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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2015

 

DIÁLOGO

 

Como ser um psicanalista contemporâneo? Da extensão do campo clínico à interiorização do enquadre1

 

 

Tradução Abigail Betbedé; IFernando Urribarri

IPsicanalista (Asociación Psicoanalítica Argentina APA), coordenador do seminário de investigação Espacio André Green, na APA, e do Grupo de Estudio de la Obra de André Green, na Asociación Psicoanalítica de Chile; professor de pós-graduação na Universidad de Buenos Aires e maître de conférence associé na Universidade de Paris X (França). Dirige a coleção Pensamiento contemporáneo na EUdeBA (Editorial Universitaria de Buenos Aires) e a publicação, em Les Editions d'Itaque (França), dos livros de André Green

Correspondência

 

 

O que é o contemporâneo em psicanálise?

Agradeço a Nilde e a Leda por suas calidas palavras e por me receberem novamente na prestigiosa e querida SBPSP. Agradeço especialmente a Berta por essa iniciativa. Fico muito contente pelo fato de o convite ser através da Associação dos Membros Filiados. Gosto de conversar com as novas gerações de analistas, principalmente quando se trata de pensarmos juntos sobre o presente e o futuro da psicanálise, sobre os desafios da atualidade e as novas perspectivas.

Para abordar a pergunta do título, “Como ser um psicanalista contemporâneo?”, começarei por desenvolver e comentar o percurso indicado no subtítulo: “Da extensão do campo clínico à interiorização do enquadre”. Procurarei esboçar um panorama histórico e conceitual da mutação sofrida pela clínica psicanalítica - mutação que se relaciona com a emergência da psicanálise contemporânea.

Em primeiro lugar, precisamos definir o que chamamos de psicanálise contemporânea. Constatamos que a expressão psicanálise contemporânea se encontra amplamente difundida em nosso meio. Essa propagação é sintomática e traz consigo um aspecto positivo e outro negativo. Este último se caracteriza por uma banalização ou simplificação, em que acontece uma redução a um lugar comum para falar da atualidade - nesse caso, contemporâneo se torna um termo descritivo, sinônimo do que é atual, no sentido de se tratar das novidades do dia. O aspecto positivo é que introduz em nosso vocabulário uma referência para nomear uma mudança que nos afeta, que diz respeito ao presente de nossa prática e nossa disciplina. O contemporáneo é para mim, antes de qualquer coisa, uma pergunta. É poder questionar a situação atual de crise da psicanálise. É uma pergunta “carregada de futuro” porque nomeia um novo território e abre um horizonte além da crise.

Nesse sentido, contemporáneo é o oposto ao atual e à atualidade. O pensamento contemporâneo é aquele que pensa o presente como história. Busca arrancar a experiência - seja ela clínica, institucional ou social - de seu aprisionamento no atual, de sua redução à temporalidade unidimensional da atualidade. Essa atualidade que se correlaciona com a mídia, as redes sociais e os mercados globais, assim como com a subjetividade consumista, narcisista e superadaptada da pós-modernidade. A psicanálise contemporânea procura reconhecer o mal-estar pós-moderno em sua especificidade (a pós-modernidade é a lógica cultural do capitalismo tardio ou globalizado, como Cornelius Castoriadis e Fredric Jameson assinalam) e construir uma perspectiva transformadora, para renovar a eficácia e vigência do método freudiano. Pensar o presente como história significa, por um lado, postular uma causalidade temporal complexa e, por outro, reconhecer que a história é o território da ação humana, da criação e destruição, portanto da possibilidade de sermos sujeitos individuais e coletivos, e de transformações. De sermos autores da nossa própria história por vir.

Para ser um analista contemporâneo é preciso estabelecer uma distância (a princípio uma distância crítica, que pode tornar-se uma distância criativa) da atualidade. Talvez, uma das primeiras funções do enquadre analítico seja favorecer esse distanciamento da atualidade, sua relativização, gerando assim condições para que diversas temporalidades psíquicas possam se apresentar (e ser potencialmente reconhecidas). Nas análises face a face com enquadre modificado, essa função é atribuída especialmente ao enquadre interno do analista, o garantidor da relação analítica. Este deve contrabalançar o sobreinvestimento da percepção da presença do analista, de modo a favorecer, através das associações, a comunicação com o terreno da representação do que está ausente, do não atual.

A psicanálise contemporânea concorda com renomados historiadores franceses, como François Hartog, que se referem ao presentismo como o predomínio do tempo presente no capitalismo tardio. A atualidade é o sintoma do que eles denominam regime de historicidade da pós-modernidade. A atualidade seria uma modalidade paradoxal de temporalidade, porque ativamente tende a dissolver a complexa heterogeneidade da temporalidade em uma mera sucessão de instantes, em uma espécie de presente perpétuo, sem tensões com o passado nem com o futuro. Evidentemente, esta não é uma questão que ocupa somente os historiadores: é também uma questão da práxis do psicanalista, que lida diariamente com a atualidade e o presentismo em um tipo especial de transferência. Uma transferência limítrofe - quase uma não transferência - em que predomina um funcionamento que segue o modelo do ato, no qual a tendência à atualização e ao ime-diatismo impossibilita a simbolização e a subjetivação.

Essa dimensão historicizante é necessária tanto na situação analítica quanto em relação à situação da psicanálise e seu futuro como disciplina. Nesse sentido, me parece que se trata de assumirmos o presente da psicanálise como parte de um vir a ser aberto, vivo: frente a novos problemas que surgiram, especialmente na clínica, o devir de nossa disciplina exige novas respostas. Essas respostas, que a psicanálise contemporânea procura elaborar, estão apoiadas necessariamente em um trabalho de historicização, isto é, em uma revisão crítica e criativa do legado dos modelos freudiano e pós-freudianos. Essa revisão é necessária por um motivo simples e prático: tais modelos estão em crise. Sua própria evolução como “Escolas” os levou ao dogmatismo teórico e ao reducionismo técnico. Além disso, o surgimento de novos fenômenos, especialmente na clínica, fez com que transbordassem e fossem colocados em xeque.

Há tempos se faz menção a uma situação de crise da psicanálise. Os próprios presidentes da IPA, como Wallerstein e Etchegoyen, colocaram-na em primeiro plano. O tema é vasto; contudo, gostaria de tocar em alguns pontos. Parece-me que vale a pena assumir a ideia de crise a partir do lugar-comum que reconhece nela tanto um problema como uma oportunidade. A crise da psicanálise está relacionada a muitos problemas. Mas todos os membros da comunidade psicanalítica, especialmente os que estão em formação e ingressaram nesses últimos anos no campo da psicanálise, nos encontramos com um horizonte inédito de possibilidades se reconhecemos nesses problemas sintomas de uma imprescindível renovação histórica de nossa ciência. Ainda mais: conforme vamos assumindo essa posição, torna-se visível o legado do avançado movimento de transformação das diversas vertentes da psicanálise contemporânea.

A crise da psicanálise tem várias dimensões. Simplificando, existem fatores externos, que têm a ver com a posição da psicanálise no campo histórico e social, e uma série de fatores internos, provenientes do próprio campo da psicanálise. Sobre os fatores externos, posso dizer que as mudanças socioculturais das últimas quatro décadas levaram a uma modificação da transferência da sociedade em relação à psicanálise. Esse é um problema considerável, que envolve a questão da demanda de análise e nossa inserção profissional e institucional nas universidades, saúde pública e cultura de maneira geral.

A esses problemas, somam-se os que provêm da evolução “interna” da psicanálise, e aqui é interessante poder discernir uma dimensão que, a meu ver, é central. Considero que, se verdadeiramente existe uma crise da psicanálise, não se deve ao fato de que tenhamos mais ou menos pacientes nas diversas latitudes: esse é um problema de ordem profissional. A crise essencial da psicanálise é a crise de seus modelos teórico-clínicos, das “Escolas” freudianas e pós-freudianas.

A psicanálise teve a sorte de contar com pensadores geniais, que a enriqueceram enormemente, mas também teve de enfrentar a criação de Escolas dogmáticas, que levaram a um reducionismo dos modelos originários. Porém, deixando o grave problema do dogmatismo de lado, e considerando os modelos freudiano e pós-freudianos em sua mais pura e criativa expressão, eles não têm respostas suficientes para todas as perguntas da clínica cotidiana pelo simples motivo de que partiram de outras perguntas e focaram em outras experiências. É justamente a consistência interna e a coerência epistemológica desses modelos o que estabelece os recortes e limites de sua perspectiva. Afortunadamente, a psicanálise, como toda disciplina viva, se deparou, por sua própria evolução, com os limites de seus paradigmas.

Incluo-me entre os analistas que consideram esse fato motivo de entusiasmo. Um novo horizonte de problemas, perguntas e explorações possíveis se abre à nossa frente. Assim como continua sendo possível escrever peças de teatro depois de Hamlet ou pensar as contradições do capitalismo depois de Marx, é possível - e apaixonante! - pensar o conflito psíquico e os problemas da transferência depois de Freud, Klein, Bion, Lacan e companhia. Porém, logicamente, um novo horizonte, com um território e um campo de pesquisa inovadores, requer também uma bússola renovada.

Nesse momento seria conveniente definir melhor a ideia de modelos. Epistemologicamente, considerar um modelo teórico-clínico é muito diferente de considerar um autor e sua obra (mesmo se o primeiro se apoia ou se inspira nesta última). Como explica Kuhn, um paradigma, ou um modelo, é uma construção de consenso coletivo que possui dupla dimensão: científica e institucional. É por esse motivo que a obra de Freud, ou de qualquer outro grande autor, é mais ampla e heterogênea que qualquer discurso ou modelo. Portanto, inesgotável e aberta a releituras.

A obra de Freud trata de quase todos os temas imagináveis; existe, porém, um modelo teórico-clínico freudiano que tem eixos e recortes específicos. É o modelo do tratamento das neuroses de transferência. Freud incentiva seus discípulos a avançar e comenta a clínica dos problemas que vão além das neuroses, como no caso Schreber, mas nunca pretende ter desenvolvido um método que se possa estender além das neuroses. Ou seja, os neuróticos são os casos paradigmáticos.

É importante reconhecer que este modelo tem uma coerência interna, que articula uma metapsicologia centrada no conflito intrapsíquico e uma técnica de análise da transferência neurótica via associação livre e atenção flutuante. O modelo funciona bem dentro desses limites. Além deles, permite aventurar-se, mas não sustenta a mesma consistência. Graças a isso, houve grandes autores pós-freudianos que foram inovadores - não podemos dizer que seus escritos sejam apenas extensões ou comentários da obra de Freud. Efetivamente, devemos a Melanie Klein, Bion, Lacan e outros o desenvolvimento de temas e conceitos que não se encontram no modelo freudiano.

É interessante observar que existe um desenvolvimento com continuidades e rupturas entre as contribuições freudianas e pós-freudianas - um desenvolvimento extremamente enriquecedor. Mencionarei algumas mudanças essenciais: a metapsicologia pós-freudiana introduz e prioriza um eixo intersubjetivo, que em certas latitudes é conceitualizado como relações de objeto e, em outras, como uma tópica intersubjetiva da constituição do sujeito. O polo, ou vértice, pulsional freudiano é substituído pelo do objeto (objeto interno, Outro etc.). Enquanto Freud coloca a questão da pulsão e a possibilidade, ou não, do seu encontro com o objeto e de que desenvolva um funcionamento representativo, Melanie Klein postula a existência de uma relação da pulsão com o objeto, do self com o objeto, desde o início. Essa contribuição é extraordinária, porque abre a possibilidade de uma nova conceitualização mas principalmente de uma nova clínica. Devemos a ela e seus discípulos - assim como a outros autores pós-freudianos - a expansão dos limites da analisabilidade. O funcionamento psicótico passou a ser a referência de um novo paradigma. Inclusive os neuróticos e crianças (objeto de uma inovadora ampliação do método analítico) serão vistos através do prisma das psicoses. As noções de posição esquizoparanoide ou núcleo psicótico são eloquentes.

Graças à psicanálise pós-freudiana existe tratamento analítico para as psicoses e as crianças (sabemos que Freud se aventurou com o pequeno Hans, mas não foi uma cura analítica, já que ele se valeu das anotações do pai). Houve uma ampliação maravilhosa, e essas mudanças trouxeram consequências inicialmente positivas, e também algumas consequências limitantes, como acontece em todo processo dialético de evolução de uma disciplina. Refiro-me principalmente à corrente pós-freudiana anglo-saxã, em razão de sua importância na SBPSP; porém, exemplos semelhantes poderiam ser dados sobre outras correntes, como a lacaniana.

A coerência interna do método pós-freudiano levou à articulação do eixo metapsicológico intersubjetivo, centrado no objeto, com uma técnica modificada. Refiro-me ao conceito de contratransferência, que foi introduzido quase simultaneamente por H. Racker e P. Heimann. Como já mencionei, o problema das Escolas é o reducionismo dogmático. Nesses casos, observamos que, junto com uma inclinação à substituição e exclusão do modelo freudiano, existe uma reivindicação quanto a quem é o “herdeiro de Freud” ou o mentor da “verdadeira psicanálise”. Por exemplo, a noção de contratransferência foi tornando-se um conceito de referência da teoria da técnica, impondo uma noção de contratransferência total ou global, que tendeu a substituir a atenção flutuante e englobar o funcionamento mental do analista.

Disso deriva uma técnica interpretativa esquemática, como assinalado por uma kleiniana honesta, Liz Spillius, com quem tive o prazer de compartilhar quatro anos de trabalho em um grupo de pesquisa da IPA sobre contratransferência e casos graves, coordenado por André Green. Outros autores críticos, como Christopher Bollas, descrevem essa técnica como uma espécie de tradução simultânea, que substitui mecanicamente o conteúdo manifesto por um suposto conteúdo da fantasia. Um eixo dessa técnica é o que conhecemos como uso da contratransferência, alicerçado em uma interpretação um tanto abusiva da ideia de comunicação de inconsciente para inconsciente.

Acontece que, em sentido estrito, o uso da contratransferência é uma ilusão. É um lugar comum, ou ideologema, que expressa a ideia de que o analista poderia fazer uso quase direto, ou imediato, dela. Como se os afetos contratransferenciais, com suas turbulências e ruídos perturbadores, pudessem ser automaticamente traduzidos. Encontramos essa ideia explicitada em numerosas vinhetas e na escrita de autores reconhecidos como Money-Kyrle, para citar apenas um exemplo. Em questão de segundos ou minutos, o analista seria capaz de uma dupla operação: traduzir em palavras sua contratransferência e utilizá-la reformulada como interpretação transferencial.

Podemos dizer que a imagem do analista freudiano se assemelha à de um detetive ou de um arqueólogo; no entanto, em suas formas estereotipadas - favorecidas pelo ideal do cirurgião e o modelo do espelho, que deixa a própria subjetividade de lado -, torna-se um analista apático, silencioso, a figura de um pai autoritário. Em contraste com isso, o analista pós-freudiano desliza para um ideal materno (continente e nutricio) que, à custa de priorizar o pré-verbal, parece muitas vezes aproximar-se da figura de um “médium”.

O fundamento teórico da técnica do uso da contratransferência surgiu do valioso conceito de identificação projetiva, definido por Melanie Klein como um mecanismo de defesa arcaico, intersubjetivo, de expulsão da destrutividade no objeto. Depois, Bion o reformulou contemplando uma modalidade de comunicação pré-verbal. Finalmente, nesse modelo pós-freudiano, a transferência é redefinida conforme uma perspectiva intersubjetiva centrada justamente na identificação projetiva (deslocando a ideia freudiana de transferência intrapsiquica, que cria um “clichê” associado à figura do analista). Como consequência, a contratransferência é compreendida (e sistematicamente interpretada) como ressonância inconsciente do analista a essa projeção arcaica, promovendo uma interpretação aprioris-tica do conteúdo pré-verbal dela, segundo um roteiro dual mãe-bebê, na trilha de um ideal “continente”. Penso que as ideias originais de Klein e Bion enriqueceram a teoria e a técnica psicanaliticas; porém, ao serem esquematizadas na doxa pós-kleiniana como explicação central da transferência e da contratransferên-cia, tornaram-se parte de um olhar e de uma técnica reducionistas. Dessa forma, desconsideram-se importantes aspectos da contratransferência, da sua complexidade, da sua relação com outros mecanismos de defesa, com outros conflitos do paciente ou do próprio campo analítico que não necessariamente (ou sequer principalmente) se relacionam com o arcaico pré-verbal nem com um imaginário dual. Como escrevera Green (1986/1990b) em um artigo de homenagem e discussão de Bion: por acaso o pai não sonha (o filho)? O sonhar, ou réverie, paterno não deveria ser incluído? Como superar o aprisionamento inerente à relação dual sem considerar o pai desde o inicio?

 

O pensamento clínico contemporâneo

Discutíamos com Green que uma definição interessante para a psicanálise contemporânea seria que se trata de um programa coletivo de pesquisa. Precisamos transformar nossa práxis ou grande parte do que fazemos em nossos consultórios em material de troca entre colegas, relacionando a algumas poucas, porém fundamentais, perguntas compartilhadas sobre os modelos específicos de funcionamento das estruturas limítrofes e estruturas não neuróticas (aquelas que não podemos explicar nem com o modelo neurótico nem com o modelo psicótico). E assim poder pensar, com base nesses eixos teóricos ou aportes teóricos novos, em ferramentas clínicas e técnicas para trabalhar com esses pacientes.

Depois desse panorama, comentarei agora alguns assuntos particulares. Considerada como programa de pesquisa, a psicanálise contemporânea não é um espírito do tempo ou algo estabelecido, mas um monte de psicanalistas - alguns que nos precederam e fizeram contribuições extraordinárias, inaugurando as perspectivas que mencionarei a seguir.

É possível considerar que a psicanálise contemporânea emerge da confluência de três grandes movimentos: um movimento latino-americano, um movimento de raiz inglesa e outro com sede na França.

As primeiras contribuições são as de Winnicott e o Middle Group,2 na Inglaterra, com suas ideias sobre o transicional, o funcionamento borderline, a distinção entre contratransferência e atitude profissional, mas principalmente pela posição intelectual intermediária. Eles inauguraram a possibilidade de um pensamento independente, que não ficou refém da guerra entre annafreudianos e kleinianos. Por outro lado, há o movimento de ruptura dos autores pós-lacanianos. Trata-se dos primeiros e principais discípulos de Lacan que romperam com ele nos anos 60: Anzieu, Laplanche, Pontalis, Green, Aulagnier, Castoriadis, Rosolato, Perrier, Valabrega, junto com outros analistas que trabalharam com eles, como Joyce McDougall e Julia Kristeva, que criaram um movimento transversal, instituindo um freudismo contemporâneo. Por último, mencionarei a corrente latino-americana, permitindo-me um único momento de orgulho nacional, citando os argentinos pioneiros desse movimento: José Bleger e o casal Baranger.

Estes últimos se formaram na época da hegemonia kleiniana na Argentina, mas, como discípulos de Pichon Rivière, conservaram seu espírito heterodoxo. Representam uma mudança geracional antidogmática, que se torna nos anos 70 uma verdadeira renovação freudiana pluralista. Bleger, infelizmente, faleceu muito jovem, mas teve a oportunidade de escrever seu inovador artigo “Psicanálise do enquadre analítico” - entre outras contribuições valiosas. Nesse artigo, coloca questões que transbordam os modelos kleiniano e pós-kleiniano. Interessa-se pelo papel do narcisismo (Freud) e do transicional (Winnicott). Para definir epistemologicamente o enquadre, ele se apoia em Bachelard e Althusser, as mesmas referências que serão utilizadas pelos autores franceses, como Green, algum tempo depois. Introduz o conceito de enquadre, diferente de contrato, como uma dimensão terceira -irredutível à transferência e contratransferência. Por sua parte, os Baranger - amigos e interlocutores de Bleger - introduzem a noção de campo analítico. Reformulam o processo analítico conforme um modelo terciário: à transferência e contratransferência, somam a noção de campo como criação singular de cada par analítico. Em seu livro publicado em 1967, reivindicam sua filiação freudiana enriquecida pelas contribuições de Klein e Lacan, com os quais tiveram contatos pessoais. Nos anos 70, eles foram os protagonistas de um retorno a Freud, recuperando o legado freudiano dos pioneiros e fundadores da psicanálise argentina que o militantismo kleiniano tinha eclipsado (sem mencionar o lacanismo). Esse movimento vai encontrar ecos e expressões originais no Brasil e no Uruguai.

Um reconhecido psicanalista e historiador nova-iorquino, Martin Bergman, propôs situar o fim da era das Escolas, o ocaso do pós-freudismo, no decisivo congresso internacional da IPA que teve lugar em Londres no ano de 1975. O tema do congresso é a confrontação entre o que perdurou e o que mudou na psicanálise. Leo Rangell fez o rapport oficial sobre as permanências, junto com Anna Freud, que esteve presente na sala sustentando suas posições. Um jovem André Green apresentou o rapport que dava conta e reivindicava as mudanças.

Pessoalmente, gosto da proposta de Bergman; concordamos com a necessidade de historicizar, e portanto de periodizar, e ambos consideramos André Green, desde sua intervenção nesse congresso (cujo texto se tornou o capítulo 2 do livro Loucuras privadas [1974/1990a]), um autor paradigmático, representativo de um amplo movimento contemporâneo. Muitos desses colegas já não estão entre nós, mas nos legaram a maravilhosa oportunidade de articular, de tecer e elaborar suas contribuições, que surgiram de perguntas comuns, dos desafios cotidianos de uma clínica em que predominam novos casos paradigmáticos, os casos-limite (ou estruturas não neuróticas). Nesse sentido, o legado principal da primeira geração de autores contemporâneos para as novas gerações é a matriz intelectual freudiana, pluralista, complexa, estendida e cosmopolita. Essa matriz constitui uma bússola para explorar o campo analítico atual.

Esquematicamente, podemos descrever essa matriz de pensamento psicanalítico como uma síntese que articula os fundamentos freudianos (especialmente a metapsicologia e o método analítico), revisados segundo uma leitura “crítica, histórica e problematizadora” (como diz Laplanche), com uma apropriação antidogmática e criativa das grandes contribuições pós-freudianas. Ambos direcionados ao - e colocados à prova no - tratamento das estruturas não neuróticas, definidas como os novos casos paradigmáticos.

Voltando a 1975, uma primeira questão a ser destacada do rapport de Green é que ele traz um olhar histórico da psicanálise, mostrando como a evolução da prática e da teoria deram lugar a três movimentos, aos que correspondem três modelos teóricos diferentes. São descritos sem ser nomeados, mas se trata da distinção desenvolvida aqui sobre os modelos freudiano, pós-freudiano e contemporâneo. A segunda questão levantada por Green é que temos um novo paciente-problema, os casos-limite. Coloca também que para a psicanálise não é interessante entender esses pacientes como borderline, uma definição que já circula na época e que carrega o peso do olhar da psiquiatria norte-americana e de uma perspectiva psicopatológica.

Green argumenta que se trata de abordar as questões que esses pacientes suscitam repensando os limites da analisabilidade; que se trata de dar conta do funcionamento específico dos pacientes não neuróticos dentro do enquadre e do campo analítico - sem priorizar o enfoque psicopatológico, mas investigando o funcionamento representativo no enquadre.

Esses dois termos, representação e enquadre, passam a constituir os grandes eixos conceituais do marco teórico da investigação contemporânea. O processo de representação é definido como a função básica da psique. Função de criação (e destruição) de sentido, determinado pelas relações com as pulsões e os objetos. Isso leva a uma ampliação e aumento da complexidade da teoria da representação, para abarcar o corpo, a alteridade e a realidade. Esse olhar outorgará um lugar de destaque ao afeto e ao irrepresentável. Surge um conceito de psique heterogênea, processual, poiética e complexa.

Freud inventou empiricamente o enquadre analítico, mas nunca teorizou sobre ele nem o fundamentou conceitualmente. Essa teorização é estritamente contemporânea: iniciada por Bleger (com o antecedente da situação analítica de Winnicott), segue com Green, Donnet, Laplanche, Baranger, Roussillon, dando lugar a sua elaboração metapsicológica, para poder dar conta de suas propriedades assim como de suas possíveis variações. A introdução do enquadre no pensamento clínico inaugura uma concepção terciária do processo analítico, definido pelo tripé enquadre/transferência/contratransferência.

Green sustenta três importantes ideias sobre o enquadre. A primeira delas, que poderia ser considerada epistemológica, está relacionada ao fato de a criação empírica do enquadre por Freud seguir o modelo teórico implícito do sonho e sua interpretação. Daí que se estabeleceram para o paciente condições que se aproximam física e psiquicamente às do sonhador: posição deitada, redução de estímulos externos, mobilidade suspensa e fixação da percepção. A segunda ideia, que chamarei metodológica, traz o enquadre como um aparelho de linguagem, cuja principal função é levar a produção psíquica rumo à linguagem. Dessa forma, a transferência sobreinveste, pulsionaliza o discurso, e cria condições para que a associação livre se torne um meio de acesso ao inconsciente. Isso é condensado na fórmula: “A palavra analítica desenluta a linguagem”. A terceira ideia, que poderíamos denominar semiótica, é que o enquadre é uma matriz de simbolização polissêmica capaz de conjugar diversas lógicas: a lógica do um (narcisismo), dual (mãe e filho), transicional e triangular. Consequentemente, o analista contemporâneo deve ser capaz de representar diversas posições (que não se reduzem às opções excludentes do pai representante da lei ou da mãe nutrícia/continente).

Retomando a questão da analisabilidade, postula-se que é consubstancial ao funcionamento representativo. Seus limites estão relacionados com os limites do processo de representação. Por outro lado, desvinculada do vértice psicopatológico, a analisabilidade não se define pelo diagnóstico diferencial, não se restringe à questão de um paciente poder ser individualmente, intrapsiquicamente, analisável. Ela será definida em relação a cada dupla analítica singular, integrada por um determinado paciente e um determinado analista, em um determinado momento e lugar - assim como à possibilidade de estabelecer uma relação analítica e compor o objeto analítico (Green), que depende da criação conjunta do enquadre analítico e de sua sustentação, com ou sem variações.

O objeto analítico nada tem a ver com as relações de objeto. Por um lado, esse conceito corresponde à epistemologia francesa (Bachelard, Althusser), que propõe que uma disciplina científica se define pela constituição de um objeto científico próprio. Bleger, Green e outros introduziram a ideia do estatuto epistemológico do enquadre, visto ser a condição para a constituição do objeto analítico e sua abordagem - que, em nossa disciplina, combina conhecimento e transformação. Por outro lado, o objeto analítico se constitui, segundo Green, pelo “encontro dos duplos do analista e do paciente”, sinalizando que apenas algumas áreas da psique, e não sua totalidade, entrarão realmente em contato e se relacionarão no campo analítico. Dessa forma, o objeto analítico, investigado e tratado pela psicanálise, é um objeto “terceiro”, criado pelo encontro e pela comunicação no enquadre.

Os limites da analisabilidade estão relacionados com os limites do enquadre, com a possibilidade de colocar em xeque o enquadre, que para esses autores não passa pelo protocolo formal de pautas que definem o contrato entre um paciente e um analista. Green faz uma distinção entre o estojo e a matriz ativa, invertendo a maneira habitual de definir quais são as constantes e variáveis do enquadre. Afirma que o constante não é o horário, a posição do paciente e os honorários, que são parâmetros operativos mais ou menos estáveis. Esses parâmetros são as variáveis do enquadre que visam dar sustentação à relação analítica. A constante do enquadre é seu núcleo dinâmico: a matriz dialógica. Uma matriz ativa composta pela associação livre e a atenção flutuante. Esse núcleo de comunicação analítica, estabelecido através da linguagem, é o que define uma relação analítica e, portanto, a identidade de um analista trabalhando como tal com outro ser humano como paciente. A psicanálise não se define pelo número de sessões, nem pelo acerto pontual dos honorários, nem por considerar se o paciente deita no divã ou senta na poltrona.

Não estou dizendo que essas variáveis não sejam importantes. Pelo contrário! Apenas estou dizendo que a maneira de compreendê-las muda quando focamos e priorizamos a matriz dialógica. Dito de outra forma, para que modificaríamos o enquadre? Para que o paciente pague melhor? Para que deite mais tranquilo? Para que seja pontual? A resposta é que a modificação do enquadre só se justifica se é para estabelecer ou favorecer o trabalho de representação do paciente.

A introdução do enquadre como conceito é consequência de uma transformação da técnica. Bleger escreve aquele artigo motivado por suas diferenças com a técnica kleiniana, que considera qualquer alteração ou modificação do enquadre uma ruptura (destrutiva), interpretada como um ataque a ele (e muitas vezes ao analista). Bleger não ignora que o analista possa sentir-se atacado, mas pensa que isso não justifica que o analista interprete a intenção consciente ou inconsciente do paciente como sendo a de atacá-lo, atacar o enquadre e destruí-lo. Entre outras coisas, porque essa seria uma interpretação otimista demais; porque a verdade é que os pacientes graves nem sempre estão tão atentos ao enquadre, querendo destruí-lo (às vezes, estão; muitas outras, não). Nossos autores constataram que essa interpretação sistemática, por um lado, desconsidera outras interpretações válidas e, por outro, não produz as transformações desejadas. O que essa interpretação sistemática da ruptura do enquadre como ataque produz? Resposta: pacientes superadaptados.

Nessa nova perspectiva, o enquadre se torna um analisador de analisabilidade. Isto é, conforma um dispositivo metodológico com uma dimensão reflexiva que permite avaliar seu funcionamento e sua disfunção. Quando esta última acontece e o enquadre não consegue constituir-se ou sustentar-se como um espaço potencial para a apresentação e simbolização do conflito intrapsíquico, revela-se uma problemática pulsional relacionada ao encontro e desencontro com o objeto transferencial.

Nesse contexto, a contratransferência não é mais entendida da forma tradicional. Há uma mudança, digamos, tríplice. A primeira mudança é que a escuta, o trabalho psíquico do analista, volta a ser muito mais abrangente que a contratransferência. A escuta supõe operações e processos heterogêneos que não devem agrupar-se conceitualmente nem ficar subordinados tecnicamente à contratransferência. Aqui surgem as noções de pensamento clínico e enquadre interno do analista. A segunda mudança é que a contratransferência deixa de ser um produto exclusivo do mecanismo de identificação projetiva e deixa de ser imaginariamente utilizável de forma imediata. Seu caráter de obstáculo e ruído é restabelecido: a contratransferência é uma exigência de trabalho psíquico para o analista. Se existe comunicação de inconsciente para inconsciente, é no sentido de que a transferência afeta o analista provocando uma contratransferência, que requer uma perlaboração (como Laplanche traduz a elaboração freudiana, na condição de trabalho através das resistências). Se o analista é paciente, logrará enriquecer sua compreensão do material. Ou seja, o analista precisa registrar a contratransferência e transformar o ruído, a dor psíquica, a irritação, a dificuldade de concentração em informação para seu pensamento clínico - informação que faça parte do background de suas interpretações. Não existe nem tradução imediata nem uso interpretativo direto da contratransferência. A função do analista é estabelecer as mediações repre-sentacionais (trabalho de figurabilidade das representações de coisa) e pré-conscientes, que as tornam pensáveis e comunicáveis através da linguagem.

Pontalis, McDougall e Green escreveram artigos interessantes sobre os diversos tipos de contratransferência. Distinguiram uma contratransferência prévia, uma ante-transferência, envolvida na criação do campo de disponibilidade do analista para receber o paciente que está chegando; existe uma contratransferência em obra (em andamento), que faz parte de um processo em curso; também há modalidades de conluio inconsciente, que podem causar bloqueios do processo, chamadas de bastión pelos Baranger e de posição contratransferencial por Pontalis.

 

O trabalho psíquico do analista: o enquadre interno e os processos terciários

Foram descritas diversas operações relacionadas ao trabalho psíquico do analista como novo conceito-marco do pensamento clínico, incluindo a escuta, a contratransferência, a função do enquadre, o trabalho de figurabilidade, a imaginação analítica, o arquivo ou memória pré-consciente do processo analítico, a teorização flutuante de Piera Aulagnier, e assim por diante. Em termos de evolução histórica, podemos pensar que a introdução do conceito de enquadre levou a uma reformulação do funcionamento do analista, considerando o pensamento clínico e o enquadre interno como sede de suas diversas operações e como garantia da matriz ativa, para além das variações do dispositivo.

Em uma newsletter da IPA (1996), foi editado um diálogo entre Wallerstein e Green sobre a crise da psicanálise e o common ground.3 Nele, Green comenta que o principal desafio para a psicanálise está relacionado com a sobrevivência de um tipo singular de funcionamento psíquico do analista em sessão, sublinhando que esse trabalho psíquico deveria ser considerado em toda sua importância e especificidade, com estatuto próprio comparável ao trabalho do sonho e ao trabalho do luto. Assim, nos aproximamos do enquadre interno do analista, que requer que coloquemos ênfase na participação do pré-consciente do analista, segundo Green. Ele diz que, se fosse necessário situar em algum lugar um aspecto, não o único, da especificidade do trabalho psíquico do analista com pacientes graves, provavelmente pensaríamos que existe um duplo trabalho relacionado com a figurabilidade e com o pré-consciente.

Ambos os processos do analista visam conter e transformar uma dinâmica transferencial que transborda a capacidade representacional do paciente. Com pacientes ou situações-limite não podemos dar por certa a existência de uma trama representacional latente (pré-consciente e inconsciente) para organizar o discurso manifesto. É por esse motivo que as intervenções analíticas não operam sobre as representações de forma direta, mas em direção à representação. É necessário criar juntos uma trama discursiva dialógica na qual o paciente possa alicerçar seu pensamento. Essa trama procura, antes de qualquer coisa, colocar em palavras ou tornar verbalizável a produção psíquica; em seguida, busca ampliar e articular imaginariamente seus conteúdos, estabelecendo suas “encenações” com a introdução de um registro intermediário diferenciado da experiência vivida, que permite ao paciente observar-se “de fora” (outro lugar, outro tempo) e ao analista expressar seu ponto de vista sem ser invasivo. A evolução dessa trama ficcional implica a invenção de figuras metafóricas (“o herói”, “a criança gulosa”, “a bruxa má”) para dar conta de certos funcionamentos repetitivos.

O trabalho de imaginação analítica se escora na figurabilidade, que é uma função de ligação própria das representações de coisa. Implica uma dinâmica “em duplo” (narcísica) que procura uma espécie de complementaridade sujeito-objeto para compensar certas falhas precoces dos objetos primários. Objetos cujos traços traumáticos no sujeito são justamente aquelas representações de coisa (ou de objeto, como Freud também as chamou) inconscientes que bloqueiam o processo de simbolização. Esses traços dolorosos são incapazes de ligar as pulsões, colocando em xeque o princípio do prazer e outorgando à repetição sua dimensão de desligadura mortífera.

O irrepresentável invade a sessão analítica. O enquadre sofre uma ruptura. Nessa altura, talvez resulte mais evidente que explicar esses movimentos como organizados “teleologicamente” para atacar ou produzir uma ruptura do enquadre impede enxergar uma dimensão essencial da transferência limítrofe: aquela em que o paciente atua e compartilha algo de sua loucura com o analista em sessão. Da maneira que é possível para ele. Se pudesse fazê-lo de outra forma, provavelmente teria ido ao cinema. Não trouxe um sonho nem associações livres. Não sabe nem pode brincar de psicanálise. Porém, se nós sobrevivermos ao impacto e desconcerto de seus modos de expressão, poderemos reconhecer que existe um convite potencial para outros jogos analíticos possíveis.

Obviamente, não é obrigação atender pacientes difíceis. A um paciente com essas características, podemos dizer: “Olha, acho que não estou conseguindo trabalhar bem com você” e sugerir, por exemplo, que veja outro colega. O importante como comunidade analítica, em nível institucional, é que essa legítima liberdade que os analistas têm de escolher com quais pacientes querem e podem trabalhar não se transforme em um critério oficial sectário ou rígido sobre se esses pacientes são analisáveis ou não. Ou se o trabalho que um analista desenvolve com eles é ou não é psicanálise, conforme um critério a priori, centrado no formal.

Muitos desses pacientes vêm porque precisam queixar-se com alguém e têm absoluta convicção, um pensamento concreto ou hiper-realista, de que, da mesma forma que o trauma é imodificável (já que não podemos mudar materialmente o passado, ou seja, não podemos voltar no tempo para evitar este ou aquele acontecimento), o futuro está determinado e constitui um destino inevitável de sofrimento.

Quanto ao papel do pré-consciente e dos processos terciários do analista, podemos destacar uma vertente da técnica contemporânea que numerosos autores, como Aulagnier, Laplanche, Green, Baranger e Mom, coincidem em denominar historicização. Encontra inspiração na construção freudiana (que se direciona às lembranças pré-verbais), mas visa um tipo de amnésia transferencial, própria do tratamento analítico, produzida por mecanismos de defesa não neuróticos. A historicização procura favorecer a dimensão temporal da simbolização. O trabalho de historicização demanda do analista o papel de arquivista da análise, que implica uma memória pré-consciente do processo.

Há duas noções complementares que procuram dar integração e articulação às diversas funções do analista: o enquadre interno, cujo funcionamento supõe os processos terciários. Green introduziu, em 1971, a ideia de processos terciários - processos dinâmicos que colocam em relação processos primários e processos secundários, gerando uma complementaridade ótima, na qual os primários dinamizam os secundários, que por sua vez aportam certa articulação sem rigidez àqueles. Green define essa ideia como condição para simbolização, segundo um esquema terciário ligação/desligamento/religação. Estende essa ideia do intrapsíquico para o intersubjetivo, para da mesma maneira dar conta dos processos de objetalização e desobjetalização na relação transferencial. Em última instância, trata-se de processos inerentes à escuta analítica e da possibilidade de uma articulação dinâmica, complementar e fecunda de elementos ou instâncias ou dimensões heterogêneas. Constituem o núcleo dinâmico e criativo do enquadre interno do analista, que é o fundamento do pensamento clínico.

Dito de forma simples, como foi introduzido por Green, o enquadre interno tem sua origem na experiência da própria análise. O importante é que, apesar de seu estatuto “didático”, tenha sido uma análise pessoal, na qual tenha sido possível experimentar a importância da transferência, de sua interpretação e, evidentemente, da comunicação e do núcleo dialógico do enquadre. Resultando em sua interiorização, ou seja, no estabelecimento da capacidade reflexiva e continente para poder continuar a análise como autoanálise.

Quando se trata de sessões face a face, o enquadre interno do analista resulta fundamental. Essa modificação do enquadre se deve à dificuldade do paciente em tolerá-lo - muitas vezes, ele não suporta nem a disposição física nem atender à regra fundamental da associação livre. A matriz dialógica é colocada em xeque por um funcionamento limítrofe com predominância de movimentos projetivos nos quais o investimento da presença visual do analista - ou seja, o sobreinvesti mento da percepção - opera como contrainvestimento da representação. Antes que tornar consciente o inconsciente, trata-se de tornar pensável o conteúdo manifesto, aquilo que é exteriorizado pelo paciente. A aposta será da ordem de conseguir a interiorização na atualidade da sessão analítica. Para isso, o enquadre interno do analista serve, em primeiro lugar, para revelar ou detectar as falhas de organização egoica do paciente e suas bases narcísicas primárias (o que Green denomina estrutura enquadrante). Em segundo lugar, serve como complemento para dar amparo ao paciente como matriz pré-consciente que busca estabelecer relações entre os pensamentos que o trabalho do negativo desliga. Em terceiro lugar, o espaço mental do analista se abre oferecendo como continente o diálogo, com o reconhecimento do seu estatuto metafórico, mesmo o paciente não sendo capaz de reconhecê-lo por muito tempo. O enquadre interno procura enquadrar, estabelecendo relações graças aos processos terciários e conferindo continuidade graças a seu investimento, a produção discursiva do paciente.

Green falou novamente sobre as mudanças e desafios da psicanálise na abertura de um congresso no ano 2000, na sede da Unesco em Paris. Longe de acreditar no declínio final da psicanálise, afirmou que existia uma grande oportunidade para renovação, se reconhecêssemos que o “reinado do divã” tinha acabado. Disse que o divã - isto é, o dispositivo clássico - tinha reinado por quase 100 anos e devia agora dividir seu território com a poltrona, ou seja, com o dispositivo face a face. Hoje, trabalhamos quase que cinquenta por cento do tempo (ou mais) com enquadres modificados.

Para ele, essas modificações do enquadre tornam o processo analítico possível. Afirma que o essencial do método, a matriz ativa, continua presente. Em toda cura, com enquadre clássico ou modificado, trata-se de reconhecer um conflito de raízes inconscientes e realizar um processo de elaboração e subjetivação através da palavra, com o qual o ego será capaz de autotransformar sua relação com seus impulsos pulsionais, fantasias e identificações. O dispositivo formal é secundário, subordinado em relação à constituição do objeto analítico. É a relação analítica e a comunicação associativa o que determina a qualidade espaçotemporal do processo. Dito de forma bem-humorada: sabemos que um divã não produz um analisando, nem estar sentado em uma poltrona define um analista. As mudanças formais do estojo são muito importantes e merecedoras de nossa atenção por suas consequências dinâmicas, mas para estudá-las em profundidade precisamos deixar de lado o falso dilema “psicanálise x psicoterapia”. Um analista contemporâneo não se define por sua identificação com as formas variáveis do contrato analítico, mas por sua capacidade para trabalhar com a matriz ativa nas diversas situações transferenciais - principalmente naquelas em que seu enquadre interno precisa transformar situações-limite em analisáveis. Também podemos afirmar que em virtude do pluralismo de seus referenciais e de sua independência das capitais teóricas, um analista contemporâneo é essencialmente cosmopolita. Talvez possamos considerar como exemplo esse esforço que fazemos hoje aqui para nos comunicarmos, criando uma ponte entre dois idiomas. Muito obrigado pela atenção.

 

NOTAS

1 Conferência organizada pela Associação dos Membros Filiados ao Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), e proferida na sede da SBPSP em 7 de março de 2015.

2 O Independent Group (ou Middle Group) é um grupo antidogmático surgido na Sociedade Britânica de Psicanálise diante do conflito entre os grupos liderados por Anna Freud e Melanie Klein. Entre seus autores, estão D. W. Winnicott, W. R. D. Fairbairn e Ch. Bollas.

3 Common ground (terreno comum) se refere à ideia de R. Wallerstein de que a crise da psicanálise se deve à fragmentação teórica em diferentes Escolas, e que a clínica poderia ser um terreno comum para superar esse estado.

 

Referências

Green, A. (1990a). El analista, la simbolización y la ausencia en el encuadre analítico. In A. Green, De locuras privadas (J. L. Etcheverry, Trad.). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1974)        [ Links ]

Green, A. (1990b). La capacité de rêverie et le mythe étiologique. In A. Green, La folie privée. Paris: Galimard. (Trabalho original publicado em 1986)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Fernando Urribarri
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zonaerogena@yahoo.com

Recebido em 12.03.2015
Aceito em 23.03.2015

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