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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo Apr./June 2015

 

EM PAUTA

 

O Homem dos Lobos: sonhos e pesadelos

 

The Wolf Man: dreams and nightmares

 

El Hombre de los Lobos: sueños y pesadillas

 

 

Viviane Sprinz Mondrzak

Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPdePA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a partir da leitura de várias vozes sobre o Homem dos Lobos, procurei localizar o que para mim soava como um sonho e o que me parecia da ordem do pesadelo, para Freud, para Sergei Pankejeff e, principalmente, para os psicanalistas no contato com a obra de Freud. Neste último caso, pensar o quanto a idealização de Freud tem nos dificultado, assim como possivelmente dificultou para o Homem dos Lobos, seguir sonhando o impacto que o contato com sua genialidade provoca. E questionar o quão flexível tem sido o continente oferecido pelo grupo psicanalítico (um determinado imaginário que varia de lugar para lugar e que se espera que varie com a passagem do tempo) para propiciar que cada analista se aproxime da escrita freudiana com liberdade criativa, possibilitando um conhecimento enativo, que se constrói a cada momento através da experiência. Quanto mais afastados deste ideal, mais próximos de pesadelos.

Palavras-chave: sonho; pesadelo; Homem dos Lobos.


ABSTRACT

In this paper, from reading several views about the Wolf Man, I tried to detect what sounded like a dream for me and what seemed, for me, like a nightmare for Freud, Sergei Pankejeff, and notably for the psychoanalysts that are connected with Freud's work. As for the last ones, we wonder how much Freud's idealization has made it harder - as it possibly made it harder for the Wolf Man - to keep dreaming the impact caused by being in contact with his genius. And we question how flexible is the vessel that is offered by the psychoanalytic group (a certain imagery that is different in each place and - we hope - that varies with time) in order to enable each analyst to be closer to Freudian writing with creative freedom - in order to allow an enactive knowledge, which is constantly built through experience. The farther (we are) from this ideal, the closer (we are) to nightmares.

Keywords: dream; nightmare; Wolf Man.


RESUMEN

En este trabajo, a partir de la lectura de varias voces sobre el Hombre de los Lobos, traté de localizar lo que para mí sonaba como un sueño y lo que me parecía una pesadilla para Freud, para Sergei Pankejeff y, principalmente, para los psicoanalistas en contacto con la obra de Freud. En este último caso, pensar cuánto nos ha dificultado la idealización de Freud, así como posiblemente dificultó al Hombre de los Lobos, el hecho de seguir soñando el impacto que provoca el contacto con su genialidad. Y cuestionar cuán flexible ha sido el continente ofrecido por el grupo psicoanalítico (un determinado imaginario que varía de un lugar a otro y que se espera que varíe con el paso del tiempo) para permitir que cada analista se aproxime a la escritura freudiana con libertad creativa, haciendo posible un conocimiento enactivo, que se construye en todo momento a través de la experiencia. Cuanto más nos alejamos de este ideal, más próximo estamos de las pesadillas.

Palabras clave: sueño; pesadilla; Hombre de los Lobos.


 

 

[...] a alma humana quando sonha, desligada do corpo é, a um tempo, o teatro, os atores e a plateia... é também a autora da fábula que está vendo.

(Jorge Luis Borges, O livro dos sonhos)

Talvez se possa dizer que desde sempre os sonhos vêm intrigando o homem. O que é esta produção inegavelmente nossa, mas ao mesmo tempo estranha - um corpo estranho -, imposta à nossa percepção, de maneira independente à nossa vontade, sobre a qual não temos ingerência? E que inegavelmente nos fascina, pela riqueza, pelo potencial criativo da mente que essa produção revela, abrindo um mundo de infinitas possibilidades simbólicas. Neste sentido, o encantamento com o funcionamento da mente encontra sua mais concreta expressão no campo dos sonhos. Assim como seu inverso, quando os sonhos revelam as limitações dos recursos do psiquismo, na pobreza simbólica dos sonhos operatórios ou no desespero de não diferenciar o mundo do sono do da vigília, como nas psicoses; ou ainda o fracasso de dar conta de determinadas experiências, como no sofrimento dos pesadelos. Estes últimos revelam com mais intensidade o senso de realidade que vivemos no sonho e o alívio quando acordamos e entramos em outra realidade. Este momento de transição talvez seja dos mais intrigantes, em que os dois processos de organização das experiências, o processo primário e o secundário, ainda não estão separados e nos permitem um contato direto com este duplo funcionamento da mente humana, bilógico, nos termos de Matte Blanco (1975).

A verdade é que, depois de Freud, os sonhos ganharam um status completamente diferente, tiveram seus mecanismos descritos, passaram a ter uma função e um sentido, inseriram-se num método, sendo utilizados como elementos de uma técnica sofisticada. Foram sempre um dos pontos de partida para Freud alcançar novas compreensões sobre o funcionamento psíquico. Os pesadelos, os sonhos traumáticos, ajudaram a abrir o espaço "mais além do princípio do prazer". E se há algum trabalho de Freud em que um pesadelo assume uma posição central este é, sem dúvida, o relato do Homem dos Lobos. A riqueza desse trabalho, na clareza da construção teórica conseguida por Freud e das novas aberturas trazidas, pode ser medida pelos caminhos mais variados, alguns inclusive surpreendentes, seguidos a partir dele, muito além dos sonhos. Encontramos trabalhos sobre aspectos pessoais e autobiográficos de Sergei Pankejeff, aspectos da história do pensamento psicanalítico e do momento vivido por Freud, especialmente as questões com Adler e Jung, trabalhos que abordam o diagnóstico do caso, a técnica usada por Freud, os resultados do tratamento, várias possíveis interpretações do sonho dos lobos, as reanálises, o estudo de casos clínicos, os vários aspectos metapsicológicos e tantos temas mais. Sem falar na autobiografia e na entrevista concedida pelo paciente, quando já contava mais de 80 anos, a Karin Obholzer. Essa última é um relato surpreendente, que torna impossível não pensar nas complexas redes que se estabeleceram entre Freud, seu paciente, o Homem dos Lobos (um outro personagem) e o conjuntos dos psicanalistas. O contraste entre a visão de Freud, a visão de outros psicanalistas que o atenderam ou tiveram contato com ele e a visão de si do próprio Sergei Pankejeff (SP, no restante deste texto) é um elemento que chama a atenção quando se leem os vários textos escritos pelos diferentes autores.

Certamente todo psicanalista tem claro que a escrita de um caso não representa nem retrata o paciente, nem o processo psicanalítico. É ficção e teorização metapsicológica feitas pelo psicanalista. Em outros termos, é uma construção a partir de um sonho do psicanalista sobre o todo de sua experiência com o paciente.

Lido após quase 100 anos, é uma outra ficção criada por um outro psicanalista, um novo sonho sobre as repercussões conscientes e inconscientes da leitura do relato, moldadas por toda a história pessoal e psicanalítica de cada um e de acordo com o momento único desta leitura. Penso que é somente desta perspectiva que posso me aproximar desta história de uma neurose infantil, em que o Homem dos Lobos e Freud são personagens, figuras condensadas de um sonho, o meu próprio, e em que certamente estão presentes os elementos do imaginário da história da psicanálise.

Foi dentro deste contexto, e tendo como disparador o tema pesadelo, que me reencontrei com o Homem dos Lobos. Em outro momento, foram as questões Freud/ Jung que concentraram minhas reflexões (Mondrzak, no prelo). Desta vez, foram os diferentes retratos sobrepostos do Homem dos Lobos, como quadros diversos, cada qual podendo ser pensado como um sonho/ pesadelo: o pesadelo dos lobos e o sonho de Freud a partir dele; o sonho/pesadelo de SP com a psicanálise e o sonho/pesadelo dos psicanalistas com o Homem dos Lobos e os escritos de Freud.

Como o tema sonho tem uma longa trajetória, tanto na teoria como na técnica psicanalítica, faz-se necessário, de início, situar com base em qual referencial utilizo este conceito.

 

Sobre sonhos e pesadelos

Não existe uma única forma no universo que não possa contaminar-se de horror. Daí, talvez, o sabor peculiar do pesadelo, que é muito diferente do espanto e dos espantos que é capaz de infligir-nos a realidade.

(Jorge Luis Borges, O livro dos sonhos)

Há uma longa trajetória desde a visão profética dos sonhos (algo alheio ao sonhador, uma mensagem divina que usa um humano escolhido para se manifestar, visão que ainda habita o imaginário de muitos hoje em dia) até a revolução que o trabalho de Freud causou. O estudo da semântica do inconsciente, descrita por Freud (1900/1976b) e esmiuçada no seu exame dos sonhos, trouxe uma nova compreensão do funcionamento psíquico, e a descrição dos mecanismos utilizados nos sonhos (figurabilidade, condensação, deslocamento etc.) mostrou um processo lógico diferente da lógica aristotélica. O funcionamento da mente em termos de processo primário e secundário estava firmemente estabelecido.

A partir de Freud, seguiu-se um processo de expansão das ideias sobre os sonhos (iniciado pelo próprio Freud), que culminou nas contribuições de Bion, talvez o psicanalista que mais expandiu a noção do sonhar, inserindo o sonho na linha do trabalho simbólico, na possibilidade de formar elementos alfa, símbolos das experiências emocionais que vão ser a matéria-prima para o pensamento, no sono ou na vigília.

A concepção de Bion (1962/1967) do trabalho de sonhar é o oposto do "trabalho do sonho" de Freud (1900/1976b), que se refere ao conjunto de operações mentais, como condensação e deslocamento, usadas para disfarçar pensamentos inconscientes, barrados pela censura do pré-consciente. Assim, podem ser apresentados à consciência e ao pensamento secundário camuflados. Para Bion, o trabalho de sonhar é o conjunto de operações mentais que permitem que a experiência vivida se torne disponível para elaboração psicológica. O trabalho de sonhar é a forma primária de trabalho mental inconsciente com nossas experiências emocionais. A ênfase no trabalho de disfarce para a realização de desejos inconscientes, com o intuito de manter o sono do sonhador, se transfere para uma visão do sonho como revelador de o que está ocupando o psiquismo do paciente, tanto no seu conteúdo manifesto quanto no latente. Os meios de expressão são outros, não os da lógica aristotélica, que predominam quando estamos acordados e que são uma aquisição do crescimento, mas os do processo primário.

A noção de continente psíquico refere-se justamente a este processo de utilização conjunta de nossas formas de organização das experiências, processo primário e secundário, bilógico, com o infinito de possibilidades de combinações entre eles, com clara ênfase na importância do pensar inconsciente. A função psicanalítica da personalidade seria a habilidade de realizar este trabalho consciente e inconsciente, cuja manifestação primordial é a capacidade de sonhar.

Nesta perspectiva, a preocupação central da psicanálise é a interação dinâmica entre pensamentos/sentimentos derivados das experiências emocionais (o contido) e a capacidade de sonhar/pensar estes pensamentos/sentimentos (o continente). A ênfase claramente se desloca, no trabalho psicanalítico, do conteúdo para o continente, para a expansão dos recursos para sonhar, simbolizar estas experiências.

Claro que todos estes processos estão sujeitos a obstáculos, vicissitudes de toda espécie, variações incontáveis. Ogden (2010) propõe sonhos, pesadelos e terrores noturnos como metáforas para categorias de funcionamento psíquico, e é neste sentido que uso sonho e pesadelo neste trabalho. Em termos genéricos, pesadelos são sonhos interrompidos em algum ponto, em que a capacidade do indivíduo de gerar símbolos e sonhá-los é sobrepujada pelos efeitos perturbadores da experiência que está sendo sonhada. Ogden ainda inclui uma outra categoria, a dos terrores noturnos, que não seriam um sonho, já que não apresentam elaboração psíquica, mesmo que parcial, impedindo que as experiências emocionais possam ser aproveitadas para elaboração psíquica.

A vertente estética do sonho, desenvolvida por Meltzer (1987), segue a linha de Bion, que destaca o sonho como imagens de uma vida onírica que acontece incessantemente, tanto durante o estado de vigília como no sono. O sonho aparece como uma produção artística do sonhador, como uma das manifestações de processo primário, não associado com patologia, mas como uma forma sempre necessária de conhecimento, que nos permite viver não somente como seres lógicos, voltados para a realidade. São reservatórios em que a emoção serve como principal matéria-prima a ser, ou não, utilizada pela razão em formas artísticas, as quais se valem de recursos de processo primário para provocar um estado emocional, não apenas uma ideia racional.

Esta concepção também coloca o sonho não como exclusividade do estado adormecido, mas como uma das formas de organização das experiências emocionais, sempre ativo, embora não consciente na vigília, quando o pensamento lógico adquire preponderância. Onde houver falha na repressão, esta diferenciação se perde, sonho e pensamento de vigília se equiparam, como ocorre no paciente psicótico. Mas, como já foi dito, não apenas na patologia. Este funcionamento, correspondente ao processo primário, pode ser acessado em momentos de experiências emocionais intensas, em que a lógica aristotélica limita a percepção de determinados níveis da experiência.

As consequências desta visão dos sonhos para a técnica psicanalítica são dramáticas. A decifração dos sonhos, a busca pelo oculto, processo dependente das associações diretas do paciente ao conteúdo do sonho, deixa de ser a meta primeira. O sonho em si já entra na linha da associação livre, como mais um elemento nas várias formas de o mundo interno se mostrar. O sonho é visto como uma comunicação direta ao analista, como um relato para um outro e, numa análise, tendo seu sentido no contexto de uma relação. Mais ainda, qualquer interpretação de um sonho é um sonho do analista sobre o sonho do paciente.

É a este sonho/pesadelo que me refiro neste trabalho, aos elementos das experiências emocionais de Freud/SP/Homem dos Lobos/psicanalistas que puderam ser sonhados e aqueles que restaram e continuam provocando pesadelos. Quem sabe alguns, ainda, como terrores noturnos.

 

O pesadelo de SP e o sonho de Freud

O Homem dos Lobos assimilou e foi assimilado pelo projeto psicanalítico como nenhum outro paciente. Através de suas palavras, podemos ver que se considerava não exatamente um paciente, mas uma espécie de coautor de Freud, tendo, inclusive, se aventurado a escrever alguns artigos sobre psicanálise, nunca publicados (Obholzer, 1993). "Em minha análise com Freud, eu me sentia menos na condição de paciente e mais na de colaborador, o camarada mais jovem de um explorador experimentado que embarca no estudo de um território novo e recém-descoberto" (Gardiner, 1983, p. 164).

Anna Freud, no prefácio escrito para o livro organizado por Muriel Gardiner (1983), refere-se a SP como o "nosso" Homem dos Lobos e o apresenta como um aluno-modelo da psicanálise; o próprio Freud o considerava um pedaço da história da psicanálise (Gay, 1989). Esta dupla identidade, paciente/colaborador, parece ter acompanhado as relações de SP com a psicanálise, o que não ocorreu com os pacientes dos outros casos clínicos relatados por Freud, que ficou ligado a este paciente de uma forma especial.

A atitude de Freud de arrecadar dinheiro para SP pode ser entendida como uma espécie de reconhecimento pela contribuição que ele fizera à psicanálise, merecendo uma espécie de pagamento por serviços prestados, e, ao discutir este gesto tão comentado de Freud, Meltzer (1989) fica entre duas possibilidades (por que não uma mescla das duas?): culpa ou gratidão. Grato pela contribuição que o caso desse homem fez à psicanálise; talvez culpado pelas manobras que utilizou para vencer suas resistências.

É claro que não trago estes comentários e depoimentos com intuito documental, com o objetivo de discutir a construção de Freud ou provar algum argumento. O que busco, ao me aproximar da complexa teia que envolveu o relacionamento dessas duas pessoas, é propor um determinado vértice de observação, no qual se possa pensar no pesadelo de SP como uma colaboração de um auxiliar na construção do pensamento psicanalítico. Nesta perspectiva, o pesadelo dos lobos teria servido de base para um sonho de Freud, um sonho que teve uma função estruturante no seu pensamento teórico. Constrói, a partir deste material do pesadelo, um sonho em que toda uma metapsicologia encontra respaldo e se organiza. Pesadelo e sonho se apresentam, desse modo, como duas faces de um mesmo relato, sendo impossível determinar o quanto as conclusões de Freud se referem ao seu paciente ou ao seu sonho, ao que o preocupava no momento, ao que povoava o seu imaginário. Pode ser dito que é sempre assim, que nossa interpretação de um sonho é um sonho acerca do sonho/ pesadelo do paciente e que todo paciente é um colaborador do analista, o qual não faz nenhum trabalho sozinho.

No entanto, que distância separou o pesadelo do Homem dos Lobos do sonho de Freud?

Mahony se refere justamente a este ponto quando diz:

No mito traumático densamente investido da cena primária ele (Freud) é, em vários níveis, o criador de sua própria cena primária: ele gera a cena, a presencia e a engendra repetidamente no seu paciente, tenta "convencê-lo" da sua construção ou criação. (1937/1992, p. 155).

Quando se lê a entrevista feita por Obholzer (1993), é impossível não se sentir impactado. Ao ser perguntado acerca do célebre sonho dos lobos, SP diz nunca ter feito muito caso da interpretação do sonho e que tudo o que Freud viu "é ir longe demais, é meio sem pé nem cabeça" (p. 54). E completa: "Não terá sido uma fantasia da cabeça dele?" (p. 55). Diz ainda: "Eu sempre tinha o que contar. Mas, justamente, ele não encontrava o que queria encontrar - sei lá eu o quê!" (p. 59).

O pesadelo dos lobos pode ter sido o que completou o "sei lá eu o quê", o desejo de Freud.

 

O sonho/pesadelo de Sergei Pankejeff

Na entrevista de SP a Obholzer (1993), é inquietante notar o abismo que separa o que foi dito do paciente por seus vários analistas e sua própria visão. Obholzer destaca como ele chamava a atenção para uma pintura russa com o título What is truth? [Que é a verdade?], explicando que há duas palavras em russo para "verdade": pravda, para o sentido comum de todo dia, e iistina, para a verdade que está atrás das aparências. Estava nítido, da parte de SP, um desejo de contar a iistna, sua verdade - claro que não "a" verdade, que, de resto, nunca pode ser encontrada.

Não que na entrevista ele negue ter sido ajudado. Perguntado a este respeito, diz: "Ele (Freud) me tornou capaz de casar com Teresa [...] terminei meus estudos e fiquei 30 anos numa companhia de seguros. Portei-me de maneira mais ou menos normal e minhas depressões foram mais suportáveis" (p. 63).

Há, porém, em todo o relato um tom de quem não se sentiu de fato compreendido: "fizeram de mim um carro-chefe da psicanálise" (p. 160), "um elemento de propaganda para a psicanálise. Mas, se a senhora escrever, vai ser diferente" (p. 215).

Sobre Freud e a psicanálise, diz:

Quando se considera tudo com um olhar crítico, não resta grande coisa da psicanálise. Certo, ela me ajudou. Freud era um gênio. Imagine todo o trabalho que teve para observar todos aqueles detalhes, não esquecer nada, tirar todas aquelas conclusões. [...] E, se ele se enganou, digamos que errar é humano [...] No fundo, eu o venerava. (p. 50).

O quanto esta idealização, mantida ao longo dos anos e nunca suficientemente enfrentada, não impediu que pudesse dar conta da ambivalência inevitável em relação a Freud e, por extensão, à psicanálise?

Se olharmos bem, SP sempre viveu à sombra de uma dupla identidade: era SP e o Homem dos Lobos, vivendo em dois mundos paralelos. Sua vida seguiu, casamento, ruína, exílio, trabalho como corretor de seguros, o suicídio da mulher, o trabalho em pintura, outros relacionamentos amorosos etc. Ao mesmo tempo, manteve-se ligado a psicanalistas durante toda a vida. Como paciente (como SP ou o Homem dos Lobos?), foi atendido por psicanalistas durante toda a sua vida. Sua peregrinação é conhecida de todos. Após uma reanálise de seis meses com Freud, Ruth Brunswick o atendeu em duas oportunidades regularmente e depois, de forma intermitente, por vários anos, descrevendo um paciente diferente daquele atendido por Freud: com uma paranoia de tipo hipocondríaco, provocada por restos não trabalhados de transferência. Todos estes fatos estão fartamente documentados, mas a vida de paciente do Homem dos Lobos não terminou por aqui. Muriel Gardiner funcionou como um misto de tutora e analista, e ele ainda seguiu sendo atendido por K. Eissler e W. Solms até o fim de sua vida. Mas este não foi seu único envolvimento com a psicanálise. O pseudônimo dado por Freud determinou uma identidade superposta, tanto que assina sua autobiografia, escrita aos 84 anos, como Homem dos Lobos. Vários autores (entre eles, Abraham & Torok, 1986; Goodwin, 2010) chamam a atenção para a forma de sua biografia, escrita com banalidade e convencionalismo, que adquire uma dimensão trágica "em que se pode ouvir um grito: Vocês não querem saber nada sobre quem eu sou" (Abraham & Torok, 1986, p. 30). É como se houvesse sempre a busca por uma verdade - iistna - não alcançada e, neste sentido, elementos ainda de um pesadelo, resíduos não suficientemente simbolizados e sonhados de todo seu envolvimento com Freud e a psicanálise. Talvez uma queixa por ter sido incorporado como um personagem, o Homem dos Lobos, e não como o indivíduo SP. Há passagens na entrevista em que sua ligação com a psicanálise tem contornos de pesadelo, um temor permanente da opinião dos psicanalistas. Antes de concordar em ser entrevistado, pede a "autorização" de Gardiner, de Eissler e de Solms. Gardiner se opõe frontalmente e os outros dois de forma menos incisiva. Eissler deixou claro que desaprovava inteiramente livros escritos por leigos e que somente um psicanalista estaria apto a se exprimir sobre o assunto (Obholzer, 1993). De qualquer forma, SP acaba "transgredindo" e concorda com a entrevista, feita de forma semiclandestina, sob a condição de só ser publicada depois de sua morte. Usa como argumento o fato de Gardiner não lhe ter entregado uma carta enviada para ele por uma emigrada russa. Ou seja, ela não foi leal; logo, ele também poderia não seguir o que ela dizia. A noção de um estado "transferencial" permanente está bem presente: "Também transferi para ela e a transferência é uma coisa perigosa. Eu me apoiei demais nos outros e, depois disso, a gente fica realmente abandonado..." (p. 65).

 

O sonho/pesadelo dos psicanalistas

Apesar das palavras de Freud a respeito da recuperação de seu paciente, o fato de ele ter necessitado tratamento psicanalítico pelo menos até os 82 anos tornou-se fonte de um permanente desconforto para Freud e seus seguidores, um locus de controvérsias. De um lado, trabalhos procurando negar ou reparar a análise problemática; de outro, críticas extremadas, usando este trabalho para atacar o modelo freudiano. Meltzer fala deste trabalho como "seminal para a psicanálise" e, ao mesmo tempo, se visto de fora, como "um episódio particularmente ridículo da literatura psicanalítica" (1989, p. 130).

O número de trabalhos escritos sobre este caso e a característica de muitos deles, procurando explicações novas, mostram, além da riqueza de possibilidades que ele abre, uma espécie de angústia dos analistas, como se este fosse ainda um caso inconcluso, com um tom diferente dos trabalhos escritos sobre os outros casos de Freud. Um pesadelo?

Nicolas Abraham, em minucioso trabalho sobre o Homem dos Lobos, diz que continuamos buscando salvar esta análise para nos salvar como psicanalistas. Em seu trabalho, Abraham e Torok (1986) procuram mostrar as dificuldades do Homem dos Lobos como uma forma própria de funcionar, como resultado de uma "cripta", uma estrutura traumática que é negada e silenciada. Seria como um abismo aberto na psique, que puxa toda a simbolização para sua órbita disruptiva e impossibilitada de articulação e expressão. É só onde o significado é evitado ou quebrado, ou onde se percebe um estranhamento de que algo precisa ser dito, que esta estrutura pode ser percebida. Este trabalho, pouco conhecido entre nós, mas que surpreende pelo viés abordado e pela seriedade do estudo feito, busca elementos nas palavras usadas por SP com os variados sentidos que assumem em cada língua que ele falava. Mais uma tentativa de salvar a análise do Homem dos Lobos, de nos salvar?

Em outra abordagem, partindo do trabalho de Abraham e Torok, mas por um ângulo diferente, Goodwin (2010) destaca o estranhamento que causa o aparente distanciamento e ignorância de SP a respeito das forças externas, mesmo vivendo e sendo diretamente atingido por alguns dos eventos mais dramáticos da história moderna: as duas Guerras Mundiais e a Revolução Russa (esse distanciamento é também destacado no livro de Muriel Gardiner). Goodwin faz um trabalho minucioso, procurando mostrar um sistema de negação dos eventos traumáticos na vida de SP, relacionando-o com as dificuldades e resistências que teriam se manifestado no trabalho analítico. Sugere que o Homem dos Lobos encontrou refúgio na abordagem a-histórica de Freud e da psicanálise como um todo. Ser o Homem dos Lobos o protegia de ser SP, tendo de enfrentar todas as situações que se apresentaram em sua vida. Para Goodwin, esta exclusão da história não seria uma questão ideológica, mas um processo críptico, no qual Freud também estaria envolvido. Sobre os eventos históricos, SP conta que perguntou a Freud se deveria permanecer na Rússia ou ir para o exterior. Freud teria dito que mais vale ficar no país em que se nasceu (sabemos como foi difícil para Freud deixar Viena, mesmo com a ascensão do nazismo). O comentário de SP é que Freud conhecia a alma humana, não a alma bolchevista.

Na volta da Rússia, ao perguntar a Freud o que ele achava da guerra, diz que ele não soube dizer nada além de que temos uma atitude errônea diante da morte (Obholzer, 1993). Uma abordagem a-histórica conveniente a ambos, e não apenas uma forma de pensar psicanaliticamente? Sob este ângulo, Goodwin considera que não só o Homem dos Lobos era perturbado, mas também o discurso que tentava descrevê-lo. Questiona ainda por que Freud não empregou o conceito de Nachtraglichkeit de forma mais incisiva, além do uso para compreender o pesadelo dos lobos em relação à cena primária, insistindo sempre em retornar à causalidade infantil. Claro que sabemos que seu objetivo era provar sua construção metapsicológica em oposição a Jung e Adler, mas esta perspectiva a-histórica (mesmo que possa ser contestada) é mais um exemplo do que segue em elaboração no pensamento psicanalítico a partir da leitura de Freud.

Em relação à interpretação do pesadelo dos lobos, encontramos também uma série de trabalhos que propõem outras formas de compreensão do material do sonho. Cito como exemplo somente uma delas, já que não é objetivo deste trabalho se deter nas reinterpretações, mas apenas pensar se poderiam ser um sintoma do desconforto que a interpretação de Freud ainda traz, apesar de sua coerência metapsicológica: na época do sonho, SP teve malária e os lobos seriam os médicos o observando ameaçadoramente, como agentes castradores (Coutinho, 2006).

É claro que a compreensão do sonho (bem como de qualquer fato psicanalítico) pode chegar próximo ao infinito, de acordo com o sonho de cada analista sobre o pesadelo dos lobos, mas é como se se ouvissem ao fundo não apenas desenvolvimentos, mas tentativas de seguir elaborando, buscando justificativas e explicações para a interpretação de Freud.

Neste texto, um dos aspectos mais difíceis de se metabolizar é, no meu ponto de vista, o tom de verdade com que Freud enuncia suas conclusões. Podemos entender sua intenção, compreender sua construção metapsicológica; podemos nos encantar com a precisão de seu raciocínio, mas é difícil evitar um certo desconforto. O próprio Freud parece nunca ter acabado de elaborá-lo e retorna a ele num de seus últimos trabalhos, "Análise terminável e interminável".

Sei que esta maneira de pensar sobre esse texto de Freud e sobre outros tantos (ou sobre toda obra de Freud) é controversa, e a eterna questão sobre o determinismo e/ou complexidade do pensamento freudiano também o é. Questão que, se pensarmos bem, não precisa e não tem como ser resolvida, já que se apresenta como um paradoxo.

Mas o que gostaria de trazer para discussão é a forma como a psicanálise pós-Freud tem se aproximado de seus textos. Falo de textos porque não temos como ter acesso ao seu pensamento, apenas ao que podemos interpretar de seus escritos, o que é bem diferente. Com qual liberdade se faz este processo e que resíduos, talvez inevitáveis, deixa em cada um? Como grupo (podemos chamar de "movimento psicanalítico" este grupo?), conseguimos oferecer um continente aberto, menos rígido, para que cada psicanalista possa encontrar sua forma de organizar a leitura de Freud? E, ao contrário de buscar ali a verdade, poder sonhar, pensar criativamente, a partir destas leituras? Entendido como um contínuo e interminável processo de simbolização, tanto individual quanto do pensamento psicanalítico como um todo, é um sonho que se expande ao infinito, em que cada autor é parte de uma cadeia em expansão. O próprio conceito de Nachtraglichkeit embasa a contínua reorganização dos mesmos dados, no caso, da mesma leitura, reorganização sempre dependente de cada momento, reconstruída a cada reaproximação.

No entanto, sempre que a leitura é estanque, fechada em si própria, repetindo o mesmo e afirmando apenas a verdade do texto freudiano, a passagem do tempo é artificialmente paralisada, e as mudanças inevitáveis, banidas. Nestes casos, penso que temos sonhos interrompidos, em formato de pesadelos.

 

Enfim...

[...] os sonhos constituem o mais antigo e o não menos complexo dos gêneros literários.

(Jorge Luis Borges, O livro dos sonhos)

Visto como uma obra de arte, o relato do Homem dos Lobos gera leituras múltiplas e não se entrega a um significado unitário. Nesta obra, pode-se discernir uma multidão de vozes, e cada novo psicanalista participa com alguma fala. Neste sentido, o texto todo, e não apenas o pesadelo dos lobos, pode ser lido como um sonho, a partir do qual cada analista sonhará seu próprio sonho. Talvez esta seja a melhor forma de ler qualquer escrita psicanalítica. Algumas delas não propiciarão matéria-prima para muitos sonhos. Outras, pelo contrário, são fonte de inspiração constante, interminável. Este é o caso do conjunto da obra de Freud. Mas nem tudo são sonhos bem-resolvidos. Muitas vezes podemos estar diante de pesadelos, quando o continente psíquico não consegue processar determinados conteúdos. Neste trabalho, a partir da leitura de várias vozes sobre o Homem dos Lobos, procurei localizar o que para mim soava como um sonho e o que me parecia da ordem do pesadelo, para Freud, para Sergei Pankejeff e, principalmente, para os psicanalistas no contato com a obra de Freud. Neste último caso, pensar o quanto a idealização de Freud nos tem dificultado, assim como possivelmente dificultou para o Homem dos Lobos, seguir sonhando o impacto que o contato com sua genialidade provoca. Lembrar que se lê Freud imerso numa transferência transgeracional ainda sendo sonhada. E questionar o quão flexível tem sido o continente oferecido pelo grupo psicanalítico (um determinado imaginário que varia de lugar para lugar e que se espera que varie com a passagem do tempo) para propiciar que cada analista se aproxime da escrita freudiana com liberdade criativa, possibilitando um conhecimento enativo, que se constrói a cada momento através da experiência. Quanto mais afastados deste ideal, mais próximos de pesadelos.

 

Referências

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Correspondência:
Viviane Sprinz Mondrzak
Rua Carvalho Monteiro, 234/801
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Recebido em 3.6.2015
Aceito em 17.06.2015

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