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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.1 São Paulo jan./mar. 2015

 

RESENHA

 

 

 

W. R. Bion: a obra complexa

 

 

Claudio Castelo Filho

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), doutor em Psicologia Social e professor livre docente em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP). Autor do livro O processo criativo: transformação e ruptura (Casa do Psicólogo, 2003) e de trabalhos científicos publicados no Brasil e em periódicos científicos e livros na Itália

Correspondência

 

 

Autores: Arnaldo Chuster, Gustavo Soares & Renato Trachtenberg
Editora: Sulina, Porto Alegre, 2014, 230 p.
Resenhado por Claudio Castelo Filho

 

 

O livro W. R. Bion: a obra complexa (e complexa não implica ser confusa ou complicada) é destinado àqueles que desejam expandir e repensar as ideias de Bion com as quais já teve contato. É um trabalho de reflexão inovadora a partir de Bion. Não é mais um compêndio que se propõe a “explicar” as ideias de Bion para neófitos, e sim uma obra ousada que não está submetida à autoridade desse autor pelo qual os autores tem uma profunda consideração, nem à de Freud, de Klein ou de outros grandes da área. Os autores trazem novidades de seus próprios fornos: propostas teóricas, expansões, considerações, inovações e mesmo revisões de construtos bionianos. Trata-se, portanto, de um trabalho valioso e de grande interesse para quem trabalha nesse campo e percebe o grande impacto e importância das ideias de Bion para a psicanálise. Não obstante, mesmo os iniciantes, ao tomar contato com a obra de Bion, podem ler algumas passagens do livro, vivenciar experiências emocionais que poderão ajudá-los não a entender a palavra ou letra de Bion, mas sim sua música, seu espírito. Tomarão contato com seu potencial criativo, com uma linguagem de êxito/consecução que nos lança num futuro de infinitas possibilidades.

Os autores correlacionam a obra de Bion com diversos conceitos da física e da filosofia, como a Teoria do Caos, o Teorema de Godel e o Princípio da Incerteza.

Consideram que a análise está dentro das pessoas como “habilidade humana potencial”, que faz que o paciente se interesse mais pelo processo analítico e pelo conhecimento de sua mente, em direção diversa do conceito clássico de psicanálise como tratamento proveniente do modelo médico, alterando-o plenamente. A psicanálise auxiliaria no desenvolvimento dessa habilidade potencial. Sendo assim, não se pode oferecer análise a uma pessoa como se fosse remédio. O analista trabalharia para trazer à luz esse potencial, desenvolvendo-o.

Propõem uma ficção científica da história da evolução dos primatas. Nela, os hominídeos acabaram produzindo bebês cada vez mais inacabados e imaturos como uma maneira de diminuir a influência do inato e aumentar a capacidade de aprender com a experiência. Associam essa ficção à ideia de preconcepção de Bion. Esta, em seu trajeto de realização para gerar uma concepção, conservaria uma “lembrança” dessa história, que seria a etapa pré-natal movimentada pela imaginação radical. O pré-humano se “imaginou” humano, e as alterações produzidas por essa imaginação levaram a mudanças extraordinárias que romperam com a ordem animal que os inseria na natureza.

Em consequência, os bebês neotênicos, por conta de suas imaturidades, passaram a depender cada vez mais do grupo, que se tornou tão fundamental que o pré-humano mudou-se da natureza para o grupo, e disso emergiu uma sociedade.

Como decorrência, a sobrevivência da espécie teria exigido coesão da coletividade e uma socialização integradora para que os bebês fossem cuidados. Assim sendo, a preconcepção contemplaria não somente o seio que alimenta, mas a mente de uma mãe que leva o bebê ao seio, os pais unidos que garantiriam a existência desse seio, a sociedade que protege os pais e, por fim, a manutenção de uma mente criativa capaz de gerar novas soluções à medida que a sociedade vai se tornando mais complexa.

Dessa evolução, o mais relevante teria sido a criação de uma nova forma de se comunicar, por conta da facilidade de emitir sons variados: postura, gestos, alerta, afetos etc. traduziram-se em palavras. A linguagem digital simbólica seria o acontecimento mais decisivo da espécie.

A preconcepção seria uma expectativa vaga de que no futuro exista um objeto psiquicamente gratificante e onipotente, capaz de satisfazer e preencher a incompletude humana.

Considerando o Princípio de Complexidade, verifica-se que os fatos absolutos (O) de uma sessão nunca podem ser conhecidos - eles evoluem como processo de conhecimento na transitoriedade dos fenômenos.

Os autores propõem uma grade negativa ao considerarem que os elementos beta formariam um gradiente de manifestações clínicas, de modo similar aos elementos alfa, a partir da observação de pacientes muito graves que oscilariam rigidamente entre “idealização” e desprezo pelo analista - a relação transferencial observada sendo permeada por perguntas com expectativas de obter de qualquer forma respostas arrogantes que impossibilitam a experiência emocional; os sentimentos parecendo encenações malfeitas de amor que marcadamente manteriam vínculos caracterizados por uma espécie de vampirismo. As observações concernentes à grade negativa também são estendidas às instituições, que se tornariam simulacros daquilo que em princípio se pretenderiam ou das funções que lhes caberiam.

Refletem sobre os conceitos de maldade e complexidade do mal, que seriam decorrentes da incapacidade de sofrer e entrar em contato com dor psíquica, o que levaria os indivíduos a não ter acesso tampouco ao prazer, a sofrer o prazer, o que os tornaria insensíveis. Sem a sensibilidade, haveria apenas um simulacro, ao gosto dos talibãs e outros grupos que pregam o terrorismo.

O mal seria uma espécie de consciência de si mesmo para os que se dedicam ao ódio: odiar seria equivalente a ser, a existir diante do outro, e consequentemente para si mesmos. Abrir mão do ódio seria abrir mão da própria existência, da própria identidade. Sem ódio nada seriam e, em função dele, sentem-se grandiosos.

A crueldade e o mal são, em geral, racionalizados e não percebidos como tais. Pela lógica, o mal é vivenciado como se fosse bem, pois a inversão e a confusão de valores se justifica como desejo e meio de uma justiça própria de um grupo moralmente ressentido. Ele se vale de filosofias, ciência, ideologias, cosmologias, que servem para excluir o outro do universo. O discurso de ódio é uma justificativa lógica para a supressão dos não alinhados. Isso também se aplica aos grupos psicanalíticos e aos demais agrupamentos humanos. Qualquer grupo pode se apoderar da ética para transformá-la numa moral conveniente a ele próprio, que justifica torturas e massacres de seus desafetos.

Com o Princípio da Incerteza verifica-se que, toda vez que observamos um aspecto, invariavelmente não observamos outros. O absoluto é impossível. No processo da maldade, exige-se o absoluto do outro ou tenta-se colocá-lo como absoluto, de modo a poder destruí-lo, uma vez que não poderá fornecer o que se demanda. Na maldade, o moralista posiciona-se como juiz supremo e iguala-se a Deus, o que estaria por trás das manifestações de maldade - a onipotência de seus executores.

A partir desse ponto, apresenta-se uma discussão entre moral, ética e reduções desta última, como a moralina, proposta por Nietzsche. A ética complexa, dizem, é modesta. Não tem a arrogância de uma moral de fundamento, ditada por Deus, igreja ou partido. Não tem poder absoluto - somente fontes, que podem se esgotar. Ela é o confronto com a dificuldade de pensar e de viver. É sem saturação e sempre promessa. Incorpora o desconhecido do mundo e do humano. Contraria a moral que se vale de máximas que seriam leis universais, válidas para todos os seres racionais. Sendo assim, a moral e a atividade pensante teriam objetivos incompatíveis e diversos. Pensar é perigoso para todos os credos e, por si mesmo, não produz nenhum outro credo, conforme Hannah Arendt. Segundo ela, não é preciso ser nenhum perverso para ser um oficial da SS: basta ser alguém que dispense a faculdade humana de pensar. A banalidade do mal nasce do vazio do pensamento. A ideia de que o maior mal possa ser praticado pelo mais insignificante e servil dos homens perturba a mente daqueles que pensam que o mal vem de um ser monstruoso, fora da categoria do humano. As ações de grande crueldade e maldade também fazem parte do humano!

O terror sem nome, ou ansiedade catastrófica, ou ainda medo subtalâmico, pode ter como reação um funcionamento em trânsito que se instala oferecendo uma segurança ilusória contra o desamparo e o sofrimento, valendo-se de onisciência e onipotência, tal como ocorre nos fundamentalismos, nas drogadições e no terrorismo em geral, desembocando na maldade.

A psicanálise não existiria para produzir certezas sobre o ser: ela é uma espécie de prática da dúvida. Espera-se que, ao final dela, possamos nos tornar mais íntimos do estranho que existe em nós, o que implicou o desenvolvimento da Teoria das Transformações.

A função da psicanálise teria o objetivo investigativo primordial de ajudar o analisando a transformar, de algum modo, a relação com a mente inconsciente, frequentemente sequestrada por promessas vãs de felicidade eterna vindas de muitas fontes - religião, mistificação, terapias breves diversas, autoajudas, terapias-cultos a si mesmo, mitos pessoais, boatos etc.

Conforme Bion, se a análise for bem-sucedida, o analisando aproxima-se de ser a pessoa que sempre deveria ter sido (ele mesmo). Isso só ocorre se houver a transição do saber sobre a realidade para o tornar-se essa realidade na vida (transformação em O).

Sobre a linguagem de êxito, os autores explicitam a importância da relação entre o que se relaciona, e não dos objetos ou seres relacionados. Surge problema quando não se dá atenção à relação, ao que está entre, como na relação entre metáforas. Quando se fala eu-tu, o que importa é a relação entre eles, numa realidade em aberto, em que não há término.

A experiência analítica é focada no tornar-se aquilo que se é por meio de uma conversa sincera sobre o que está se passando entre os presentes, interessada na existência da mente inconsciente, o que geraria uma sabedoria de vida.

Tratando da transferência, evidenciam que é a suspensão de memória, do desejo e da necessidade de compreensão que permite a interação com ela, ou seja, ao se esperar a transferência, ela não aparece - aparece somente o transferido, o conteúdo, por meio do qual pode-se acreditar que são possíveis interpretações transferenciais, ao se seguir mecanicamente o fluxo associativo. O transferido constitui parte do trânsito, mas não é o que produz o trânsito. Faz parte da transferência, mas não é a transferência em si. Ao se considerar as interpretações, não se altera o Ser do vínculo pelo que é transferido, mas pelos elementos que produzem o trânsito, alterando-se o continente, ampliando-se o espaço mental, problematizando!

A transferência não ocorre sem a mudança de um estado mental para outro - é a coisa em si que se movimenta, que constitui a transferência. Para Bion, a análise sempre fala a linguagem da experiência emocional (as paixões sempre voltando à superfície), confirmando a ideia de Freud de que a transferência exprime o essencial.

Destacam que o conceito de cesura questiona os modos habituais de pensar, direcionando a novas possibilidades lógicas, que seriam desantropomórficas, expondo uma realidade que não segue parâmetros biológicos deterministas de começo, meio e fim, nem conceitos de espacialidade. Considera-se uma realidade que está sempre além do nosso alcance, a do Inconsciente, que pode ser transcrita numa relação entre infinito e finito.

Abordando a ideia de turbulência emocional, consideram-na como uma forma singular de apresentar a transferência, como um fenômeno de transitoriedade que sempre remete à cesura.

Valendo-se de Castoriadis, propõem a ideia de imaginação radical, que abrangeria estados mentais muito primitivos associados a sentimentos subtalâmicos da mente embrionária; o mundo pré-natal influenciando as transformações pós-natais.

Ao se trabalhar afastando memória, desejo e necessidade de compreensão, podem-se observar aspectos muito primitivos conectados à existência de uma mente embrionária. Nessa observação, se for desencadeada uma imagem onírica antes de uma interpretação, estaria evidenciada a realização de um trabalho valioso.

Relacionam “realização”, um conceito originalmente matemático, com imaginação radical, e propõem um modelo de realização distinto do usualmente considerado, em que esta ocorre em dois estágios: na mente embrionária e na mente pós-natal. Neste novo modelo, o movimento condutor da preconcepção na mente embrionária pode atender a outro status teórico em virtude de ser um sistema que requer mais investigação. Propõem a substituição da ideia de identificação projetiva pela de imaginação radical, e também a existência de outra posição além das propostas por Klein.

Dois materiais clínicos são expostos para evidenciar o modo com que lidam na prática com o que propõem. O livro termina com uma conclusão em aberto, visto que o que sugerem é a abertura de novos campos de indagação e pesquisa, na direção do infinito.

Finalizando, reitero que o valor deste livro está, sobretudo, na liberdade dos autores de expor suas próprias ideias e teorias, estimulados pela obra de Bion, mas sugerindo algo novo e original, sem que precisem pisar sobre as pegadas dele, de Freud, de Klein, ou de qualquer outro, a despeito do imenso respeito e tributo que têm pelo pensamento deles.

 

 

Correspondência:
Claudio Castelo Filho
Rua Carlos Sampaio, 304, conj. 72
01333-020 São Paulo, SP
claudio.castelo@uol.com.br

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