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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo sep./dic. 2014

 

ARTIGOS

 

Schopenhauer e Freud: um elo inegável

 

Schopenhauer and Freud: an undeniable link

 

Schopenhauer y Freud: un vínculo innegable

 

 

Jassanan Amoroso Dias Pastore

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo investiga possíveis aproximações e eventuais afastamentos entre a filosofia de Arthur Schopenhauer e a psicanálise de Sigmund Freud.

Palavras-chave: Schopenhauer; Freud; filosofia; psicanálise; intertextualidade.


ABSTRACT

The paper investigates possible approximations and eventual divergences between Arthur Schopenhauer's philosophy and Sigmund Freud's psychoanalysis.

Keywords: Schopenhauer; Freud; philosophy; psychoanalysis; intertextuality


RESUMEN

El artículo investiga las posibles aproximaciones y los eventuales alejamientos entre la filosofía de Arthur Schopenhauer y el psicoanálisis de Sigmund Freud.

Palabras clave: Schopenhauer; Freud; filosofía; psicoanálisis; intertextualidad.


 

 

O estudo dos textos freudianos a partir da perspectiva estabelecida pelos encontros e desencontros que Freud promove entre a psicanálise e a filosofia, em especial a schopenhaueriana, permite investigar as possíveis aproximações e os eventuais distanciamentos entre o pensamento do filósofo Arthur Schopenhauer e a psicanálise de Sigmund Freud.

Pertinente aos afastamentos é preciso demarcar que lidamos com campos e métodos distintos, o que leva a diferentes pontos de vista e a diferentes níveis de discurso, com suas destinações específicas. Schopenhauer pretende desvendar a verdade cosmológica e existencial, ao passo que Freud se preocupa, primordialmente, com o mundo psíquico, a partir de sua clínica psicanalítica orientada para o tratamento de neuróticos. Freud não faz metafísica, como Schopenhauer, mas sim metapsicologia.

A proximidade se dá na medida em que ambos os autores se inscrevem numa linha de pensamento que leva em conta os impulsos inconscientes na gênese da ação humana, a preponderância da sexualidade na psique e a força da corporeidade na constituição das representações.

Renato Mezan considera que "esses saberes não comportam uma redução recíproca, e nada há de ameaçador quando uma dessas disciplinas se debruça sobre a outra criando um jogo de perspectivas. No mínimo, é enriquecedor" (1998, p. 78). Ou seja, a psicanálise e a filosofia são dois âmbitos distintos de abordagem da psique, porém, uma vez mantidas as diferenças, podemos lançar uma luz sobre a psicanálise a partir da filosofia, ou da própria história da filosofia.

Freud é inovador ao transportar para a psique individual e para a clínica psicanalítica, constituída como uma técnica terapêutica, muitas das questões antes levantadas não só pelos cientistas e literatos como também pelos filósofos. Freud bebe dessas fontes, ora aproximando-as, ora distanciando-as do pensamento psicanalítico.

Em meio à transição do século XIX, marcado pelo otimismo teórico do racionalismo e do primado da consciência, para o século xx, caracterizado pela crise da razão, Freud funda a psicanálise, uma nova ciência sobre a alma humana que tem como fundamentos o inconsciente e as pulsões. De maneira semelhante, cem anos antes, na passagem do século XVIII para o XIX, o filósofo Schopenhauer já havia problematizado não só as tentativas de se interpretar metafisicamente o mundo de maneira otimista, em especial a de Leibniz, como também as concepções dos idealistas românticos alemães - particularmente a de Hegel -, que, de modo geral, ao seguirem a tradição, postulavam um princípio racional absoluto do mundo. Schopenhauer, no entanto, em sua obra magistral O mundo como vontade e como representação, elabora um pensamento que situa a essência do homem não na consciência e na razão, mas na Vontade,1 considerada por ele como um impulso cego, irracional, indomável, sem fundamento, grundlos, que move o mundo. A Vontade, Wille, concebida como a coisa em si, é definida por Schopenhauer ora como um "ímpeto cego", blinder Drang, irresistível, ora como "impulso", Trieb, gratuito.

O fio condutor do pensamento do filósofo é o pressuposto de que a realidade possui um fundo infundado, que é essencialmente uma fúria implacável, intratável, incontrolável que se apraz em atrair a nossa própria destruição, em devorar tudo e todos sem nenhuma racionalidade. Até mesmo a beleza está assentada sobre essa estrutura feroz. Nas palavras do romancista Thomas Mann, estudioso e difusor das ideias schopenhauerianas, a Vontade é

a causa primeira e irredutível do ser, sua base mais profunda, a fonte de todos os fenômenos, a potência presente e operante em cada um deles, a criadora de todo o mundo visível e de toda a vida, porque seria o querer viver. (1951, p. 19)

Além disso, "a Vontade em si é absolutamente livre e se autodetermina por inteiro, não havendo lei alguma para ela" (Schopenhauer, 2005, p. 370), isto é, a Vontade é soberana sobre a razão. Em síntese, a Vontade, como coisa em si, é a substância do mundo e a essência do homem; é uma força inconsciente, indeterminada e livre que comanda o mundo e habita nosso corpo e nosso pensamento.

Desta forma, Schopenhauer se afasta dos idealistas alemães de sua época - Hegel, Fichte e Schelling -, que apostavam na fé inabalável da razão, pois ele defende a subordinação da razão à intuição e, sobretudo, da representação à vontade, sendo, "antes mesmo de Nietzsche, o primeiro a denunciar a metafísica pela prioridade que ela atribui à razão" (Machado, 2006, p. 170). Além disso, ele critica severamente todos os filósofos anteriores pelo "velho erro fundamental" de postular o ser verdadeiro do homem no conhecimento consciente, com "a intenção de representar o homem como o mais distante possível do animal" (Schopenhauer, 2009, pp. 894-895). Contrário a essa postura, ao despotencializar a razão Schopenhauer "é, portanto, totalmente coerente com sua concepção imanente do discurso filosófico" (Jean-Marie Schaeffer, citado por Machado, 2006, p. 170). Para o filósofo alemão, as formas racionais da consciência não passam de aparências, e a essência de todas as coisas é alheia à razão: "A consciência é a mera superfície de nossa mente, da qual, como da terra, não conhecemos o interior, mas apenas a crosta" (Schopenhauer, 2005, p. 368). O inconsciente, portanto, ocupa um papel fundamental na filosofia de Schopenhauer.

Cabe explicitar que o sistema filosófico de Schopenhauer é uma metafísica, porém imanente ao corpo, isto é, que não ultrapassa a experiência. E leva em conta não só a experiência exterior como também a interior, não só o mundo objetivo como também o subjetivo. Para o autor, seus princípios "não ultrapassam, todavia, o mundo dado na experiência, mas apenas esclarece o que o [mundo] é, já que o decompõe em suas partes componentes" (Schopenhauer, 2003, p. 118). O mundo é explicado a partir dele mesmo, e qualquer afirmação está fundamentada no próprio mundo. Assim, dizemos que seu pensamento se encaixa na esfera da filosofia imanente, que é aquela que não é transcendente. Decorre daí que o termo "metafísico", na filosofia schopenhaueriana, não pode ser entendido ao modo da religião cristã, como a afirmação de algo além deste mundo, e sim como algo que se dá neste mundo mesmo das coisas. Esse lugar privilegiado concedido à experiência implica que sua filosofia é erguida no solo da realidade intuitiva que lança e consolida os conceitos abstratos. Metodologicamente falando, Schopenhauer está inserido no "método analítico" (Schopenhauer, 2001, p. 209).

Em sua metafísica ancorada no corpo, o filósofo postula que o primeiro objeto é o nosso próprio corpo, com a particularidade de ser o único objeto imediato. O corpo humano é objeto sentido, experimentado, vivido. É a partir da minha noção de eu que eu represento o mundo. Para o filósofo, o ser humano não se encontra no mundo como um sujeito sem corpo; pelo contrário, o homem habita um corpo que, segundo ele, é comandado pela Vontade. Assim, o conhecimento do sujeito é intermediado pelo seu corpo e esse corpo é o ponto de partida da intuição, ou seja, o conhecimento se dá por meio de uma apreensão imediata. Essa operação coloca a intuição como base do seu sistema, confirmando sua ruptura com os idealistas de sua época. Diferentemente destes, a intuição para Schopenhauer não é racional, mas representativa. A intuição implica uma configuração do mundo de acordo com nossa subjetividade (Machado, 2006, p. 175). Mais do que dedução, sua filosofia é intuição, e nesse sentido se aparenta mais com a arte do que com a ciência.

Aliás, para Schopenhauer, a arte, uma forma especial de conhecimento, é considerada superior à ciência. Sua concepção de arte muito se aproxima da noção de sublimação, ou melhor, dos processos criativos em psicanálise. Para Schopenhauer, a renúncia da vontade pode ser alcançada, em um primeiro estágio, por meio da arte, que exerce então uma função terapêutica de cessar, momentaneamente, o sofrimento do ser humano. Esse papel conferido à arte levou a filosofia schopenhaueriana a ser assimilada com entusiasmo por muitos pensadores, romancistas, compositores e poetas, como Thomas Mann, Anatol Rosenfeld, Nietzsche, Wagner, Brahms, Lizst, Mahler, Schonberg, Pirandello, Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov, Joyce, Beckett, Conrad, Mallarmé, Maupassant, Proust, Celine, Chaplin, Machado de Assis, Augusto dos Anjos, dentre outros. Para o filósofo, "o poeta é o espelho da humanidade, e traz à consciência dela o que ela sente e pratica" (Schopenhauer, 2005, p. 329); o poeta dá conta da essência da humanidade, representando as ações humanas, "a luta da vontade contra si mesma, tal como ela se encarna nos conflitos humanos" (Machado, 2006, p. 181).

Em sua obra capital, Schopenhauer apresenta a problemática central de sua filosofia, que não só é "O mundo é minha representação" (2005, p. 43), frase inaugural dessa obra, como também, e sobretudo, "O mundo é minha vontade" (2005, p. 45), ou melhor, o mundo é Vontade. O mundo é considerado ora como representação, ora como Vontade. Se a Vontade é a coisa em si, o indivíduo é somente fenômeno, e então a minha vontade - a vontade individual, a vontade de cada ser humano - é sempre contaminada pela Vontade universal, pois esta é permanente na diversidade dos fenômenos: "há uma unidade essencial em todos os seres" (Machado, 2006, p. 168).

Como representação, que é a aparência, o mundo é representação de um sujeito, e essa representação está submetida à Vontade. E a vontade humana pode ser parcialmente conhecida, pois, ao se manifestar diretamente no corpo, ela se dá a conhecer por meio dos atos dele, que são os atos da Vontade. Notemos que Schopenhauer faz uma distinção crucial entre a Vontade e a representação: a Vontade é primordial, primária, fundamental, e a representação é secundária, subordinada, condicionada.

Mann salienta que Schopenhauer, ao se referir ao desejo humano, "fala do sofrimento do mundo em geral, fala também do teu e do meu sofrimento" (1951, p. 24). Sim, porque Schopenhauer, assim como Freud, já aponta que a quase totalidade dos desejos não é satisfeita. E, quando um desejo é satisfeito, cessa o prazer e surge o tédio. Então, o homem é movido por duas oscilações complementares: do desejo ao tédio e do tédio ao desejo. O filósofo utiliza a imagem do balanço de um pêndulo, retomada mais tarde por Marcel Proust, para ilustrar como a nossa vida pulsa entre um estado e outro, entre a dor e o tédio, e vice-versa, que são, na realidade, seus componentes básicos. Schopenhauer acrescenta que a satisfação do desejo não é duradoura, não é uma última satisfação; desse modo, cada desejo satisfeito nos empurra para um novo desejo e assim por diante, num processo infinitamente insaciável. Mann lembra que Schopenhauer diz que o sujeito de desejo "jaz sob a roda de Íxion, enche incansavelmente o tonel das Danaides; é Tántalo com sua sede eterna" (1951, p. 25). Schopenhauer ainda explicita que se a vontade encontra dificuldades para atingir seu objetivo, surge em nós o sofrimento; contudo, se ela alcança seu objetivo, experimentamos a satisfação: "Nomeamos SOFRIMENTO a sua travação por um obstáculo, posto entre ela e o seu fim passageiro; ao contrário, nomeamos satisfação, bem-estar, felicidade, o alcançamento do fim". E, como esse processo é interminável, Schopenhauer conclui que, se "não há fim último para o esforço humano, não há nenhuma medida e fim para o sofrimento". Daí decorre a máxima schopenhaueriana: "TODA VIDA É SOFRIMENTO" (2005, pp. 399-400).

A Vontade é una, mas apresenta uma discórdia essencial consigo mesma. A Vontade existe num combate geral, num conflito contínuo, numa guerra perpétua pela existência, pois "deve o mundo vegetal servir de alimento para o mundo animal e cada animal, por sua vez, de presa e alimento para outro - e, assim, a vontade de vida não cessa de se devorar a si mesma" (Schopenhauer, citado por Mann, 1951, p. 23). O homem, por outro lado, também contribui para acirrar com a mais espantosa evidência "o horror do combate de todos contra todos, do autoestilhaçamento da vontade, segundo a máxima hobbesiana Homo homini lupus" (Schopenhauer, 2005, p. 447), "a guerra de todos contra todos" (Schopenhauer, 2001, p. 123).

Essa concepção de Hobbes, contida em seu Leviatã, é partilhada não só por Schopenhauer como também por Freud em O mal-estar na civilização, ao radicalizar que o ser humano traz consigo uma potência de destruição. Com a noção de pulsão de morte, que traduzimos por destruição voltada para o próprio sujeito, e, quando exteriorizada, dirigida contra o objeto, Freud inscreve a violência como um forte elemento do aparelho psíquico. Pulsão de morte inclui não só o retorno ao inorgânico como também o prazer pela destruição de si mesmo e do outro. Freud declara tanto a onipresença da pulsão de morte quanto sua autonomia. Reconhecer a pulsão destrutiva é reconhecer a maldade fundamental e irredutível do ser humano. Não se trata mais de uma sexualidade que, regida pelo princípio do prazer, lança mão da agressividade para atingir seu objetivo, mas sim de uma disposição pulsional destrutiva autônoma, originária do ser humano, de caráter silencioso, e o grande obstáculo à civilização. O próprio homem surge como o inimigo potencial da civilização - Homo homini lupus (Freud, 1929/1976d, p. 133). A pulsão de morte está na origem de uma necessidade humana de praticar o mal pelo mal.

As considerações feitas até aqui, preservando as devidas diferenças em relação aos campos de conhecimento, nos permitem estabelecer uma correspondência entre a Vontade schopenhaueriana e a pulsão de morte freudiana. Veremos mais adiante que esse vínculo é confirmado pelo próprio Freud.

Embora o fundador da psicanálise tenha sido acusado por alguns filósofos, em especial por Anatol Rosenfeld, de "ter 'recalcado' edipianamente a poderosa influência do seu pai espiritual" (Rosenfeld, 2009, pp. 174-175) - no caso, Schopenhauer -, mostraremos que Freud reconhece claramente o poder dessa ascendência ao longo de sua obra, por meio de inúmeras referências ao pensamento do filósofo, o que nos permite afirmar que Schopenhauer não só é fonte de leitura de Freud como também um dos precursores de muitas noções psicanalíticas. É o próprio Freud quem afirma, textualmente, que a filosofia de Schopenhauer antecipa muitas ideias fundamentais que serão mais tarde incorporadas pela psicanálise.

Diversos comentadores admitem um elo inegável entre diversas noções do pensamento de Schopenhauer e certas questões da psicanálise freudiana. Entre eles, Clément Ros-set, autor do prefácio à edição francesa da obra capital de Schopenhauer, Le monde comme volonté et comme représentation, que considera que "a filosofia de Schopenhauer contém o germe do pensamento de Nietzsche e de Freud" (2009, p. 35).

Paul-Laurent Assoun, em seu livro Freud, a filosofia e os filósofos, salienta a presença constante do personagem Schopenhauer na mente de Freud, que, por associação de ideias, é facilmente atualizada. Assoun fala que, "nesse filósofo maldito, Freud identifica secretamente o reflexo do pária excluído da comunidade científica, que era ele" (1978, p. 172). Para Assoun, trata-se de uma clara identificação do pensador Freud com Schopenhauer, no que tange à solidão enfrentada por ambos diante da recusa na aceitação das ideias deles pela comunidade científica da época específica de cada um, banhada pelo racionalismo. Assoun considera que,

na realidade, é o "solitário de Frankfurt"2 que é evocado aqui e que, a partir de 1831, e durante uns vinte anos, conheceu uma existência e produziu uma obra quase totalmente desconhecida. O que surpreende Freud é a dissonância entre o homem e seu tempo, entre a certeza da importância da mensagem e a incompreensão do século. Ora, essa simpatia repousa num mecanismo de identificação notável entre "o solitário de Frankfurt" e "o solitário de Viena", o próprio Freud no período dos inícios da psicanálise, tal como ele se evoca na Selbstdarstellung: "Durante mais de uma década depois de separar-me de Breuer, não tive nenhum discípulo. Encontrava-me isolado. Em Viena, evitavam-me, o estrangeiro nada conhecia de mim". (1978, p. 172)

Assoun acrescenta que está em jogo um parentesco ideológico, em que Freud e Schopenhauer são os sujeitos e os emissários, com mais ou menos um século de intervalo, de uma verdade fundamental que, por seu conteúdo, inflige uma ferida ao narcisismo humano e os condena a uma espécie de maldição ideológica. A inversão na relação de hierarquia entre a razão e a Vontade, no filósofo, ou entre a razão e a pulsão, em Freud, e seus desdobramentos é a questão maldita e recusada pela tradição filosófica marcada pelo racionalismo.

Jean Hyppolite, outro comentador, em seu livro Ensaios de psicanálise e filosofia, diz que as ideias de Freud já tinham sido pretendidas por pensadores anteriores, mas sublinha que é Freud quem clareia o caminho para que se faça notar em seus predecessores, como Schopenhauer, aquilo que o antecede. Hyppolite considera Freud não só o descobridor de uma nova terapêutica aplicada às neuroses como também um homem raro que abre um novo caminho para interpretar a realidade humana:

Um desses homens de gênio (tão raros) que desvelam, descobrem um novo caminho. Muito antes e retrospectivamente, pode-se muito bem dizer que outros já haviam pressentido ou indicado o que foi assim descoberto, mas de qualquer maneira foi necessário este esclarecimento novo para que se notasse em seus predecessores o que Freud pela primeira vez exprimiu claramente. (1989, p. 88)

Hyppolite concorda com Assoun que Freud teve o mérito de perseguir o desvelamento de uma verdade antes pressentida, mesmo que esse desvelamento fosse penoso e decepcionante, na medida em que desmistificava o homem. Hyppolite declara que a psicanálise introduziu questões indispensáveis para a reflexão filosófica.

Jair Barboza, filósofo da atualidade, é outro comentador que também reafirma que "a psicanálise de Freud absorve por completo a teoria dos impulsos inconscientes, o papel nuclear da sexualidade na vida humana, o retorno ao inorgânico etc. de O mundo como vontade e como representação" (2005, p. 11), obra capital de Schopenhauer. Barboza acrescenta que Schopenhauer é o pioneiro das chamadas filosofias do impulso, como a de Nietzsche, e é quem lança as bases sobre as quais será erguida a psicanálise:

Schopenhauer, de fato, está na base do pensamento contemporâneo. Ora, se ele abre o horizonte para as filosofias do impulso, como a de Nietzsche, e a psicanálise de Freud, então em vez de dizer que os pilares do pensamento contemporâneo são Nietzsche, Freud e Marx, como o quer Foucault, talvez mais acertado seria dizer que esses pilares são Schopenhauer e Marx. Sem o primeiro a filosofia da Vontade de poder e a psicanálise seriam impensáveis. (2005, pp. 11-12)

A seguir, a partir da investigação de diversos textos freudianos, mostraremos como se desenvolve o parentesco entre os dois pensadores de que estamos tratando neste estudo.

Em um dos seus primeiros escritos, o "Projeto para uma psicologia científica", de 1895, Freud usa a palavra "vontade", o derivado dos instintos, para designar o impulso que sustenta toda a atividade psíquica:

No momento em que a via de condução alcança seu nível de saturação, essa acumulação não tem limites. Aqui os neurônios impermeáveis estão à mercê de Q, catexia, e é assim que no interior do sistema surge o impulso que sustenta toda a atividade psíquica. Conhecemos essa força como vontade - o derivado dos instintos. (1950[1895]/1976f, p. 421)

Mais adiante, no mesmo texto, Freud fala que "o sono se caracteriza por uma paralisia motora (paralisia da vontade). A vontade é a descarga total da Qn do sistema de neurônios impermeáveis" (p. 445). É só mais tarde que Freud usará a denominação pulsão.

A primeira referência a Schopenhauer feita por Freud já comparece em um de seus textos iniciais, o célebre A interpretação dos sonhos, de 1900. Nele, Freud declara a colaboração decisiva de Schopenhauer em sua reflexão sobre as origens dos sonhos ao dizer:

A linha de argumentação desenvolvida pelo filósofo Schopenhauer, em 1851, exerceu decisiva influência em grande parte dos escritores. Nosso quadro do universo, segundo seu ponto de vista, é alcançado por nosso intelecto tomando-se as impressões que estão ligadas a ele e remodelando-as sob as formas de tempo, espaço e causalidade. Durante o dia, os estímulos do interior do organismo, do sistema nervoso simpático, exercem, no máximo, um efeito inconsciente sobre o nosso estado de espírito. Mas à noite, quando não estamos mais ensurdecidos pelas impressões do dia, as que surgem de dentro são capazes de atrair atenção - do mesmo modo que, à noite, podemos ouvir o sussurrar de um regato que é abafado pelos ruídos do dia. Mas como irá o intelecto reagir a esses estímulos, senão executando sua própria função peculiar sobre eles? Os estímulos são, em consequência, remodelados em formas que ocupam espaço e tempo e obedecem às regras da causalidade e assim surgem os sonhos. (1900/1976c, p. 38; itálico nosso)

Nessa citação, Freud afirma o lugar de importância ocupado pelo sonho no pensamento de Schopenhauer, lugar esse sempre renegado pelo racionalismo ocidental, mas que será incorporado mais tarde por Freud. Ao afirmar que "temos sonhos", o filósofo se indaga não só se "não seria toda a vida um sonho" como também se haveria "um critério seguro para distinguir o sonho da realidade, os fantasmas dos objetos reais". Schopenhauer responde que "sonho e realidade fluem conjuntamente, confundindo-se" (2005, pp. 59-61), e assim traz para bastante próximo de nós, psicanalistas, "o parentesco íntimo entre vida e sonho". Schopenhauer recorre a várias passagens poéticas consonantes com sua teoria sobre os sonhos. Dentre muitas, evoca Píndaro, ao dizer que "O homem é o sonho de uma sombra"; e Sófocles, que no verso 125 de Ájax declama: "Vejo que nós, viventes, nada somos senão figuras ilusórias, imagens de sombras fugidias". Evoca ao lado deles Shakespeare, em A tempestade, ao falar que "Somos feitos do mesmo estofo que os sonhos, e a nossa breve vida está rodeada de um sono". E também a Calderón de la Barca, que, tão profundamente imbuído da mesma visão, a expressa, por assim dizer, através de um drama intitulado A vida é sonho. Por fim, metaforiza que "a vida e os sonhos são folhas de um mesmo livro. A leitura encadeada se chama vida real". Ao evocar os poetas, diz que "somos obrigados a conceder aos poetas que a vida é um longo sonho" (Schopenhauer, 2005, pp. 59-61). A partir dessas ideias, podemos pensar que Freud, provavelmente, tenha vislumbrado nelas o princípio de continuidade entre o sonho e a realidade.

Prossigamos com nossa pesquisa. Schopenhauer, ao dar um lugar central aos impulsos inconscientes e sexuais do corpo, adquire uma relevância epistemológica na filosofia ocidental, incluindo o corpo do investigador, sua subjetividade, no conhecimento. O filósofo se refere a um corpo com impulsos inconscientes, e o principal deles é o impulso sexual, ou seja, o impulso sexual é o foco da Vontade, esse ímpeto cego desejante, eternamente insatisfeito. No prefácio à quarta edição dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud enfatiza o lugar central desempenhado pela sexualidade na vida psíquica, inclusive na da criança de tenra idade, o que custou a ele a acusação de que a psicanálise era um pansexualismo. Nesse texto, ao tratar da influência do sexual nas ações humanas, Freud também reconhece Schopenhauer como o seu precursor:

Contudo, precisamos ainda ter em mente que muito do que este livro contém - sua insistência sobre a importância da sexualidade em todas as realizações humanas e a tentativa que faz para ampliar o conceito de sexualidade - forneceu, desde o início, os mais fortes pretextos da resistência contra a psicanálise. Certas pessoas chegaram ao extremo, em sua busca de termos pomposos e de fácil aceitação, de mencionar o "pansexualismo" da psicanálise e de acusá-la levianamente de "tudo" explicar pelo sexo. Isto poderia nos espantar se nos fosse possível esquecer como os fatores emocionais tornam as pessoas confusas e esquecidas. Pois já faz muito tempo que Arthur Schopenhauer, o filósofo, mostrou à humanidade o quanto suas atividades são determinadas pelos impulsos sexuais, no sentido comum da expressão. (1905/1976i, p. 134; itálico nosso)

Posteriormente, no texto "Uma dificuldade no caminho da psicanálise", de 1917, Freud reafirma que o filósofo Schopenhauer é aquele que, mais do que outros, não só inaugura a ideia da Vontade inconsciente, que Freud equiparará textualmente às pulsões da psicanálise, como também anuncia aos homens "o seu ser sexual" ao ressaltar a gênese sexual da Vontade. Cogita-se que Freud provavelmente tivesse em mente uma passagem em que Schopenhauer, ao refletir sobre o caráter do desejo sexual, atribui seu predomínio em relação aos demais desejos: "ele é diferente de qualquer outro desejo: [...] não é apenas o mais forte, é, porém, mesmo especificamente, de um tipo mais poderoso que qualquer outro" (Schopenhauer, citado por Freud, 1924/1976h, pp. 277-278). E Freud prossegue:

Provavelmente muito poucas pessoas podem ter compreendido o significado, para a ciência e para a vida, do reconhecimento dos processos mentais inconscientes. Não foi, no entanto, a psicanálise, apressemo-nos a acrescentar, que deu esse primeiro passo. Há filósofos famosos que podem ser citados como precursores - acima de todos, o grande pensador Schopenhauer, cuja "Vontade" inconsciente equivale às pulsões mentais da psicanálise. Foi esse mesmo pensador, ademais, que, em palavras de inesquecível impacto, advertiu a humanidade quanto à importância, ainda tão subestimada pela espécie humana, da sua ânsia sexual. A psicanálise tem apenas a vantagem de não haver afirmado essas duas propostas tão penosas para o narcisismo - a importância psíquica da sexualidade e a inconsciência da vida mental - sobre uma base abstrata, mas demonstrou-as em questões que tocam pessoalmente cada indivíduo e o forçam a assumir alguma atitude em relação a esses problemas. É somente por esse motivo, no entanto, que atrai sobre si a aversão e as resistências que ainda se detêm, com pavor, diante do nome do grande filósofo. (1917/1976a, pp. 178-179, itálicos nossos)

Em "As resistências à psicanálise", de 1924, Freud retoma a acusação de pansexualismo e interpreta que a resistência da maioria dos filósofos às suas ideias se deve ao fato de admitirem a psique restrita à esfera da consciência. E, então, Freud destaca a posição contrária de Schopenhauer e reafirma a contribuição desse filósofo não só no âmbito dos processos psíquicos inconscientes como também no largo alcance do seu conceito de sexualidade. Freud declara:

A significação incomparável da vida sexual havia sido proclamada pelo filósofo Schopenhauer em uma passagem intensamente marcante. Ademais, aquilo que a psicanálise chamou de sexualidade não era em absoluto idêntico ao impulso no sentido de uma união dos dois sexos ou no sentido de produzir uma sensação prazerosa dos órgãos genitais; tinha muito mais semelhança com o Eros, que tudo inclui e tudo preserva, do Banquete de Platão.

Os opositores da psicanálise esqueceram, contudo, seus precursores; caíram sobre ela como se houvesse cometido uma agressão à dignidade da raça humana. Acusam-na de "pansexualismo", embora a teoria psicanalítica das pulsões tivesse sido sempre estritamente dualista e em tempo algum deixasse de reconhecer, juntamente com as pulsões sexuais, outras a que realmente atribuiu força suficiente para suprimir as pulsões sexuais. (Essas forças mutuamente opostas foram inicialmente descritas como as pulsões sexuais e as pulsões do ego. Um desenvolvimento teórico posterior transformou-as em Eros e pulsão de morte ou destruição). (1924/1976h, pp. 270-271, itálico nosso)

Assoun explicita que a sexualidade em Schopenhauer não se reduz à "concepção estreita de uma sexualidade genital e procriadora" (1978, pp. 182-183). Maria Lucia Cacciola é outra comentadora que está de acordo com a ideia de que Schopenhauer não pensa a sexualidade de forma redutora, pois, para o filósofo, "a sexualidade expande-se e amolda-se nas várias manifestações da vida afetiva e intelectual" (1995, p. 59).

No livro Passeios ao léu, Gérard Lebrun lembra que as ideias de Schopenhauer pairavam na atmosfera de Viena na época de Freud, e que a leitura de seu pensamento

foi frutífera, e Freud homenageia Schopenhauer por ter sido capaz de ver que "a pulsão sexual representa a encarnação da vontade de viver". O que é mera justiça, pois o Eros freudiano já está em ampla medida presente n'O mundo como vontade e representação. (1983, p. 91)

Para Lebrun, o realce dado por Schopenhauer à gênese sexual da Vontade é "a sua certidão de nascimento":

O instinto sexual é a substância da vontade de viver e representa a sua concentração. Assim, chamei justamente as partes genitais de foco da vontade. Mais, até pode-se dizer que o homem é um instinto sexual que tomou corpo... só este instinto liga e perpetua o conjunto dos seus fenômenos. Sem dúvida, a vontade de viver manifesta-se inicialmente enquanto esforço para a conservação do indivíduo; mas aí se trata apenas de um degrau no esforço para a conservação da espécie. (Schopenhauer, citado por Lebrun, 1983, p. 91)

Assim, na esfera humana a Vontade e a sexualidade são conceitos que se recobrem e tomam a dianteira sobre os processos racionais.

Continuando nosso cotejamento, veremos que por meio da teoria do recalque podemos evidenciar mais um parentesco entre Schopenhauer e Freud. No texto "A história do movimento psicanalítico", de 1914, em que há o registro da teoria do recalque como a pedra angular sobre a qual repousa a estrutura da psicanálise, Freud acaba, após hesitação, por designar Schopenhauer como seu antecessor nessa teorização:

A teoria do recalque sem dúvida alguma ocorreu-me independentemente de qualquer outra fonte; não sei de nenhuma impressão externa que me pudesse tê-la sugerido, e por muito tempo imaginei que fosse inteiramente original, até que Otto Rank [...] nos mostrou um trecho da obra de Schopenhauer World as Will and Idea na qual o filósofo procura dar uma explicação da loucura. O que ele diz sobre a luta contra a aceitação da parte dolorosa da realidade coincide tão exatamente com o meu conceito de repressão que, mais uma vez, devo a chance de fazer uma descoberta ao fato de não ser uma pessoa muito lida. [...] Tive, portanto, de me preparar - e com satisfação - para renunciar a qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo reconheceu por intuição. (1914/1976b, pp. 25-26; itálicos nossos)

De fato, desde os primeiros estudos sobre histeria, em 1895, Freud percorre o mecanismo do recalque; porém, o estabelecimento do estatuto metapsicológico desse conceito ocorre somente em 1915, nos Artigos sobre metapsicologia.

Sabemos que a teoria das pulsões ocupa um lugar privilegiado na psicanálise freudiana e nos remete ao centro da atividade criadora de Freud, àquilo que nele há de mais inovador, mais perturbador e de ruptura com os saberes de sua época. E é exatamente na elaboração de sua concepção dualista da vida pulsional, em "Além do princípio do prazer" - texto significativo em que Freud opera uma guinada em seu pensamento ao enfatizar a força da pulsão de morte na psique -, que Freud diz encontrar abrigo na baía da filosofia de Schopenhauer:

Detenhamo-nos por um momento nessa concepção notadamente dualista da vida pulsional. De acordo com a teoria de E. Hering, na substância viva operam ininterruptamente dois tipos de processos, em direções opostas - uns construtivos, anabólicos, os outros destrutivos, catabólicos. Podemos ousar reconhecer, nessas duas direções dos processos vitais, a atividade de nossos dois movimentos pulsionais, das pulsões de vida e das pulsões de morte? E há outra coisa que não podemos ignorar: que inadvertidamente adentramos o porto da filosofia de Schopenhauer, para quem a morte é "o autêntico resultado" e, portanto, o objetivo da vida, enquanto a pulsão sexual [Sexualtrieb] é a encarnação da vontade de vida. (1920/2010, pp. 219-220; itálico nosso)

Desta forma, Freud revela a influência da filosofia de Schopenhauer na constituição de sua visão dualista da vida pulsional, Eros e Thanatos, e reconhece a existência da pulsão sexual, de vida, e da pulsão de morte no pensamento de Schopenhauer.

Lebrun estabelece um confronto e, ao mesmo tempo, certa analogia entre a metafísica de Schopenhauer e a metapsicologia freudiana ao dizer que "Freud, é verdade, não profere este discurso extremo. Mas nem por isso o essencial da metafísica de Schopenhauer deixou de passar para a metapsicologia: aqui, ali, os indivíduos são apenas crispações efêmeras na superfície do 'gérmen' imortal" (1983, p. 92).

No texto "Ansiedade e vida pulsional", a XXXII das Novas conferências introdutórias, de 1933, Freud traz inovações teóricas e aprofundamentos metapsicológicos. Nele, o autor faz uma afirmação acerca do estatuto e do lugar fundamental que a teoria das pulsões, considerada uma mitologia, ocupa em seu pensamento. Faz também menção a Schopenhauer ao refletir sobre a característica conservadora da pulsão de autodestruição e ao conceber que as pulsões eróticas trabalham para a constituição de unidades cada vez maiores, culminando com a própria sociedade humana como um todo, ao passo que as pulsões de morte se opõem às pulsões eróticas e procuram desfazer suas construções:

Se é verdade que - em alguma época incomensuravelmente remota e de um modo irrepresentável - a vida se originou da matéria inorgânica, então, de acordo com nossa suposição, deve ter surgido uma pulsão que procurou eliminar a vida novamente e restabelecer o estado inorgânico. Se reconhecemos nessa pulsão a autodestruição de nossa hipótese, podemos considerar a autodestruição como expressão de uma pulsão de morte que não pode deixar de estar presente em todo processo vital. Ora, as pulsões, nas quais acreditamos, dividem-se em dois grandes grupos -as pulsões eróticas, que buscam acumular cada vez mais substância viva em unidades cada vez maiores, e as pulsões de morte, que se opõem a essa tendência e levam o que está vivo a um estado inorgânico. Da ação concorrente e antagônica entre essas duas pulsões procedem os fenômenos da vida que chegam ao seu fim com a morte. (Freud, 1933/1976e, pp. 133-134)

Ao prosseguir, Freud se pergunta:

Talvez os senhores venham a sacudir os ombros e dizer: "Isso não é ciência natural, é filosofia de Schopenhauer!" Mas, senhoras e senhores, por que um pensador ousado (Schopenhauer) não poderia ter entrevisto algo que depois se confirma por intermédio de uma pesquisa séria e laboriosa? (1933/1976e, p. 134)

No entanto, logo em seguida, Freud relativiza essa vizinhança:

E mais, o que estamos dizendo não é nem mesmo Schopenhauer autêntico. Não estamos afirmando que a morte é o único objetivo da vida; não estamos desprezando o fato de que existe vida, assim como existe morte. Reconhecemos duas pulsões fundamentais e atribuímos a cada uma delas a sua própria finalidade. Como ambas se mesclam no processo de viver e como a pulsão de morte é posta a serviço dos propósitos de Eros, sobretudo, em sua volta para o exterior como agressividade - são problemas que ficam postos para a investigação futura. (1933/1976e, p. 134)

Barboza, ao nos lembrar da presença do monismo da Vontade, faz um esclarecimento a respeito dessa relativização operada por Freud:

De fato, para Schopenhauer não existem dois impulsos autônomos que jogam entre si para constituir o mundo, mas apenas a Vontade de vida é o mais real dos objetos, e o jogo entre vida e morte é emanação dela - é o chamado monismo da Vontade. E aquele jogo, enquanto fenômeno no espaço e no tempo vinculados pela causalidade, é uma aparência não essencial, é uma grande ilusão. (2004, p. XXII)

Para terminar, não podemos deixar de lado a tão conhecida fábula dos porcos-espinhos de Schopenhauer, "expressão de sua luta pela existência" (Rosenfeld, 2007, p. 52), retomada mais tarde por Freud:

Um grupo de porcos-espinhos ia perambulando num dia frio de inverno. Para não congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros. Mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhamento e o enregelamento. (Schopenhauer, 2009, p. 1467)

A metáfora diz respeito à ideia de um ciclo, que se repete constantemente na convivência conflitiva entre as pessoas, que envolve uma luta infindável na tentativa de encontrar uma distância confortável entre a frieza do afastamento e os espinhos da intimidade. Em consonância com Schopenhauer, Freud também concebe o vínculo entre as pessoas como a fonte, dentre outras, mais espinhosa, no sentido de ser aquela que produz mais sofrimento no homem. No texto "Psicologia de grupo e análise do ego", Freud retoma a fábula e explicita:

Mantenhamos perante nós a natureza das relações emocionais que existem entre os homens em geral. De acordo com o famoso símile schopenhaueriano dos porcos-espinhos que se congelam, nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo.
Os dados da psicanálise mostram que quase toda relação afetiva íntima de certa duração entre duas pessoas - casamento, amizade, relações entre pais e filhos - contém um depósito sedimentar de sentimentos de aversão e hostilidade, que só escapa à percepção em decorrência do recalque. (1921/1976g, p. 56; itálico nosso)

Assim, no vaivém de convergências e divergências, evidenciamos a presença de ecos da filosofia de Schopenhauer, que instaura em seu âmago a Vontade como impulso indeterminado, no universo pulsional freudiano, guardando as especificidades de cada campo. Podemos também pensar que Schopenhauer, ao revolucionar o discurso filosófico, não só por meio da inversão da relação entre a razão e a Vontade como também pelo lugar central por ele atribuído ao corpo como portador de uma vontade sexual cega, se dirige para o universo dos afetos e desejos humanos.

 

Referências

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Correspondência:
Jassanan Amoroso Dias Pastore
Rua Capote Valente, 432, conj. 82
05409-001 São Paulo, SP
jassanan@uol.com.br

Recebido em 23.04.2014
Aceito em 06.08.2014

 

 

1 Jair Barboza esclarece que "Vontade" é escrita por Schopenhauer com "v" maiúsculo porque é a coisa em si, a natureza toda, e também para diferenciá-la da vontade individual, grafada com "v" minúsculo, que vem a ser uma objetidade da Vontade (2005, p. 169, nota 8).
2 Schopenhauer viveu em Frankfurt de 1831 até sua morte em 1860.

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