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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

INTERCÂMBIO

 

A construção da identidade de gênero na adolescência1

 

The construction of gender identity during teenage years

 

La construcción de la identidad de género en la adolescencia

 

 

Colette ChilandI; Tradução Sybil Safdie Douek

IAnalista didata e analista de crianças da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Após algumas observações referentes à terminologia (sexo, gênero, identidade), será feita uma breve retomada da construção da identidade de gênero até a adolescência. A passagem de certa androginia da infância à plenitude da identidade sexuada se faz, às vezes, com algumas dificuldades banais; é também o momento em que o acesso possível a uma sexualidade completa e fecunda confirma ou desenvolve a orientação sexual. Sem qualquer distúrbio do desenvolvimento do sexo, alguns adolescentes (transexuais) recusam seu sexo de atribuição, que é seu sexo biológico, e solicitam uma transformação hormônio-cirúrgica. Alguns adolescentes apresentam um problema de identidade de gênero, relacionado a seu distúrbio do desenvolvimento do sexo. No seio de nossa cultura, desenvolveu-se um movimento "transgênero" que põe em questão o gênero e chega a recusar qualquer distinção de sexo, colocando assim problemas que não são mais médicos, mas sociais.

Palavras-chave: identidade; gênero; sexo; transexualismo; transgênero; intersexo.


ABSTRACT

After some observations related to terminology (sex, gender, identity), a discussion on the construction of gender identity up to adolescence shall be briefly resumed. The passage from a certain androgyny of childhood to the completeness of a sexuated identity sometimes occurs with a few trivial difficulties; it is also the moment in which the potential access to a complete and fecund sexuality confirms or develops the sexual orientation. With no disorder of sexual development, some (transsexual) teenagers refuse their attributed gender, which is their biological gender, and request a hormonal-surgical transformation. Some teenagers present a gender identity issue related to their disorder of sexual development. A "transgender" movement has developed in the heart of our culture which discusses the matter of gender and goes as far as refusing any sexual distinction, exposing problems which are no longer medical, but social.

Keywords: identity; gender; sex; transsexuality; transgender; intersex


RESUMEN

Después de algunas observaciones relacionadas a la terminología (sexo, género, identidad), se retomará brevemente la construcción de la identidad de género hasta la adolescencia. El paso de una cierta androginia de la infancia a la plenitud de la identidad de género se produce, a veces, con algunas dificultades banales; es también el momento en que el posible acceso a una sexualidad completa y fecunda confirma o desarrolla la orientación sexual. Sin ningún tipo de trastorno del desarrollo del sexo, algunos adolescentes (transexuales) rechazan su sexo de atribución, que es su sexo biológico, y solicitan una transformación hormonal y quirúrgica. Algunos adolescentes presentan un problema de identidad de género, relacionado a su trastorno del desarrollo del sexo. En el seno de nuestra cultura, se desarrolló un movimiento "transexual" que cuestiona el género y llega a rechazar cualquier distinción de sexo, presentando de esta forma problemas que no son médicos sino sociales.

Palabras clave: identidad; género; sexo; transexualidad; transexual; intersexo.


 

 

"Identidade de gênero" é a tradução de gender identity, uma expressão que não é imediatamente compreensível, salvo para um sociólogo ou especialista daquilo que se chama nos Estados Unidos de Women's Studies, ou ainda para um militante feminista ou membro da comunidade LGBTIQ (Lésbica, Gay, Bi, Trans, Intersexo e Queer). Uma prévia terminológica parece, portanto, necessária.

A identidade sexuada começa a se construir concomitantemente ao sentimento da continuidade de existir, o self; na adolescência, ela se confirma. Na maioria das vezes, ao pensar na puberdade, que marca uma cesura na vivência do corpo próprio, o que se visa, com relação às mudanças da puberdade, é a repercussão da possibilidade de uma sexualidade completa e fecunda sobre a identidade. Todo um movimento propõe incluir a escolha sexual na identidade e falar de identidade sexual, termo tradicionalmente utilizado para designar o que denominamos agora "identidade sexuada" ou "identidade de gênero". Independentemente da escolha exclusiva ou preferencial do objeto, o sujeito adolescente se sente homem ou mulher. As mudanças do corpo na puberdade vão completar a identidade que a criança já reconhece como sua, fazendo a pessoa sair de certa androginia da infância. Certamente, as crianças se diferenciam a partir de seus órgãos sexuais externos, coisa da qual eles tomam consciência no fim do primeiro semestre do segundo ano de idade (Roiphe & Galenson, 1981); como, porém, o ser humano não se mostra constantemente no estado de natureza, em trajes de Adão e Eva, mas antes vestido em trajes culturais, uma não distinção é possível antes da puberdade. Daí em diante, os caracteres sexuais secundários estão presentes: os seios da menina crescem, a barba do menino aparece e a voz se modifica. Tudo anuncia que se trata de uma menina ou de um menino.

Como é acolhida esta transformação? Ao orgulho e à alegria frequentemente se mescla certo mal-estar em se acostumar com estas mudanças. O menino cresceu, mas ainda não está encorpado. As menstruações da menina não são necessariamente acompanhadas das manifestações descritas por H. Deutsch (1945) e retomadas por Simone de Beauvoir (1949).

Em alguns sujeitos, estas mudanças pubertárias - quer ocorram, quer não - desencadeiam uma verdadeira crise dramática. Na infância, alguns meninos vivem como uma extrema infelicidade o fato de ser um menino e não uma menina, e o aparecimento da puberdade reduz a nada seu sonho de uma transformação espontânea de seu corpo em corpo de mulher. Algumas meninas se sentem meninos e se desesperam, na puberdade, ao ver crescer seios, que as denunciam como sendo mulheres. Outras crianças recusam a passagem à adolescência sem que esta recusa seja centrada na distinção de sexo/gênero, e isto pode ser um componente da anorexia mental; muito raramente, pode haver acúmulo de anorexia mental e transexualismo. Outras crianças não veem aparecer uma puberdade em conformidade com seu sexo de atribuição, e elas descobrirão uma problemática ligada a um distúrbio do desenvolvimento do sexo, distúrbio que elas ignoravam completamente ou cuja amplitude elas não avaliavam.

 

Prévia terminológica

Conhecíamos o gênero gramatical, presente nas línguas indo-europeias, masculino e feminino, com ou sem neutro. O etnocentrismo incita a crer que o gênero, isto é, uma classe de nomes que governa os acordos gramaticais, existe em todas as línguas. Ora, não é bem assim; existem línguas que não têm nenhuma distinção de gênero e línguas que têm até vinte distinções (Corbett, 1991). Isso nos permite denunciar a ilusão daqueles que creem que o sentimento de pertencer a um sexo nasce da linguagem e a partir do momento em que, ao redor dos 3 anos, a criança pode dizer: "Eu sou um menino" ou "Eu sou uma menina".

É o psicólogo J. Money que inventa o gênero identitário com base em seus estudos sobre os "intersexos" ou "pseudo-hermafroditas". Ele usa a expressão gender role, em textos de 1955, para designar tudo o que uma pessoa diz ou faz para revelar seu estatuto de menino ou de homem, de menina ou de mulher, o que inclui, sem se restringir a isto, a sexualidade no sentido de erotismo. A expressão gender role será introduzida por E. Hooker em sua correspondência com J. Money (Money, 1985) e retomada por R. Stoller. A partir daí, quando se falar de sexo, a referência será ao biológico e, quando se falar de "gênero", ao psicológico e ao social.

O gênero fará sucesso junto aos sociólogos, nos Women's Studies junto às feministas. O termo conhece tal inflação que passa a substituir o termo "sexo" e, daí em diante, obscurece as discussões mais do que as esclarece. Não se avalia até que ponto os dois termos são "polaridades lógicas indissociáveis", como mostra vigorosamente P.-H. Castel (2008, p. 233). Finalmente, podemos propor falar em francês de "sexuado" [sexué] quando nos referimos à distinção entre os sexos, e de "sexual" [sexuel], quando designamos a conjunção entre os sexos, as relações sexuais, e considerar o que se passa no triplo plano biológico, psicológico e social. A identidade sexuada corresponde ao que foi durante muito tempo denominado "identidade sexual" [identité sexuelle] em francês e que remete agora à orientação sexual ou preferência sexual, se dela se faz uma identidade - o que é discutível.

 

Construção da identidade sexuada

Contrariamente ao que é comumente dito, devemos defender a posição de que a identidade sexuada não é secundária, ocorrendo após um período de identidade primária, que seria neutra. A criança tem logo de início um sexo na cabeça dos pais. Chegamos até a constatar que os pais são incapazes de criar um "neutro": quando há incerteza acerca do sexo de atribuição, não se deve demorar a tomar uma decisão, senão os pais não conseguem estabelecer uma relação satisfatória com o recém-nascido e constroem uma "convicção" pessoal, como mostra notavelmente A.-M. Rajon (1998).

Deste sexo na cabeça dos pais, a criança não tem, logo de início, consciência, mas ela tem uma vivência diferente do corpo próprio, dependendo de se é menino ou menina. Os "bebeólogos" não se interrogaram muito, até agora, acerca desta vivência do corpo próprio; só se conhecem algumas evidências acerca do excesso de tônus muscular, de atividade motora, de descargas motoras do menino e acerca de suas ereções. As diferenças de taxas hormonais se apagam após o terceiro mês para reaparecer na puberdade.

Procurou-se mostrar que as condutas parentais diferiam entre pai e mãe, e para cada um dos pais, segundo o sexo da criança. Uma descoberta interessante e fortuita foi feita por Lézine, Robin e Cortial (1975): desde os primeiros dias, as mães respeitam o ritmo de amamentação dos bebês com mamadeira mais para o menino do que para a menina; elas reforçam, assim, um estereótipo social acerca do que deve ser o menino - forte e potente. É interessante aproximar esta constatação experimental da observação antropológica feita por F. Héritier:

Entre os samos, de Burkina Faso, onde trabalhei durante muito tempo, eu havia percebido que, quando um bebê menino chorava, sua mãe interrompia toda atividade para dar-lhe o seio. Se fosse uma menininha, ela terminava o que devia fazer antes de alimentá-la. Quando perguntava por que, me respondiam sempre que um menino tem o "coração vermelho", que ele se enfurece facilmente e que ele estaria em perigo se o deixassem chorar. É preciso, portanto, satisfazê-lo logo que ele expressa um desejo. Em contrapartida, me diziam, uma menina deverá ser paciente sua vida toda: é preciso, portanto, ensinar-lhe a esperar desde seu nascimento. (2007, p. 24)

Tenta-se assim moldar a criança conforme os estereótipos da cultura, e ela a eles se dobra mais ou menos.

No início de sua vida, o que a criança experimenta é um absoluto; ela não sabe que há outras que vivem experiências diferentes e que, entre essas outras, algumas são mais "outras" do que as outras em função de seu sexo. As crianças o descobrem progressivamente, mas não sabem distinguir meninos e meninas pelos seus órgãos genitais antes do fim do primeiro semestre do segundo ano (Roiphe & Galenson, 1981). Aos 3 anos de idade, elas dizem que são meninos ou meninas. Mas existe certa androginia. É somente quando a criança está nua que a diferença dos sexos aparece claramente pela diferença dos órgãos genitais externos.

Com a puberdade, os caracteres sexuados secundários tornam o sexo ao qual se pertence totalmente aparente: barba, alteração da voz, pomo de Adão, seios, menstruação... Esta saída da androginia é geralmente bem-aceita, mesmo existindo as estadias diante do espelho, ou a acne, que pode tomar formas constrangedoras. Os adolescentes são hoje mais informados sobre as transformações da puberdade e da vida sexual do que antigamente. Eles se sentem orgulhosos de sair da infância e de se tornar (quase) homens ou mulheres. No entanto, não há equivalente no menino daquilo que pode representar a menstruação para a menina: as poluções noturnas não evocam uma ferida como o faz o sangramento menstrual, poderoso no sentido de que ele anuncia a fecundidade possível, e ao mesmo tempo considerado sujo, impuro e perigoso. Neste "período", a entrada nos templos hindus é proibida para a mulher; frequentemente, ela deve se purificar, até mesmo viver apartada. Nas paredes das grutas de Lascaux, o órgão feminino é desenhado como uma ferida penetrada por uma flecha. No entanto, as sociedades impõem ritos de passagem mais importantes e mais dolorosos aos meninos.

Em nossa cultura, a saída da androginia é, na maioria das vezes, bem-vinda; ela é ao mesmo tempo uma transição para a entrada no mundo dos adultos e se dá de tal forma que, apesar dos progressos realizados, permanece mais favorável aos meninos do que às meninas, no que concerne às liberdades concedidas e ao direito de dispor de seu corpo. O acesso à contracepção, de que, infelizmente, as adolescentes nem sempre fazem uso, modificou, contudo, sua condição e transformou sua relação com a sexualidade.

Em outras culturas, as meninas são claramente menos bem tratadas: praticam-se excisões e infibulações. Na adolescência, a menina pode perder a pouca liberdade que tem: casam-na com um homem que ela não escolhe; ela é rejeitada se tiver meninas e não meninos.

 

A recusa do sexo de atribuição na puberdade

Algumas crianças, sem qualquer atipia do desenvolvimento do sexo, recusam, às vezes, seu sexo de atribuição, apesar de este ser seu sexo biológico. Observa-se esta recusa mais frequentemente e mais cedo nos meninos do que nas meninas; com efeito, hoje, em nossa cultura, a menina pode usar calças desde a creche até a universidade e, durante toda sua vida, ela pode participar de atividades por muito tempo reservadas aos meninos, notadamente as esportivas. Ao contrário, o menino que quer usar saias é rapidamente estigmatizado. Encontramos mais meninos do que meninas em consultas referentes a "distúrbios de identidade de gênero", sem que sejamos realmente capazes de estabelecer uma taxa de prevalência desta recusa do sexo de atribuição e uma proporção entre os sexos: somente uma parte destas crianças chega a nossa clínica.

Esta recusa não é um capricho momentâneo ou uma escolha ocasional de companheiros de jogos ou de brinquedos do outro sexo. Ela se acompanha de uma mágoa profunda. Eu vi meninos adoráveis soluçarem porque não eram meninas. "Adoráveis" (Zucker, Wild, Bradley & Mowry, 1993), assim considerados por seus pais, facilmente confundidos em seu carrinho de bebê com uma menina pelo estranho que passa na rua: esta característica fenotípica desencadeia interações de um tipo diferente daquelas despertadas por uma criança turbulenta, que tem a necessidade de mostrar sua força, como o foram algumas meninas que recusam seu sexo biológico (Fridell, Zucker, Bradley & Maing, 1996).

O menino ou a menina com GID (Gender Identity Disorder) ou tig (Trouble de ¡'Identité de Genre [Distúrbio de Identidade de Gênero]) rezam a Deus para que os transforme; o menino espera que seu pintinho caia - este estaria somente pendurado ao seu corpo por uma espécie de botão de pressão; a menina espera que um pintinho venha a crescer. Ela conseguiu, às vezes, se fazer passar por menino e se inscrever em uma equipe de esporte masculina; mas, com a puberdade, seus seios a traem, mesmo que ela os enfaixe. A puberdade para a criança GID/TIG é uma catástrofe.

Outras foram crianças pouco à vontade, isoladas, solitárias, frequentemente com fracasso escolar. É somente na puberdade que elas começam a pensar que seu intenso malestar está ligado ao fato de que o sexo de seu corpo não corresponde ao sexo de sua "alma". Elas descobrem nas mídias o nome de seu distúrbio, "transexualismo", e ao mesmo tempo o remédio: "a transformação hormônio-cirúrgica do sexo" (THC). Os militantes dizem "transexualidade" sem verdadeiramente explicar esta escolha, que alguns consideram incongruente.

A palavra "transexualismo" foi inventada por H. Benjamin, transformado em herói epônimo de uma de suas associações: a Associação da Síndrome de Benjamin. No entanto, os pacientes que vêm solicitar uma THC falam de transexualismo, especificam que se trata de sua identidade e não de sua sexualidade, não reconhecem ter uma "transidentidade"; eles querem viver, após a "transição", incognito homem em meio aos homens ou mulher em meio às mulheres. Quanto ao remédio, a THC, eles nem sempre medem as consequências, com a necessidade de um tratamento para toda a vida. As mídias simplificadoras dizem: "Hoje, pode-se transformar um homem em mulher ou uma mulher em homem". Na realidade, pode-se mudar a aparência e o estado civil, mas se um homem biológico que se sente psicologicamente mulher pode se tornar uma mulher para a sociedade, ele jamais se tornará uma mulher biológica. Retiraram-se seu pênis e seus testículos, criou-se uma neovagina que lhe permite relações sexuais, mas não se substituiu sua próstata por um útero nem foram modificados seus cromossomos, como alguns adolescentes acreditam que seja possível. A menina não terá mais seios, nem útero, nem ovários, mas ela não terá um pênis funcional. No entanto, se a posse de uma faloplastia com próteses infláveis é importante para algumas mulheres biológicas que solicitam a THC, o mais importante está em outro lugar: o que é insuportável para o transexual é o fato de ser tratado como homem (MF: masculino para feminino) ou como mulher (FM: feminino para masculino).

Não se trata do status social, mas da posição que se ocupa em meio aos seus, do modo pelo qual se é tratado em todas as circunstâncias da vida cotidiana. O menino de 1 ano que, quando começa a andar, coloca seus pés nos sapatos de sua mãe, ou toma emprestadas as roupas das menininhas na creche, não sabe nada do que espera um homem na sociedade. A menininha de 3 anos não é uma militante feminina precoce. Ela vive um intenso mal-estar e pensa, sem formulá-lo com palavras, mas atuando-o, que tudo estaria melhor se ela pertencesse ao outro sexo. Do mesmo modo, o menininho pensa que tudo seria melhor se ele fosse uma menina. Um e outro recusam sua posição e querem "a outra posição". Só que a situação não é a mesma nos dois casos, mutatis mutandis, como dizia Freud; a revolta contra a posição de um e de outro não é a mesma. A menina que se quer menino quer se afirmar, ser uma pessoa em que é possível se apoiar; o menino que se quer menina tem sede de seduzir, ele quer ser "a mais bela de todas as meninas" (Moati & Lessana, 2011)... Todos os que acompanham transexuais em seu percurso veem bem as diferenças entre pessoas transexuais FM e pessoas transexuais MF, diferenças que têm impacto em sua vida social e no que se chama de "comorbidade", porque não seria politicamente correto falar de "formas clínicas" diferentes, "patologizar" o transexualismo.

Enquanto na infância conseguimos com frequência que a criança aceite seu sexo de atribuição trabalhando com ela, com cada um dos pais e melhorando suas interações, na adolescência a "convicção" do sujeito já se solidificou. Ele ainda se apresenta às vezes com uma interrogação angustiante: "Será que sou louco?" Mas o acompanhamento psicológico necessário só lhe será útil se o terapeuta for neutro em relação a seu projeto e estiver pronto a ajudá-lo qualquer que seja sua escolha final. Às vezes, a evolução do sujeito se faz da demanda transexual à possibilidade de assumir a homossexualidade; às vezes, a família prefere, em vez da homossexualidade, a solução transexual, que permite a mudança de estado civil e o casamento, com uma aparência de doença biológica ligada à THC.

O problema da erradicação dos caracteres sexuados secundários é tal que se propôs suspender a puberdade aos 12 anos para evitar as diversas manobras estéticas destinadas a fazer desaparecer a barba, o pomo de Adão, modificar a voz etc. Hoje em dia, esta suspensão da puberdade é praticada em Amsterdam e em alguns outros lugares. O efeito deletério no desenvolvimento dos ossos da suspensão da puberdade com análogos ao GnRH seria compensado pela administração de hormônios do sexo contrário aos 16 anos. Não se sabe nada ainda sobre o efeito no cérebro e no conjunto do corpo, bem como sobre o efeito a longo prazo. Os especialistas da fisiologia da adolescência estão divididos.

 

A problemática dos intersexos

"Intersexo" é um termo impreciso; ele é utilizado hoje pelos militantes. No passado, os médicos falavam de intersexualidade, embora se tratasse de sexuação, e não de sexualidade. Chegou-se a um consenso, entre as equipes médicas, em 2005, em torno do termo Disorders of Sex Development (DSD), mal traduzido em francês por Troubles du Développement Sexue [Distúrbios do Desenvolvimento Sexual]; trata-se do "desenvolvimento do sexo" ou "desenvolvimento sexuado". Alguns militantes intersexos recusam este termo novo porque ele faz referência a disorders, ou distúrbios; eles não aceitam qualquer medicalização de sua situação: fazem questão de ser considerados como "variations on a normal ontogenetic theme" (Diamond, 1996, p. 142). Outros reconhecem a necessidade de cuidados médicos em certo número de condições geradoras de DSD - por exemplo, a hiperplasia congênita das suprarrenais, que, se não tratada, pode levar à morte, nas formas perdedoras de sal; aliás, desde 1995, na França, o rastreamento é feito sistematicamente no terceiro dia de vida, por dosagem radioimunológica da 17-hidroxiprogesterona, junto com os outros rastreamentos.

O que são os DSD? Trata-se de "condições congênitas nas quais o desenvolvimento do sexo cromossômico, gonádico ou anatômico, é atípico" (Lee, Houk, Ahmed & Hughes, 2006), isto é, com atipias muito variadas. A criança pode não ter todos os componentes biológicos de seu sexo ou combinar componentes dos dois sexos. O trabalho desenvolvido por A. Fausto-Sterling pode dar uma ideia da ordem de grandeza do que ela denomina "desenvolvimento sexual não dismórfico" (Fausto-Sterling, 2000, p. 53): 1,728%. O número de casos nos quais a atipia leva a uma interrogação acerca do sexo a atribuir ao bebê com investigações aprofundadas é bem menor: um caso em 4.500 nascimentos (Hughes, Nihoul-Fékété, Thomas & Cohen-Kettenis, 2007). A decisão a ser tomada é difícil e requer uma equipe multidisciplinar que pode apenas esclarecer e aconselhar os pais. A decisão cabe a eles, e procede dos conflitos entre seu desejo pessoal de ter uma menina ou um menino - a "valência diferencial dos sexos" em sua cultura, segundo a expressão de F. Héritier (1996) - e o que a equipe médica aconselha.

Que considerações guiam a equipe médica? Os militantes atacam J. Money, psicólogo no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, cujas recomendações prevaleceram durante meio século. Ele considerava que era mais fácil construir uma vagina suficientemente funcional do que um pênis que nunca o é verdadeiramente, nem do ponto de vista urinário nem do ponto de vista sexual. Ele recomendava, portanto, com bastante facilidade, educar como menina uma criança XY com órgãos genitais masculinos ausentes ou muito imperfeitos. Ele pensava que a criança se sentiria pertencente ao sexo no qual seus pais a teriam educado se o fizessem com convicção. Money se apoiava em dados clínicos - por exemplo, sua estatística de 1957 (Money, Hampson & Hampson, 1957), de acordo com a qual, em condições médicas iguais, 100 entre 105 crianças se sentiam pertencentes a seu sexo de atribuição e de educação. Alguns biólogos, como M. Diamond a partir de 1965, jamais puderam admitir que o educacional pudesse prevalecer sobre o biológico. Um descrédito total e excessivo (os primeiros trabalhos do autor têm ainda interesse) foi lançado sobre J. Money a partir da lamentável história de John/Joan, como os nomeia o jornalista J. Colapinto em seu livro As nature made him (2000). M. Diamond desempenhou um papel importante na denúncia desta história. O escritor J. Eugenides nela se inspirou em seu romance Middlesex (2002).

Eis a história: John tinha um irmão gêmeo homozigoto; em seu oitavo mês de vida, planejou-se, para os dois meninos, uma intervenção no prepúcio por causa de uma fimose. A intervenção começa com John, mas o cautério escorrega e amputa a maior parte de seu pênis. Perplexos com a conduta a ser seguida, os pais procuram J. Money quando John tem 17 meses e o médico aconselha os pais a educar o menino como menina. Conclui-se, portanto, a amputação do pênis e completa-se com uma orquiectomia. J. Money se revela bastante esquisito, ensinando a masturbação para a criança e não levando em conta o que a mãe relata acerca da dificuldade da criança, rebatizada Joan (prenome feminino), em aceitar sua atribuição de menina. Na adolescência, diante do crescente mal-estar de Joan, os pais lhe contam toda a verdade sobre sua história. Joan pede para voltar a ser John, apesar dos estragos feitos ao seu corpo de homem. Aparentemente, tudo vai bem. John se casa com uma mulher, mãe de dois filhos, a quem ele serve de pai, e o livro de J. Colapinto termina com um happy end. Mas, em 2002, seu irmão gêmeo se suicida. John se divorcia e finalmente se suicida também, em 2004.

Em outros casos de perda traumática do pênis, a evolução se deu na direção de uma identidade feminina (Bradley, Oliver, Chernik & Zucker, 1998). Pode-se dizer que hoje a "convicção" que os pais podem ter não é mais a de que eles estão educando uma menina - por exemplo, em caso de insensibilidade total aos andróginos -, mas que é melhor educar sua criança como menina apesar de seus cromossomos XY. No estudo retrospectivo de Gueniche, Jacquot, Thibaud e Polak (2008), incidindo sobre sujeitos XY educados como meninas, constata-se que todos os sujeitos se sentem mulher. No entanto, eles têm dificuldades em se considerar como mulheres tão sexualmente atraentes quanto as outras, com exceção de dois sujeitos cuja descoberta do DSD se deu somente na adolescência, e que tinham sido, portanto, considerados, sem nenhum pensamento dissimulado, como sendo meninas durante toda sua infância.

As recomendações de J. Money consistiam em intervir no plano endocrinológico e cirúrgico tão precocemente quanto possível, para que os órgãos genitais externos fossem plausíveis com o sexo atribuído. Favoreciam-se, assim, a possibilidade de o sujeito se considerar como pertencente ao seu sexo de atribuição e a possibilidade de o meio (os pais, os pares) considerá-lo como tal. Hoje, ouvimos militantes enfurecidos contra o que lhes fizeram na infância, sem perguntar-lhes sua opinião quanto à escolha do sexo e quanto a seus órgãos genitais, com a queixa de uma sensibilidade erótica diminuída, por exemplo, ao se encurtar o clitóris hipertrofiado. A queixa diz respeito mais frequentemente à sexualidade do que à identidade. Não se conhece, por falta de estudos prospectivos, a proporção dos insatisfeitos no conjunto dos sujeitos tratados e o que pensam aqueles que não se expressam. Aqueles que não ouvimos são talvez silenciosos porque, sem estarem satisfeitos de ter uma atipia, não estão insatisfeitos com os médicos.

A adolescência é o momento em que a atipia adquire toda sua dimensão em relação à vida sexual e em relação à possibilidade de ter filhos. As informações que foram dadas às crianças se revestem de um novo sentido. Pode também acontecer que a atipia seja diagnosticada somente no momento da puberdade, que não se realiza como se espera em função do sexo de atribuição. É evidentemente um trauma para uma garota de 15 anos ficar sabendo que ela não menstrua porque ela não tem útero e que ela não poderá ter filhos. As adolescentes que se descobrem atingidas por uma síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser (ausência de útero, esboço de vagina, presença de ovários) se sentem mulheres e querem ter filhos nascidos de seus ovócitos; daí sua luta para a legalização da gestação por outrem. É também um trauma ficar sabendo que não se menstrua porque não se tem útero nem ovários e que se possui cromossomos XY. Ter cromossomos XY é imediatamente assimilado a ser um homem, ao passo que a pessoa se sente mulher e é reconhecida como tal.

Somente há saída para estes problemas se dissociarmos os três planos - biológico, psicológico e social. É possível sentir-se psicologicamente homem, identificando-se com os valores masculinos e paternos de sua cultura, e querer obter uma posição, um status, de homem, ao passo que se é uma mulher biológica, e vice-versa para o homem biológico que se sente mulher, mas não pode se tornar uma mulher biológica. Não é necessário, por isso, negar a importância da realidade biológica que se atesta, de modo qualitativo, no caráter sexuado da procriação e, de modo quantitativo, para os homens e mulheres biológicos, nas frequências diferenciais de doenças que não incidem sobre os órgãos sexuais (por exemplo, mais doenças de Parkinson em homens, mais esclerose múltipla em mulheres).

Não evocamos aqui o movimento transgênero, os "trans'" da comunidade LGBTIQ (Lésbica, Gay, Bi, Trans, Intersexo e Queer), em que Bi quer dizer Bissexual, Trans, transgênero, e Queer, palavra inglesa que significa "estranho" e era utilizada para designar pejorativamente os homossexuais, é retomada com orgulho pelos militantes a fim de se proclamar de nenhum gênero ou de um e outro gênero, e se liberar assim do gênero, vivenciado como camisa de força. Limitamo-nos principalmente aos aspectos médicos, deixando de lado os consideráveis problemas sociais que chegam ao ponto de reivindicar a supressão de toda distinção de sexo. O combate legítimo para que cesse a perseguição dos homossexuais conduz a excessos que se transformam em "heterofobia". Monique Wittig diz que não é mulher, mas lésbica. Declara-se "homossexual" qualquer um que tenha tido uma vez uma fantasia homossexual, tanto mais uma relação sexual, criando assim "heterossexuais contrariados", assim como se podem criar "destros contrariados", quando aparece o menor gesto canhoto.

J. Butler (1990) passou da afirmação de 1990 de que a distinção entre os sexos era puramente social, inventada como suporte para as prescrições normativas de gênero, a inferiorização das mulheres e a perseguição aos homossexuais, à afirmação de 2004 de que era preciso suprimir, no que se refere ao gênero, o que torna a vida intolerável para certas pessoas (Butler, 2004). Evidentemente, não se trata da mesma coisa e podemos nos aliar a esta última posição. Mas nem sempre é simples encontrar o que será aceito por todos. Criando medidas especiais, corre-se o risco tanto de estigmatizar aqueles de quem se trata (criar um terceiro compartimento, "Outros", a ser ticado ao lado de M e F) quanto de lesar os outros, privando-os do que os satisfaz (ao suprimir toda distinção entre homem e mulher para aqueles que se sentem à vontade de ser homem ou mulher).

O adolescente de hoje, cujo corpo não é marcado em ritos de passagem, inventa modos de se marcar a si próprio: escarificações, piercing, tatuagem. O adolescente a quem são dadas liberdades que as gerações precedentes não tinham está esmagado sob seu peso. A experiência de alguns entre nós colocou em evidência o sentimento de segurança proporcionado por uma educação na qual os pais sabem respeitar a criança ao mesmo tempo que impõem limites (Jeammet, 2008), o que não convida a seguir aqueles que preconizam as identidades múltiplas e a posição transgênero como cultura de futuro.

 

Referências

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Correspondência:
Colette Chiland
31, rue Censier
75005 Paris, France
Tel: +33 6 86 83 12 25
cchiland@orange.fr

Recebido em 21.10.2014
Aceito em 04.11.2014

 

 

1 Comunicação apresentada no colóquio Adolescence: le corps en questions, organizado pela associação Parentel (Daniel Coum) e pela revista Adolescence (Jacques Dayan), em 12 de abril 2011, em Rennes. Trabalho original publicado pela mesma revista em 2014: Adolescence, 32(1),165-179.

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