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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

RESENHAS

 

Trabalhos com famílias em psicologia social

 

 

Nelson da Silva Junior

Psicanalista. Professor livre-docente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

Correspondência

 

 

Autora: Belinda Mandelbaum
Editora: Casa do Psicólogo, São Paulo, 2014, 162p.

 

 

Uma verde árvore das amêndoas

Grau, teurer Freund, ist alle 'Théorie,
und Grün des Lebens goldner Baum

Cinzenta, caro amigo, é toda teoria,
e verde, a árvore dourada da vida
(Mephisto, no Fausto de Goethe)

Apresentar em alguns poucos parágrafos um livro como o de Belinda Mandelbaum, que traz o singelo título Trabalhos com famílias em psicologia social, me coloca num doce impasse. Enquanto colega de trabalho e amigo, sinto-me dividido entre a turbulência das inúmeras questões teóricas que sua leitura suscita e a admiração crescente por sua postura como professora, pesquisadora e psicanalista, postura que tenho tido o privilégio de conhecer e compartilhar ao longo dos últimos anos. O livro é uma bem-vinda publicação de sua tese de livre-docência, resultado de uma rica produção de vários anos junto ao Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP e particularmente de suas atividades na direção do Laboratório de Estudos da Família e do Serviço de Atendimento a Famílias e Casais. Como, desde o início, esses versos de Goethe, citados em algum lugar por Freud, regularmente distraíram minha leitura, não pude fazer de outro modo senão dar ouvidos a esse inicialmente duvidoso sopro do inconsciente. Foi minha salvação! De fato, retrospectivamente, o valor incondicional da vida me parece cada vez mais ser uma porta central para o livro de Belinda, e será através dela que convidarei o leitor a entrar em seu pensamento.

Não pense o leitor, contudo, que isto se dê porque o seja explicitamente afirmado no livro. Nos momentos em que isso acontece, a afirmação da vida se dá pela voz de pensadores de vulto, como Lévinas e Benjamin, ou de escritores de exceção, como Kafka e Drummond. Não se trata, tampouco, de uma afirmação do valor da vida como a direção ética que deve orientar nossas reflexões e teorias sobre a família, o psiquismo ou o espaço social. O lugar da vida é, nesse precioso livro, não aquele de um fim, mas o de um princípio. A vida real das pessoas, suas histórias, dores, narrativas, suas famílias, casas e comunidades não são tomadas como objetos possíveis, entre outros, da reflexão teórica, mas sim como seu motivo, sua causa. Isto muda tudo na atitude acadêmica em geral, e é particularmente importante no campo da psicologia social.

Com efeito, mesmo nos capítulos que podemos considerar como explicitamente teóricos, caso do primeiro ("Sobre o campo da psicologia social") e do segundo ("Em busca de um encontro: o método hermenêutico em psicologia social"), Belinda tira a teoria de sua costumeira e (in) usual posição de ponta-cabeça e a enraíza sobre um solo úmido e rico, a saber, a realidade social e experiencial do humano. Como resultado, é a própria metodologia de pesquisa em ciências humanas que se vê assim repensada e aprofundada desde seu fundamento: passamos da hermenêutica tradicional, como arte de deciframento dos discursos obscuros, para o que poderia muito bem ser chamado de uma hermenêutica do encontro, em que o próprio decifrador (perdoem-me essa apropriação relativamente simplória do poema "Autopsicografia", de Fernando Pessoa!) é sempre sujeito e objeto do gesto de deciframento. Se o encontro com o outro é o princípio de todo deciframento, então aquele que decifra se vê necessariamente sujeito a alterações imprevisíveis. Eis o que chamaria a hermenêutica do encontro colocada em prática por Belinda Mandelbaum.

Mas cabe ainda comentar o principal nesse livro: a família na psicologia social. Aqui, algo inteiramente novo, a meu ver, nos é apresentado a respeito da família como tema de estudos e de reflexão. Novamente, trata-se de uma mudança de posição, e, mais precisamente, de um deslocamento no estatuto epistemológico da noção de família. Pois o mais comum nos estudos em psicologia social, em psicanálise, em antropologia ou em história da família é que se costume tomar a família como objeto de reflexão e, em seguida, que se criem novos conceitos nessas ciências. Esse modo de proceder tem um valor inestimável, tanto para o avanço teórico quanto para as intervenções junto às famílias. Mas Belinda segue outra direção.

Em vez de tomar a família simplesmente como objeto de sua reflexão, ela vai além e a escolhe como matriz de leitura de outros campos. Assim, ao longo dos capítulos, uma série inesperada de temas é relida pela chave da família: instituições e produções culturais, como a mitologia grega, a filosofia e a literatura; eventos econômicos, como o desemprego e seu impacto nos sujeitos; fenômenos psicossomáticos que respondem com uma precisão insuspeitada aos silêncios e mitos familiares, assim como à perda, reconstrução e habitação de espaços de uma casa; formas de constituição de sintomas, seus modos de sofrimento, bem como suas tentativas de sanar dores muitas vezes intoleráveis são delicadamente bordados por Belinda sobre uma tela que dá suporte e permite o delineamento de cada uma dessas figuras. A família realiza a cada vez essa função de tela, essa função de fundo que torna possível a figura, fornecendo a base e o contexto sobre o qual são vividas e pensadas cada uma dessas realidades. Nos sucessivos capítulos, a noção de família se mostra como um espaço poroso, estruturado por incessantes aberturas a chegadas, acolhimentos e partidas, inseparável tanto do sujeito como do espaço social. Vemos então constituir-se em ato a proposta teórica presente no conceito de Psicologia Social, de utilizar conceitos da psicologia e da sociologia para construir uma ponte entre esses universos e marcar, ou expor, sua essência relacional.

Para finalizar, gostaria de fazer uma advertência: a experiência de leitura desse livro é também peculiar, pois este deslocamento do estatuto epistemológico da noção de família se dá em silêncio. Não o percebemos enquanto acontece, apenas depois. De modo que o segredo do singelo título se revelará apenas a posteriori, a saber, que trabalhar com famílias como a autora o faz implica reler o campo da psicologia social a partir da noção de família. Este é, segundo penso, um dos inegáveis méritos deste pequeno grande livro.

Boa leitura!

 

 

Correspondência:
Nelson da Silva Junior
Al. Iraé, 620, conj. 16
04075-000 São Paulo, SP
Tel: 11 3091-4184 / 11 99152-1237
nesj@terra.com.br

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