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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2015

 

KEYPAPERS 49º CONGRESSO DA IPA

 

Psicanálise na Era da Desorientação: do retorno do oprimido1,2

 

Psychoanalysis in the Age of Bewilderment: on the return of the oppressed

 

Psicoanálisis en la Era de la Desorientación: del regreso del oprimido

 

 

Tradução Michael Young; Christopher BollasI

IAnalista didata da Sociedade Britânica de Psicanálise

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho acompanha a publicação on-line “Psicanálise na Era da Desorientação: do retorno do oprimido”, analisando o modo pelo qual a “regra fundamental” da psicanálise sofre interessantes mudanças de função no início do século XXI.

Palavras-chave: Era da Desorientação; retorno do oprimido; modalidades egoicas; refração; visiofilia; horizontalismo; pseudoestupidez.


ABSTRACT

The talk follows the online publication “Psychoanalysis in the Age of Bewilderment: on the return of the oppressed” by examining how the “fundamental rule” of psychoanalysis has interesting changes of function in the early 21st century.

Keywords: Age of Bewilderment; return of the oppressed; ego forms; refraction; sightophilia; horizontalism; pseudo stupidity.


RESUMEN

Este texto acompaña la publicación on-line “Psicoanálisis en la Era de la Desorientación: del regreso del oprimido”, al analizar el modo por el cual la “regla básica” del psicoanálisis sufre interesantes cambios de función en el inicio del siglo XXI.

Palabras clave: Era de la Desorientación; regreso del oprimido; modalidades del ego; refracción; visiofilía; horizontalidad; pseudoestupidez.


 

 

Vim ao mundo imbuído da vontade de encontrar um sentido nas coisas, meu espírito repleto do desejo de alcançar a origem do mundo, e então eu constatei que eu era um objeto no meio de outros objetos. [...] Encerrado naquela “objetidade” esmagadora, recorri, em súplicas, a outros.
(Frantz Fanon)

Não disse antes, nem digo agora, que a nossa seja essencialmente uma época de desespero. O que eu digo é que é uma época de desorientação, nada mais.
(José Ortega y Gasset)

Talvez seja oportuno que este congresso ocorra aqui na “Cidade sobre a Colina”. Os anciões puritanos do início do século XVII não só buscavam refúgio por causa das perseguições religiosas da Europa como também acreditavam que, fundando uma Nova Israel, “lançariam luz” sobre uma Europa que vivia em pecado. Eles estabeleceram padrões extremamente elevados para si mesmos e para seus filhos e, durante a primeira geração, ficaram chocados com seus próprios crimes. Em Of Plymouth Plantation [Da Colônia Plymouth] (1981), o governador Bradford (que chegara no Mayflower) examinou a repercussão de um processo perturbador cujo réu, Thomas Granger, foi acusado de bestialidade em série. Durante o julgamento, foram trazidos vários animais à sala e ele teve que identificar aqueles com os quais praticara esses atos “ilícitos”.

Granger foi considerado culpado e executado em setembro de 1642. “Foi uma cena muito triste”, escreve Bradford, uma vez que “primeiramente a égua e depois a vaca e o restante do gado menor foram mortos diante dele, nos termos da lei, Levítico 20,15; e então ele próprio foi executado”. Os animais foram sepultados numa cova grande.

Bradford tenta entender o motivo que levava homens de fé a serem capazes de cometer um ato daqueles. Por um momento, cogita que talvez “pessoas profanas” estivessem misturadas dentre os imigrantes, mas logo rejeita isso e volta-se para uma explicação psicológica.

Outro motivo possível, que talvez se aplique a este caso, seria o que ocorre com as águas quando suas correntes são interrompidas ou represadas. Quando buscam passagem, correm com mais violência e provocam mais barulho e transtorno do que quando são deixadas a correr tranquilamente em seus próprios canais; da mesma maneira, leis rigorosas interromperam a perversidade neste lugar ... [de modo que ela foi impedida de] trafegar pela via comum da liberdade ... [e busca escapar por] onde quer que, enfim, surja uma brecha. (Bradford, 1981, p. 352)

A mentalidade puritana - o self idealizado que visa a salvar o mundo mediante a ostentação de uma vida exemplar - produziu axiomas que, ao longo do tempo, concorreriam para o espírito americano: um país e seus cidadãos devotados à sua própria inocência, que insistem na ideia de que são a terra dos livres e o lar dos valentes destinados a liderar o mundo em direção ao futuro. O célebre historiador americano Richard Hofstadter descreveu esta mentalidade em The Paranoid Style in American Politics [O estilo paranoico na política americana] (1952/2008).3

Bradford abalou-se pela irrupção imediata de comportamento aberrante entre seus companheiros puritanos. Algumas centenas de anos mais tarde, a visão de Freud sobre a humanidade foi despedaçada pela Grande Guerra. Em carta a Lou Andreas-Salomé, em novembro de 1914, ele afirmou: “Eu sei com certeza que, para mim e para meus contemporâneos, o mundo nunca mais será um lugar feliz. É hediondo demais. [...] parece que a humanidade está realmente morta” (citado por Pfeiffer, 1985, p. 21).4 Cinco meses depois, ele escreve seu primeiro esboço de “Reflexões para os tempos de guerra e de morte” (1915/1957). Inicia o texto com uma advertência - ele está perto demais da guerra para considerar objetivas as suas opiniões pessoais. Daí escreve:

Estando tão próximos às grandes mudanças que já ocorreram ou que se estão iniciando, e sem vislumbrar o futuro que se delineia, nós mesmos estamos perdidos quanto à relevância das impressões que nos pressionam e quanto ao valor dos julgamentos que fazemos. (Freud, 1915/1957, p. 275)

O notável trabalho de Freud poderia ser lido como um comentário não apenas sobre a Guerra, mas também sobre as espantosas mudanças trazidas pela Revolução Industrial. Em pouco mais de cem anos, vidas por todo o mundo foram transformadas. Em seu trabalho, Freud aponta para o progresso realizado no século XIX, mas ele está devastado pela Guerra e pelo fato de ela ter implicitamente anulado todos os pressupostos de esclarecimento a que ele atribuía tanta importância. Ele escreve que o não combatente é “uma peça da engrenagem na gigantesca máquina da Guerra - [que] se sente desorientado e tolhido em seus poderes e atividades”. Ele busca consolo focalizando dois temas - desilusão e morte -, mas reconhece que está em busca de algum entendimento que abra perspectivas: “Acredito que ele [seu leitor] acolherá qualquer indicação, ainda que tênue, que o ajude a encontrar um caminho pelo menos dentro de si mesmo” (p. 275).

A “peça da engrenagem na gigantesca máquina” seria como uma metáfora para as dezenas de milhares de trabalhadores das fábricas que constituíram a classe trabalhadora. Se Dickens, diante do impacto da Revolução Industrial, pôde ainda escrever: “Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos” e encontrar algo redentor no lado bom da humanidade, na época da Grande Guerra seria muito mais difícil apegar-se aos aspectos positivos do progresso social.

Os avanços científicos se mostrariam a única exceção relevante, levando quase que a totalidade do mundo secular a abraçar esta nova forma de esperança.5

Por outro lado, somente separando da consciência as forças alucinantes da destrutividade humana (passiva ou ativa),6 os selves do início do século XX poderiam conservar a crença no progresso enquanto o tecido da comunidade mundial se transformava em retalhos. Vejamos.

Nos últimos 35 anos do século XIX, 80% da África foi invadida e colonizada por governos europeus, muitos conseguindo um pedaço daquilo que o rei Leopoldo da Bélgica chamou de “este magnífico bolo africano” (Hannu, 2008, p. VIII). Se o Fausto, de Goethe (1808), pode ser lido como um brilhante manifesto da ganância e da insensibilidade prestes a se abaterem sobre a humanidade em nome da industrialização e do progresso, então o Coração das trevas, de Conrad (1899), parece mostrar um final de século que justifica a intensa opressão exercida pela ganância armada. O colonialismo significou uma série de coisas, mas talvez, acima de tudo, representou a marcha da ignorância absoluta invadindo, mais do que compreendendo, o universo humano. As últimas palavras de Kurtz - “O horror, o horror” - poderiam ser tanto um epitáfio para o século XIX quanto um extraordinário prognóstico para o século XX.

Em sua autobiografia, Yeats constata o “crescente assassinato do mundo” (Ross, 2009, p. 220). Fazendo ponderações sobre a Grande Guerra em 1919, naquele que talvez seja o mais visionário poema já composto (“The Second Coming” [A segunda vinda]), ele escreve:

Está solta a escura maré de sangue e, por toda a parte,

a cerimônia da inocência está submersa.

Entre Conrad e Yeats - decorridos 20 anos entre as duas passagens acima - percebemos que a inocência se afoga - em sangue.7

Quando Freud escreve que seu semelhante não tem sequer “um vislumbre de futuro”, ele também registra o choque de sua época, bem como identifica, por outro lado, uma emergente perda psíquica. Como seremos capazes de visualizar um futuro se o passado recente e o presente retardam a visão humana?

Pensar no futuro é moldar uma estrutura mental fundamental que agrega visões inconscientes (“referências”) de futuros possíveis e que orienta o self na existencialidade temporal da duração da vida. Pensar no futuro é exercitar uma importante função mental, indispensável à sobrevivência do self e das espécies.8

Frantz Fanon afirma:

A estrutura do presente está fundada na temporalidade. Todos os problemas humanos merecem ser considerados com base no tempo, sendo ideal que o presente sempre sirva para construir o futuro. [...] O futuro deve ser uma construção fundada pelo homem no presente. Esta edificação futura vincula-se ao presente na medida em que acredito que o presente é algo a ser ultrapassado. (195272008a, pp. XVI-XVII)

Nos dias atuais, é provável que notemos um acentuado pessimismo em relação ao futuro. Na verdade, mesmo debatendo-se o assunto, a impressão é que não se compreende a vida contemporânea, enquanto nós parecemos nos desviar da negociação de nossas realidades e aceitar uma percepção seletiva do mundo, que vem transformando alucinação negativa em uma forma artística.9 É provável que busquemos refúgio e consolo nos aspectos substanciais da vida - apaixonar-se, os prazeres do relacionamento, o significado de construir uma família, a criatividade do trabalho; todavia, poderia essa resiliência humana configurar agora um entrave para a sobrevivência? Fazendo do presente o nosso refúgio, estaremos abandonando o futuro?

Freud concentrou-se naquela censura que leva ao inconsciente reprimido. Derivações daquilo que foi reprimido surgiriam em sessões por meio de formas multifacetadas de linguagem, capazes de disfarçar fantasias e lembranças extremamente complexas, apartadas da consciência censuradora.

Ao mesmo tempo - proveniente, de fato, do século anterior -, uma outra forma de censura ganhou massa e estrutura. Tratava-se de uma censura organizada, não contra conteúdos sexuais inaceitáveis ou conteúdos agressivos, mas contra o direito de ser do self. A opressão apareceu em incontáveis formas e histórias - a vida na classe trabalhadora, a opressão contra mulheres e crianças, a dominação de países por ditadores cruéis, aqueles líderes que mandaram milhões de pessoas para a morte, o “trauma cumulativo”10 de guerras sucessivas, seres humanos sendo absorvidos pelo sistema capitalista, cujas “forças” prevalecem sobre os direitos do homem.

O censor, de Freud, de forma irônica o bastante, engendrou uma resposta extremamente inteligente a partir da criatividade fértil do inconsciente - a ponto, inclusive, de alguns poderem afirmar que é esta a fundação da liberdade verbal orientada pela necessidade de satisfazer desejos; o opressor inculca no oprimido um conjunto distinto de reações.

Ao estudar os efeitos da escravidão no sujeito humano, o notável historiador Kenneth Stampp (1956) argumentou que os escravos simulavam tipos de burrice que eram, na verdade, uma forma de resistência. Fosse “acidentalmente” quebrando o maquinário, fosse parecendo ser ignorantes demais para seguir as instruções, Stampp salienta que os escravos não só resistiram como também agiram de certos modos que eu considero o retorno do oprimido. Suas “ações atrapalhadas” não indicavam o retorno do reprimido, mas sim formas de resistência à opressão. Podemos considerar esta defesa uma pseudoestupidez.11

Frantz Fanon escreveu que ele estava “sobredeterminado a partir de fora” (1952/2008a, p. 95) e utilizou o conceito de sobredeterminação de Freud para enfocar o efeito da opressão do outro sobre o self em vez daquele resultante da própria autocensura.12 De que maneira identificamos a opressão como uma categoria específica para a psicanálise? Afinal, a vida, por si só, é algo opressivo, e por diversas vezes todos nos sentimos oprimidos. O que quero dizer, no âmbito da psicanálise, com “opressão” e “retorno do oprimido”?

O reprimido refere-se ao movimento de eliminar da consciência conteúdos mentais específicos. O oprimido refere-se à suspensão ou à distorção do pensamento humano. O reprimido retorna mediante o desvio de ideias. O oprimido alude a uma alteração não dos conteúdos da mente, mas das capacidades da mente - a maneira pela qual os pensamentos se formam. No debate sobre a trajetória da opressão, notamos uma degradação cumulativa das formas de percepção, pensamento e comunicação.

Se o reprimido se relaciona à eliminação temporária de uma ideia da consciência, o oprimido alude ao comprometimento do processo mental que teria construído o pensamento. O reprimido reside no sistema inconsciente - para Freud, aliás, ele define o inconsciente. O oprimido pode ser encontrado no inconsciente, mas na qualidade de uma tentativa fracassada, o vestígio do que teria sido idealmente criado (ainda que banido), unido a outras formas daquele fracasso.

O efeito cumulativo de inúmeros milhares destas possibilidades fracassadas forma uma rede mental do esmagado - de ideias semiformadas, mas deixadas sem validade. A história desta triste evolução deixa o self prejudicado, num estado de luto inconsciente, e num pesar que, se não for reconhecido, pode durar para sempre.13 Numa situação extrema, um self deformado ficaria - se levado a expressar seus conteúdos - ainda mais sobrecarregado em virtude da impossibilidade de transformar o conjunto de conteúdos em ideias capazes de fazer sentido.

Desde o início, as características do método psicanalítico - a liberdade de colocar em palavras as ideias formadas como conhecimento não pensado - têm atenuado as opressões sofridas pelos analisandos. O cuidado dispensado ao self emudecido, exemplificado nas obras de Ferenczi, Balint, Winnicott, Khan, Coltart (e mais recentemente nas obras de Michael Parsons e Jonathan Sklar), reconhece de maneira implícita o fato de que certos selves sofrem “sobredeterminação a partir de fora”. O caminho para a cura - seja atenuando a dor de conteúdos aflitivos, seja por meio de formas oferecidas para a verbalização do ser - é o mesmo numa análise freudiana. A cura surge mediante as transformações de ambos em um discurso sensível, contido e sustentado pelo cuidado do analista com profunda capacidade de escutar.

Quando o oprimido retorna por meio da psicanálise, ele sofre uma transformação: das formas comprometidas de recepção, pensamento e comunicação para as formas usuais utilizadas em nossas vidas.

Aspectos da comunicação e do pensamento no século XXI podem ser vistos como formas de voo psíquico, oriundas do fardo esmagador de herdar-se um mundo despedaçado por zonas de incoerente falta de consideração, permanentes nos dois séculos anteriores.

A internet permite um voo psiquicamente sistêmico14 do real, na medida em que vivemos numa realidade virtual com variados avatares do self. Nós dois estamos e não estamos profundamente envolvidos em comunicar nossas opiniões sobre os vários assuntos do dia. Avatares nos permitem falar por meio de personalidades alternativas que tornam possível nos envolvermos uns com os outros on-line; no entanto, embora o Facebook pareça ser um modelo de transparência do self, ainda assim nossos pontos de vista mostram-se como fotos instantâneas dos nossos envolvimentos no mundo real.

Danah Boyd (2014)15 registra que o uso de mensagens de texto por adolescentes etc. não é provocado por desejos, mas sim por opressão. Pais ansiosos não querem seus filhos brincando nas ruas da América (a autora observou em suas viagens que, diferentemente do século XX, as crianças não brincam mais entre si). Em vez disso, eles promovem inúmeras atividades para as crianças, de modo que raramente elas têm uma chance de socializar que não seja pela internet.

Talvez, nesse caso, desenvolver um self virtual envolvido em conversas rápidas e superficiais (tuitar só permite 140 caracteres por mensagem) é uma formação de compromisso entre transparência e silêncio absoluto. O diálogo criptografado mantém as pessoas em contato umas com as outras, mas não as mantém próximas. Pouco sobre o self é revelado; pouco do outro está envolvido. Em vez de comunicação profunda, o que temos são espetáculos provenientes das porções superficiais da mente.

Façamos uma breve pausa para analisar uma diferença significativa entre os indivíduos observados por Freud e aqueles com os quais nos deparamos no século XXI. Do século XVII até o final do século XIX, o indivíduo errante, e depois o flâneur, determinava um ponto de vista do self. (Rousseau, em frase célebre, proclamou: “Preciso caminhar para pensar!”); a observação do mundo objetivo (um rio, um livro de estudos sobre botânica, e assim por diante) implicava a imersão do self em uma realidade, de certa forma, imediata. Esta era a matriz de le vécu (ou experiência vivida) e Freud entendia que os “valores psíquicos” que provocavam pensamentos do sonho eram evocados pela experiência particular do self em relação ao cotidiano. O que ele explorou de maneira sagaz para sua técnica foi o conhecimento de que a vida inconsciente depende do envolvimento do self com objetos evocativos,16 e o self errante - movido constantemente por seus envolvimentos inconscientes com o mundo objetivo - mostrou-se um rico depósito de lembranças na tranquilidade da sala de análise. (Ou a analisanda histérica que, lembrando-se destes vividos momentos, teve uma base firme para amalgamar imaginário e realidade, transformando a enfermidade em uma forma artística.)

Os valores psíquicos do analisando contemporâneo se baseiam menos nas experiências imediatas (sem intermediários) e mais nas percepções indiretas geradas pela revolução da informação. É como se os selves contemporâneos vivessem a vários graus de distância do envolvimento no real - fugindo do imediato por conta das ansiedades sobre a vida fora de seus condomínios fechados -, buscando um irônico refúgio na tecnologia mediada.

Em outro trabalho,17 discuto o novo papel do self como um transmissor de informação, via Twitter ou Facebook. A Primavera Árabe constituiu um exemplo de como as pessoas informam as notícias e se consideram vitais para o ato de transmiti-las. IPhones e outros tantos aparelhos do gênero são objetos transmissores, partes protéticas do self contemporâneo. Os trabalhadores, nas linhas de montagem do século XIX, não eram confundidos com suas funções, mas o self do século XXI identifica-se a si mesmo como parte da maquinaria da comunicação, não simplesmente como a pessoa que monta o objeto e o faz funcionar.

Poucos autores do final do século XX e do século XXI refletiram o espírito de nossa época tão magistralmente como o romancista norte-americano Don DeLillo. Em Cosmópolis, DeLillo afirma: “A velocidade é o ponto. Não estamos testemunhando o fluxo de informação como um simples espetáculo, ou a informação transformada em algo sagrado, ritualmente ilegível” (2003, p. 80).

Em seu brilhante mas desconcertante trabalho Mindless: Why Smarter Machines Are Making Dumber Humans [Sem sentido: por que máquinas inteligentes estão tornando os homens mais estúpidos], Simon Head (2014), membro sênior do Institute for Public Knowledge da Universidade de Nova York e membro sênior da St. Antony's College em Oxford, traça e analisa a difundida influência dos “sistemas informatizados de negócios” [computer business systems] (CBS) nos trabalhadores em quase todos os âmbitos do mundo “gerido”: indústria, setor de serviços, mundo financeiro e outros. Na medida em que os CBS programam os trabalhadores para acelerar seu ritmo de trabalho - mediante instruções quase que a cada minuto, ao longo de todo o dia -, o julgamento individual vem sendo sistematicamente substituído por manuais que informam às pessoas exatamente como se comportar e o que dizer.

“Há uma ênfase implacável na necessidade de rapidez na execução dos processos”, aponta Head (p. 25). “O elemento humano”, ele argumenta, “está completamente ausente deste aperfeiçoamento do processo” (p. 26).

DeLillo: “Nas sociedades livres, as pessoas não devem temer a patologia do Estado. Criamos nosso próprio frenesi, nossas próprias convulsões de massas, orientados por máquinas pensantes sobre as quais não temos nenhuma autoridade” (2003, p. 85).

Conclui-se que o self do século XXI está programado para um mundo de Rede Rápida [Fastnet],18 que prioriza a velocidade à reflexão - aliás, ao julgamento por si mesmo. Parte do argumento de Head é que, à medida que os processos se tornam mais eficientes, os seres humanos tornam-se “mais estúpidos”, já que o pensamento humano torna mais vagarosa a eficiência dos sistemas. Já somos capazes de constatar o reflexo dos CBS na prática psicanalítica, com o recurso a manuais, baseados em evidências, que tornarão os psicanalistas mais eficientes. Deixando de lado esta aspiração, a mentalidade gerada pelos CBS promete à população soluções rápidas e prontas.

A demanda por soluções rápidas e seguras não foi algo repentino para aqueles que trabalham na área de “saúde mental”.

Durante décadas, companhias de seguro, órgãos de manutenção de saúde (HMO), serviços nacionais de saúde e outros “provedores” têm buscado formas mais breves de psicoterapia do que a fornecida pelos psicanalistas. Em parte, os psicanalistas vêm se adaptando a isto, mas as tendências de solução rápida têm fundamentado um axioma de que as questões da vida mental (seja a formação de um sintoma, sejam os densos meandros do humor, sejam os conflitos provocados pela própria personalidade) deveriam ser tratadas por meio do consumo de um produto que eliminaria os problemas.

Agora, há um novo axioma: a solução para o problema da vida mental é seguir um programa que fornece orientação ativa. Na sociedade contemporânea, há um expediente para amparar formas de tratamento que funcionam de modo evidente. Que mensagem o paciente pode extrair da hora de consulta que irá ajudá-lo a melhorar sua vida? Que comentários feitos pelo analista provarão ser operacionalmente efetivos?

As companhias de seguro querem saber, os governos que investem dinheiro em saúde mental querem saber, e os pacientes, apanhados pela pressa de resolver problemas, têm a esperança de saber - e saber logo.

Por caminhos sutis, podemos constatar uma mudança em alguns de nossos pacientes, que se afastam das virtudes da produtividade incognoscível do pensamento inconsciente na direção de soluções cognoscíveis cujo valor consiste em produzir efeitos imediatos. Esse tipo de pensamento operacional busca análogos cognitivos para os medicamentos que seriam de efeito imediato.

Ao escutar uma interpretação, esse tipo de analisando irá recebê-la menos como parte de uma sequela das descontinuidades do consciente, conectadas por meio de processos inconscientes, e mais como uma frase feita do tipo: “Seja livre” ou “Seja independente”, o que poderia servir como um programa para modificar o comportamento do self. Quão frequentemente temos escutado, nos dias de hoje: “O.k., eu consigo. Então, tudo o que devo fazer agora é..." 19

Um efeito do operacionalismo20 é a tendência a elaborarem-se declarações de ação em vez de recorrer-se à reflexão.

Uma amostra clínica disso seria: “Percebi que você parece tomar o que eu digo como um inquestionável conjunto de instruções sobre como você pode aprimorar a si mesmo”, o que provavelmente suscitaria no paciente a resposta: “Não é este o ponto a que se quer chegar?” Embora mostrando simpatia por este entendimento, alguém poderia responder: “Bem, parece que sim, mas, colocando a questão imediatamente num plano de mudança de comportamento, eu me pergunto se você realmente concedeu a si mesmo algum tempo para refletir sobre ela?”21

Quando esta interpretação sobre o lado formal da análise é compreendida, aí então é possível debater dimensões complementares: a sensação do analisando de que não tem tempo para pensar nos assuntos, a ansiedade nele gerada pela necessidade de achar uma solução para si mesmo, a fantasia inconsciente de que a mente é uma entidade encrenqueira que requer uma estruturação estereotipada para poder ser atualizada por um implante androide.

Centrar-se no que funciona pode parecer inteligente, mas neste novo utilitarismo testemunhamos a emergência de um niilismo difuso, em que o sujeito humano, bem como o complexo processo do pensamento, são vistos implicitamente como um obstáculo à implementação bem-sucedida de programas que possam depender da pessoa. No mundo interior, conflitos inconscientes e pensamento reflexivo são claramente demasiado lentos, e revelam-se um entrave para aquela que se pretende uma era de resolução de problemas, mas que é, de fato, uma época cada vez mais dedicada à redução da dimensão humana.

Apesar de a nossa espécie, de diversas formas, ter sempre duvidado da validade de qualquer visão dominante do mundo, houve sempre alguma forma de cosmologia vertical (ou hierárquica) que torna uma coisa mais importante que a outra. A crença num Deus, por exemplo, teria sido posta mais acima na lista de importância do que, digamos, a crença em uma eventual previsão do tempo para a semana seguinte. Quer estivessem certas, quer estivessem erradas em suas crenças ou em suas prioridades, as pessoas, por milhares de anos, não encontraram nenhuma dificuldade em estabelecer estruturas verticais de pensamento. Entretanto, no século XXI, observamos o surgimento de uma nova modalidade de pensamento: o horizontalismo,22 ou seja, a erradicação de prioridades no pensamento, dando lugar a equivalências que tornam todas as ideias igualmente válidas.

 

Uma amostra de horizontalismo

Imagine que eu diga a um paciente: “Parece-me que a sua forma de lidar com a inveja que sente em relação a seu amigo é fazendo-se indispensável a ele”, e a reação dele seja: “Ah, sim, claro! E eu também ando muito de bicicleta, e outras coisas do tipo. E, agora que você tocou no assunto, eu também faço... é... essa coisa da bicicleta demais da conta”. Ao que eu, provavelmente, responderia: “Você acredita que a ajuda impulsionada pela inveja e andar de bicicleta são a mesma coisa?'”

O horizontalismo não reconhece nenhuma ordem hierárquica. Todas as coisas são iguais e nenhuma coisa tem importância intrínseca maior do que a outra. A Rede Rápida [Fastnet] e os selves transmissores não registram necessariamente o peso do significado de qualquer objeto de comunicação. Podemos constatar isso nos noticiários de tv, por exemplo, nos quais a uma série de incêndios na região oeste dos Estados Unidos ou a um furacão iminente será dado o mesmo tempo no ar que à revolução na Ucrânia ou a um genocídio na África. O reconhecido valor das opiniões de jornalistas altamente experientes, estudiosos e escritores desaparece hoje em dia, à medida que a democracia social da internet torna todas as pessoas peritas em qualquer assunto. Embora esta democratização seja extremamente benéfica em muitos aspectos, seu lado negativo é a promoção inadvertida do poder de um self desinformado.

Quando o pensamento vertical é destruído e o modo de pensar horizontal prevalece, a diferença entre um tópico e outro se torna sem sentido. Aliás, a diferenciação se baseia na habilidade de valorar e discriminar os objetos; encontrar na alteridade uma tensão criativa diferenciadora produz oposições que serão valorizadas na medida em que se reconhecer a heterogeneidade como algo de valor. Todavia, o processo de globalização promove um self global, um ser uniforme que, mesmo sendo só uma ficção (ele nunca poderia tornar-se realidade), poderia funcionar, no entanto, como um sonífero psíquico para seres humanos homogeneizados. Portanto, ao operacionalismo e ao horizontalismo agregamos a homogeneização: a necessidade de erradicar as diferenças e fabricar um mundo de seres comuns. A promoção da homogeneidade visa à redução das diferenças, à diminuição das tensões e a um suposto crescimento do potencial produtivo dos seres humanos.

No âmbito psicanalítico, a homogeneização assume o aspecto de medo, do analisando, de ser encarado como diferente (“Mas todo mundo não pensa o mesmo que eu disse?”). A Rede Rápida [Fastnet] permite que a identificação e a fusão com os outros sejam alcançadas tão facilmente que, diariamente, milhões de pessoas se encontram “na mesma página”, não raro compartilhando os mesmos espetáculos, o que dá a sensação de que se é parte de uma norma coletiva. (40% da população mundial têm hoje acesso à internet.)

Com isto, chego à diferença entre visão [sight] e insight. Muitos observadores consideram que esta seja a era “do espetáculo”.23 Parecemos atraídos pelas visões da vida encontradas com frequência no universo mediato. Podemos ser informados pela visão (ou seja, temos lembranças daquilo que vimos), mas, comparativamente, temos pouco insight. O insight não é possível sem que a consciência esteja direcionada para o mundo interior ou sem interesse pela psicodinâmica do nosso próprio ser.

Isto não significa que os selves contemporâneos não se interessem por aquilo que os outros veem deles. Postar fotos de suas aventuras no Facebook pressupõe um “retorno”: “O que você vê quando me vê?”.

O analisando pode ver dentro do self por meio da interpretação do analista, mas presume, então, que seja esta de fato a função do analista. Embora o analista não pretenda produzir uma mercadoria intelectual que poderíamos chamar de “um insight”,24 o paciente - que suponho deva ser renomeado agora como “o consumidor” - compra o que é dito.

“Mas eu realmente me lembro do que você falou há poucas semanas”, um paciente poderia dizer, demonstrando que aquilo que foi considerado como sendo um insight não o era realmente. Em vez de insight, aquilo foi “uma visão [sight] dentro do self', criada pela interpretação do analista. Pode ser recordada pelo paciente, mas não tem efeito duradouro. Provavelmente, estamos enfrentando um novo desafio para a essência da análise: o self está se transformando num espetáculo no universo de objetos observáveis. Concentrar-se na análise da mente e de seus conteúdos é uma novidade em si mesma, digna do mesmo mérito de uma visão que, supostamente, se deseja ter.

“Ver” pode ser “acreditar”, mas significa “conhecer”?

Chamemos o fenômeno que utiliza a visão [sight] para evitar o insight de “visio-filia” [sightophilia]. A pessoa que, de forma singular, é levada a ver (em vez de pensar) será um “visiófilo” [sightophile].

Uma característica da visiofilia é o pensamento refrativo. O objeto de um pensamento refrativo conduz à emissão instantânea de uma linha (ou linhas) de pensamento no espaço exterior - longe do sujeito. A refração lança pensamentos nos objetos; os objetos, porém, não servem como recipientes para tais pensamentos (recuperáveis na memória), mas apenas como uma superfície que leva à dispersão dos vestígios de iluminação, até que o conteúdo de um pensamento seja finalmente eliminado.

A habilidade refrativa seleciona uma característica de menor importância de uma comunicação e a destaca, fazendo com que a comunicação principal seja esquecida.

Digo a um paciente: “Acredito que ser indispensável à sua amiga permite que você se prenda de forma dissimulada a ela”. Ele responde: “Você entendeu. Sou indispensável, e devo tomar cuidado para que não o seja demais. Isto foi brilhante; muito obrigado”. Eu continuo: “Você parece ter compreendido esse pensamento tão rápido que não estou certo de termos tido a oportunidade de refletir sobre ele, e também parece que você, simplesmente, já o colocou em ação. O que você acha?” “Oh, eu só acho que foi ótimo. Devo... devo... pensar sobre isso?”25

Na melhor das hipóteses, nesses casos, o psicanalista pode ser transformado num sábio a quem se é muito agradecido, assim como se é grato a um bom mecânico ou a um especialista em computadores. No lugar de insight, temos visão [sight], embora seja uma visão analiticamente fundamentada. No lugar de pensamento reflexivo, temos pensamento refrativo ou imperativos operacionais. Em vez de vértices de significado cuidadosamente construídos, específicos para a história vivida e psíquica de um sujeito, temos um ser homogeneizado e dinamicamente amalgamado (e atualizado) por objetos horizontais de pensamento.

Registra DeLillo:

Porque o tempo é um patrimônio corporativo nos tempos atuais, pertence ao sistema de livre mercado. É mais difícil encontrar o presente. Ele tem sido sugado para fora do mundo, a fim de dar lugar a um futuro de mercados descontrolados e enorme potencial de investimento. O futuro torna-se urgente. (2003, p. 79)

São as novas dimensões de pensamento que tenho explorado formas de eficiência que agora parecem cheias de ideias sobre ser e relacionar-se? Ou estamos em uma época mais indeterminada, em que esses tipos de pensamento são adaptações intermediárias para um mundo em mudança, no qual pensamos sem pensar?

Tenhamos isso em mente, uma vez que o operacionalismo, o horizontalismo, a homogeneização, a pseudoestupidez, a refração, a visiofilia etc. podem ser, transitoriamente, mudanças adaptativas, adotadas com o intuito de controlar a desorientação.

Seguindo-se a linha de Badiou, Jame-son26 e outros autores, parece-me perfeita-mente cabível questionar se a suspensão de pensamento e envolvimento - uma modalidade de refúgio psíquico27 - não faria despontar a evidência do “sujeiticídio”. Menos de quinze anos separam a dúvida de Heidegger: “Por que existe o Ser em vez do Nada?”, da dúvida de Camus: “Por que não o suicídio?”. A morte do sujeito eliminaria qualquer necessidade de suicídio efetivo, visto que, nos tempos atuais, há inúmeros meios para se eliminar a dor de ser um sujeito. (De acordo com o meu uso do termo, “sujeito”28 é o processo de pensamento e expressão do self.)

“Sujeiticídio” seria quando o self elimina a integridade de pensamento que amparava a ilusão do “Eu”. Não se trata da eliminação da posição gramatical - obviamente, ainda há pessoas que se utilizam da primeira pessoa -, mas o que acontece quando ser, relacionar-se e existir como “primeira pessoa” parece tão problemático? Não apenas em virtude da crítica pós-modernista de que o sujeito teria sido sempre uma ilusão - o que talvez faça do pensamento pós-modernista a primeira objetificação filosófica final do suicídio subjetivo -, mas porque a eliminação das categorias anteriores de existência (vida familiar, cidadania, geração de significados etc.) deixou “órfãos” os selves? E se, de fato, aqueles dentre nós que já se sentiram assim estiverem vivendo uma forma de pesar ou luto, enquanto aqueles para os quais o sujeito nunca foi conhecido seguem como objetos num mundo de outros objetos?

Denominei esta mudança - transformar-se de sujeito em objeto - “objetidade” [objecthood],29 a fim de identificar a fuga da própria mente. Ao contrário, dever-se-ia ser um bom “comunicador” - um transportador ou transmissor de ideias que congregam a humanidade em uma modalidade unificada e integrada de ser.

Em artigos anteriores, questionei se estávamos entrando num período de normopatia, no qual o normopata, ou normótico30 - aquela pessoa que visa a ser um objeto num mundo de outros objetos -, está autorizado a invadir o cotidiano, enquanto a existência individual idiossincrática vai sendo ostensivamente eliminada.

Nos dias atuais, a maioria dos grupos analíticos ainda se interessa pela luta da psicanálise para compreender, objetificar e analisar os distúrbios de personalidade; porém, no final do século XX, em todo o mundo analítico, houve um aumento da atenção dedicada à questão do “pensamento”. Tal preocupação talvez estivesse associada ao profundo impacto causado pela obra de Wilfred Bion, não se devendo esquecer, também, das obras de Harry Stack Sullivan, David Rapaport, Donald Meltzer, Ignacio Matte-Blanco e André Green. Vem surgindo todo um novo vocabulário de expressões dedicadas à habilidade (ou não) de pensar pensamentos, e assim, com o tdah e o aparecimento da psicologia comportamental cognitiva, observamos aparentemente uma preocupação mais ampla com os problemas do pensamento.

Seria a interessante obra de Peter Fonagy e colegas sobre “mentalização”31 um registro do dilema enfrentado pelos analistas contemporâneos com analisandos que parecem não ter a habilidade de pensar sobre si mesmos? Os riscos de aceitar essa ideia são óbvios, na medida em que poderíamos estar prestes a criar um mundo dos que “têm” e dos que “não têm”, isto é, dos que têm a capacidade de pensar sobre seus mundos interiores e dos que não têm. Mas a obra de Fonagy fala para milhares de psicanalistas e, embora devamos sempre considerar a possibilidade de que o movimento analítico reaja de maneira exagerada ao surgimento de um fenômeno aparentemente novo, eu realmente acredito que estejamos testemunhando, no século XXI, diferentes formas de pensamento.

Quando Freud escreve sobre a desilusão em “Reflexões para os tempos de guerra e de morte”, ele o faz já tendo celebrado nesse ensaio - numa prosa admiravelmente tocante - a “nova pátria”: uma visão de mundo impregnada de ideais implícitos. Mas a guerra, “em fúria cega, atropela tudo o que aparece em seu caminho, como se não houvesse futuro pela frente” (1915/1957, p. 279) e, malgrado sua tentativa de recuperar-se, voltando-se para a concepção daquilo que, posteriormente, ele chamaria de “pulsão de morte”, ele ainda lamenta a perda das ilusões: “Acolhemos ilusões porque elas nos poupam de sentimentos desagradáveis e nos permitem desfrutar de contentamentos” (p. 279). Ao longo dos séculos XIX e XX, há evidências suficientes de que, mesmo diante das consequências traumáticas da Revolução Industrial, pessoas foram capazes de manter ilusões de uma vida boa e de se relacionar com um self ideal comum.

Podemos considerar o self ideal (e suas projeções em uma sociedade ou em um mundo ideal) como um apoio fundamental. Aquele relacionamento intrapsíquico era um contraponto forte o bastante para os efeitos entorpecedores do mundo amoral do capitalismo moderno.32 Da Segunda Guerra Mundial ao Iraque, do Holocausto ao genocídio de Ruanda, a paixão humana pelo assassinato tem destruído, entre outras coisas, qualquer possibilidade do self ideal humanista. A visão de homem de Freud, como equidistante entre os instintos de vida e de morte, é mais difícil de sustentar, uma vez que a magnitude absoluta e a independência processional do instinto de morte se sobrepõem agora ao instinto de vida.33

Poderiamos pensar no início do século XXI como a Era da Desorientação. Mudanças tecnológicas e científicas continuam a ocorrer - embora a passos mais lentos que nos séculos XIX e XX, eu diria - e obrigam as relações humanas e a criatividade individual a sobreviver ao mais duro dos tempos. No entanto, a divisão socioeconômica em expansão, a alarmante deterioração do clima mundial,34 a integração do terrorismo internacional em sociedades multiculturais, o fracasso, inclusive das partes “avançadas” da civilização, em aprender com os horrores do passado (a Ucrânia, por exemplo, possivelmente repetindo a Guerra da Crimeia), a degradação do Estado-nação e o surgimento de um novo domínio público do globalizado não nos dão tempo para pensar. Estaria a magnitude absoluta dos problemas perturbando o nosso mundo? Não somos mais destrutivos do que antes, mas somos de longe mais perigosos. Isto tem produzido um medo e um desamparo nunca vistos antes, especialmente em face do processo de “pensamento” refrativo dos meios de comunicação, que não internalizam, contêm, metabolizam ou contextualizam os problemas, mas irradiam espetáculos de perigo em bilhões de objetos bizarros.

Um mundo laico sem ideais35 ou sem significado vertical fez com que as populações do século XXI vivessem uma época em que a desorientação não é simplesmente uma consequência dos dois séculos anteriores, mas uma postura defensiva.36 Se não somos capazes de construir sonhos para nossos selves, famílias, regiões, nações e para o mundo; se, por conseguinte, não somos capazes de construir o futuro como um objeto mental que reúne aqueles sonhos e os utiliza em matrizes vitais que conectam cidadãos de todas as nações em um progresso significativo; então, na qualidade de criaturas em adaptação, nós elaboramos novas estratégias para andar sem sair do lugar.

“Deus está morto” pode ter sido o mantra icônico e melodramático do final do século XIX, mas, pergunto, e se agora estivermos diante de um novo mantra: “A Humanidade está morta”?

Yeats talvez tenha acertado sobre um “animal brutal, cuja hora é, enfim, chegada, mudando-se para Belém para nascer”. Isto, quiçá, seja um prenúncio do fundamentalismo religioso37 no monoteísmo, mas as porções não tementes a Deus de todos os selves provavelmente contrabalançam esse fervor com um self anódino que parece carecer de toda convicção.

O conjunto de modalidades defensivas apresentadas neste artigo procede, obviamente, da cultura da comunidade global; emerge daquilo que Winnicott chamou de “terceira área”: a área da experiência cultural. Diferentemente da nomenclatura psiquiátrica clássica, que identifica distúrbios específicos provenientes dos indivíduos, as transmissões da terceira área são inconscientemente negociadas pelo grupo maior, a que já nos referimos como “nação” e hoje como “o mundo”. O conceito de Winnicott sobre o falso self não descreve um distúrbio específico, mas uma função da personalidade que será mais ou menos acentuada conforme a ameaça ao verdadeiro self.

O conceito de falso self torna-se pertinente à psicologia humana no momento em que o sujeito é afetado por uma perturbação oriunda da realidade. A realidade “média esperada” a que Hartmann38 se referiu no texto seminal Ego Psychology and the Problem of Adaptation [A psicologia do ego e o problema de adaptação] não é mais média e certamente não é esperada. Em reação à instabilidade da realidade, notamos o desenvolvimento de mentalidades que protegem o self nuclear por meio da construção de uma espécie de falso self que obscurece o reconhecimento da realidade do sujeito: ele, de fato, opta por não vê-la.39 O self fundamentalista e o self anódino se unem nos registros de sociopatia: o primeiro dedicado ao homicídio; o segundo, ao suicídio.

Neste trabalho, levei em conta o modo pelo qual a cultura global contemporânea pode estar fabricando uma mentalidade coletiva, adaptável aos espantosos desafios que a beira do caos colocou em nossos horizontes mentais. Enquanto nossa sociedade se mantém criativa nas ciências e na tecnologia - de fato, até o ponto de ser divinizada - e enquanto o privilegiado se refugia na estética do materialismo, nossa capacidade de destruição põe em risco todas as espécies e o planeta em si. Aquelas disciplinas notáveis por sua capacidade de reflexão (inclusive a psicanálise) têm despertado cada vez menos interesse, até mesmo nas sociedades mais avançadas.40 No mundo do cinema comercial, agora, há uma demanda de filmes de ação padronizados, visto que os filmes baseados na linguagem têm um custo muito elevado para serem traduzidos e, consequentemente, globalizados. O benefício econômico de tal homogeneização é enorme, uma vez que as figuras de heróis (e de seus mundos) são vendidas pelos quatro cantos do mundo.

Estaria o impacto de um mundo que aparentemente transcende a influência e a compreensão humana à beira do impensável? Estaríamos nós, de modo inconsciente, nos identificando com o processo de opressão, uma modalidade de identificação com o agressor que ironicamente visa a restringir a capacidade humana de gerar? Estaríamos nós dominados por uma pulsão de morte coletiva que nos impede de mudanças efetivas?

Uma passagem de J.-B. Pontalis:

O instinto de morte consiste em um processo de desagregação radical, um processo de clausura que não visa a nada além de sua própria realização e cuja natureza repetitiva é a marca de sua instintividade. Esse é um processo que não tem mais nenhuma relação com o medo consciente da morte, mas que imita a morte na parte mais nuclear do ser... Assim, a psique não é mais um representante substituto do corpo. É corpo. O inconsciente não mais é capaz de ser decifrado por meio de suas formações, em uma lógica móvel e articulável de “significantes”: é compreendido e fixado na lógica do corpo psíquico. (Pontalis, 1977/1981, p. 191)

Estaríamos imitando a morte naquelas formações egoicas que constituem o retorno do oprimido?

O tiro para o futuro disparado pela Revolução Industrial deflagrou tentativas profundamente criativas e maníacas41 de captar e representar o sentido da vida humana antes que o pensamento ficasse à margem. É provável que o século XX seja visto como uma época em que, por todo o Ocidente, o fracasso em produzirem-se ideias viáveis de uma vida significativa pode ter deixado toda uma geração não apenas de luto, mas também em uma melancolia, de certo modo, incapacitante. Sendo assim, as gerações do século XXI herdaram um mundo mentalmente comprometido, muito embora sempre reste alguma esperança na notável resiliência inerente ao ser humano.

 

NOTAS

1 As compreensíveis restrições de tempo do Congresso IPA significam que este trabalho tem o propósito de suscitar debate. Não se trata de uma dissertação encerrada.

2 O autor detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do Congresso Boston IPA, sob o título Mundo em mudança: a forma e o uso de ferramentas psicanalíticas hoje, que ocorrerá de 22 a 25 de julho de 2015. Inscrições disponíveis em: www.ipa.org.uk/congress.

3 Cf. Brown (2006).

4 É fascinante e profético que tanto Anna Freud quanto Heinz Hartmann - na iminência da Segunda Guerra Mundial -, enquanto fundadores da psicologia do ego, incorporaram a guerra e seus reflexos no self por meio de metáforas em sua teoria do ego. (O Japão já invadira a Manchúria em 1931 e estava prestes a invadir a China. O “clima” de guerra achava-se presente quando ambos os autores escreviam seus textos seminais.) af: “Quando as relações entre dois poderes vizinhos - ego e id - são pacíficas”, tudo corre bem e, “em casos favoráveis, o ego não se opõe ao intruso” (1936/1968, p. 6); às vezes, porém, “relações pacíficas entre os poderes vizinhos têm um fim”, e impulsos instintivos podem lançar “um ataque surpresa. O ego, por sua vez, torna-se suspeito; contra-ataca e invade o território do id” (p. 7). HH: “fazendo uma analogia, a descrição de um país, uma nação, um Estado, além de suas participações em guerras com nações ou Estados vizinhos, inclui também suas fronteiras e o trânsito, para o outro lado delas, em tempos de paz” (1939[1937]/1958, p. 11); ao escrever sobre “a zona de fronteira do ego”: “a eficácia dos exércitos, ao defender as fronteiras, também depende do apoio que recebem ou não da retaguarda”(p. 15). Diz-se e é impressionante que, em alguns aspectos, sua psicologia do ego é por si mesma um esforço do ego no sentido de adaptação e sobrevivência aos horrores de sua época. Tanto a obra de Anna Freud como a de Hartmann foram publicadas dentro de um ou dois anos. O mais apurado estudo psicanalí-tico da guerra é o de Franco Fornari (1966/1975). Para um brilhante trabalho sobre a influência dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial nas teorias de Freud, cf. Grubrich-Simitis (1997).

5 Peter Watson (2000/2002) - que escreveu, talvez, o melhor volume sobre o pensamento ocidental, desde o início do século XXI - compreende a ciência ocidental como a única realização do século XX que realmente se salva. Podem incluir-se também, obviamente, as notáveis evoluções nas artes, na música, na ficção e assim por diante. A questão não é que o mundo tenha parado de progredir, mas que, colocando-se na balança, a ganância, a capacidade de destruição e a indiferença deixaram à margem a criatividade humana.

6 A destruição ativa não é difícil de ser identificada, como no caso de um genocídio. A modalidade mais disseminada de destruição humana, no entanto, é a destruição passiva. É quando selves, grupos ou nações permanecem inertes diante de um processo de destruição passível de ser interrompido mediante alguma intervenção.

7 Quem teria sido capaz de antever o assassinato “sem derramamento de sangue” ocorrido apenas 25 anos mais tarde - o Holocausto -, a primeira industrialização do assassinato? Transcendia a imaginação.

8 Para Heinz Hartmann, a adaptação sempre leva em conta o futuro: “Um estado de adaptação pode se referir ao presente e ao futuro. O processo de adaptação sempre implica a referência a uma condição futura” (1939[1937]/1958, p. 24).

9 Com isso quero dizer que, enquanto estamos sobrecarregados por uma gama enorme de problemas aparentemente insolúveis, a tendência de não os visualizarmos - de induzir a uma cegueira social protetora - é uma tentação evidente.

10 O conceito de “trauma cumulativo”, desenvolvido por Masud Khan (1963/1974), poderia servir-nos a contento, como uma construção teórica para identificar os entroncamentos da opressão no self moderno.

11 Há inúmeros artigos psicanalíticos sobre a pseudo-estupidez. Considero o artigo de Margaret Mahler (1942/1979) sobre a pseudoimbecilidade uma obra-prima.

12 Para um estudo psicanalítico da “escravidão mental”, ver Smith (2000). Cf., também, Hollander (2010), cujo livro é um bom estudo de muitos dos fatores que hoje colaboram para a difusão do sofrimento mental em grande parte do mundo.

13 Abordo a transformação do luto em melancolia nas populações ocidentais, ocorrida de meados do século XX até os primeiros anos do século XXI, em Meaning and Melancholia [Significado e melancolia] (obra em curso, a ser publicada em 2016).

14 É “psiquicamente sistêmico” quando os selves recorrem à internet sem pensar, usando-a por horas a fio, de modo que ela se torna parte do tecido do ser.

15 O livro de Danah Boyd é uma obra de inestimável valor para a compreensão dos diversos mitos acerca do uso das redes sociais pelos jovens contemporâneos.

16 Para um debate sobre o desenvolvimento psíquico 28 decorrente do encontro do self com objetos evocativos e sobre o conceito de inconsciente receptivo, cf. Bollas (1992, 2009).

17 The Transmisive Self and Transmissive Objects”, em Fear and Fantasy in a Global World [Medo e fantasia em um mundo global] (em andamento, Rodopi Press).

18 Neologismo que pretende significar a soma de velocidade, internet e rede social.

19 As amostras clínicas presentes neste trabalho provêm de analisandos anglo-americanos. Por esse motivo, psicanalistas de outros lugares podem ficar confusos com 30 tais exemplos; caso isso aconteça, podem substituí-los por novas modalidades de expressão que estejam surgindo em suas próprias culturas, se assim o desejarem.

20 “Pensamento de ação” é uma importante ideia trazida por Heinz Kohut (1977), a qual se coaduna com o meu uso do termo “operacionalismo”. Cf. ainda Hedges (1983).

21 As amostras clínicas refletem segmentos da cultura norte-americana e não são representativas das formas de expressão encontradas em várias outras culturas e países. Contudo, uma vez que a globalização começou como um movimento marcadamente norte-americano e muitos países pelo mundo adaptaram as formas de expressão dos EUA - vestuário, alimentação, linguagem, etc. -, a psicanálise pode vir a beneficiarle desse fato (se o ceticismo de alguns for deixado de lado, ou seja, “Isso não pode acontecer aqui”) à medida que a globalização - se realmente efetiva - vier a “americanizar” o mundo.

22 Para um interessante debate sobre o limite do pensamento horizontal, ver Klein (1970, pp. 130-131).

23 Existe uma literatura considerável a respeito do conceito de “espetáculo”, a começar pela obra de Guy Debord e dos “situacionistas” de meados do século XX.

24 Para um inestimável estudo da importância do insight na psicanálise, ver Etchegoyen (1991, pp. 653-688).

25 É claro que a resposta zombeteira não se revela uma resistência, mas um pedido inconsciente de mais análise. Deste modo, embora seja refrativo, ao horizontalizar e operacionalizar, ele também se mostra, inconscientemente, receptivo ao comentário do analista.

26 A crítica de Jameson à cultura contemporânea em Postmodernism, or the Cultural Logic of Late Capitalism [Pós-modernismo, ou a lógica cultural do capitalismo tardio] (1991) é referência para todos os estudos culturais do final do século XX. Embora discorde de grande parte de sua argumentação - e de suas formulações idiossincráticas sobre teoria psicanalítica -, sua obra é brilhante e inspiradora em termos intelectuais. Muitos trabalhos sobre a morte do sujeito poderiam ser citados, mas há um texto fundamental, do final do século XX, de Alain Badiou: Theory of the Subject [Teoria do sujeito] (1982). A principal crítica cultural psicanalítica do século XXI é, certamente, a de Slavoj Zizek em Living in the End Times [Vivendo no fim dos tempos] (2010), cuja leitura é essencial.

27 Ver Steiner (1993).

28 Em filosofia, a quantidade de definições de “sujeito” equivale à quantidade de filósofos. Eu emprego o termo com alguma hesitação, mas, creio eu, de acordo com a teoria de Freud sobre o inconsciente como sendo o local onde se assentam a percepção, a organização, a capacidade de escolha e a comunicação humanas.

29 Passei a empregar o termo “objetidade” desde que descobri que Frantz Fanon o usava para descrever o estado de ser do self oprimido (Fanon, 1952/2008b). Cf. Bollas (2004).

30 Cf. Bollas (1987) e McDougall (1989).

31 Ver, por exemplo, Fonagy e Target (1998).

32 Não compartilho da visão de que o capitalismo deva, de algum modo, ser responsabilizado pelas doenças da humanidade. Trata-se apenas de um sistema econômico intrinsecamente amoral - seria derrotado por quaisquer imperativos morais - e, mesmo que regulado, só pode prosperar se o lucro for colocado antes das pessoas. O capitalismo também não deveria ser confundido com o “empreendimento privado” ou com o trabalho do “empreendedor”, nenhum dos quais é dependente, de modo inevitável, do capitalismo.

33 Freud imaginou os instintos de vida e de morte como sendo forças intrapsíquicas, mas, se entendermos o instinto de morte como um fator crítico no capitalismo global (em que a dimensão humana se resume ao narcisismo da vida singular e às ilusões de uma vida boa) e nos processos de grupos psicóticos (como em movimentos terroristas ou explosões de genocídio), neste caso, a psicanálise deveria considerar as relações entre este “surto” de pulsão de morte e a civilização contemporânea.

34 Enquanto escrevo este texto, as Nações Unidas anunciam planos de elaborar “boletins meteorológicos do futuro”, usando famosos repórteres do tempo em vários países do mundo, na tentativa de despertar o público para a situação alarmante que atualmente ameaça o planeta. Cf. “United Nations Predicts Climate Hell in 2050 with Imagined Weather Forecasts” [Nações Unidas preveem inferno climático em 2050 com base em previsões do tempo imaginadas] (The Guardian, 1º de setembro de 2014).

35 Evidentemente, fundamentalistas de qualquer religião poderiam afirmar que possuem, de fato, ideais muito elevados. Com relação a isso, porém, há uma divisão crescente, digna de atenção, não apenas entre crentes e não crentes, mas também entre os que se dizem religiosos moderados e os fundamentalistas.

36 Uma das maiores perdas foi nossa crença na função da história. Sem ela, abandonados aos terríveis efeitos em expansão do pensamento refrativo, somos incapazes de contextualizar eventos chocantes e, desta forma, o ego não consegue mais montar uma estratégia de adaptação que dê resultados. Enquanto escrevo este texto, o Isis (Estado Islâmico do Iraque e da Síria) aterroriza o Ocidente e, nas palavras do secretário americano de Defesa Chuck Hagel, fazem-no de um modo “nunca visto antes” - ou, nas palavras de Barack Obama, como “um câncer” espalhando-se pelo mundo. Como nunca visto antes? Mesmo? Ou apenas nos esquecermos da história do mundo? Incapazes de pensar sobre o “nunca visto” - de outra forma que não “Como podemos matá-lo?” -, deixamos de lado a obra da história, chegando, inclusive, a não nos darmos conta de que esse bando, relativamente pequeno, de militantes sunitas não teria explodido em violência na Síria e no Iraque não fossem os fracassos da democracia após a Primavera Árabe, não fosse pelo Egito ter eliminado a influência moderada da Irmandade Muçulmana e não fosse por Al-Maliki ter eliminado os sunitas da participação no governo do Iraque. Em outras palavras, o Isis faz sentido se pensarmos sobre ele, em vez de meramente refratá-lo. Temos visto casos semelhantes ao do Isis ao longo de milhares de anos.

37 Talvez, por motivos óbvios, o Ocidente prefira apontar o fundamentalismo islâmico como uma ameaça para um mundo de diversidade e tolerância. Tal postura ignora a realidade maligna do fundamentalismo em todas as religiões monoteístas, o que certamente inclui o moderno fundamentalismo cristão e o judeu, que estabelecem suas próprias modalidades de genocídio intelectual. Mas o fundamentalismo existe em movimentos não religiosos e está intimamente relacionado com o típico “estado de espírito fascista” encontrado no típico “genocídio intelectual”. Cf. Bollas (1992).

38 O conceito de adaptação de Hartman é altamente sofisticado e o autor define cuidadosamente o papel interativo entre a psicologia social e a individual. “A estrutura social determina, ao menos em parte, as chances adaptativas de um determinado tipo de comportamento, mediante a expressão conformidade social [...] Conformidade social é uma modalidade especial de 'conformidade' ambiental que está implícita no conceito de adaptação” (1939[1937]/1958, p. 31).

39 Christopher Lasch nos forneceu o primeiro estudo psicanalítico extensivo do movimento rumo à diminuição do funcionamento mental de nível mais elevado a fim de lidar com o crescente empobrecimento das possibilidades humanas no final do século XX. Sua obra visionária é muito relevante para a análise do início do século XXI e da crise no pensamento. Cf. Lasch (1984).

40 Por mais de trinta anos, tem havido um declínio no interesse pelas Humanidades. O primeiro sinal de alerta desse processo talvez tenha sido o movimento para acabar com os departamentos de literatura inglesa nos EUA. Cf. Masciotra (2014).

41 A esse respeito, pode-se apontar o alcance maníaco da obra de Hegel. Posteriormente, constatam-se as profundezas depressivas de Kierkegaard. Se Nietzsche oscila entre o maníaco e o depressivo, nota-se que Husserl, Heidegger, Sartre e, mais tarde, Badiou buscam universos de pensamento nos quais a mente-self pode se refugiar do choque da realidade. Obviamente, o conflito intenso suscita obras geniais e, quanto a isso, resta algum consolo pelo ritmo acelerado da vida moderna.

 

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Correspondência:
Christopher Bollas
4557 Don Rodolfo Place
90008 Los Angeles, USA
christopherbollas@mac.com

Recebido em 12.11.2014
Aceito em 26.11.2014

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