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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

 

KEYPAPERS 49º CONGRESSO DA IPA

 

A psicanálise em tempos de tecnocultura: algumas reflexões sobre o destino do corpo no espaço virtual1

 

Psychoanalysis in times of technoculture: some reflections on the fate of the body in virtual space

 

El psicoanálisis en tiempos de tecnocultura: algunas reflexiones sobre el destino del cuerpo en el espacio virtual

 

 

Tradução Alexandre Roberto de Carvalho; Alessandra LemmaI

IMestra e doutora em Filosofia, membro da Sociedade Britânica de Psicanálise

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a autora oferece uma visão geral de alguns desafios que os psicanalistas encontram em tempos de tecnocultura. Sustenta mais especificamente que, em nosso trabalho clínico, podemos observar como os avanços tecnológicos e os valores predominantes da cultura contemporânea tornam possíveis e aceitáveis a alteração e ampliação do corpo e suas funções na realidade e no espaço virtual. Isso pode contribuir para um split entre o corpo e o self, levando a uma versão século XXI muito particular da subjetividade incorporada, que estimula uma negligência em relação ao significado inconsciente do corpo. Os problemas surgem quando, de um ponto de vista psicológico, não estamos mais pensando o virtual como sendo uma ampliação do assim chamado real, e sim como sendo uma alternativa ao real. Contudo, a autora também discute um caso clínico que ilustra como a utilização do ciberespaço pode promover o “desenvolvimento” psíquico e como pode ser usado para evitar a experiência (psíquica). Isso tem implicações técnicas em termos de como abordamos em nossas interpretações o uso que o paciente faz das novas tecnologias para atender às prerrogativas do mundo interno em relação ao contexto externo contemporâneo.

Palavras-chave: corpo; embodiment; ciberespaço; sexualidade; tecnologia.


ABSTRACT

In this paper the author gives an overview of some of the challenges facing psychoanalytic clinicians working in times of technoculture. More specifically she argues that in our clinical work we can observe how technological advances and the dominant values of contemporary culture make it possible and acceptable to alter and extend the body and its functions in actuality and in virtual space. This can contribute to a split between the body and the self, leading to a very particular twenty-first century version of embodied subjectivity that encourages a neglect of the body's unconscious meaning for the individual. Problems arise, from a psychological point of view, when we are no longer thinking in terms of the virtual as augmentation to the so-called real but more along the lines of the virtual as alternative to the real. However the author also discusses a clinical case to illustrate how the use of cyberspace can also be used to support psychic “development” as much as it can be used to foreclose experience. This has technical implications in terms of how the analyst interprets the patient's use of new technologies to meet the prerogatives of the internal world and of development.

Keywords: body; embodiment; cyberspace; sexuality; technology.


RESUMEN

En este trabajo, la autora ofrece una visión general de algunos desafíos que los psicoanalistas encuentran en los tiempos de tecnocultura. Sostiene, específicamente, que en nuestro trabajo clínico podemos observar cómo los avances tecnológicos y los valores predominantes de la cultura contemporánea hacen posibles y aceptables la alteración y ampliación del cuerpo y sus funciones en la realidad y en el espacio virtual. Esto puede contribuir con un split entre el cuerpo y el self, llevando a una versión siglo XXI, muy particular, de la subjetividad incorporada que estimula una negligencia en relación al significado inconsciente del cuerpo. Los problemas surgen cuando, desde un punto de vista psicológico, no estamos pensando más en lo virtual como una ampliación de lo llamado real. Sin embargo, la autora también discute un caso clínico para ilustrar cómo la utilización del ciberespacio puede promover el “desarrollo” psíquico, así como también puede ser usado para evitar la experiencia (psíquica). Esto tiene implicaciones técnicas en términos de cómo abordamos, en nuestras interpretaciones, el uso que el paciente hace de las nuevas tecnologías para atender a las prerrogativas del mundo interno en relación al contexto externo contemporáneo.

Palabras clave: cuerpo; embodiment; ciberespacio; sexualidad; tecnología.


 

 

A tecnologia não é boa nem má, e também não é neutra.

(Kranzberg, 1986)

 

A cultura das redes sociais virtuais

Levando-se em conta que a internet e outras formas de comunicação virtual já existem há mais de 20 anos, surpreende o pouco que há, na literatura psicanalítica, sobre seu impacto na estrutura psíquica ou sobre a utilização de novas tecnologias no setting analítico, com muito poucas exceções (por exemplo: Ermann, 2004; Carlino, 2010; Lingiardi, 2008; Dini, 2009; Bonaminio, citado por Vinocur Fischbein, 2010; Fiorentini, 2012; Kilborne, comunicação pessoal, 2011; Lemma & Caparrotta, 2014).

Não podemos ignorar que esta geração está crescendo em uma cultura de redes virtuais, na qual a comunicação é mediada e que a conectividade digital, juntamente com seus diferentes elementos de virtualidade, faz agora parte integral de nosso trabalho quotidiano. As redes globais têm um impacto na formação da identidade: agora, grupos de indivíduos se organizam e legitimam suas experiências como comunidade virtualmente.

Vamos colocar isso em um contexto mais abrangente para enfatizar a dimensão daquilo que tem de ser entendido. Por exemplo, estima-se que 38% dos internautas de todo o mundo utilizam o Facebook. Levando-se em conta que a população mundial é estimada em 7 bilhões, o Facebook representa 12% dessa população. Ou seja, se o Facebook fosse uma nação, seria a terceira maior do mundo (Law, 2013).

O que eu quero sugerir a vocês é que a transição de uma economia industrial para uma economia informática tem um impacto não somente na estrutura externa da sociedade e no comércio, mas também nas economias psíquicas internas, em nossos cérebros e, claro, em como concebemos o setting analítico. Contudo, não vou abordar nada disso hoje.

O foco desse congresso é como a técnica tem sido afetada (ou não) pelo fenômeno de um “mundo em mudança”. O termo “técnica” talvez não expresse o que tenho em mente quando penso no que precisa ser mudado em nossa prática diária em resposta a esse “mundo em mudança” - se, por “técnica”, queremos dizer quando ou se devemos ou não fazer interpretações transferenciais, ou se devemos ou não usar o divã, por exemplo. Em minha opinião, a principal coisa que precisamos mudar a fim de nos adaptarmos ao mundo em mudança é nossa disposição para nos envolvermos com essas mudanças culturais e com outras disciplinas que possam nos ajudar a entender tais mudanças, e estarmos abertos para o fato de que isso talvez nos exija repensar hipóteses estabelecidas. Isso inclui como fazemos as coisas (ou seja, a técnica), mas não somente isso. Nosso “setting interno” precisa mudar também, de modo que possamos nos adaptar especificamente ao fato de que crescer e viver nesses tempos de tecnocultura talvez nos exija que:

■ nos concentremos em certos aspectos das vivências de nosso paciente que são diretamente afetados pelas novas tecnologias - e aqui quero chamar a atenção, em particular, para a vivência do embodiment* e a relevância de outras disciplinas para nos ajudar a entender o embodiment virtual;

■ sejamos receptivos à possibilidade de que os avanços tecnológicos podem ser usados para promover o “desenvolvimento” psíquico, tanto quanto para evitar a vivência. Isso tem óbvias implicações em termos de como abordamos, em nossas interpretações, o uso que o paciente faz das novas tecnologias para atender às prerrogativas do mundo interno em relação ao contexto externo contemporâneo.

Uma vez que os indivíduos que atendemos em nossa prática diária podem estar fazendo um “mau uso” das novas tecnologias para controlar sua relação conflituosa com a realidade, fica muito fácil adotar uma visão distópica desses avanços. E, no entanto, os avanços tecnológicos são “desenvolvimentos” no sentido de que criam oportunidades para ampliação da aprendizagem e da criatividade e podem ser utilizados por alguns indivíduos para ajuda nos processos de desenvolvimento,2 como espero poder exemplificar adiante.

 

Mundo real, virtual ou “virtualmente real”

Uma das importantes consequências das novas tecnologias é o modo como estão transformando a natureza da intimidade. Se estivermos interessados na intimidade, não podemos deixar de nos interessar também pelo destino do corpo no espaço virtual, e essa é a ênfase de minha contribuição. Mas, antes de abordar o corpo no ciberespaço, devo dizer algumas palavras sobre as noções de “real” e “virtual”.

Ao pensarmos sobre os relacionamentos na atualidade, é preciso levar em conta a conectividade digital portátil amplamente disseminada. Uma importante implicação disso é que, por meio do advento de novas tecnologias, os mundos real e virtual começaram a se amalgamar, ou seja, para a atual geração, as redes digitais são cada vez mais um aumento do mundo real, em vez de uma alternativa a esse.

Atualmente, tanto a mais superficial quanto a mais íntima forma de relacionamento incluem a mediação: passamos cada vez mais tempo envolvidos em relacionamentos disembodied. A simulação de presença tornou-se um aspecto comum de como nos envolvemos uns com os outros. É muito cômodo desprezar os novos meios de comunicação e tecnologias, considerando-os como facilitadores da simulação como engano, como sustentaram Baudrillard (1981/1988) e outros; mas deveríamos antes considerar a simulação como um aspecto de uma copresença (estar juntos através de mediação; Coleman, 2011). Mandar mensagens de texto pode indicar uma pobreza de conteúdo ou uma maneira de não se relacionar, mas também pode conter uma riqueza em seu significado interpessoal, no ato de entrar em contato em si.3

Para uma disciplina como a psicanálise - que se baseia na tensão humana fundamental entre a atração exercida pelo “princípio do prazer” e a frustração colocada pelo “princípio da realidade” (Freud, 1920/1966) -, o virtual é para o real o que a cópia é para o original: uma reprodução que permite que os desejos colonizem a realidade. Essa definição de “virtual” figura tipicamente como o oposto da noção de “real”. O virtual aqui é sempre “menos que” o original. O virtual é visto como que despojando de forma onipotente o assim chamado “real” de sua realidade de carne e osso. Como tal, o que pensamos sobre a natureza da realidade virtual pode se tornar polarizado: o virtual se torna equivalente a “não autêntico”, uma fuga da assim chamada realidade.

Contudo, como psicanalistas, estamos bem acostumados à natureza virtual do próprio real, na medida em que este é filtrado através de um universo de relações objetais - universo este que é distorcido pelos processos projetivos e introjetivos - que cria outros virtuais, os quais trazem em si ressonâncias emocionais e nos comunicam como vivenciamos o mundo e nele agimos. Poderiamos dizer que o próprio setting analítico é também uma forma de realidade virtual, assim como o é a transferência.

O uso disseminado dos meios de comunicação define um mundo que não é mais nem virtual nem real, mas talvez possa ser considerado como representação da diversidade de combinações da rede. Para podermos nos envolver teórica e clinicamente com os tempos atuais, temos de ultrapassar a logica binária do virtual e real e de ententer o mundo em que estamos vivendo hoje.

Se tomamos o Second Life* como um exemplo operacional, como outras tecnologias de mídia que surgem no início do século XXI e proporcionam interação em tempo real, visualização e sensação de compartilhamento de espaço, vemos que o mundo virtual oferece aos usuários uma vivência que não é nem inteiramente virtual nem inteiramente real, mas que tem sido descrita adequadamente por alguns teóricos dos meios de comunicação como “virtualmente real” (Coleman, 2011).

Em relação a isso, o cibersexo levanta algumas questões interessantes. Os avanços da realidade virtual significam que a internet tornou-se agora um meio que amplia a interação sexual, de puramente textual para uma interação virtualmente táctil, que reproduz eletronicamente as ações do parceiro sexual cibernético. Mesmo supondo que um falo (ou qualquer outra parte da anatomia) seja virtual, seria a barreira eletrônica entre os participantes de cibersexo suficiente para interpretá-lo como sendo “irreal”? Precisamos conciliar o que pensamos sobre isso com o fato menos polêmico de que geralmente reconhecemos que, apesar da barreira eletrônica do telefone, ainda estamos conversando com uma pessoa real (ou seja, tendo uma conversação real). Então podemos perguntar: é a presença real de um outro corpo, em vez de sua reconstituição, aquilo que converte a fantasia sexual em fazer e ser na realidade? Deixo isso para que reflitam...

 

O destino do corpo no ciberespaço4

As raízes etimológicas do termo “ciberespaço”, do grego kybernan, que significa “controlar” ou “dirigir”, nos conduzem a uma importante característica do ciberespaço que pode justificar a fascinação que este exerce: nesse espaço, o indivíduo pode se sentir como estando no controle, na medida em que manipula a realidade. Independentemente do que mais possa ser o ciberespaço, é antes de tudo um espaço que é percebido como espaço controlado. Que facilidade excepcional é entrar em um mundo em que podemos sentir que temos o controle, em que tudo está ao alcance com um clique, em que a “mãe-tela” pode ser ligada ou desligada à vontade.

No entanto, a sedução do estado mental “ao alcance de um clique”, facilitado pelas novas tecnologias, se coloca em contraste com nossa dependência impotente frente a máquinas que mal entendemos. Nós nos tornamos tão dependentes de nossos aparelhos - quer como extensões de nossas fronteiras psíquicas e cognitivas, quer como abrigos psíquicos, quando adquirem uma função mais rígida e/ou compulsiva em nosso mundo interno -, que não surpreende o fato de vivenciar-mos um terrível sentimento de perda, privação ou raiva quando os perdemos ou quando param de funcionar (Lingiardi, 2008). Esses “malogros” nos fornecem uma narrativa diferente daquela sobre o “controle” proporcionado pela tecnologia. O malogro da máquina expõe o desamparo oculto atrás da fantasia de controle, ou seja, que ainda somos seres prisioneiros de um corpo e que temos um controle limitado sobre nosso mundo e nenhum controle sobre nossa inevitável finitude.

A colocação de um corpo carnal “real” diante do material rígido de um computador ou de um dispositivo portátil BlackBerry convida a uma pausa para meditar. Aqui a complexidade do relacionamento com o computador enquanto um objeto que propicia potência - sua “rigidez” fálica - fica evidente por meio do contraste gritante com a forma mais mole e flácida de seu usuário estático, cujo corpo vai perdendo importância até se tornar supérfluo em um mundo virtual que promete liberar o self corporal de todas as sujeições.

Na década de 90 o ciberespaço foi saudado por alguns como uma arena para a concretização da mente sem corpo: um tipo de “tecnocracia sem corpo” (Gunkel, 1998, p. 119). Partindo de um ponto de vista teórico, a fim de entender o que está ocorrendo no ciberespaço, gostaria de convidá-los a adotar uma visão menos condescendente de disembodiment. Em vez de considerar que o ciberespaço é um local para reunião exclusiva de mentes, desejo demonstrar que o corpo tem ainda sua importância, mesmo quando a interação é mediada. Quando estamos no ciberespaço, ainda estamos em nossos corpos. O que muda é a nossa vivência de embodiment, já que não mais dependemos das antigas relações condicionadas ao corpóreo. Esse é o motivo pelo qual devemos nos interessar pela reconstrução dos corpos on-line e por como essas atividades on-line alteram, ou não (conforme o caso), a vivência de embodiment e, consequentemente, nosso senso de identidade.

A realidade virtual constitui um interessante avanço na questão de se nosso senso de self é ou não um conceito maleável. Durante a década passada, neurocientistas cognitivos estudaram o conceito de “ilusão de apropriação corporal”, que é a ideia de que o cérebro pode ser convencido a tomar posse de um corpo ou de uma parte corporal que não seja seus. Por meio de capacetes e visores de realidade virtual, com preços acessíveis, como o Oculus Rift, logo todos poderemos ter a oportunidade de projetar nossas identidades além do ciberespaço e habitar diferentes corpos.

Alguns experimentos interessantes de embodiment virtual têm indicado resultados e vivências positivas. Em 2010, pesquisadores da Universidade de Barcelona fizeram um experimento em que forneceram a 24 homens capacetes de realidade virtual que lhes permitiam ver e ouvir o mundo como se fossem personagens femininos. Descobriram que os sujeitos rapidamente desenvolviam uma profunda identificação fisiológica com o corpo virtual, chegando até a se encolher quando seus avatares virtuais eram esbofeteados por outro personagem. Os pesquisadores sugeriram que esse tipo de representação na realidade virtual poderia ser utilizado para tratar vítimas de derrame (AVC) e ensiná-las como voltar a usar seus corpos.

Mas a exploração da representação e do deslocamento corporais pode ter ainda outras interessantes ramificações. Em 2014, Yifei Chai, aluno do Imperial College London, criou um experimento de realidade virtual em que uma pessoa, usando um capacete de RV, podia controlar os movimentos corporais de outra, que por sua vez usava uma câmera sobre a cabeça e uma vestimenta com estimulação elétrica. Embora alguns participantes tenham achado a vivência perturbadora, Chai disse que o sistema poderia ser usado para ensinar empatia às pessoas, já que propiciava que uma pessoa se pusesse literalmente no lugar da outra. Nessa linha, em 2013, a pesquisadora de realidade virtual Tabitha Peck conduziu um experimento de RV em que constatou que o preconceito racial diminuía quando brancos se colocavam no corpo de uma pessoa de pele escura.

Assim, os mundos virtuais do ciberespaço talvez propiciem uma nova arena para pôr em cena o corpo, em que novas peças dramáticas possam ser representadas, e em que, além disso, talvez possamos fazer experiências com aspectos novos, denegados ou conflituosos de nós mesmos que esbarram na aprovação dos outros. O ciberespaço oferece um grande número de espaços potencialmente seguros para aqueles que anseiam por explorar socialmente o que são, bem como para aqueles que não têm certeza de suas preferências sexuais poderem explorar diferentes aspectos de sua sexualidade. Alguns indivíduos propositalmente assumem diferentes personae no ciberespaço (por exemplo, mudança virtual de sexo) a fim de poder explorar ou expressar verdades ocultadas sobre si mesmos.

De um ponto de vista psicológico, já foi até sugerido que o ciberespaço talvez possa ser interpretado como sendo um espaço transicional que facilita a salutar experimentação com novas identidades (Turkle, 1995, 2005; Suler, 2002, 2004; Allison, von Wahlde, Shockley & Gabbard, 2006; Dini, 2009), e que as possibilidades imaginárias proporcionadas pelo ciberespaço podem ser utilizadas terapeuticamente (Barak & Suler, 2008).

Assim, meu objetivo ao abordar esse assunto é não demonizar o domínio virtual. Contudo, também ocorre que os ambientes tecnológicos do ciberespaço se prestam especialmente à projeção e ao acting out de fantasias inconscientes - tais como as que podemos observar no uso compulsivo da pornografia na internet (Wood, no prelo). Além do mais, como o ciberespaço integra uma paisagem tecnologizada que é agora parte normal da vida quotidiana em todo o mundo, isso torna mais fácil, e por vezes menos óbvio, que seja empregado por jovens em especial como um refúgio contra as exigências da realidade do embodiment e do particular sentido que este tem para eles. Então, o “brincar” no ciberespaço pode ser usado para contornar a árdua tarefa psíquica necessária à representação da experiência, dando assim lugar à simulação, com o consequente risco de que o “virtual” possa substituir o real e se tornar mais premente.

Claro que há muitas outras formas pelas quais podemos fugir do corpo, como, por exemplo, concentrando-nos quase que exclusivamente em atividades intelectuais, fazendo assim o corpo parecer supérfluo. Isso levanta a questão de se a disponibilidade disseminada do ciberespaço pode acarretar novas manifestações patológicas. Minha própria experiência clínica faz com que eu seja cética em relação à ideia de que a internet por si “cause” problemas psicológicos. Mais exatamente, estou sugerindo que a internet pode proporcionar um meio culturalmente vigoroso e prontamente acessível para a representação dos conflitos relacionados à nossa natureza corpórea.

A utilização compulsiva do ciberespaço é sobredeterminada e pode ser impulsionada por vários conflitos inconscientes, mas meu foco agora se restringe a entender as apresentações clínicas em que a má utilização daquele está a serviço do controle de experiências perturbadoras de “alteridade”, que é sentida como estando concretamente localizada no corpo. Para aqueles casos em que esta é a preocupação inconsciente central, estou sugerindo que o ciberespaço é idealmente adequado para ser usado de maneira defensiva, a fim de contornar as implicações psíquicas de um self em um corpo. Isso talvez possa ser entendido como sendo, em parte, uma função de algumas das características específicas do ciberespaço, a saber:

Pode criar e/ou manter a ilusão de disembodiment. O ciberespaço pode desafiar a história, a transitoriedade e mesmo a própria materialidade do corpo. O espaço virtual pode ser usado para suspender verdadeiramente a história do sujeito. Esse vínculo temporal, que é o vínculo vital entre o presente e o passado na medida em que é ancorado em nosso corpo, propicia um senso de continuidade de nossa experiência, daquilo que somos no correr do tempo e nos vincula aos outros, de quem dependemos e de quem talvez continuemos a depender. Quando isso se rompe, a relação do indivíduo com a realidade também se rompe.

A tecnologia em si também tira o corpo de sua condição de abjeto, excluindo o corpo interno sujo e seus fluidos expelidos ou vazados. Cria um distanciamento de nossa natureza orgânica e nossas limitações, protegendo-nos da crua realidade de que somos “deuses com ânus”, como sugeriu Becker (1973) de modo provocativo.

Pode abolir a realidade e a necessidade do estado de separação e intensificar um modo de relacionar-se em que o corpo “real” pode ser negado. Sendo a presença física não mais necessária para se iniciar ou manter um relacionamento, a presença primária do corpo converte-se em pseudopre-sença (Zizek, 2004). Além disso, evitando a realidade das fronteiras geográficas, podemos minimizar ou evitar a vivência de separação. A realidade e, sustento eu, a necessidade de distância e separação (Josipovici, 1996) são substituídas pela comunicação imediata, contornando-se assim o doloroso trabalho psíquico necessário para que possa haver o luto pelo outro ausente ou perdido.

Pode promover a ilusão da transparência interpessoal. A estranheza e a opacidade do outro são contornadas porque o outro é na verdade uma criação do self. Aqui, o outro - que também está sem corpo - pode ser vivenciado como sendo plenamente conhecido e, portanto, possuído (Arias, Soifer & Wainer, 1990; Gibbs, 2007).

Pode alterar a relação entre realidade interna e externa. Ao proporcionar uma ilusão daquilo que é real, permite contornar o trabalho psíquico necessário para se entender que realidade interior e exterior são vinculadas, em vez de equivalentes ou cindidas uma da outra. No mundo virtual, o modo de equivalência psíquica da realidade (Fonagy & Target, 1996) pode se tornar dominante, um modo por meio do qual o mundo interno que é projetado no espaço virtual é visto como correspondendo à realidade externa. O ambiente tecnológico do ciberespaço pode assim tornar indistintas as fronteiras entre os mundos interno e externo, criando a ilusão de que as realidades externa e interna são isomórficas. Nessas condições de existência, não há limites para o que pode ser imaginado ou atuado. À medida que o self se embriaga de onipotência, ele perde todos os referentes contextuais -dos quais o corpo é um - que iriam, de outra maneira, dar sentido à experiência.

Pode contornar o “trabalho do desejo”. O desejo se mede em termos de tempo:

tem a ver com o antegozo e o adiamento da gratificação - e é nesta lacuna assim criada que somos impelidos a representar nossa vivência, e em que se desenvolve o pensamento em lugar da descarga ou ação. Ainda não sabemos o suficiente sobre as implicações da experiência prolongada da imediatez virtual sobre a psique, ou seja, do modo como, no ciberespaço, temos o poder de fazer acontecerem agora coisas que, de outra forma, levariam muito tempo para acontecer ou não se realizariam nunca. Isso pode ter implicações sérias para o indivíduo e para o modo como nos relacionamos íntima e socialmente.

Dentro do ciberespaço, existe tanto a possibilidade de as coisas serem diferentes do que são off-line (o que não é em si e por si exclusivo do ciberespaço) como também a de que essa mudança no ambiente e no embodiment seja potencialmente, talvez mesmo tipicamente, mais abrangente e mais imediata do que parece ser possível off-line. A vivência de meu self virtualmente incorporado talvez possa ser, por exemplo, a de alguém com elevada coragem física, ou com habilidades especiais, ou ainda com alta atratividade sexual. Essas características não são algo que eu precise desenvolver durante um tempo, mas sim algo que, com relativa facilidade e um pouco de conhecimento de como personalizar meu avatar, pode me proporcionar uma presença no ciberespaço com efeito quase imediato e na qual posso exercer uma “flexibilidade somática”.

Por fim, a imediatez virtual pode ter grande impacto na nossa capacidade de ter intimidade - emocional e sexual -, capacidade esta que, se as coisas correm bem, é sustentada pelo “trabalho do desejo”. No ciberespaço, a sensação de velocidade e disponibilidade imediata substitui a realidade de um outro real, que nunca pode estar plenamente disponível ao self ou ser por ele controlado. Sabemos que um dos principais desafios da sexualidade é que a alteridade se encontra em seu centro. Essa alteridade precisa ser integrada na experiência subjetiva da sexualidade. Todos os desejos se concentram em um outro e, mais especificamente, a existência do outro nos confronta tanto com nossa dependência quanto com nossa passividade - posições que mobilizam ansiedade. Isso funciona de modo diferente em vários níveis do ciberespaço. Por exemplo, o fácil acesso à pornografia na internet e a imagens sexualizadas nos meios de comunicação se presta a contornar o doloroso trabalho psíquico que faz parte do trabalho do desejo: o outro se torna um objeto que não existe fora de nosso controle.

 

Flexibilidade somática: corpos ideais e corpos virtuais idealizados

O ensaísta e famoso ciberlibertário norte-americano John Perry Barlow afirmou, em sua “Declaração de Independência do Ciberespaço” (1996), que a ausência de censura e o anonimato propiciados pela internet iriam promover uma sociedade mais livre e aberta, porque as pessoas poderiam se livrar da tirania de suas identidades do mundo real e recriar-se - ou, como no comentário sucinto da revista New Yorker: “Na internet, ninguém vai saber que você é um cachorro”.

Gostaria agora de examinar mais especificamente a questão de como a assim chamada liberdade proporcionada pelo ciberespaço à flexibilidade somática pode afetar a imagem corporal e o senso de self do indivíduo. Consideremos, por exemplo, que o ciberespaço promove a liberdade de nos envolvermos naquilo que Biocca (1997) denominou “embodiment progressivo”, que para ele significava até que ponto é possível desenvolver um self off-line concentrando-se na intensificação do cyberself ou corpo virtual de um modo que corresponda ao potencial proporcionado por um dado ciberespaço. Se assim for, precisamos levar em conta se os indivíduos irão procurar paridade consigo mesmos em vários domínios ou se irão se contentar simplesmente em compartimentalizar cada identidade (Suler, 2004), restringindo-as aos limites e à especificidade do contexto de cada mundo, on-line ou off-line.

As identidades que alguns indivíduos criam para seus personagens on-line sugerem que o ciberespaço é um ambiente em que podem se sentir inclinados a criar personagens imbuídos de seus selves ideais. Béssiere, Seay e Kiesler (2007) constataram que indivíduos que têm escores baixos em medições de bem-estar psicológico são mais inclinados a criar personagens que se aproximam do self ideal e menos do self real do que os que têm escores mais altos. Algumas das questões interessantes que surgem dessa descoberta dizem respeito a até que ponto os possíveis selves que são realizados no ciberespaço são expressões autênticas do self das pessoas e, ainda, se ser ou não autêntico nesses espaços é psicologicamente importante. Se através do processo de imediatez virtual pode-se virtualmente realizar o “self possível” e, no processo, receber alguma forma de legitimação social, mesmo que em um contexto específico, então até que ponto é “autêntico” esse self possível e como a maneira que os outros reagem a esse self virtual afeta o self off-line?

Aqui é fundamental ter em mente a distinção entre uma realização ideal do embodiment e uma realização idealizada, que iria equivaler a um embodiment inautêntico. Um exemplo disso poderia ser apresentar-se de um modo congruente com os ideais de beleza e desejabilidade aceitos culturalmente, independentemente do potencial de se fazer jus de modo realístico a tais ideais. A questão central, portanto, é até que ponto a flexibilidade somática, que parece ser possível como resultado do acoplamento entre uma pessoa e as várias formas de tecnologia, produz apresentações autênticas ou inautênticas de embodiment.

Para certos indivíduos, os avatares têm o potencial de criar uma grande discrepância entre o status identitário e o manejo social percebidos no mundo “real” e aqueles que podem ser obtidos no ciberespaço.

Ao deixar o ciberespaço, não podemos mais voar à vontade, por exemplo. A forma como vivenciamos a nós mesmos irá então mudar. Não será simplesmente uma carência de x (p. ex., da capacidade de voar); em vez disso, a carência de x se destacará como uma perda, algo que está faltando.

Discrepâncias significativas entre a imagem corporal off-line e o avatar podem levar alguns indivíduos a favorecer ou mesmo a se fixar em seu self avatar, o que resulta no domínio psíquico do virtual sobre o não virtual; isso, por sua vez, pode levar os indivíduos a passarem cada vez mais tempo em um estado no qual seu senso de self é percebido como sendo mais forte. O risco então é que o indivíduo comece a habitar o que Law (2013) denominou “atomocracia”, ou seja, o mundo particular de uma pessoa. Law escreve fora do contexto psicanalítico, mas seu termo captura apropriadamente um estado narcísico caracterizado pela completa onipotência, em que as leis do princípio da realidade já não se aplicam.

 

Embodiments imaginados e embodiments vividos

A cada nova simulação e transmissão descobrimos não somente novas tecnologias, mas também novas facetas de nós mesmos. Seria muito fácil encontrar um caso que ilustrasse o uso do ciberespaço como abrigo defensivo em um estado de atomocracia - tratei disso em outro texto (Lemma, 2011). Mas agora desejo examinar um material clínico que ilustra como o ciberespaço pode também criar a oportunidade para a elaboração de um embodiment imaginado, que, em contraste com o embodiment vivido, proporciona ao indivíduo uma vivência diferente, que pode auxiliar em seu desenvolvimento. No caso em questão, o ciberespaço, ou mais especificamente o cibersexo, ajudou na gradual integração de um paciente, que até então havia cindido e depreciado a identidade homossexual, por meio do acesso a salas de chat e pornografia para o público gay.

B era um homem bem-sucedido profissionalmente, na faixa dos 40 anos de idade, que vinha à psicoterapia analítica três vezes por semana (face a face nos dois primeiros anos) para tratar de dificuldades em seu casamento. O paciente acreditava que era homossexual, apesar de ainda não ter tido qualquer relacionamento sexual com homens.

Ao iniciar a terapia, B estava casado havia cinco anos e tinha um filho. B cresceu em uma família religiosa e conservadora, na qual muitos se destacaram por suas realizações. Sua mãe era vivenciada por ele como fisicamente distante e ríspida na forma como o tratava. Ambos os pais desaprovavam relações sexuais fora do casamento. A homossexualidade era explicitamente relegada à categoria das “perversões”.

B lembrou que se atormentava na escola secundária por causa da atração que sentia por um rapaz mais velho. Masturbava-se pensando nesse rapaz e disse que sempre se sentia angustiado ao chegar ao clímax. Nunca tivera experiências sexuais com outras pessoas até entrar na universidade.

Suas primeiras experiências foram encontros não significativos com mulheres, durante os quais frequentemente sentiu-se impotente. Novamente, como havia acontecido na escola secundária, tornou-se fixado em um conhecido da universidade, mas nunca ousou concretizar seu forte desejo homossexual.

Disse que sempre odiara sua aparência. Achava que suas pernas eram curtas demais, e sua pele, branca demais: “Eu como que desapareço no pano de fundo na melhor das hipóteses e, na pior, pareço um cadáver”. Pensou em fazer um transplante de sobrancelhas, porque suas sobrancelhas eram tão claras que parecia que ele as havia raspado. Levantei com o tempo várias dimensões da vivência que tinha de seu corpo: como ele sentia seu corpo inóspito a si mesmo, sua angústia entranhada de que seu corpo ia trair o modo como se sentia; que ele não tinha nada vivo nele, que sua pele e seu cabelo eram tão claros que o faziam invisível aos outros, e que ele queria desesperadamente que eu ressuscitasse algo que estava morto dentro dele.

B acabou saindo com garotos de programa antes de se assumir plenamente. Antes desse passo - que, como discuti em outro lugar, poderia ser interpretado neste caso como um desenvolvimento para integrar sua sexualidade (Lemma, no prelo) -, B dependia amplamente da pornografia na internet e de salas de chat para o público gay. Isso teve um papel crucial para ajudá-lo a se sentir legitimado em seu corpo e sua sexualidade. Devo acrescentar que ele não se sentia atraído por pornografia de caráter fetichista ou violento.

Irei agora me concentrar seletivamente em alguns sonhos a fim de ilustrar a elaboração progressiva de sua representação de seu corpo sexual por meio do uso que fazia do cibersexo e, obviamente, também por meio do processo analítico, que ocorria paralelamente ao primeiro. Devido a limitações de tempo, não poderei fornecer um relato detalhado do processo.

No início, quando acessava sites pornôs ou entrava em salas de chat gay, B se sentia muito inadequado e não conseguia atingir o orgasmo. Era atormentado por pensamentos intrusivos de que não era atraente ou de que sua sexualidade era “suja”. Evitava contato visual on-line porque se achava muito pouco atraente. Um sonho dessa fase inicial capta sua representação corporal depreciada:

Estou preso em um gabinete sanitário sujo, e minhas calças estão no chão. Fezes cobrem totalmente minhas pernas. Estou com uma terrível diarreia que se esparrama pelo piso. O fedor é insuportável e posso ouvir as pessoas nos outros gabinetes tentando girar as trancas, lutando para poder sair.

Quando B trouxe esse sonho, eu o entendi na transferência como sendo uma expressão de sua terrível angústia de que seu corpo e seu desejo homossexual fossem me repugnar e de que isso me levaria a abandoná-lo. Ele associou isso ao nojo que achava que seu pai expressara em relação aos gays e pelo qual se sentiu completamente atingido. Nós também consideramos o sonho (dado algumas de suas associações subsequentes) como expressando sua agressão e desejo de cobrir a mim/a seu pai com suas fezes, em retaliação pela rejeição detectada a seu self sexual.

Nove meses depois, após o uso regular e quase diário de salas de chat gay na internet e cibersexo baseado principalmente em texto, ele contou este sonho:

Estou em uma academia. Os músculos de minhas pernas estão retesados. Suei e o homem ao meu lado me olha atentamente. Não tenho certeza se ele vai se aproximar de mim ou se afastar por sentir repugnância pelo meu odor.

Em suas associações, B me contou que, quando participava de salas de chat, geralmente se sentia “confuso”, na medida em que nem sempre tinha certeza se os outros homens o achavam atraente, especialmente se a sala de chat propiciasse contato visual. Sentia-se mais seguro com a pornografia ou mandando mensagens de texto on-line, porque não estava sendo visto. Dentro dessas fronteiras, ele sentia que podia estar em seu próprio corpo confortavelmente e expressar seu self sexual com menos inibição.

Entendemos esse segundo sonho como expressão de sua dificuldade de ler os sinais sexuais quando a interação era visual e envolvia seu corpo real, ainda que de maneira indireta, e de sua angústia contínua em relação a como ler meu olhar para ele à medida que me revelava mais sobre si mesmo: estava eu aprovando ou ainda sentia repugnância pelo que ele me contava e pelo que eu via? Nesse estágio, ele ainda estava apavorado com a possibilidade de revelar a sua homossexualidade abertamente e não conseguia nem mesmo se permitir ter uma relação sexual “real” com um homem. Contudo, embora esse segundo sonho ainda esteja pleno de angústia (e agressão contra o outro, que é sentido como o rejeitando - seu odor também é uma arma com a qual pode repelir o outro), eu o vi como um sinal de um começo de elaboração da possibilidade de que o outro possa desejá-lo: “Não tenho certeza se ele vai se aproximar de mim...” Entendi isso como uma possibilidade que foi facilitada através das trocas virtuais no ciberespaço, à medida que ele se imaginava como potencialmente desejável e ia alterando sua vivência de embodiment.

Durante os meses seguintes de sua terapia, B ficou muito preocupado com “se assumir”, e eu senti que isso era algo que agora ele desejava fazer e que se tornara mais possível por causa de sua experimentação on-line e da legitimação que encontrou lá - bem como em sua análise, eu creio. Ele, então, começou a sair com garotos de programa e seu uso de pornografia pela internet e das salas de chat diminuiu significativamente.

Após um dos encontros com um garoto de programa com quem fizera sexo algumas vezes e a quem apreciava, B me trouxe um sonho muito vívido: era criança e estava cozinhando, mas não tinha a mínima ideia de quais ingredientes precisava. Estava procurando o livro de receitas que sua avó usava, mas não conseguia achá-lo. Decidiu então colocar os ingredientes que tinha à mão e começou a misturá-los, fazendo uma massa com textura de pão que parecia dourada e se tornava gradualmente mais espessa. Ao fundo, sua mãe gritava com ele, chamando-o de idiota, dizendo que ele não devia tentar cozinhar, que era coisa que somente adultos faziam.

Em suas associações, B disse que sua mãe não era desse jeito na realidade: ela era uma mulher “tímida” e tranquila. Em contrapartida, sua avó era de natureza forte, e se dedicou a seu trabalho de professora em uma escola para meninas, tornando-se uma espécie de mãe substituta de várias das meninas, que ainda escreviam a ela com gratidão.

Entendemos que esse terceiro sonho expressava sua gratidão ao garoto de programa por ajudá-lo a aprender algo sobre ele próprio em termos sexuais. Era como se tivesse lhe dado um livro com a receita para sua sexualidade; porém, tão logo ele soube do que precisava e quem era, surgiu em sua cabeça uma voz crítica, que o colocava em seu devido lugar, dizendo a ele que era só uma criança que não sabia o que estava fazendo. Eu associei isso ao fato de que, tão pronto ele me contou o quanto desfrutara do sexo, eu me tornei esse outro que o humilhava, que o colocava em seu devido “lugar de criança heterossexual”.

B carregava dentro de si não só o sentimento de que sua homossexualidade era inaceitável, como também o de que o simples “ser sexual” era vergonhoso, o que resultava em uma vida de faz de conta, que ocultava seus anseios homossexuais, e ocasionava, na transferência, uma repetitiva experiência de mim como sendo desaprovadora e castradora.

Através dos encontros sexuais virtuais no ciberespaço, bem como da pornografia e, por fim, dos garotos de programa, os sonhos de B revelaram as dolorosas mas, a meu ver, consistentes mudanças em sua representação corporal. Depois de ter um encontro real com um garoto de programa, ele teve o terceiro sonho, em que prepara uma “massa com textura de pão que parecia dourada e se tornava gradualmente mais espessa”, o que reflete, segundo entendo, sua representação emergente de um corpo sexual que tem cor/vida e substância.

Claro que um caso como esse levanta a questão de por que B não pôde elaborar seus conflitos sexuais principalmente na transferência. Tenho algumas ideias a esse respeito.

B lembrou-se de que ambos os pais eram “rígidos” em tudo que faziam, inclusive no modo como se apresentavam fisicamente - uma aparência “simples”, como ele a descreveu. Não tinha lembranças de proximidade física com nenhum dos pais. Vivenciava seu corpo como estando “morto” e isso se refletia em sua aparência, que era elegante, mas “cinzenta”. Sua pele “clara demais” e suas sobrancelhas invisíveis evocavam sua representação de um corpo sem contornos, que poderia facilmente desaparecer contra o pano de fundo e morrer. B, portanto, relatava uma história precocemente caracterizada por aquilo que poderiamos formular como uma hipocatexia do corpo por figuras-chave de apego. Em outras palavras, ele abordou o desenvolvimento de sua sexualidade a partir de uma base fraca no nível da representação mental de seu corpo. Sua luta para integrar a psicossexualidade exigiu a análise de sua deficiência, ou seja, de seu self corporal hipocatexizado no contexto de suas primeiras experiências de apego, e uma aceitação do uso que ele fez do ciberespaço para elaborar essas dificuldades, mais do que a interpretação disso nos estágios iniciais.

Um espelhamento marcado e contingente da vivência corporal do self provavelmente constitui, para todos nós, uma característica essencialmente importante para o desenvolvimento de um senso de self coerente, firmemente enraizado no corpo. Sem esse tipo de base, a trajetória de uma elaboração satisfatória do self sexual irá muito provavelmente ficar comprometida em vários graus. Creio que a deficiência de B nesse nivel solapou sua habilidade de representar de maneira simbólica seu desejo sexual, ansiedades e conflitos. Ele teve primeiro que vivenciar a aparência e o toque sexual do outro sexual virtual, e então o toque e a aparência real do garoto de programa, para poder sentir-se seguro mas sexualmente excitado no contexto de um relacionamento emocionalmente intimo - o que ele continuou a desenvolver, após alguns anos de terapia, depois de se assumir e deixar a esposa.

Na transferência, eu estava consciente de que B previra meu olhar critico e não desejoso e evitara o divã no inicio de modo a poder ansiosamente monitorá-lo. Estava consciente também de uma ausência de quaisquer sentimentos eróticos na transferência, como se sua sexualidade tivesse que ser mantida à parte de nosso relacionamento.

Pode-se dizer que a deficiência inicial na representação que B fazia de seu corpo comprometeu o desenvolvimento de um self sexual fálico como um passo necessário à integração da sexualidade edipiana. Talvez uma “vantagem” do parceiro sexual virtual e, posteriormente, do garoto de programa seja precisamente que não são pai/ mãe, nem parceiro sexual, nem analista. O outro sexual virtual e os garotos de programa podem, assim, ajudar o desenvolvimento do self sexual fálico contornando as angústias edipianas que não podem ainda ser enfrentadas. Isso permitiu que a representação corporal de B se tornasse mais consolidada em sua mente antes que ele pudesse elaborar sua sexualidade edipiana na transferência. Isso levanta a possibilidade de que tal “sexualidade virtual” e então “sexualidade espelhada” - ambas de natureza narcisica - sejam as precursoras de uma “sexualidade relacional”, enraizada em dois corpos e mentes que interagem entre si e podem se espelhar reciprocamente.

A trajetória individual de B sugere que é importante que o analista mantenha a mente aberta em relação ao uso do ciberespaço para a experimentação com embodiments imaginados. Isso pode ser particularmente relevante no desenvolvimento de uma identidade sexual consolidada que possa ser vivida, subsequentemente, no contexto de uma relação de apego.

Ao mesmo tempo que poderíamos estar corretos, a meu ver, em entender esse “uso” do ciberespaço como uma representação, enfatizei hoje a necessidade de se levar em conta que isso também pode significar um desenvolvimento. Reconhecê-lo como tal é importante em termos terapêuticos e tem implicações para a técnica. Exige do analista que siga com sensibilidade um caminho difícil entre ajudar o paciente a representar a vivência, e entender e aceitar por um tempo o imperativo teleológico que vai contra isso, que pode não obstante ser um passo necessário para se representar a sexualidade e viver confortavelmente no corpo sexual. Esse passo pode ser auxiliado pelo uso do ciberespaço para experimentar com as vivências particulares de embodiment.

 

Conclusão

O ciberespaço não é um espaço homogêneo. Precisamos levar em conta as relações contingentes que existem entre esse espaço e aquilo que ele permite em termos de representação e interação. E, à medida que o fazemos, precisamos ter em mente que o que transcende os espaços on-line e off-line é o indivíduo.

Ao pensar sobre o mundo do ciberespaço como um espaço potencial para a experimentação, que pode facilitar a elaboração psíquica, temos de considerar não somente se isso é certo ou errado, bom ou mau, mas se o indivíduo consegue psiquicamente enfrentar o que está sendo apresentado ou representado dentro de um dado espaço virtual. Esse é o motivo por que princípios gerais têm um valor limitado. Esse é o motivo pelo qual necessitamos uma lente psicanalítica para focalizar como a tecnologia interage, para o bem ou para o mal, com economias psíquicas particulares.

 

NOTAS

1 A autora detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do Congresso Boston IPA, sob o título Mundo em mudança: a forma e o uso de ferramentas psicanalíticas hoje, que ocorrerá de 22 a 25 de julho de 2015. Inscrições disponíveis em: www.ipa.org.uk/congress.

* N.T.: embodiment pode ser traduzido como “corporificação”, “incorporação”, “encarnação”, sendo que o sentido é o de adquirir uma corporeidade virtual. O mesmo se aplica ao disembodiment, que seria “desencarnação” ou “desincorporação”.

2 Esses novos meios de comunicação também oferecem a oportunidade de ampliar o acesso a tratamentos mentais, inclusive intervenções psicanalíticas. Embora isso requeira um entendimento mais apurado de qual a melhor maneira de se criar e tornar seguro o setting analítico - e ainda temos muito a aprender a esse respeito -, não quer dizer que seja impossível trabalhar psicanaliticamente através desses novos meios (ver, por exemplo, Lemma & Fonagy, 2013).

3 Contudo, as pesquisas são esclarecedoras a esse respeito: há uma correlação entre ter grande número de amigos no Facebook e sentir-se solitário. Aqueles que têm baixa autoestima podem piorar ainda mais na medida em que tendem a revelar traços negativos em oposição aos positivos, levando a uma diminuição das “curtidas”. Um em cada dois adolescentes confessa que mente sobre detalhes pessoais no Facebook; então, pode-se dizer que há implicações para a identidade e os relacionamentos significativos. A inveja, o narcisismo e a insegurança são abundantes. Reassegurar em pessoa ou pelo telefone provoca uma diminuição do hormônio do estresse, o cortisol, e um aumento do hormônio do amor e bem-estar, a oxitocina; no entanto, reassegurar por meio de mensagens instantâneas não proporciona os mesmos benefícios.

* N.T.: O Second Life (SL1) é um ambiente virtual e tridimensional que simula em alguns aspectos a vida real e social do ser humano. Foi criado em 1999, desenvolvido em 2003 e é mantido pela empresa Linden Lab. Dependendo do uso, pode ser encarado como um jogo, um mero simulador, comércio virtual ou rede social. A expressão second life, em inglês, significa “segunda vida”, o que pode ser interpretado como uma vida paralela, uma segunda vida além da vida “principal”, “real”. Dentro do próprio jogo, o jargão utilizado para se referir à “primeira vida”, ou seja, à vida real do usuário, é RL, de real life, que se traduz literalmente por “vida real”.

4 Ao me referir ao ciberespaço, utilizo a definição de Stratton (1997, p. 29): “o espaço produzido pela comunicação humana quando ela é mediada pela tecnologia de um modo que o corpo esteja ausente”.

 

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Correspondência:
Alessandra Lemma
Tavistock and Portman NHS Foundation Trust
120 Belsize Lane
London NW3 5BA
alemma@mac.com

Recebido em 12.11.2014
Aceito em 26.11.2014

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