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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Silvana Rea

Editora

 

 

Há um muro de pesadelos
A separar-me dos mortos

(Federico García Lorca)

Em 1900, Freud publica A interpretação dos sonhos (1900/1969), dois anos após Gustav Klimt liderar o movimento de Secessão vienense, o Jugendstil, que recusa a tradição acadêmica e naturalista. Ainda que a coleção de antiguidades de Freud confirmasse o seu interesse pela cultura clássica, comum aos austríacos cultos de sua geração - como afirma Schorske (1988) -, neste texto Freud apresenta a sua visão dos sonhos, cujo trabalho consiste em estabelecer a mediação entre a força de elementos recalcados em busca de expressão e a resistência a ela - ideia que combina com a poética expressionista, também sua contemporânea.

Na história da arte, o espanhol Francisco de Goya é considerado um dos antecessores do expressionismo e o divisor de águas entre o último dos grandes mestres e o primeiro dos modernos.

No final de sua vida, Goya dedicou-se às Pinturas negras, ou Ciclo dos pesadelos, uma série de afrescos pintados a óleo nas paredes de sua quinta, nos arredores de Madri. Entre eles, o conhecido Saturno devorando seu filho. Imagens que mostram o horror em formas desesperadamente perturbadoras e alteradas - daí sua relação com o expressionismo. Trata-se de obras pouco mencionadas pelo pintor, que nunca teve a intenção de expô-las. Seria outra a necessidade de Goya? Afinal, eram suas vivências de terror que buscavam um caminho em direção à figurabilidade na forma de um pesadelo, na forma de um afresco.

Aparentemente uma exceção à regra de serem os sonhos uma realização de desejos, os pesadelos desafiaram Freud e o levaram a refletir sobre o que acontece quando a função onírica fracassa. Sem a mediação do desejo por uma representabilidade suficiente, os pesadelos, como sonhos acompanhados de angústia, impedem o sono e o sonhar. Mais à frente, Freud considera os sonhos de punição e os chamados sonhos traumáticos, que acompanham a mudança de tópica proposta em Além do princípio do prazer (1920/19693), e o emblemático pesadelo dos lobos brancos sentados na grande nogueira, utilizado por ele como interpretante para o Homem dos Lobos (1919/19690) e como elemento organizador de seu pensamento teórico.

Mas os pesadelos não se referem apenas ao momento do sono. Como diz Ogden (2006), sonhar é um processo contínuo que se dá também na vida inconsciente de vigília. E muitas vezes há um impedimento de se fazer o trabalho onírico por um excesso, por algo tão assustador que interrompe a possibilidade de sonhar, estejamos adormecidos ou não.

O que pensar desse excesso? Algo que ultrapassa o limite da capacidade sonhante? Um sofrimento traumático que pode levar à dificuldade de encontrar possibilidades representativas? Algo cuja tentativa de ser sonhado não se perfaz?

Neste sentido, propomos a questão dos pesadelos a partir da ampliação de seu entendimento como fenômenos localizados em regiões entre a ausência de representação do terror e a representação terrorífica, como as Pinturas negras de Goya. Para isso, contamos com a colaboração de autores que nos ajudam a pensá-los de diferentes pontos de vista.

Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho parte de um poema de Wilfred Owen, que relata o encontro de dois soldados no Inferno, aproximando-o da experiência de Wilfred Bion na guerra. Luís Carlos Menezes trabalha desde um caso clínico centrado numa fobia de contato, em que a angústia é uma constante. Carlos de Almeida Vieira traça relações entre a obra de Freud e a literatura, com base num ensaio de Jorge Luis Borges sobre o pesadelo. Viviane Sprinz Mondrzak aborda o caso de Sergei Pankejeff, o Homem dos Lobos, e o pensamento freudiano. João Frayze-Pereira, para tratar o tema, parte de um caso clínico e traz como situação análoga a do pesadelo, do ponto de vista do espectador, diante das manifestações artísticas contemporâneas. Ambrozina Amália Coragem Saad trabalha uma situação clínica a partir de um sonho, teorizando sobre o tema.

Contamos, ainda, com textos apresentados na VII Jornada de Lacan na IPA, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Na seção Diálogo, publicamos o texto de Sára Botella sobre a memória dos sonhos, e, em Pontos de vista, a professora Walnice Nogueira Galvão foca os pesadelos na literatura.

E assim, caros leitores, convido-os a enfrentar a noite e suas criaturas, ainda que elas nos façam sentir-nos vulneráveis.

 

Referências

Freud, S. (1969a). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 18, pp. 13-88). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vols. 4-5). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1969c). História de uma neurose infantil. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 17, pp. 13-156). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Ogden, Th. H. (2006). Esta arte da psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e choros interrompidos. Livro anual de psicanálise, 20,173-189.         [ Links ]

Schorske, C.E. (1988). Viena fin-de-siècle (D. Bottmann, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

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