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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo Sep./Dec. 2014

 

ARTIGOS

 

H.D., Berggasse 19, 1933: "A mais deliciosa relação em vers libre"

 

H.D., Berggasse 19, 1933: "e most luscious vers libre relationship"

 

H.D., Berggasse 19, 1933: "La más deliciosa relación en vers libre"

 

 

Silvana Rea

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), doutora em Psicologia da Arte pela Universidade de São Paulo (USP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Em 1933, a poetisa americana Hilda Doolittle iniciou uma curta análise com Freud, retomada em 1934 e relatada por ela em duas narrativas e inúmeras cartas. Este trabalho tem como tema esse processo de análise e suas repercussões, focando em questões de escrita, gênero e sexualidade.

Palavras-chave: Hilda Doolittle (H.D.); Freud; psicanálise; poesia; sexualidade.


ABSTRACT

In 1933, the American poet Hilda Doolittle began a short analysis with Freud, resumed in 1934 and reported by her in two narratives and numerous letters. This work has as its theme this process of analysis and its repercussions, focusing on issues of writing, gender and sexuality.

Keywords: Hilda Doolittle (H.D.); Freud; psychoanalysis; poetry; sexuality.


RESUMEN

En el 1933, la poetisa estadounidense Hilda Doolittle comenzó un breve análisis con Freud, retomado en el 1934 y reportada por ella en dos narraciones y numerosas cartas. Este artículo se centra en el proceso de análisis y sus repercusiones, con enfoque en cuestiones de escritura, género y sexualidad.

Palabras clave: Hilda Doolittle (H.D.); Freud; psicoanálisis; poesía; sexualidad.


 

 

Em abril de 1933, a poetisa americana Hilda Doolittle escreve ao escritor e cineasta Kenneth Macpherson: "Estamos tendo a mais deliciosa relação em versos livres" (Friedman, 2002, p. XIII). Referia-se à sua análise com Freud, iniciada em março de 1933, interrompida após cinco semanas em decorrência de atentados a bomba, no crescente quadro de violência da Viena pré-guerra, e retomada em 1934. Era o prenúncio do Holocausto, e Hilda busca o Mestre - maestro, professor, o velho, o alquimista, guardião do farol, como o chamava - apavorada com o conflito bélico que se aproximava (Friedman, 2002).

Freud estava idoso e doente, mas ainda vigoroso e sagaz. Vivia o epicentro do conflito no movimento psicanalítico internacional, ainda que contasse com sua filha e mais devotada discípula, Anna. Acabara de publicar O mal-estar na civilização e em breve apresentaria as Novas conferências introdutórias, com artigos sobre o sonho e o feminino.

A menção ao verso livre não se refere apenas à maneira como o Mestre propunha a conversa, em livre associação. Trata-se também do compromisso poético do Imagismo, movimento batizado por Ezra Pound e que, além da métrica livre na poesia, adota como tarefa a clareza expressiva pelo uso de imagens visuais (Pollmanns, n.d.).

Hilda imagista surge em 1912, com a publicação de seus poemas sob o pseudônimo H.D., atribuído a ela por Pound, seu amigo e amante, e com o incentivo do poeta britânico Richard Aldington. Apresentando-se como H.D., que não oferece indícios quanto a tratar-se de um homem ou de uma mulher, ela adota uma máscara andrógina, assumindo uma identidade que vai além do gênero - e se apresenta como questão (Friedman, 1981). Pois sua adesão à revolução estética do Imagismo acompanha o desejo de romper o modelo tradicional de família e experimentar formas de sexualidade (Roudinesco, 2012).

De fato, após separar-se de Pound, ela se apaixona por uma aluna dele, Frances Gregg, com quem parte para a Europa, mantendo simultaneamente uma relação com o escritor D. H. Lawrence. Anos depois Frances se casa com Louis Wilkinson e convida H.D. para uma vida a três, mas ela prefere casar-se com Aldington. Na Inglaterra, vive em uma comunidade de artistas americanos expatriados, engajados na vanguarda.

Em 1933, H.D. estava com 47 anos e era considerada uma das grandes poetisas de sua época. Seria a primeira mulher a receber a Medalha de Honra de poesia da Academia Americana de Letras e Artes, em 1960. Não sabia disso ao chegar ao consultório de Freud; encontrava-se em completa esterilidade criativa. O horror da Primeira Guerra e a iminência da próxima fazem com que a visão poética imagista fique sem sentido para ela, gerando a necessidade por uma arte que pudesse proporcionar novos questionamentos (Friedman, 2002).

O que a leva a Freud, em parte, já estava em seu diário, em 1930: "Jamais me senti completamente satisfeita com nenhum de meus livros, publicados ou não" (Doolittle, 2012, p. 170).

H.D. vinha fragilizada por uma série de colapsos, provocados por acontecimentos em sua vida pessoal. Filha de um notável astrônomo e de uma pintora amadora de forte espiritualidade, ela se sentia rejeitada pela mãe (que preferia o irmão Gilbert) e uma decepção para o pai, por ter abandonado o colégio e a carreira de cientista para se dedicar à poesia. Do casamento com Aldington, teve uma filha natimorta em 1915, evento seguido pela morte do irmão no front e pelo derrame fatal do pai em consequência da notícia. Aldington inicia uma série de relacionamentos extraconjugais e a encoraja a se relacionar com o compositor e crítico musical Cecil Gray, de quem engravida de sua única filha, Perdita. Trata-se, porém, de uma gestação de alto risco: ela contrai a gripe espanhola e quase morre. Com o fim de seu casamento, Aldington recusa-se a assumir a paternidade da criança e ameaça internar H.D. em um sanatório e deixá-la sem a filha (Friedman, 2002).

Sua sobrevivência deve-se ao encontro com Bryher, herdeira milionária, que não apenas custeou seu tratamento, salvando-lhe a vida e a do bebê, como a ajudou a acreditar na legitimidade de seu desejo de rejeitar o lugar feminino no universo doméstico - onde se confinara o talento da mãe - e se tornar escritora. Nascida Annie Winifred Ellerman, Bryher adota como pseudônimo o nome de uma ilha selvagem da costa de Cornwall para sinalizar o repúdio às obrigações com sua poderosa família. Engajada no universo psicanalítico desde os anos 1920, Bryher era leitora de Freud e tinha a intenção de ser analista (Friedman, 2002).

Companheira e apoio permanente até a morte de Hilda, em 1961, juntas viveram a efervescência da vanguarda no entreguerras, mantendo uma relação estável que incluía diversos affaires de H.D., assim como os casamentos de Bryher com Robert McAlmon e com o amante de H.D., Kenneth Mcpherson. Morando juntos, os três fundam a revista de cinema Close-up e a produtora The Pool Group, em cujos filmes H.D. também atua. Entre eles Borderline, película de 1930, que apresenta diversos estados da mente sob a influência das ideias de Freud e da montagem cinematográfica soviética (Friedman, 1981).

Buscando novos caminhos, a partir dos anos 1920, ela começa a escrever ficções autobiográficas em forma de novelas e contos, provocando surpresa às expectativas de que se mantivesse fiel à poética imagista. Aprisionada em sua reputação, ela escreve: "As pessoas acham que sabem mais do que eu sobre o que sou ou o que devo ser. [...] E eu digo: quem é H.D.?" (Friedman, 1981, p. 6).

Foi pelas mãos de Pabst, cineasta de Segredos de uma alma,1 que Bryher conheceu Hanns Sachs, com quem inicia análise em 1928. Convencida de que a neurose bloqueava o fluxo criativo dos artistas, indicou a muitos a psicanálise, que ela considerava a cura para os males da era moderna (Friedman, 2002).

H.D. tivera uma experiência considerada insatisfatória e encerrada abruptamente em 1931 com Mary Chadwick, que, segundo ela, não conseguia acompanhar a sua mente criativa. Foi Sachs quem sugeriu que ela fosse a Freud, facilitando a intermediação de Bryher, que em 1932 escreve ao professor solicitando análise para H.D., que não mais escrevia. Apresenta-a como sua prima e anexa uma recomendação de Havelock Ellis. Em 1933, H.D. escreve para Mcpherson:

Recebi uma simpática carta de Ellis sobre minha ida a Freud. Ele disse que eu aproveitaria muito o contato com Freud, ainda que a análise não me fizesse bem. E diz que, no entanto, como parecemos manter um significativo caso lésbico, então é melhor eu ficar, como se diz, por dentro. (Friedman, 2002, p. 3)

Com Freud, ela fez "irrevogavelmente a transferência" (Friedman, 1981, p. 18.). E como Bryher manteve com ele e sua filha Anna forte amizade, Freud termina por lhe confidenciar que H.D. estava entre seus pacientes mais interessantes. Estimava o seu espírito fino e sofisticado. O que não é de se espantar, pois já em 1914 ele afirmara que um leigo instruído é "a pessoa civilizada ideal, em relação à psicanálise" (Freud, 1914/1969, p. 209).

Da irrevogável transferência brotaram dois relatos de H.D.: "Advento", diário de sua análise, e "Escrito na parede", memórias da análise escritas dez anos depois dela e sem consulta às anotações anteriores.

* * *

Em parte, H.D. buscou Freud desejando entender a experiência psicótica que tivera numa viagem à Grécia em 1919, com alucinações acompanhadas do sentimento de estar suspensa em uma água-viva, que o Professor entendeu como uma regressão ao desejo infantil de união com a mãe, o sentimento oceânico de fusão - um episódio tão marcante que a fez solicitar que Bryher e Kenneth Macpherson adotassem Perdita.

Aqui, Freud já abandonara a concepção de que o desenvolvimento psicossexual da menina e do menino fosse simétrico e que a essência da libido fosse masculina. Desde 1920, com "Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina", ele indicara a eventualidade de uma fixação infantil da menina em relação à mãe. Em "O ego e o id" (1923/2011a), apresenta duas formas do complexo de Édipo em razão da bissexualidade psíquica, considerando que "todos os indivíduos normais apresentam, ao lado de sua heterossexualidade manifesta, uma proporção muito considerável de homossexualidade latente ou inconsciente" (Freud, 1920/2011b, p. 148). E já afirmara que não caberia à psicanálise resolver as questões da homossexualidade, mas "contentar-se em desvendar os mecanismos psíquicos que levaram à decisão na escolha do objeto" (p. 148).

Ao receber H.D., havia publicado "Sobre a sexualidade feminina" (1931/2010), em que reitera a diferença entre o Édipo feminino e o masculino e a existência da fase pré-edípica de ligação com a mãe. Mais: afirma a importância dessa fase nas mulheres, considerando-a "uma descoberta semelhante à da civilização minoico-micênica por trás da grega", cujos resíduos podem impedir um voltar-se para os homens (p. 379).

Assim, afirmava que a felicidade de H.D. com Bryher devia-se à recriação da relação mãe-bebê, apoiando as interpretações em suas teses recém-elaboradas; também, que ela viera a Viena para reencontrar nele um aspecto feliz de sua mãe, que ali tinha passado lua de mel; que as alucinações na ilha Corfu, na tão sonhada estadia na Grécia, em grego Hellas, civilização helênica, como o nome de sua mãe, Helen, eram um desejo de estar unida a ela. Associado a sua busca materna inconsciente, Freud via um forte desejo de ser um menino. Mas H.D. completa: não era apenas o desejo de ser um menino, mas o desejo de ser um herói - personagem literário até então exclusivamente masculino (Doolittle, 2012).

H.D. era a única mulher entre irmãos exemplares e sempre se sentiu desconfortável com seu corpo, desajeitada e muito alta para uma menina. Em permanente conflito por ser uma artista contra as normas da sociedade, sentia-se vulnerável, sendo um solitário elemento feminino em um mundo masculino, e acreditava que seu sucesso como poetisa era prova de sua falência como mulher. Portanto, suas possibilidades artísticas passavam pelo questionamento acerca de sua feminilidade. Sofria de inibição sexual e de ameaça de fragmentação identitária quando se relacionava com os homens, diferentemente de sua relação com mulheres. Para Freud, apresenta como paixão a relação com Frances Gregg e Bryher. Mas ele, guiado por sua teoria do determinismo biológico, em que anatomia é destino, diz que ela jamais poderia ser biologicamente feliz com Gregg (Friedman, 1981).

Essa e outras teorias freudianas sobre as mulheres provocavam a discordância de H.D., como anota em seu diário:

Fiquei bastante irritada com o Professor [...] ele disse que as mulheres, do ponto de vista criativo, não valem nada ou não valem muito, a não ser que tenham um homólogo ou um companheiro masculino de quem elas tiram sua inspiração. (Doolittle, 2012, p. 171)

Algumas discordâncias não foram expressas abertamente a ele - como o poema "O Mestre" (Doolittle, 1988, p. 101), em que H.D. mostra sua ira contra "o velho" e que ela não publicou enquanto Freud estava vivo. Segue um breve trecho:

I was angry with the old man
with his talk of the man-strength
I was angry with his mystery, his mysteries,
I argued till day-break;

O, it was late,
and God will forgive me, my anger,
but I could not accept it.

I could not accept from wisdom
what love taught,
woman is perfect

Talvez essas discordâncias, que a levavam a se opor a um homem a quem respeitava, fossem fundamentais para a sua formação como mulher-artista. Mas sabemos que não apenas elas ficavam de fora. H.D. continha-se para não mencionar em análise seu temor da ascensão nazista, pelo fato de Freud ser judeu. Para ela, era melhor "ter uma análise malograda ou atrasada do que revelar o meu verdadeiro terror da ameaça nazista" (Doolittle, 2012, p. 162). Do mesmo modo, evita discutir com ele a sua obsessão de que o tratamento seria interrompido por sua morte. E pede, em seu diário:

Eu teria tomado a ampulheta em minhas mãos e colocado-a na posição oposta para que as areias de sua vida tivessem tantos anos para frente quantos agora para trás. [...] Eu trocaria os meus anos de vida pelos dele; não seria um número tão generoso quanto eu desejava, mas faria alguma diferença. (Doolittle, 2012, p. 100)

Por outro lado, a premissa freudiana da natureza bissexual do ser humano pode tê-la ajudado em sua busca identitária na vida e na arte. Mantendo simultaneamente relações homossexuais e heterossexuais, ela se orgulha de sua diferença e, em carta a Bryher, escrita durante a análise, conta que Freud afirmara que ela era "um fenômeno quase extinto de bissexualidade" (Friedman, 1981, p. 47).

Freud considerava como o sintoma mais perigoso de H.D. os colapsos e as alucinações, e não há indícios de que tenha abordado na análise um desenvolvimento anormal da feminilidade ou feito qualquer movimento de "curar" a homossexualidade (Roudinesco, 2012). Ele se mantém fiel à sua posição de 1920, quando, diante da solicitação de um pai de que curasse sua filha, uma "criatura viciosa", talvez "uma degenerada" ou "uma doente mental", questiona o sucesso do tratamento, já que a garota não se interessava por mudar de inclinação sexual (Freud, 1920/2011b, p. 117).

Portanto, longe de responsabilizar H.D. por sua sexualidade, ele valorizava sua atividade criadora, ocupando transferencialmente o lugar que Pound deixara vago. Suas conversas giravam em torno de poesia e do "ser mulher". Pois, na irrevogável transferência, ela pôde viver os aspectos paternos e maternos, ciência e arte, na figura do Professor, vencedor do prêmio Goethe. Escreve no diário: "Estou nas fímbrias ou na penumbra da luz da ciência de meu pai e da arte de minha mãe e a psicologia ou filosofia de Sigmund Freud" (Doolittle, 2012, p. 167).

Vivendo na análise personificações de Perseu, José, Moisés, ela se viu uma mulher no papel desempenhado pelos homens. Cria, então, um modelo que não se conforma ao estereótipo feminino das poesias escritas por homens, para se tornar, como desejava, um herói em seus próprios termos. Reconhecendo o processo analítico como uma perigosa aventura espiritual, identifica Freud com Hércules, Prometeu e Asclépio, o guardião do conhecimento e da cura. E encontra paz no seu lugar de escritora em uma tradição literária eminentemente masculina (Friedman, 1981).

A compreensão de Freud em relação à sexualidade e ao tipo de família proposto por H.D. pode dever-se à relação dele com sua filha Anna. Nascida sem ter sido desejada - é o motivo da decisão de Freud por manter-se casto -, ela luta por reconhecimento, especialmente do pai, tornando-se sua discípula e analisanda. Sua escolha de objeto não passava pelos homens e Freud a estimula a sublimar em atividade intelectual intensa. Isso a leva a rejeitar a própria sexualidade e a desenvolver a ideia de cura para a homossexualidade. Mais tarde, Anna conhece Dorothy Tiffany Burlingham, que, para ficar próxima a ela, divorciare do marido e muda para Londres com os filhos, no apartamento de cima, na Berggasse 19. H.D. a chamava de "a amiga devotada da senhorita Anna Freud" (Doolittle, 2012, p. 89). Ainda que Anna jamais afirmasse sua posição homossexual, Freud considerava possuir laços simbióticos com a "família americana sem marido" (Roudinesco, 2012, p. 27).

Outro pilar da análise de H.D. foi a teoria de que o desenvolvimento individual recapitula o desenvolvimento da história da humanidade - de que a ontogênese repete a filogênese. Este modelo forneceu a ela um modo de conectar seus aspectos pessoais com os primórdios da civilização na arte e na religião, pela mitologia. Certa vez, Freud a convida a olhar as peças de antiguidade sobre sua mesa - o que a leva a associar o inconsciente a uma sala cheia de tesouros, como os objetos de arte sagrada da coleção do Mestre; a dizer que o consultório, com as obras antigas, simultaneamente representava sua alma individual e o passado da humanidade, em profunda ligação (Doolittle, 2012). Apropriando-se do sentido do processo analítico, cria a imagem de palimpsesto: a ideia da superposição de eventos similares através do tempo ajuda-a a entender seus colapsos (Hollenberg, 1991). Para ela, a jornada interior empreendida através da psicanálise era uma manifestação moderna do modelo universal de busca espiritual.

A ideia de que o inconsciente é um tipo de linguagem que opera por disfarces provocou um profundo impacto em seu pensamento estético. As imagens apresentadas por Freud, como a do arqueólogo nas ruínas de Roma ou a dos dois reinos contíguos com um porteiro entre eles, a estimulam a criar as suas. Ele é o Oráculo de Delfos, o decifrador de hieróglifos. H.D. traduz os conceitos de Freud para seu questionamento artístico e transforma sua análise em imagens visuais, "mitologizando-a" (Friedman, 1981).

A experiência de análise a ajudou a reestabelecer sua identidade artística, afastando-a do compromisso com a poesia imagista. Teve profundas repercussões em sua obra e sedimentou sua passagem para o Modernismo, ainda que Freud a ele fosse avesso. "O inconsciente é uma maneira inusual de pensar", diz ela. Um modelo de pesquisa para o processo poético, de retorno à mitologia grega como aspecto do primitivo - que a faz retomar o trabalho criativo até a explosão de sua escrita a partir dos anos 1940 (Friedman, 1981, p. 55).

Assim, H.D. realiza sua obra e sua análise em verso livre. Afinal, já em 1930 Bryher falara, em carta a ela, da importância do Professor para o movimento modernista: "não se pode escapar de Freud no mundo literário dos anos pós-Primeira Guerra" (Friedman, 2002, p. 101). Portanto, quando chegou a Berggasse 19, ela buscava o Mestre ciente da subversão da consciência e da linguagem que a psicanálise efetuara, reconhecendo nela a vertente poética - poética, acredito eu, modernista.

Por outro lado, Freud considerava Arthur Schnitzler seu gêmeo psíquico, seu duplo. E sentia profundo interesse (e até mesmo inveja) por artistas e escritores em seus atos de imaginação e devaneio. Um vigoroso escritor ele mesmo, "pesquisador-poeta", Freud não apenas conseguiu inserir a figura criadora do poeta no campo do saber científico como inaugurou um gênero de escrita, ao reconhecer o sofrimento psíquico como objeto de sua pesquisa (Pontalis & Mango, 2013). Em análise, confessa a H.D.: "Minhas descobertas não são essencialmente uma panaceia. Minhas descobertas são a base para uma relevante filosofia" (Doolittle, 2012, p. 51).

O encontro da poetisa com o psicanalista foi além das sessões de análise. Com o fim do processo, inicia-se intensa troca de cartas afetuosas entre eles, mantida até a morte do Professor.2 Certo é que Freud continuou em seu universo estético. Para H.D., ele permaneceu o artista, o maestro, o professor, o alquimista, o parteiro da alma, o guardião de todos os começos. Além do poema "O Mestre", em 1952, Freud torna-se o personagem Teseu em Helen in Egypt e, em 1956, ela publica Tribute to Freud,3 reunindo o diário de sua análise, "Advento" (1933), e a reconstrução da experiência, "Escrito na parede". No diário e na sua reinterpretação em forma narrativa, a continuidade do processo analítico - dois testemunhos concebidos como obra poética, que se desenrola em tempo imemorial, em tempo transferencial. Com Tribute to Freud, H.D. se faz personagem - faz da análise uma obra; faz de sua vida, poética.4 Quanto a Freud, talvez encontremos a presença de H.D. na resposta que dá à solicitação de uma mãe, em carta de 1935:

ao perguntar-me se eu poderia ajudar, suponho que você quer saber se posso abolir a homossexualidade e colocar a heterossexualidade normal em seu lugar. A resposta é que, de uma maneira geral, não podemos prometer conseguir isto. [...] O que a análise pode fazer por seu filho segue em outra direção. Se ele é infeliz, neurótico, torturado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode lhe trazer harmonia, paz de espírito, completo desenvolvimento de suas potencialidades, continue ou não homossexual. (Freud, 1987, p. 27)5

 

Referências

Doolittle, H. (1988). Selected poems. New York: New Directions.         [ Links ]

Doolittle, H. (2012). Por amor a Freud (P. M. Soares, Trad.). São Paulo: Zahar.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Observações sobre o amor transferencial. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 207-226). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914)        [ Links ]

Freud, S. (1987). Letter to an american mother. In R. Bayer, Homosexuality and american psychiatry (p. 27). Princeton: Princeton University Press.         [ Links ]

Freud, S. (2010). Sobre a sexualidade feminina. In S. Freud, Obras completas (P. C. L. Souza, Trad., Vol. 18, pp. 371-398). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1931)        [ Links ]

Freud, S. (2011a). O ego e o id. In S. Freud, Obras completas (P. C. L. Souza, Trad., Vol. 16, pp. 13-74). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1923)        [ Links ]

Freud, S. (2011b). Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina. In S. Freud, Obras completas (P. C. L. Souza, Trad., Vol. 15, pp. 114-149). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Friedman, S. S. (1981). Psyche reborn: the emergence of H.D. Indiana: University Press; Bloomington.         [ Links ]

Friedman, S. S. (2002). Analysing Freud: letters of H.D., Bryher and their circle. New York: New Directions.         [ Links ]

Hollenberg, D. K. (1991). H.D.: the poetics of childbirth and creativity. Boston: Northeastern University Press.         [ Links ]

Pollmanns, M. (n.d.). The imagistpoem: Hilda Doolitle - "Sea Rose". Grin. [eBook]         [ Links ]

Pontalis, J.-B. & Mango, E. G. (2013). Freud com os escritores (A. Telles, Trad.). São Paulo: Três Estrelas.         [ Links ]

Roudinesco, E. (2012). Prefácio. In H. Doolittle, Por amor a Freud (pp. 9-33). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Silvana Rea
Avenida São Gabriel, 149, conj. 1104
01435-001 São Paulo, SP
Tel: 11 2872-6214
silvanamrea@gmail.com

Recebido em 11.09.2014
Aceito em 10.10.2014

 

 

1 Filme de 1926 que apresenta um personagem com fobia a facas. Freud recusou colaborar no roteiro, mas Pabst contou com a consultoria de Karl Abraham e de Hanns Sachs.
2 Em 1938, Freud sai de Viena em direção a Londres e deixa para Anna e Marie Bonaparte a decisão sobre o que seria destruído e o que seria levado. Não se tem notícias do destino das anotações de Freud sobre a análise de H.D. Suspeita-se que elas tenham sido destruídas intencionalmente, em função da contenda entre as até então aliadas Anna Freud e Bryher, no Congresso Internacional de 1938, em Paris, ou do ciúme que Anna sentiria do prazer de Freud na relação com H.D. (Friedman, 2002).
3 Por amor a Freud na edição brasileira.
4 Com a ascensão do nazismo, H.D. parte da Áustria e é aconselhada por Freud a iniciar análise com Walter Schmiderberg, analista também de Perdita e que se torna amante de Bryher. H.D. tem novo colapso e se interna na Küsnacht Klinik, na Suíça, onde conhece Eric Heidt, de quem se torna analisanda e amiga. Ali, recusa-se a conhecer Jung, por lealdade a Freud (Friedman, 1981).
5 Agradeço a Raya Angel Zonana por trazer essa carta ao meu conhecimento.

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