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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

 

KEYPAPERS 49º CONGRESSO DA IPA

 

O ofício de analista e sua caixa de ferramentas: a interpretação revisitada1

 

The profession of the analyst and the analyst's tool box: the revisited interpretation

 

La profesión de analista y su caja de herramientas: la interpretación revisitada

 

 

Tradução Claudia Berliner; Virginia UngarI

IAnalista didata e analista de crianças da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Importantes modificações na cultura ocorreram nos últimos 50 anos no tocante às configurações familiares, às modalidades de criação dos filhos e ao avanço da tecnologia. Essas transformações tiveram um impacto significativo sobre a prática psicanalítica. Parece ser necessário revisar o uso de ferramentas forjadas há mais de 100 anos. O artigo irá enfocar a interpretação enquanto a ferramenta mais relevante para um psicanalista.

Palavras-chave: interpretação; enquadre; transferência; cultura; tecnologia.


ABSTRACT

Important cultural changes have happened in the last 50 years concerning family configurations, methods of raising children, and technological advances. These changes have significantly impacted psychoanalytic practice. It seems necessary to revise the use of tools developed more than 100 years ago. This paper will focus on interpretation as the most relevant tool for the psychoanalyst.

Keywords: interpretation; frame; transference; culture; technology.


RESUMEN

Importantes modificaciones en la cultura tuvieron lugar en los últimos 50 años en lo que se refiere a las configuraciones familiares, a las modalidades de crianza de los hijos y el avance de la tecnología. Estas transformaciones tuvieron un impacto significativo sobre la práctica psicoanalítica. Parece que es necesario revisar el uso de herramientas forjadas hace más de 100 años. El artículo enfocará la interpretación como la herramienta más relevante para un psicoanalista.

Palabras clave: interpretación; encuadre; transferencia; cultura; tecnología.


 

 

Introdução

O convite para refletir sobre a forma e o uso das ferramentas da psicanálise nestes tempos (a rigor, sobre o ofício do psicanalista) é um desafio que poderia ser sintetizado na seguinte pergunta: quais são as ferramentas que nós, psicanalistas, utilizamos? O que compõe nossa caixa de ferramentas? Por outro lado, essa interrogação - na medida em que a formulamos hoje - nos permite dar um passo a mais e ensaiar um contraponto entre o modo de pensar essa caixa de ferramentas atualmente e há mais de 100 anos.

Claro que esse contraponto não pretende ser um exercício de mera comparação histórica. Parte, antes, de uma constatação histórica: o modo de operar psicanalítico, como toda construção humana, é condicionado e afetado pelos códigos hegemônicos de cada época. Nesse sentido, quando pensamos e repensamos nossas ferramentas, na condição de psicanalistas, é necessário problematizar tanto a variação da época de que fazemos parte quanto suas consequências.

A teoria freudiana foi um dos acontecimentos mais revolucionários para a cultura do começo do século XX. Mais de 100 anos depois de sua formulação primeira, e no âmbito de uma série de mudanças vertiginosas nas instituições sociais e de intensas mutações tecnológicas de alto impacto na subjetividade, examinar essas variações e seus efeitos sobre nossa tarefa não parece ser uma inquietação sociológica menor dos psicanalistas, mas uma condição necessária para o exercício do ofício.

Nesse contexto, a revisão atual, em diversos foros, dos textos clássicos da psicanálise pode ser entendida como um saudável exercício em torno desse assunto. Sem ir muito longe, evocamos as discussões sobre o modo de conceber o enquadre analítico ontem e hoje. Também fazem parte desses debates, ainda que talvez de modo mais tímido, interrogações sobre a vigência de conceitos teóricos centrais para nossa disciplina. Nessa direção, as mutações na fisiologia reprodutiva em consequência do avanço da tecnologia relativa ao tema, as inovadoras e heterogêneas configurações familiares, a queda da hegemonia da função paterna e outras variações na subjetividade geram novos questionamentos; por exemplo, sobre a vigência do complexo de Édipo em sua configuração clássica, o lugar do recalcamento como mecanismo de defesa princeps ou o determinismo freudiano com o chamado modelo “arqueológico” do tratamento.

Tendo apresentado a pergunta que consideraremos nesta comunicação, interessa-me introduzir dois conceitos, que examinarei a seguir. Em primeiro lugar, a noção de ferramenta. Em qualquer uma das edições do dicionário da Real Academia Española, pelo menos nas modernas, o termo ferramenta está associado a: (1) instrumento, geralmente de ferro ou aço, com que trabalham os artesãos; (2) conjunto desse tipo de instrumento. Ambas as acepções associam a ferramenta a um elemento simples, manual e cuja finalidade é fazer algo, tal como um objeto artesanal. Mas essa definição pode ser complementada por outra que se centra nas características (objetividade do objeto) da ferramenta e também no seu uso (subjetividade do uso). Tratando-se do ofício psicanalítico, não há nada equivalente ao martelo do carpinteiro ou ao bisturi do cirurgião. No entanto, é possível identificar um conjunto de recursos (visíveis ou não) com que o psicanalista conta em sua caixa de ferramentas.

Em segundo lugar, a noção de dispositivo, que, por outro lado, é usada com frequência na bibliografia psicanalítica da última década. Sem pretender desenvolver uma análise exaustiva da bibliografia sobre esse conceito, vale considerar uma primeira definição. Michel Foucault se perguntou o que é um dispositivo e construiu uma resposta genealógica em Microfísica do poder (1992). Para o filósofo francês, um dispositivo é uma rede de relações entre elementos heterogêneos (discursos, instituições, linguagens, ideologias, estéticas etc.), explícitos e implícitos, ditos e não ditos. Essa relação, porém, não é estável, muito pelo contrário2 -entre outras coisas, porque emerge numa situação de urgência.

Pois bem, por que visitar esses conceitos (ferramentas e dispositivo) quando nos perguntamos sobre nossa prática clínica? Talvez possamos pensar a clínica psicanalítica como um dispositivo composto de uma série de elementos heterogêneos que, como todo dispositivo, nasce relacionado com uma situação de urgência ou, pelo menos, com uma situação nova. No nosso caso, vinculado, além disso, ao padecimento que se transforma e se modifica, como a subjetividade. À luz dessas variações, que consequências têm para nosso dispositivo psicanalítico? Como essa estrutura elaborada pela psicanálise há mais de 100 anos poderia permanecer sem variações? Assim pensada, a interrogação sobre as ferramentas e o dispositivo é uma interrogação sobre o ofício psicanalítico e sua caixa de ferramentas.

Não é simples determinar quais são as ferramentas com que um psicanalista opera. No entanto, seria impensável ele trabalhar sem a noção de inconsciente, a de transferência, sem o conceito de neutralidade analítica ou o de associação livre. A leitura de “Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, de Freud (191271986a), é uma excelente introdução ao tema, porque ali se pode perceber o esforço do criador da psicanálise para transmitir, aos jovens analistas, sua experiência de como usar o “instrumento” - nas suas próprias palavras.

Ensaiar um exercício de síntese equivalente não é fácil. No entanto, faremos esse esforço ao longo destas páginas. Em primeiro lugar, nos deteremos nas variações de época e seu impacto no exercício da clínica. Depois, e em segundo lugar, uma vez examinado o enquadre como o dispositivo analítico que possibilita a manifestação da transferência, vou me concentrar na interpretação como ferramenta princeps do analista.

 

Primeira parte

Sobre as mudanças socioculturais e seu impacto nos processos de subjetivação

Partamos de uma evidência: somos contemporâneos de uma série de transformações na subjetividade. Devido a minha especialidade clínica e porque entendo que ali se observam mais intensamente as mudanças subjetivas de nossa época, vou me concentrar na descrição de algumas mutações na subjetividade adolescente, que, por outro lado, constituem um desafio na hora de pensarmos nossa prática. Como sabemos, a adolescência é um processo de fortes mudanças, que põe em questão a estrutura rígida construída no “período de latência”, aquela que ergue diques contra a sexualidade e habilita a criança a se dedicar a aprender. Trata-se de seu ingresso na cultura. São questionados, então, os modelos oferecidos, a sexualidade passa para o primeiro plano e reina uma grande confusão.

A psicanálise ocupou-se extensamente dessa etapa do ciclo vital. O/a jovem se vê ante a tarefa de “emigrar” do mundo da “criança na família” para a construção da subjetividade adulta. Embora desde seu nascimento, e também antes, na sua “pré-história”, o sujeito esteja imbricado com o outro e com o mundo que o circunda, é na adolescência que ele topa com a tarefa de encontrar seu lugar no mundo através da tarefa que Freud descreveu como “libertar-se da autoridade dos pais” (1909/19860).

As instituições, a começar pela família e continuando com a escola, agiram como forças externas reguladoras do sujeito e modeladoras de identidade, ajudando a regular essa passagem. Não deixamos de notar que ambas produziram e continuam, em grande medida, produzindo um imaginário nascido há mais de 200 anos. Talvez, em consequência dessa distância, essas instituições perderam força em sua função de regulação.

Quando examinamos as mais diversas situações históricas, observamos que cada sociedade constrói ritos de passagem para acompanhar situações de limiar como o nascimento, a morte e/ou o casamento. São cerimônias rituais que acompanham na medida em que anunciam e certificam um fato que aconteceu. Em tempos remotos, assim como em algumas sociedades tribais da atualidade, existiam ritos de passagem da infância para a idade adulta. Se nos detivermos nesses ritos, observaremos que a sociedade provê aos jovens cerimônias que instituem sua condição de adultos.

Poderíamos dizer, então, que a sociedade contemporânea não provê ritos de iniciação institucionalizados. Os rituais de hoje, criados pelos próprios jovens - e chamativamente parecidos em diversos lugares do mundo ocidental -, assemelham-se mais às provas de coragem que povoam os contos infantis. Podem consistir em beijar alguém que se acabou de conhecer - não necessariamente de outro gênero -, tomar álcool até perder a consciência, fumar maconha ou ingerir outras substâncias, entre outras.

Enlaçada com essas variações, outra tendência adquire notável presença nos espaços de discussão em psicanálise: é a denominada falência, ou queda, da chamada “função paterna”.3

Embora esse declínio tenha uma longa história, alguns historiadores o vinculam, de fato, com o nascimento do primeiro cristianismo; é o Estado Moderno, por meio de suas instituições, que limita o pai e regula os direitos do filho (notemos que já não são direitos sobre o filho, mas do filho). Nesse contexto, no qual também nasce a psicanálise, surge um modelo de família nuclear, burguesa, monogâmica e heterossexual. Essa configuração familiar, em combinação com as práticas dominantes de criação dos filhos, explicam, e explicam bem, a escolha de Freud do mito de Édipo como complexo nuclear das neuroses e seu lugar central na estruturação da personalidade e na organização da sexualidade humana. Como sabemos, Freud - além de formular sua centralidade - também proclamou sua universalidade.

Mas a formulação dessa universalidade não nos impede de observar as variações nas configurações familiares e nas estratégias de criação dos filhos. Por exemplo, nas sociedades pré-modernas, o modelo de criação não estava centrado nas crianças. Adultos e crianças conviviam com parentes e vizinhos sem que existissem espaços diferenciados e exclusivos para adultos e crianças. Nesse contexto, as regulações para evitar o incesto estavam a cargo da Igreja e do Estado, não da família. Em contraposição, a família moderna - cuja vigência como modelo se estende até meados do século XX - se centra no casal conjugal. O amor devia circular no casal, entre eles e seus filhos. Segundo Moreno (2014), “nessa nova modalidade de criação, favoreceu-se definitivamente, também como ideal, a proximidade física e afetuosa entre pais e filhos amorosos” (p. 61). Essa tendência, que por outro lado também poderia ser entendida como uma prática de reclusão, teve uma curiosa consequência, que o autor destaca no mesmo capítulo: ao mesmo tempo, a família moderna cumpria uma dupla e paradoxal função ao proibir o incesto e promover a sensualidade no seio da família. Não é de estranhar, portanto, que Freud encontrasse a sintomatologia neurótica como prevalente na época (a histeria e as fobias) nem que fosse natural situar o complexo de Édipo como o complexo central de toda neurose em sua expressão da neurose infantil.

Pois bem, a crise da sociedade moderna também implica a crise das práticas de isolamento, com sua estimulação da sensualidade endogâmica e a simultânea proibição. O modelo da família atual pós-moderna está muito longe do ideal moderno. Por um lado, os pacientes que nos consultam podem pertencer a configurações familiares diversas: famílias reconstituídas, monoparentais, casais do mesmo sexo, entre outras. Tampouco o contrato entre cônjuges está baseado numa união permanente.

Também a atribuição de autoridade ao pai se enfraqueceu, como já assinalamos. No atual momento, já não confundimos, ou não deveríamos confundir, a função paterna com o papel desempenhado por um homem que em geral se chama pai e que habita numa família em que é pai dos filhos e marido da esposa, por exemplo. Hoje em dia, não é necessário que esse papel seja cumprido por um homem, que, ademais, seja o pai. Pode ser outra pessoa, e não necessariamente do gênero masculino.

Também adquire centralidade um conjunto de interrogações no tocante à filiação, a partir dos avanços tecnológicos que começam a questionar o que antes parecia irredutível: a paternidade biológica e o conceito de incesto.

Por outro lado, o isolamento na família não é uma tendência imperante nesta época. Predomina, hoje em dia, um ritmo acelerado, imposto pela pressão da cultura mediante uma espécie de corrida em busca de um prometido sucesso que não se saberia dizer em que consiste. Somos parte de uma engrenagem que nos faz correr sem que saibamos para onde nos dirigimos. Essa pressão também é sofrida pelas instituições educacionais, que hoje propõem o início da escolaridade para crianças que não falam e usam fraldas, o que lhes garantiria, dizem, um lugar em determinadas escolas e, mais adiante, na universidade. Também a sofrem os pais, que exigem dos psicanalistas resultados rápidos para “reorientar” a criança ou o jovem para a corrida.

Como parte desse clima de variações, observamos que as mães, que antes sofriam por ter de voltar ao trabalho depois da licença-maternidade, às vezes retornam antes do período estabelecido. É fácil condenar essa conduta se não compreendermos o que está acontecendo: como a idade da maternidade foi postergada, as mulheres puérperas deixaram postos de trabalho que temem perder, e não sem razão. Mas talvez não seja só isso.

A tecnologia, com seus avanços na comunicação, “estragou” ou “atravessou” a reclusão moderna. O que caracteriza nossa época é o acesso direto a um discurso imediato através da internet, oferecido facilmente e cheio de opções. Hoje em dia, o lugar de encontro é predominantemente virtual: textos ou SMS, Facebook, Twitter, WhatsApp, Instagram, Snapchat, Tumblr e blogs são algumas dessas possibilidades. O território do encontro também pode acontecer nos telefones celulares, que cada vez possuem mais elementos.

Com essas descrições, não pretendo sintetizar o conjunto de variações da época. Tampouco tenho a intenção de ensaiar uma análise exaustiva sobre os adolescentes atuais. Pretendo, antes, sublinhar algumas variações na subjetividade em geral, e no adolescente em particular, que têm consequências para a clínica psicanalítica e exigem que revisemos nossa caixa de ferramentas.

À luz da caracterização realizada, surgem algumas interrogações, quais sejam: como se produz subjetivação e se constrói a sociabilidade num contexto como o atual, fortemente mediatizado e com preponderância da imagem, da exposição, da visibilidade e da celebridade entronizadas pelos mass media? Essas perguntas exigem, claro, uma perspectiva temporal de que ainda não dispomos. Como dizem os historiadores, não se pode escrever a história enquanto está ocorrendo; necessita-se de uma certa distância para observar as mudanças, descrevê-las e pensá-las. No entanto, minha impressão é que os mecanismos mentais usados por crianças, adolescentes e adultos familiarizados com a informática estão mais próximos dos mecanismos ligados à cisão ou splitting do que daqueles relacionados com o recalcamento. Não penso que o recalcamento não seja utilizado, mas acho que o tipo de interação mediática por meio da qual um jovem pode estar simultaneamente assistindo televisão, “chateando”, vendo um vídeo curto no YouTube e enviando um sms é analisável em termos de splitting e dissociação de diversos níveis do self, que lhe permitem dispersar (?) ou concentrar (?) a atenção em várias coisas ao mesmo tempo.

Confrontada com essas situações, a psicanálise tem pela frente a grande tarefa de encontrar a definição dos mecanismos mentais que prevalecem na nossa época para, assim, dar conta do que vemos na clínica com pacientes jovens. Em relação à sexualidade, por exemplo, as características do mundo com que o adolescente de hoje se depara são muito diferentes daquelas das jovens tratadas por Freud, como Dora, Catarina ou a jovem homossexual. Também aqui cabe nos perguntarmos se a ideia de recalcamento sexual, própria da concepção vitoriana - tão presente na época de Freud -, continua sendo o mecanismo princeps na atualidade.

Passemos do mais visível a um terreno conceitual. A relação entre o visível e o oculto da sexualidade, claramente observável nas mudanças paulatinas na maneira de se vestir, denota que, se na época vitoriana a ordem era ocultar, na atualidade - com a prevalência da imagem e o anseio de “ser visto” - a ordem parece ser mostrar. Em outro terreno, Marcelo Vinar (2014) nos aponta que “antes, o que regia era o mandato social de castidade e fomentava-se a fobia à defloração; hoje, o que rege (no imaginário coletivo) é o mandato de iniciação sexual precoce” (p. 4).

Se retomarmos o conceito de intimidade, tão significativo para a sexualidade adulta, vemos que este foi fortemente afetado pela revolução informática, a ponto de ter se invertido e passar a ser um espetáculo, tal como formula a autora argentina Paula Sibilia (2008). Sem perder de vista essas variações, entendo que, embora os meios de comunicação irrompam na privacidade, há um espaço, o da intimidade, que pode ser cuidado e preservado. É um espaço mental que oferece a um indivíduo a possibilidade de tomar contato com uma área da mente em que transcorrem as relações emocionais e a criatividade em todas as suas dimensões (uma das quais, a de gerar sonhos, é muito apreciada por nós). Na nossa época, para algumas pessoas, o único espaço de privacidade são suas sessões de análise e é ali que podem começar a construir a noção de intimidade.

Quando observamos essas variações, o ofício do psicanalista parece se abalar.

Olhamos para nossa (velha) caixa de ferramentas e às vezes não encontramos o que buscamos. Ou, pelo menos, o que encontramos não basta. As crianças, os adolescentes e jovens, e também os adultos, bem como as famílias em geral, não se parecem com os que Freud pensou. Então, surgem as perguntas: qual é o estatuto dessas variações, em que consistem, que tipo de linguagem está em jogo (dimensão-chave para nós), como conceituar a temporalidade desses vínculos etc. Mais uma vez, nós, psicanalistas, nos confrontamos com a necessidade de voltar a nos indagar sobre nossas ferramentas para que um encontro seja possível.

 

Segunda parte

Variações nos dispositivos e ferramentas. Sobre a interpretação e suas mudanças

Com a intenção de sublinhar as transformações na caixa de ferramentas do analista, detivemo-nos, na primeira parte deste artigo, em algumas mudanças sociais e culturais na subjetividade e nas configurações familiares. Com essas descrições, não pretendemos ser exaustivos, longe disso.

Por outro lado, nesta segunda parte do artigo, pretendemos dar um passo a mais, relacionado com nossa intenção de pensar o ofício atual de psicanalista. Se, como assinalamos, aqueles que se apresentam no consultório mudam e já não são o que eram, que consequência tem essa tendência sobre nossa tarefa? Que efeitos observamos sobre a caixa de ferramentas com que estamos habituados a operar?

Essa interrogação pode ser abordada de diversas formas: tomar como eixo alguns dispositivos e/ou ferramentas ou se concentrar em outros. Neste caso, decidi focalizar uma ferramenta-chave de nosso ofício, que, suspeito, se vê afetada pelas variações que consideramos. Qual seja: a interpretação psicanalítica. Estamos diante de uma das modalidades possíveis de intervenção do analista na sessão. Mas não se trata de qualquer modalidade. Estamos, antes, diante daquela que é considerada a ferramenta princeps do analista.

Irei me concentrar no enquadre como dispositivo para, em seguida, considerar, no ritmo de meu próprio devir como psicanalista nos últimos anos, em que a ferramenta interpretação em questão mudou.

Comecemos por algo que é uma evidência para os analistas: para que a transferência se dê, é condição necessária o enquadre analítico instalado. Cabe esclarecer que, por enquadre, não me refiro às condições formais dele, mas ao enquadre como condição a ser internalizada e, por isso, ligada à chamada atitude analítica. Assim definido, o método analítico é a salvaguarda que os psicanalistas têm diante de qualquer transgressão técnica que possam cometer. Por outro lado, o método também é o que oferecemos aos pacientes que nos procuram. Inclusive, considerando a definição de Freud, nele confluem pesquisa e terapia. E, neste último aspecto, está incluída a teoria do tratamento que cada analista sustenta de acordo com seus referenciais teóricos.

Pois bem, o enquadre sofreu mudanças nos aspectos formais desde que a psicanálise nasceu: número de sessões semanais, formas de cumprimento entre paciente e analista, montante de honorários e modalidades de pagamento, entre outros aspectos. Para além dessas variações, também registramos mudanças em aspectos mais internos e sutis. Por exemplo, os modos de comunicação. Na Argentina, sem ir mais longe, o uso difundido do tratamento por você em lugar do obrigatório o senhor de outras épocas transformou-se em algo frequente. Por outro lado, analista e paciente nem sempre estão sozinhos no consultório, já que muitos vêm acompanhados dos elementos fornecidos pela tecnologia. SMS, WhatsApp e e-mails estão incorporados como modos de pedir mudanças, avisar ausências e dizer “estou chegando”. Não faz muito tempo, entraram em contato comigo por meio de um telefonema. Estando frente a frente na entrevista, perguntei à pessoa como tinha chegado até mim e ela me respondeu imediatamente: “Eu a googlei, doutora”.

Como destaquei na introdução, pensar as variações de que participamos implica pensar as transformações nas subjetividades atuais, mas também nas condições de trabalho dos analistas. A esse respeito, posso considerar minha própria experiência, que, além disso, é representativa de uma tendência: moro e trabalho em Buenos Aires, cidade que foi cenário de um auge da psicanálise nas décadas de 50 e 60, e que parece muito difícil de compreender desde outras latitudes. Para dar um breve exemplo, quando quis marcar hora para iniciar minha análise didática em fins da década de 70, liguei para cinco analistas e quatro me responderam que com muito prazer iriam me atender dali a dois, três ou quatro anos. Não seria necessário dizer que hoje essa situação é inexistente.

Por outro lado, e como parte de um processo social e cultural mais geral, nossa época se caracteriza pelo questionamento da autoridade, inclusive aquela vinculada ao saber. Professores e educadores, a escola em geral, são atravessados por essas variações. E o analista também. Pois bem, esse questionamento tem efeitos que podem ser observados tanto nos dispositivos quanto nas ferramentas que o psicanalista usa. Diante dessa mudança de estatuto, uma primeira reação poderia ser considerar que os efeitos foram necessariamente negativos. Por exemplo, frente ao crescimento das ofertas de alívio rápido do sofrimento, perdeu-se terreno. No entanto, do meu ponto de vista, creio que o psicanalista se tornou mais sensível às circunstâncias de seu entorno e às suas próprias resistências à psicanálise. Desse modo, permitiu a si mesmo revisar criticamente sua atitude diante da tarefa e certo isolamento.

Se a psicanálise é questionada de fora, por que não interrogá-la de dentro? Por que não nos perguntarmos sobre nossas ferramentas? Sobre sua validade e sentido? Como se trata de um campo problemático e enorme, vou me concentrar apenas num assunto, como já adiantei: na interpretação, enquanto ferramenta princeps de um psicanalista. Mediante essa pergunta, talvez possamos nos interrogar sobre nossa própria prática.

A interpretação psicanalítica ontem e hoje

A literatura psicanalítica a respeito da interpretação é ampla e variada desde o início da psicanálise. Impõe-se um recorte a fim de introduzir o tema. Comecemos, então, pelo mestre R. Horacio Etchegoyen.

Etchegoyen (em comunicação pessoal, 2014), que se ocupou do tema de maneira minuciosa e profunda, considera a interpretação psicanalítica o instrumento fundamental para a tarefa de um analista. Segundo seu ponto de vista, esta é a ferramenta do terapeuta enquanto condição necessária e suficiente para seu exercício. Seus textos Los fundamentos de la técnica psicoanalítica (1986) e o valioso Un ensayo sobre la interpretación psicoanalítica (1999) são de consulta obrigatória. Pois bem, no capítulo 5 do mencionado ensaio, o autor define a interpretação transferencial como “a mais singular e específica de nosso fazer” (1999, p. 53). Por outro lado, a interpretação completa abarca, em passos sucessivos, tanto o conflito transferencial quanto aquele que não está estritamente ligado à transferência. E este último pode ser o conflito atual ou o histórico, tanto infantil quanto o mais precoce, que inclui as vivências do período pré-verbal.

Uma última questão que merece ser sublinhada. Segundo Etchegoyen, a interpretação pode ser testada durante a sessão analítica e isso implica “incluir no diálogo analítico o juízo sobre o que interpretamos” (1999, p. 66). Não se trata, assinala ele, do juízo racional, mas daquele que provém do inconsciente e surge sem que o paciente saiba o que está fazendo.

Essa posição (que vê a psicanálise como uma ciência) contrasta com uma proposta que vários autores4 defendem e que entende que a prática analítica está mais próxima da arte ou de um artesanato. Pensando assim, interpretar não é tanto explicar, dar sentido ou “descobrir” os conteúdos inconscientes, mas uma atividade ligada a descrever e a conjeturar imaginativamente, num trabalho interpretativo realizado por analista e paciente. A essa questão, complexa por diversas razões, voltaremos mais adiante.

Retomemos a noção de interpretação de mãos dadas, agora, com um artigo de James Strachey (1934), clássico em psicanálise, sobre a interpretação mutativa. Quando Etchegoyen revisa o trabalho, sugere que talvez seja o artigo que melhor descreve a dialética da interpretação. Numa breve síntese, poderíamos dizer que Strachey se pergunta sobre os efeitos terapêuticos da psicanálise e afirma que a interpretação depende das mudanças dinâmicas que produz, em particular, a interpretação mutativa.

Nesse âmbito, o autor postula a criação de um Supereu auxiliar, que é resultado da projeção dos impulsos e dos objetos arcaicos no analista. A presença do analista como Supereu auxiliar gera, então, impulsos dirigidos ao analista, mas este, ao não se comportar como o objeto original, fará com que o analisando tome consciência da distância entre o objeto arcaico e o atual. Por outro lado, é isso que irá permitir, nos termos de Strachey, romper o círculo vicioso neurótico. Para que isso ocorra, claro, é necessário manter o setting analítico e intervir com a interpretação.

Segundo Strachey, a interpretação mutativa produz uma mudança estrutural, o objeto arcaico se modifica, pode ser rein-trojetado como mais benévolo e a natureza severa do Supereu muda.

Hoje, 80 anos depois da publicação de um dos artigos mais citados e discutidos em psicanálise nas mais variadas perspectivas teóricas, cabe perguntar-se sobre a vigência das ideias apresentadas - pergunta que, além disso, está vinculada à expansão do campo dos quadros psicopatológicos tratados com a terapia analítica. Nesse sentido, já não é possível fazer generalizações sobre o uso da ferramenta interpretação sem singularizar o paciente, o analista e seus referenciais teóricos.

A partir dos estudos sobre o desenvolvimento psíquico precoce e a análise de crianças pequenas, em suas diferentes aproximações conceituais, incluiu-se na especificação da interpretação tudo o que se refere à linguagem não verbal (gestos, mímica, tons de voz, silêncios).

De todo modo, a pergunta sobre a ação terapêutica da interpretação psicanalítica continua mantendo a questão em aberto e é germe de possíveis desenvolvimentos futuros, num momento em que a psicanálise abre espaços de debate sobre as condições atuais de nosso trabalho, a possibilidade de análise a distância utilizando os avanços tecnológicos e a viabilidade do uso de nossas ferramentas em contextos ampliados.

Depois de examinar as ideias de Etchegoyen e de Strachey sobre a noção de interpretação, me interessa fazer uma breve incursão por outras disciplinas.

O termo interpretação também tem uma longa história fora do âmbito da psicanálise. No campo da filosofia, por exemplo, a relação entre a percepção e a gênese do conhecimento foi um objeto de preocupação de longa data. É uma discussão compartilhada atualmente pelas ciências duras, para as quais não só não existiria o objeto observado sem observador, mas o próprio observar produziria efeitos sobre o observado.

A interpretação também está estreitamente relacionada com a arte, qualquer que seja sua expressão. Susan Sontag, em seu célebre artigo “Contra a interpretação” (1961/1996), coloca em questão o papel historicamente atribuído à crítica em sua tarefa de interpretar, traduzir e desvendar o que uma obra de arte expressa. O ponto central, para Sontag, é que esse tipo de crítica confunde a obra com seu conteúdo. Segundo a autora, isso leva a exigir que a arte dê conta do sentido, o que produz a exigência de interpretá-la. Esse ensaio, revulsivo e crucial nos anos 60, conserva ainda hoje o mérito de colocar em questão o valor absoluto da interpretação em arte.

Para Susan Sontag, os processos de interpretação da obra de arte, as tentativas de tornar inteligível um texto em particular ou uma obra em geral, escondem uma tentativa de alteração: não se trata de “ler” o corpo textual (seja literatura ou artes visuais), mas de revelar seu sentido, seu conteúdo secreto.

Esse ensaio, que mereceria um espaço maior, mostra-se estimulante quando entra no terreno da interpretação psicanalítica, pois nos incita a pensar nossa prática desde uma atitude de interrogação e questionamento. Nessa direção, a crítica de Sontag nos convida a repensar nossa própria prática à luz das alterações atuais. Por exemplo, as ferramentas clínicas elaboradas no final do século XIX nos permitem intervir na clínica da mesma maneira? O que mudou? O que permanece? Em que sentido uma ferramenta pode deixar de sê-lo?

Pois bem, essa disposição para a revisão não é fácil. Eu arriscaria dizer que, às vezes, nos custa tanto ou mais que aos nossos pacientes.

Isto posto, não se deve perder de vista que a interpretação, enquanto ferramenta princeps para o analista, continua vigente. Tal como adiantamos, o impacto das mudanças culturais, sociais, familiares, subjetivas e tecnológicas se faz sentir em nossos consultórios. Mudou a apresentação da psicopatologia, e o enquadre analítico aceita novos modos de comunicação, com a realidade informática presente no vínculo analítico. No entanto, é necessário repensar a ferramenta em questão.

Se ampliarmos o foco com uma lente de aumento maior, detectaremos mudanças e mutações que implicam transformações profundas na maneira de conceber o diálogo analítico. Se voltarmos à pergunta sobre a interpretação no âmbito do consultório, não encontraremos algo equivalente à “interpretação correta”. Ainda que o analista construa uma opinião sobre o que está ocorrendo na relação transferencial, ele mesmo se torna cada vez mais dependente do contato com sua própria contratransferência, que vai pôr à prova, segundo Bion (1962/1987), a capacidade negativa, isto é, a capacidade de tolerar dúvidas, incertezas e não embarcar na busca irritante de fatos e razões. Tratar-se-ia, poderíamos concluir, de uma construção que pode operar e funcionar, mas que sempre é tentativa, conjetural e contingente.

Para avançar nessa caracterização, cabe determo-nos um pouco mais detalhadamente em dois aspectos técnicos: o conteúdo e a formulação da interpretação. Quanto ao conteúdo, e fazendo uma observação sobre minha própria tarefa ao longo de muitos anos de prática,5 posso detectar diversas mudanças. No âmbito da tradição ligada ao modelo kleiniano, em que, ademais, me formei, supõe-se uma prevalência da hostilidade no começo da vida, com a percepção do impulso de morte e sua posterior deflexão por temor ao aniquilamento. Tal enfoque - que certamente não corresponde à maneira de interpretar de Melanie Klein - teve consequências numa maneira de interpretar que pôs o foco na hostilidade em detrimento de um variado repertório de ansiedades a considerar. Esse modelo, que Meltzer denomina de “teológico” (1984), supõe que ao nascer estamos ameaçados de “inferno” e, através de certas operações mentais, como o splitting e a idealização, empreende-se o caminho do desenvolvimento. As ansiedades em jogo nessa configuração - esquizoparanoide - determinam um clima especial na atmosfera do consultório, que poderiamos chamar, em consonância com o modelo que Meltzer chama de teológico, de “clima da descida aos infernos”. Esse clima pode ter feito parecer natural o trabalho interpretativo do analista com certa pressa para outorgar significação. Talvez a questão seja que, com os sentimentos contratransferenciais imperantes nesse clima, sempre resulta mais apropriado entrar no inferno com argumentos do que sem eles.

Essa tendência levou, no meu entender, à gênese de circuitos fechados de índole paranoide na interação analítica. A meu ver, reduziu-se a receptividade que, por outro lado, teria de dar espaço para os impulsos que venham ao campo transferencial. Cumpre esclarecer que não estou dizendo que a transferência negativa não existe. Pelo contrário, considero essencial sua interpretação, mas sempre em contraponto com os impulsos libidinais que, em última instância, permitem que o paciente esteja na sessão falando ou brincando conosco.

Ao ler trabalhos com material clínico de mais de trinta anos atrás, é notório que se interpretava muito mais do que hoje em dia. Quiçá certo furor interpretativo tenha como causa uma necessidade defensiva do analista, que, através da ação de falar, pode dar curso à sua própria ansiedade ante o contato com a hostilidade mais primitiva. Agora, se examinamos a área da formulação da interpretação e colocamos, como contraponto, o modelo estético que postulei em 2000 (Ungar, 2000), pode-se depreender uma modalidade interpretativa diferente, baseada, creio, mais na possibilidade de observar e descrever do que na de explicar. Do meu ponto de vista, essa modalidade interpretativa metacomunica, igualmente, uma atitude de observação, de reflexão e de conjetura.

Retomaremos aqui o debate sobre se a psicanálise é uma ciência ou uma arte, que apenas indicamos antes. O analista apresenta ao seu paciente conjeturas sob a forma de interpretações e este deve realizar um trabalho psíquico com elas. A interpretação, assim pensada, é um convite para trabalhar. Diferentemente de uma hipótese científica, que é taxativa, a conjetura imaginativa supõe uma opacidade que determina uma atitude mais reservada no momento de interpretar. Nessa direção, o tipo de formulação: “me parece que”, “penso que” ou “poderiamos pensar” não é uma estratégia diplomática para que o analista cause um efeito de alguém mais humilde, mas uma enunciação que nos lembra da impossibilidade essencial de saber tudo.

Uma visita ao consultório de ontem e de hoje

Para dar conta das mudanças em minha própria maneira de trabalhar, fui rever materiais clínicos dos começos de minha tarefa com pacientes em análise e outros mais recentes com uma atitude de observação, experiência de comparação esta que me permitiu entrar em contato com as transformações na prática de modo muito vívido.

A seguir, apresentarei duas vinhetas de minha própria clínica para estudar como esta se modificou. A primeira provém da análise de uma criança, realizada há trinta anos, e a segunda é de uma paciente, estudante universitária, numa sessão de pouco tempo atrás. Esse contraponto nos permitirá observar as intensas variações no que diz respeito à interpretação.

O primeiro exemplo é um breve fragmento da primeira sessão da análise de Andrés. Trata-se de um menino de 5 anos que foi trazido por uma intensa gagueira e dificuldades no nível de gráficos esperáveis para sua idade. Sua análise realizou-se com uma frequência de quatro sessões semanais.

Ele chega e se despede facilmente da mãe (que foi quem o trouxe). Vem comendo balas efervescentes que fazem ruído na sua boca. Abre a boca e me diz: “Olha como explodem.” Olho para ele. Começa a falar em alta velocidade, em tom alto, gagueja muito, tosse e espirra. Conta que ganhou uma bicicleta de presente e que num churrasco no dia anterior “os pais comiam fora'”.

Interpreto: “Como é a primeira sessão, você está assustado, quer encher tudo de palavras porque dentro de você tem ideias que sente que são coisas que explodem na sua boca como a bala'”.

Andrés acrescenta: “Que explodem na minha boca como bombas'”.

Interpreto: “Você tem medo de mim, não sabe como vou receber o que você sente que são bombas dentro de você'”.

Andrés: “Me diz: para que eu vim? Ah, é... Vim para que você me diga que tenho que vir. Mas eu faço basquete e hoje faltei”.

Interpreto: “Por um lado, você gostaria de ver comigo por que as palavras explodem na sua boca e se cortam e você gagueja, mas, por outro, você tem medo e preferiria ficar com o que já conhece, que é o basquete'”.

Esse breve exercício de observar minha modalidade interpretativa quando era uma jovem analista se mostrou revelador. Ao ler as interpretações que fiz para Andrés na sua primeira sessão, concordo com o conteúdo (me parece que apontavam para o centro de máxima ansiedade, como nos ensinara Melanie Klein). Ao mesmo tempo, a formulação me parece muito assertiva. Outorga significado e não abre caminhos. Na verdade, apresenta hipóteses que praticamente não deixam espaço para outras ideias novas.

O contato com a obra e a pessoa de Meltzer, sobretudo na formulação de um modelo estético (Ungar, 2000), teve grande impacto na minha maneira de entender o ofício psicanalítico e na hora de trabalhar. No modelo estético, o saber do analista será sempre superado pelo que o paciente transfere, não existe chance de conhecimento total ou completo, dadas as qualidades não observáveis pelo sensorial do chamado objeto psicanalítico. Depreende-se, assim, um estilo de interpretação psica-nalítica que se baseia fundamentalmente na possibilidade de observar e descrever, não de explicar.

Ao retomarmos o breve exemplo clínico da primeira sessão com uma criança de 5 anos, vemos que a primeira interpretação atribui, ao menino, de sentimentos a intencionalidades. “Como é a primeira sessão, você está assustado, quer encher tudo de palavras porque dentro de você tem ideias que sente que são coisas que explodem na sua boca como a bala.” Quando releio hoje essas vinhetas, vejo a mim mesma como uma jovem analista muito entusiasmada, mas com pouca vacilação. Hoje teria uma atitude mais descritiva, com uma maior aceitação de que o trabalho interpretativo supõe uma sequência, um diálogo, uma série de conjecturas. Se tentasse, numa espécie de exercício, imaginar minha modalidade de intervenção atual, ocorre-me o seguinte: hoje eu me deteria no começo de minha interpretação. Então, falaria a Andrés de seu temor de começar uma experiência nova com alguém que mal conhece, enquanto sua mamãe fica fora (tomando aquilo de que ontem, no churrasco, os pais comeram fora). Hoje também não me apressaria em interpretar as “ideias explodem na sua boca”, e não o faria porque entendo que essa fantasia não está presente. Continua evidente para mim, tal como naquele momento, que há uma forte relação entre a agressão e seu sintoma (as palavras saem cortadas). No entanto, eu esperaria que o menino tivesse a oportunidade de chegar nisso de algum modo. Em suma, com minha ajuda, mas a partir dele.

Por outro lado, Andrés aceita imediatamente minha sugestão de que algo explode na boca dele e acrescenta: “Que explodem na minha boca como bombas”. Isso produz nele mais excitação, e ele trata de utilizar defesas maníacas onipotentes de possuir material explosivo que pode utilizar. Depois da minha segunda interpretação, relacionada com seu possível temor de que eu não possa receber sua agressão, surge a confusão e só então parece se perguntar onde está e com quem: “Me diz: para que eu vim?Ah, é... Vim para que você me diga que tenho que vir”.

A criança se pergunta e talvez não possa esperar uma resposta. Responde a si mesma com algo que pode acalmá-la: que eu vou lhe dizer para que tem de vir à análise. Esse convite é aquele que eu hoje teria o cuidado de aceitar, o de responder rapidamente para atenuar a ansiedade de ambos.

Durante o tratamento de Andrés, que foi intenso e não muito longo, a hostilidade passou ao ato em vários momentos, incluindo o lançamento de objetos que me atingiram. Tivemos de suspender sessões antes da hora com presença da mãe na sala de espera até que a sessão termine, trabalhando ali com ele. Lentamente, apareceu a possibilidade de desenhar e, depois de um lapso de tempo, o sintoma diminuiu. Esse paciente, como quase todos, me ensinou muito sobre a técnica com crianças e, sobretudo, a segui-lo em suas possibilidades de se aproximar do centro de sua ansiedade e de sua dor mental, o que me resultou de grande utilidade no trabalho com pacientes de qualquer idade.

A questão do convite, a que me referi ao apresentar a vinheta da análise de Andrés, me oferece uma deixa para me observar trabalhando numa sessão muitos anos depois.

Uma jovem paciente, no curso de seu quarto ano de análise e pouco depois de iniciada a sessão de uma segunda-feira, me comunica com muita emoção, e em tom de pergunta, que decidiu me convidar para a cerimônia de sua graduação universitária que ocorrerá dali a dois meses. Depois fica em silêncio.

Não respondo nada, nem sinto necessidade de fazê-lo. Pouco depois, continua falando de como foi difícil chegar a essa decisão de me convidar, mas sente que para ela minha presença será importante. Que nunca teria passado pela cabeça dela me convidar para uma festa, por exemplo, de seu aniversário, mas que isso é diferente.

Faz outro silêncio de vários minutos. Em seguida diz que andou falando com seu namorado e acharam que eu certamente não iria querer ir porque isso é sair do enquadre. Faz outro silêncio, desta vez mais prolongado, e diz que, pensando bem, talvez eu não queira ir porque acho que isso poderia deixá-la mais ansiosa.

Devo dizer que transcorreu mais da metade da sessão na sequência descrita.

Só então interpretei que ela talvez precisasse de minha presença concreta na sua cerimônia de graduação porque não confiava em contar comigo dentro dela. Que em seguida chegou sozinha à conclusão, primeiro, de que eu não iria porque estou presa às regras do enquadre, para depois pensar que talvez eu não iria para cuidar de sua análise e, assim, dela.

A sessão continuou e foi evidente o clima de alívio que a paciente sentiu, e não demorou em dizer que agora pensava que talvez se sentisse obrigada a me convidar por algo ligado a seu próprio sentimento de exclusão em diferentes grupos desde menina.

Essa situação transferencial abriu caminho para continuar explorando aspectos de seus conflitos edípicos, já que logo em seguida associou que seus pais lhe contaram que, na primeira visita que fez ao hospital quando nasceu seu irmão, três anos menor que ela, caiu ao entrar e tiveram que lhe fazer um pequeno curativo ali mesmo.

Após uma breve intervenção minha no sentido de que parecia que, naquele momento, sua raiva por se sentir deslocada tinha se voltado contra ela mesma, a paciente continua recordando como foi difícil para ela encontrar não só um lugar na família - é a irmã do meio de três -, mas que essa situação se repetiu nos grupos de meninas de sua infância e começo da adolescência.

A partir desse breve fragmento de uma sessão e com a questão da interpretação como norte, pergunto-me sobre outras possibilidades diante desse convite que eu poderia ter desenvolvido durante minha própria história como analista. Poderia ter permanecido calada, segundo o modelo de que o analista não deve responder perguntas. Também poderia ter interpretado a paciente em relação ao que significa minha presença na sua graduação como uma projeção de seu self infantil em mim, presente na cena primária. O fato é que não lhe respondi. Creio agora que utilizei como indicador minha contratransferência, ao não sentir pressão nem necessidade em mim de fazê-lo. Não falei naquele momento porque não senti que fosse necessário. Penso que decidi receber sua pergunta e pensar. Sobretudo pensar o que podia lhe oferecer para continuar pensando sobre seu desejo de me convidar. Pois bem, isso foi possível depois de sustentar uma atitude de silêncio até formular uma interpretação que possibilitasse à paciente fazer um percurso: de sua ideia de me convidar até chegar, sozinha, à decisão de não fazê-lo.

Esse percurso pela situação clínica e centrado na operação interpretativa não pretende sintetizar a complexidade de nosso cenário, nem no nível das variações das subjetividades nem no ofício do analista. No entanto, entendo que ele nos permite pensar uma variação substantiva no estatuto da interpretação. Ao examinar esse contraponto, que, por outro lado, é parte de minha história como analista, não posso deixar de observar as variações na hora de interpretar. Considerado em perspectiva, vejo diferenças que descrevem minha posição, mas estou certa de que também descrevem a de outros analistas. Hoje me vejo interpretando mais perto do paciente e de seu estado de ânimo. Observo um trabalho conjunto. Trata-se de um convite para um processo de pensamento que, para continuar vivo, exige voltar a pensar.

Para concluir, retomemos a pergunta relacionada com a caixa de ferramentas: que ferramentas de nossa clínica precisamos colocar em questão para continuar trabalhando como psicanalistas? No caso da interpretação, a ferramenta princeps, essa pergunta é complexa, porque não se trata de substituí-la por outra, como faria o artesão enquanto olha para a sua caixa de trabalho, mas de rever seu uso à luz de e em tensão com as variações atuais. Não há dúvida de que não se trata de um exercício fácil. No entanto, é necessário e se converte num convite que não podemos deixar passar.

 

NOTAS

1 A autora detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do Congresso Boston IPA, sob o título Mundo em mudança: a forma e o uso de ferramentas psicanalíticas hoje, que ocorrerá de 22 a 25 de julho de 2015. Inscrições disponíveis em: www.ipa.org.uk/congress.

2 Cabe assinalar a importância das contribuições de Giorgio Agamben e de Gilles Deleuze no que diz respeito à reflexão teórica em torno desse conceito.

3 A função paterna não é algo que se monta de improviso, a pessoa se torna pai. Trata-se da construção lenta, silenciosa, e reformulada a cada passo, da função que é posta à prova ao mesmo tempo que é construída e exercida. Por esse motivo, hoje é mais pertinente falar de parentalidade, termo que recobre uma superfície entre dois círculos que se cruzam produzindo um território comum: os dois círculos seriam o tornar-se mãe e o tornar-se pai.

4 Entre eles, Bion, Meltzer e Ferro.

5 Em análise de crianças, adolescentes e adultos

 

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Correspondência:
Virginia Ungar
Rep. de la India 2.921, piso 11
1425 Buenos Aires, Argentina
virginiaungar@gmail.com

Recebido em 12.11.2014
Aceito em 26.11.2014

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