseia, por exemplo, na facilidade com que Lacan descreve essa passagem da menina de ser o falo imaginário da mãe para a aceitação de que é o pai que tem o falo. Essa dissimetria na aceitação de ambos os sexos leva Van Haute a afirmar que "o tratamento lacaniano do complexo de Édipo feminino aqui é sem dúvida muito simples" (Van Haute, 2002, p. 215. Tradução nossa). Por isso, ele afirma que

o falo só pode preencher essa função se ele continua a se referir obliquamente ao corpo, e, portanto, à primazia do simbólico não pode significar que a 'masculinidade' e a 'feminilidade' possam ser pensadas por uma completa independência a qualquer referência à constituição anatômica (Van Haute, 2002, p. 215. Tradução nossa).

É nos baseando nesta aceitação da menina, desta saída mais direta e mais lógica, que poderíamos endossar a crítica de Butler a Lacan: como é possível que a menina "só" precise aceitar que o pai prive a mãe e acreditar que é ele quem tem o falo senão pensando a partir da percepção? Ou seja, senão aceitando que a menina percebe uma falta de um órgão e por isto mesmo aceita a privação?

Caso se insista que esta passagem é simbólica e não se trata do nível da percepção, Lacan ainda teria que responder a esta astuta crítica de Butler:

na verdade, se se diz que o homem "tem" o falo simbolicamente, sua anatomia é também um lugar marcado por tê-lo perdido; a parte anatômica não é nunca comensurável com o falo mesmo. Neste sentido, o homem deve ser compreendido enquanto (já) castrado e também guiado pela inveja do pênis (mais propriamente compreendida como inveja do falo) (Butler, 1993, p. 85. Tradução nossa).

E assim não haveria porque haver uma diferença no complexo de Édipo masculino e feminino. Ora, se não se trata de uma anatomia o mesmo deveria ocorrer em ambos os sexos: não uma percepção de uma ausência, mas a concepção ou assunção de uma falta: a criança concebe como faltante o que ela imagina que deveria estar presente seja ela menina ou menino...

 

Referências

Butler, J. (1993). Bodies that Matter: On the Discursive Limits of "Sex". London; New York: Routledge.         [ Links ]

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Freud, S. (1996d). Conferência XXXIII - Feminilidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 22, pp. 113-134). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1933).         [ Links ]

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Van Haute, P. (2002). Against Adaptation: Lacans "Subversion" of the Subject, a Close Reading. Trans. Paul Crowe and Miranda Vankerk. New York: Other Press.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Ronaldo Manzi Filho
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Recebido em 21.10.2013
Aceito em 14.03.2014

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