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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.48 no.4 São Paulo set./dez. 2014

 

RESENHAS

 

A clinical application of Bion's concepts

 

 

João Carlos Braga

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Grupo Psicanalítico de Curitiba

Correspondência

 

 

Autor: Paulo Cesar Sandler
Editora: Karnac, London
Vol. 1: Dreaming, transformations, containment and change, 2009, 380p.
Vol. 2: The analytic function and the function of the analyst, 2011, 224p.
Vol. 3: Verbal and visual approaches to reality, 2013, 289p.
Resenhado por: João Carlos Braga

 

 

A obra de W R. Bion vem despertando cada vez mais interesse nos psicanalistas. Indicação valiosa desta tendência é o surgimento de exegeses, de estudos de sua obra e até de dicionários que visam servir de intermediários entre o pensamento do autor e os interessados em suas ideias. Nesse grupo, a trilogia A clinical application of Bions concepts surge ocupando um espaço ímpar, pela amplitude e precisão com que o autor, o Dr. Paulo Cesar Sandler, discute sua apreensão do pensamento de Bion, assim como pela articulação feita entre clínica e teoria.

O Dr. Sandler, após a excelente acolhida a The language of Bion: a dictionary of concepts (Karnac, 2005), tornou-se um autor de referência para quem busca um interlocutor para confrontar suas compreensões pessoais das contribuições de Bion. Neste sentido, A clinical application of Bions concepts só amplia esta sua condição. Aliás, o próprio autor (vol. 1, p. 1) nos aponta que estas obras se entrelaçam e se complementam: o que encontramos em The language of Bion em uma exegese conceitual, em A clinical application... está integrado em aproximações teórico-clínicas. Duas faces de um mesmo todo.

 

A trilogia A clinical application of Bion's concepts: ideias gerais

Na presente obra, o Dr. Sandler vai expondo, extensa e detalhadamente, como organiza seu próprio pensamento a partir da influência dos conceitos de Bion, tanto na prática clínica quanto na forma de integrar suas ideias no conjunto maior das matrizes do pensamento psicanalítico. Se em The language of Bion: a dictionary of concepts o Dr. Sandler aparece como um estudioso dos conceitos criados e utilizados por Bion, na tradição de um scholar, na presente trilogia o paciente psicanalítico seria o protagonista, e o autor do livro, um psicanalista às voltas com as dificuldades que qualquer psicanalista tem de se haver em seu dia a dia profissional - principalmente quanto às suas tentativas de ser o coadjuvante, o auxiliar do paciente para quem cabe a tarefa de verbalizar, mesmo caricaturalmente, aquilo que ocorre em sessões de análise.

Mas há algo mais, e não menos importante: acima do entrelaçamento de conceitos e clínica, emerge uma epistemologia psicanalítica permeando todos os livros, mostrando a inserção do pensamento psicanalítico no contexto do conhecimento humano advindo através daquilo que ficou conhecido como Iluminismo e Movimento Romântico. Esta perspectiva epistemológica permite ao Dr. Sandler uma visão clara do campo próprio à psicanálise, assim como de seus exageros. Por assim dizer, podemos acompanhar o autor como um Ulisses navegando entre Cila e Caríbdis - a cisão cartesiana entre corpo e mente. Serve de alerta para qualquer analista em suas dificuldades para manter uma posição unicista e inclinar-se em demasia para uma leitura autoritária, eivada de desejo e busca do prazer, dos conceitos psicanalíticos. Isto se manifesta pelo menos de dois modos. O primeiro, naquilo que o autor denominou realismo ingênuo, conceito emprestado de Kant, pela concretização dos processos de pensamento e sua limitação às áreas do aparato sensorial, ou seja, àquilo que é apenas aparente, captado dentro do espectro excessivamente estreito do sensório humano.

O segundo modo se manifesta por uma sobrevalorização daquilo que a própria mente produz, inclusive ilusões, delírios e alucinações, isto é, uma indiferenciação entre realidade psíquica e irrealidade pseudopsíquica; em outras palavras, que o universo é apenas produto da mente humana, desgovernada em fugas imaginosas e fantásticas, e phantasias (ou fantasias inconscientes). Esta segunda forma recebeu do Dr. Sandler a denominação de idealismo ingênuo (vol. 1, p. 33; vol. 3, cap. 9). Ambas as sobrevalorizações são manifestações do imobilizar-se na posição esquizoparanoide "em dedicação quase exclusiva e tempo integral", como diz o autor, impossibilitando o livre movimento "de-para" em relação à posição esquizoparanoide. No realismo ingênuo, pende-se excessivamente para fenômenos esquizoides; no idealismo ingênuo, pende-se excessivamente para fenômenos paranoides.

O primeiro volume da trilogia, Dreaming, transformations, containment and change, revelare uma cuidadosa revisão destes quatro pilares do pensamento de Bion, cada um correspondendo a uma das partes em que o livro é dividido. O pensamento do autor transita com liberdade entre os vértices teórico (formulações verbais sobre pensamentos abstraídos da experiência) e clínico (formulações verbais sobre pensamentos verbalizados por ele e por seus pacientes em sessões analíticas), oferecendo uma visão clara da sua forma de trabalhar e de pensar a sua prática psicanalítica. O pensamento do autor fica, nestas condições, muito bem definido, como uma implacável busca de contato com a realidade psíquica na sessão analítica.

No segundo volume, The analytic function and the function of the analyst, o Dr. Sandler examina, microscopicamente, a função psicanalítica da personalidade e sua utilização como ferramenta pelo analista em sua atividade. A divisão do livro em três partes merece atenção. A primeira, "Extensions into the realm of minus", é dedicada ao exame de um resgate efetuado por W. R. Bion do âmbito psicanalítico, já antevisto por Freud, mas enterrado ou encoberto por algumas tendências institucionais do movimento psicanalítico, que haviam limitado a apreensão clínica e reduzido o campo psicanalítico. Mais especificamente, o Dr. Sandler, focalizando as contribuições de Bion e também de outros autores, como Green e Reik, intensifica e propõe expansões teóricas das aplicações clínicas da discriminação do âmbito minus - ou, na linguagem de Green, "negativo" do funcionamento mental. Na terceira parte, "Analytic function", temos o estudo da expansão que esta compreensão dá à função psicanalítica da personalidade e à função do analista. Entre as duas, a segunda parte, como uma ponte, um capítulo quasi didático sobre Uma memória do futuro, com um preciso alerta: trata-se de um aqui e agora. Para o autor, de modo bastante diverso ao encontrado na literatura atual, Uma memória do futuro é um autêntico guia prático, técnico, para uso dos analistas no seu próprio trabalho clínico, e não uma obra literária e, menos ainda, teatral. Este capítulo "concentrado" antevê e sumariza outro texto do mesmo autor, a ser publicado pela Karnac, em 2014, em forma mais pormenorizada, An introduction to A memoir of the future.1

Já no terceiro volume, Verbal and visual approaches to reality, predominam aproximações com a face mais abstrata do conhecimento psicanalítico: a dimensão epistemológica. Preserva, no entanto, o enraizamento teórico-clínico. O autor que assina esta resenha, conhecedor de obras anteriores do Dr. Sandler, como A apreensão da realidade psíquica, distingue o mesmo método de análise da história das ideias, ressaltando a integração dos pensamentos de Freud, M. Klein e Bion ao pano de fundo histórico da essência do conhecimento humano. Com elegância e clareza, oferece uma visão do pensamento psicanalítico como uma rede em que se articulam diversas aproximações à apreensão da realidade psíquica. Sendo o ponto de vista adotado o científico, representa um ganho considerável por integrar a escalada que culmina no pensamento intuitivo e na proposta do colocar-se em uníssono com a realidade - o ápice do pensamento de Bion.

São livros escritos em linguagem precisa e com qualidade literária. Cobrem generosamente o campo psicanalítico, desde a origem dos conceitos de Bion até como os encontramos na clínica, assim como tratam da integração entre conceitos formulados por outros autores com os conceitos desenvolvidos por Bion. Vale a pena destacar a presença, nesses livros, de expansões feitas pelo próprio Dr. Sandler a partir de pensamentos de Bion. Constituem preciosos desenvolvimentos, que apontam não só a capacidade analítica do Dr. Sandler como também a preservação da vitalidade e da fertilidade do pensamento deste autor. São contribuições como função antialfa (vol. 2, cap. 10), vínculo versus (vol. 2, cap. 4), grades tri, tetra, hexadimensional e negativa (vol. 3, caps. 1, 2, 3 e 4), o quarto pressuposto básico, a alucinose de inclusão e exclusão (vol. 3, cap.10) e a tolerância a paradoxos (vol. 2). Esta última, ainda dentro do nível de hipótese a ser confirmada por outros investigadores clínicos, como um eventual "quarto princípio", acrescido aos três enunciados por Freud, para avaliar a postura psicanalítica do analista e o fato de estar ocorrendo, ou não, psicanálise (a saber, noção do âmbito do inconsciente, deslindamento na medida do possível do complexo de Édipo e aplicação clínica das associações livres).

 

Algumas questões específicas

Como ilustrações da forma de desenvolvimento dada pelo Dr. Sandler aos seus pensamentos em A clinical application of Bions concepts, selecionei cinco questões que, de modo direto ou implícito, aparecem com destaque nos três volumes da série.

1 Bion: conjunção ou disjunção?

Como tratar a obra de Bion no conjunto do conhecimento psicanalítico? Uma continuidade do pensamento de Freud e de Klein? Uma nova forma de pensar a psicanálise, uma ruptura com seus antecessores? O Dr. Sandler nos alerta ser este um dilema desnecessário. Aponta uma terceira visão, compondo as duas anteriores: Bion faz, em sua obra, uma assimilação pessoal dos pensamentos de Freud e de Klein, retornando, talvez enfaticamente, ligado ao momento atual do movimento psicanalítico, para aquilo que confere real cientificidade (empírica) e valida a prática psicanalítica, tantas vezes insistida por Freud e resgatada por Klein, Winnicott e pelo próprio Bion: é necessário que a psicanálise (ou a psicanálise real, no dizer de Bion, em A memoir of the future e em quase todas as suas últimas palestras em várias cidades do mundo) centre-se no que é diretamente acessível ao analista na sala de análise. Dito nas palavras do autor:

Bion não foi um revolucionário. Isto pode ser tomado como apenas minha visão pessoal. [...] No entanto, esta visão é substanciada em sólidas evidências: as repetidas manifestações de Bion, por escrito, expressas em termos inequívocos, permitem-me afirmar que não se trata apenas de visão pessoal. [...] Pouco saber, conjugado a idealização e adoração, tem constituído a base para a visão ainda em moda de que Bion seria a vingança dos autointitulados "revolucionários", já que todo revolucionário necessita ídolos e bandeiras. A reivindicação dos devotos é que Bion "inventou" uma "nova análise", destinada a tornar obsoleta a "análise clássica". Ele deixou um desacordo inequívoco com visões deste tipo, indistinguíveis de alucinóse coletiva. (vol. 3, p. 117)2

2 A "crise da psicanálise"

A chamada "crise da psicanálise" é examinada pelo Dr. Sandler como consequência do afastamento, na prática clínica, dos princípios próprios à psicanálise. Duas de suas fontes aqui examinadas são as distorções criadas pelo movimento psicanalítico e a dissociação entre ciência e humanidades. Em suas palavras:

Fenômeno dos dias atuais: a formação psicanalítica não mais desperta o interesse que já gozou entre jovens profissionais do campo médico e, em consequência, do ambiente social que nos circunda. Torna-se fenômeno "de nicho". Atualmente, incrementa-se o número de pessoas recusando-se a procurar analistas. [...] Talvez uma postura psicanalítica pudesse ser: o que nós fizemos para nos encontrarmos nesta situação? Ou, colocando em termos que poderão ser sentidos como "duros" por alguns: quantos dentre os membros oficialmente reconhecidos do movimento psicanalítico (termo sugerido por Freud, 1914b) estão praticando "análise real" (termo sugerido por Bion, 1977b e 1979)? (vol. 3, p. 129)

Explicitando sua visão, o Dr. Sandler trata da especificidade da psicanálise ao afirmar que "existe, neste nosso mundo, algo que reivindica e busca ser nutrido, pacientemente aguardado, que evolve, que se torna, que pode ser experienciado e vivido, mas que não pode ser compreendido" (vol. 3, p. 128).

A questão nuclear que aqui fica destacada é a diferença entre os interesses da psicanálise e do movimento psicanalítico. A psicanálise tem o seu foco de interesse nas transformações (o imanente, as elaborações subjetivas do indivíduo) ou nas invariantes (o transcendente, o inconsciente, a "verdadeira realidade psíquica", nos termos de Freud, ou o "O", a notação quasi matemática de Bion para o âmbito numênico, no linguajar do Dr. Sandler, a "realidade última", se usarmos a formulação kantiana citada por Bion, por vezes denominada "the real thing" pelo mesmo autor, em linguagem mais coloquial, a partir de 1974). Já o movimento psicanalítico, tendo como sua face mais visível as instituições criadas para proteger a psicanálise, frequentemente faz ajustamentos e adaptações do conhecimento psicanalítico para uso em diferentes campos - que não o da psicanálise em si mesma:

O movimento psicanalítico, formado por pessoas que buscam praticar psicanálise, tem sido persistentemente permeado e infiltrado por juízos de valor, estranhos à psicanálise em si mesma (ou psicanálise real, como propôs Bion). Juízos de valor transformam esta atividade científica em um largo espectro, que incorpora outras tarefas que lhe são estranhas, desde a pedagogia até o controle social, campo coberto pelos sistemas religiosos, profetas ou apóstolos; ou sistemas judiciários e políticos, pela polícia, guarda pretoriana e assemelhados. Ou, dentro das famílias, por mães e pais. Bion enfocou tal fato, como logo veremos, correlacionando-o com a personalidade psicótica. (vol. 2, p. 12)

Quanto à não integração entre as diferentes raízes do conhecimento humano, assim se expressa o Dr. Sandler:

[a] psicanálise nasceu como uma saída do antigo "enigma" que assolou a filosofia, idealismo versus realismo: dificuldade resiliente no alcançar o ethos não sensorial da mente. "Enigma" responsável pela separação artificiosa entre ciência e humanidades [...] colocando ambas em perigo; devastadoras reverberações desta questão em nosso movimento psicanalítico afastam-nos das contribuições fundamentais de Freud, um fator importante na assim chamada "crise". Que atinge apenas o movimento psicanalítico, não a psicanálise propriamente dita. (vol. 3, p. 136)

3 Verdade e realidade psíquica existem por si mesmas: não são apenas construções que criamos para dar conta de nossas necessidades psico-lógicas

Qual analista, ao examinar suas concepções sobre realidade, não vai perceber que conserva ressaibos do tratar "realidade psíquica" e "verdade" como teorias mais do que como realidades em si mesmas? O Dr. Sandler nos ajuda a guiarmo-nos nesta desconcertante área cinza do pensamento epistemológico, que penso ser estimulada por nossa dependência do pensamento abstrato e pela pouca clareza com que tratamos a diferença entre invariantes e transformações, entre realidade psíquica herdada ("a verdadeira realidade psíquica", Freud) e suas representações advindas da experiência, entre pré-concepções inatas e adquiridas, entre imanente e transcendente. A argumentação do Dr. Sandler a este respeito pode ser encontrada em muitos capítulos destes livros, mas principalmente no capítulo 6, "Truth", do terceiro volume. De fato, esta é uma ideia central em seu pensamento.

O Dr. Sandler parte da clássica distinção entre imanente e transcendente para desenvolver uma precisa dissecção de formas de pensamento e de não pensamento. Ajuda-nos a fazer uma distinção entre "a coisa real" ("the real thing") e as formulações que a representam; ou seja, a distinção fundamental entre os âmbitos "numênico" e "fenomênico" da existência humana. O domínio do conhecimento psicanalítico frequentemente sofre com esta indistinção, fato já anotado por Freud e incisivamente examinado por Bion. Por exemplo, o fácil escorregar do campo do pensar para o do alucinatório (ou, como formula o Dr. Sandler, sempre apoiado por Freud e Bion, entre o "que é" e o "que não é", entre Verdade e Mentira) quando tentamos dar conta, em nosso trabalho diário, da captação de um estado de indiscriminação, na vivência do analisando, entre o seu self e o do analista e recorremos a formulações como "transferência" e "identificação projetiva". Se passarmos a tratar estas experiências como um conceito, passamos a "saber" muitas coisas sobre a mente do indivíduo, mas perdemos a oportunidade de observar aquilo a que estas preciosas formulações ("transferência" e "identificação projetiva") estão dando forma; elas não são a realidade interior que representam. Facilmente ficamos escravizados pelo poder que emana do dominarmos um conceito e perdemos a apreensão da realidade psíquica nele incrustada.

Pinço, a seguir, uma vinheta do capítulo "Truth" como exemplo de como este pensamento é abordado pelo autor:

A não ser como um contraponto, não posso aproveitar muito contribuições de tendências atualmente prevalentes em filosofia, quando a questão é verdade. Sob o nome "pós-modernismo", podem ser resumidas como a desistência do filósofo de tentar procurar por Verdade, ou por "apreensão da realidade" como tenho proposto denominá-la. Há uma negação disseminada da própria existência de Verdade e, assim, de ciência, habitualmente vista como orientada ideologicamente. [...] Ocorrem insistentes reivindicações autoritárias de que a realidade não existe, sendo apenas "construída" pela mente humana. (vol. 3, p. 164)

4 Manifestações do inconsciente: determinismo psíquico, associação livre, intuição, seleção natural e ser ou tornar-se a realidade

Escolho este ponto para ilustrar o que me parece ser um dos grandes méritos destes livros: a integração alcançada pelo autor entre a psicanálise como desenvolvida por Freud, Klein e Bion e diferentes interfaces do conhecimento humano. Há momentos em que fica surpreendente a integração alcançada pelo Dr. Sandler entre conceitos pertencentes a campos teóricos distintos. As formulações presentes no capítulo "Freie Einfalle: the verbal irruption of the unknown" (vol. 3) esclarecem esta visão:

Seriam associações livres o princípio mais fundamental do pensamento humano até hoje conhecido e, desta forma, do funcionamento mental? [...] Sem associações livres, o fluxo do pensar permaneceria caótico e desconexo ou, ainda pior, conectado por lógica formal, mascarando e tornando mais difícil a detecção do caos. (vol. 3, pp. 106-107)

Associações livres: produto criativo do determinismo psíquico [...] Seleção Natural pode ser encontrada na mente de cada indivíduo considerado; através do termo "Intuição", a Seleção Natural permite a realização de algo que foi nomeado de forma nebulosa, o que poderia servir como indicativo de sua presença. (vol. 3, p. 99)

As associações livres que evolvem na mente trazem, em si mesmas, um estado paradoxal no indivíduo; especificamente, o de "ser e tornar-se" ou, em termos filosóficos, de imanência e transcendência. (vol. 3, p. 101)

5 Psicanálise e epistemologia

O habitual é pensarmos a epistemologia como o estudo crítico do conhecimento tornado acessível pelas ciências, tendo assim um ponto de vista sobre a psicanálise, emitindo avaliações sobre a sanidade e os vícios do pensamento psicanalítico. Desta forma, suas formulações mereceriam sempre serem levadas em conta como privilegiadas aproximações à verdade, funcionando como parâmetros para o estudo crítico das teorias psicanalíticas. Os posicionamentos de Karl Popper e de Thomas Kuhn são exemplos desta condição.

O capítulo 7 do volume 3, "Psychoanalysis and epistemology: relatives, friends or strangers? Paranoid-schizoid features in the paths of psychoanalytic practice", abre-nos os olhos para outra perspectiva:

É comum afirmar-se que a contribuição de Bion à psicanálise inclui epistemologia, ou que se resumiria a uma epistemologia da psicanálise. Isto pode constituir apenas redundância. Psicanálise, como qualquer ciência, tem seu próprio universo de discurso para afirmar, apresentar e comunicar a si mesma, para atender a necessidade de exposição do seu nous. [...] A ciência e seu universo de discurso são "epistemológicos por si mesmos", como uma atividade prática continuada. [...] Como um analista que considerou a Verdade como uma característica intrínseca de seu trabalho, Bion ocupou-se com a epistemologia, ou teoria do conhecimento, como prefiro chamá-la - assim como Freud antes dele. [...] Vou tentar conjugar a visão epistemológica de psicanálise com a visão psicanalítica de epistemologia: uma colaboração mútua, frutífera, sem que nenhuma das duas predomine. Há evidências da natureza epistemológica da psicanálise; de que a epistemologia foi um precursor não médico da psicanálise, quando deu atenção para verdade e mente. (vol. 3, p. 136)

O que se abre com esta visão parece mudar significativamente o ponto de partida para o exame da condição científica da psicanálise. Acentuo o " parece mudar", pois o que o Dr. Sandler está explicitando é o resgate dos posicionamentos de Freud e de Bion sobre este ponto, defensores que foram do direito da psicanálise em ter seus próprios critérios para avaliar o conhecimento que gera, em respeito às condições singulares de seu objeto de estudo (o inconsciente), assim como as condições específicas em que este é possível - a relação entre duas mentes proporcionando o surgimento do objeto psicanalítico, na formulação de Bion.

 

Observação final

Finalizo minhas observações com um depoimento sobre a experiência que tive - e que continuo tendo - com A clinical application of Bions concepts. Em poucos estudos sobre psicanálise acompanhei, como neste, o enriquecimento da minha visão sobre psicanálise em pontos tão diferentes. Destaco, em especial, a abrangência dos temas abordados pelo método de sustentar oscilações entre uma visão macroscópica (a forma de a psicanálise ser pensada, em seu todo) e uma visão microscópica (como ela pode existir em uma sessão analítica).

 

 

Correspondência:
João Carlos Braga
Rua José Antoniassi, 320
80810-170 Curitiba, Paraná
bragajc43@gmail.com

 

 

1 Esta Introdução, em dois volumes, expande uma versão publicada em língua portuguesa em 1998, pela editora Imago - o primeiro livro do autor.
2 A tradução do original em inglês, desta e das citações seguintes, foi revisada pelo próprio autor, Paulo Cesar Sandler.

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