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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo Apr./June 2015

 

OUTRAS PALAVRAS

 

A angústia em Freud e Lacan1

 

Angst (anguish) in the work of Freud and Lacan

 

La angustia en Freud y Lacan

 

 

Carlos BarredoI; Tradução Lunara Pilecco

IMembro titular com função didática da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA). Ex-presidente da APdeBA (2010-2012). Ex-coordenador científico da Fepal (2010-2012). Representante da América Latina na IPA

Correspondência

 

 


RESUMO

Tenta-se dar conta da originalidade da noção de "objeto a" e de sua coerência conceitual em diferentes momentos do ensinamento de Lacan. Descrevem-se suas consequências sobre a maneira de conceber o fim da análise, em suas diferenças com o fim freudiano. Postula-se um tipo de satisfação, que resulta mais de uma mudança de gozo do que de uma formulação articulável, como marca do fim, ligada a um giro teórico que enfatiza o real por fora do sentido.

Palavras-chave: angústia; objeto a; fim da análise; resposta do sujeito; satisfação final.


ABSTRACT

This paper represents an attempt to comprehend the originality of the idea of object a, and the conceptual coherence of that notion in different periods of Lacan's work. The author describes its effects on the way of thinking about the end of analysis, comparing with the Freudian idea of the end. As an end point, it's required a kind of satisfaction, which comes more from a change of enjoyment than from an articulated formulation - this satisfaction is related to a theoretical turn that emphasizes the real being noticed out of the sense.

Keywords: angst (anguish); object (petit) a; end of analysis; subject response; final satisfaction.


RESUMEN

Se intenta dar cuenta de la originalidad de la noción de objeto a y de su coherencia conceptual en distintos momentos de la enseñanza de Lacan. Se describen sus consecuencias sobre la manera de concebir el fin del análisis en sus diferencias con el fin freudiano. Se postula un tipo de satisfacción, que resulta más de un cambio de goce que de una formulación articulable, como marca del fin, vinculada a un giro teórico que enfatiza lo real por fuera del sentido.

Palabras clave: angustia; objeto a; fin del análisis; respuesta del sujeto; satisfacción final.


 

 

As referencias freudianas de Lacan em seus seminários são os textos Inibição, sintoma e angústia (1926[1925]1986b) e "O estranho" (1919/1986C), com os quais discute para ir construindo o que chamará de sua "invenção": o objeto a.

Noção complexa - com antecedentes na literatura psicanalítica no objeto perdido de Freud, no transicional de Winnicott ou nos objetos parciais da pulsão -, denominada somente por meio de uma letra: um a minúsculo, a exemplo de uma notação algébrica, que permita reconhecer sua identidade sob as diversas incidencias da sua aparição. Designar esse pequeno a com o termo "objeto", inevitavelmente, implica um uso metafórico que remete à relação sujeito/objeto, na qual o termo "objeto" constitui-se indicando a função geral de objetividade, quando o que se tenta referir com o termo a é um objeto alheio a toda definição possível de objetividade.

Objeto estranho este que carece tanto de imagem como de significante que possam representá-lo, que não se pode ver nem decifrar, que provém do real impossível de apreender por meios imaginários ou simbólicos, mas que apesar disso opera como causa de tudo o que se diz e o que se faz. Este objeto, que não pertence ao campo do sensível, não é da ordem do fenomenico, e sim da ordem do racional (noúmeno: realidade inteligível, criação da Razão); pode ser apenas intuído, mas não constatado, já que o único que se constata é o desejo, de que esse objeto constitui a causa.

Resultado de uma transformação que faz do objeto situável, encontrado por meio de referencias e intercambiável, algo privado e incomunicável, é o que Lacan representa com uma letra e o que lhe permite afirmar que a angústia "não é sem objeto". Fórmula que sustenta a relação de angústia com um objeto que não é o objeto de angústia, já que o uso do "não sem" (pas sans) não diz que se saiba de que objeto se trata.

Quando estes objetos não compartilháveis entram no campo do intercâmbio e tornam-se reconhecíveis, a angústia, que é sua única tradução subjetiva, mostra a particularidade do estatuto deles: são anteriores à constituição do objeto comum, comunicável, socializado.

A angústia introduz uma função radical em nosso campo: a função da falta, que é inerente à constituição da subjetividade tal como aparece pela via da experiencia analítica. A angústia não é um sinal de falta, mas sim da falta de apoio que a falta outorga. O que angustia é que a relação da falta com a qual a criança se institui, a falta que lhe faz desejo, perturba-se quando uma demanda incoercível da mãe impede, fecha, a possibilidade da falta, reduzindo a criança ao objeto demandado.

Para Freud, a angústia torna-se um sinal de perigo, mas se o ego é o lugar que o sinal ilumina, não é para ele, entretanto, que se emite o sinal, mas para que o sujeito se advirta de um desejo, de uma demanda que não concerne a nenhuma necessidade, senão a seu próprio ser, que o coloca em questão, que não se dirige a ele como presente, e sim como esperado. Este desejo do Outro o coloca em causa, o interroga na raiz de seu desejo como a, causa opaca à qual aponta em uma relação temporal de antecedência, que fica por trás, e não um objeto intencionado que teria pela frente. Essa dimensão temporal é a angústia, e é também a análise. A angústia em questão é aquilo que provocamos como analistas, algo que nos responde. É, contudo, o desejo de analista que suscita no analisando a dimensão da espera, que fica tomado na eficácia da análise.

Se o desejo, por um lado, implica a presença da cadeia significante que faz do mundo uma rede de marcas, as consequências dessa cadeia convertem o mundo do ser falante em algo enganador. A angústia, em troca, como corte sem o qual seria impensável o sulco do significante no real - corte que, ao abrir-se, deixa aparecer o inesperado -, nos permite orientar-nos; porém, o que esperamos e que faz a sua verdadeira substância é "isso que não engana". Assim, apenas a noção do real, na função opaca que se opõe ao significante, nos faz de bússola e para ali apontamos. O "algo" que Freud menciona ("a angústia é perante algo"), para o qual a angústia funciona como sinal, é da ordem irredutível do real. Daí que a angústia, modo em que o real se apresenta na experiência, seja sinal do que não engana.

É importante destacar, por um lado, a originalidade deste conceito, ao qual chamamos "o objeto a de Lacan", mas que de fato foi construído por ele, e, por outro, sua coerência conceitual com o que o autor veio desenvolvendo nos anos prévios ao seminário A angústia e com os seminários posteriores, quando enfoca o registro do gozo, os objetos "plus de gozar", o esquema dos discursos, as noções de lalangue e parlêtre, etc.

Gostaria de me centrar agora na seguinte ideia: se Lacan dedica um ano de seu seminário ao assunto da angústia como afeto determinante do trauma, é com o intuito de dissentir de Freud no que diz respeito ao ponto de detenção que constituirá a angústia de castração no final da análise. É a tese sustentada por Freud em "Análise terminável e interminável" (1937/1986a), uma consequência lógica de ter considerado a sexualidade como origem irredutível das neuroses e a angústia como monumento recordatório da excitação imanejável do trauma original, sinal de perigo iminente, e de conceber a transferência como o âmbito de repetição destas penúrias de infância, o que lhe permitiu sustentar seu mais além do princípio do prazer.

Agora, bem, se a transferência fica reduzida no regime de repetição dos afetos provenientes do drama infantil, embora estes sejam irredutíveis, a análise se vê levada, para além de seus efeitos terapêuticos parciais, a um final de reivindicação sem saída, dirigida ao analista em forma de sobrecom-pensação masculina ou de Penisneid.

Lacan agregará a esta concepção dia-crônica, de repetição do vivido, que insiste sobre o elemento histórico, a noção de uma dimensão sincrónica da transferência, em algo que está incluído, latente na posição do analista e onde jaz, no espaço que a determina, a função do objeto parcial. Esta função da análise como espaço ou campo do objeto parcial seria aquilo perante o que Freud se detém em "Análise terminável e interminável" (1937/19863).

A via que Lacan propõe para atravessar esse limite, por meio de sua noção de "objeto a", é bem ilustrada pelo fragmento de um romance de Herman Melville, Pierre ou as ambiguidades, citado por Deleuze em seu livro sobre o saber em Foucault:

Havia ainda milhões de coisas que não tinham sido reveladas a Pierre. A velha múmia está enterrada sob múltiplas faixas; falta tempo para desembrulhar este rei egípcio. Devido a isso, Pierre começava a atravessar com o olhar a primeira camada superficial do mundo, imaginava, em sua loucura, que tinha alcançado a substância não estratificada. Porém, por mais longe que os arqueólogos tenham descido nas profundezas da terra, não encontrarão mais que estrato sobre estrato, posto que, até o seu eixo, o mundo não é mais que superfícies superpostas. Ao custo de um imenso esforço abrimos uma via subterrânea na pirâmide, e ao custo de andar terrivelmente tateando chegamos ao habitáculo central. Com grande regozijo descobrimos o sarcófago, levantamos a tampa e... não há ninguém! A alma do homem é um vazio imenso e aterrorizante. (Deleuze, 1985/2013, p. 39)

Então, a questão será o que fazer com este horror do saber do meu ser, como objeto de refugo, nesse buraco do saber.

A análise empurra o analisando à revelação daquilo que ele não quer saber sobre si mesmo e das consequências do inconsciente, que supõe a relação com o sujeito suposto saber, enquanto programa sua caída.

O amor ao saber, que alimenta a transferência e demanda interpretação, apenas encontrará como resposta a "neutralidade benevolente" da regra de abstinência, e a expectativa do saber que põe em movimento a dimensão de espera da transferência tenderá a se ver decepcionada pelas revelações que emergem no terreno da associação livre, como tais, sempre parciais ou alusivas, nunca conclusivas, pois carecem de um termo que valha como última resposta. A verdade do inconsciente é, por estrutura, não total, apenas uma parte nas ressonâncias do equívoco. A repressão, a causa da Urverdrangung, nunca se levanta a não ser parcialmente. A hipótese trans-ferencial deve ser revelada no término da análise como uma ilusão operatória, mas enganadora; apesar disso, o inconsciente é um saber sem sujeito que, sendo inapreensível, determina a castração.

Esta desilusão estrutural, em que desemboca a experiência transferencial, leva a que os sentimentos depressivos sejam referidos em relação aos fenômenos do fim da análise. O modelo deveria ser o do luto, porém este término alude ao provisório do sofrimento, que depois do lapso do luto deve dar passo a outra coisa, mostrando que a insatisfação depressiva não é o afeto próprio do final.

Interessa destacar, especialmente, a diferença entre os efeitos estruturais da fase final, válidos para todos, e o que convoca a dimensão ética da resposta do sujeito diante da impossibilidade de saber, no que se faz a sua singularidade, já que Lacan define a ética como uma posição do sujeito a respeito do real e não a respeito das normas, dos ideais ou valores do discurso - posição que implica a responsabilidade do sujeito enquanto uma margem de liberdade, sem a qual ele seria só um brinquedo do inconsciente.

A postura de Lacan, através das diversas versões do fim da análise que formula no seu ensinamento, aponta sempre para o fato de que a frustração da transferência, a re-petição da demanda, é estrutural, mas que, não obstante, a expectativa do ser, ao término da experiência, pode - deve, inclusive - ser satisfeita. É um dever ético do analista não deixar o analisando nos enredos entre as esperas e as desesperanças transferenciais, privado do efeito terapêutico maior da análise: o efeito do final.

O sujeito que padecia dos efeitos do saber inconsciente sem sabê-lo, e que esperava reduzi-los, sabe agora do irredutível do saber no real, pelo que se vê afetado, e o que isso implica de incurável. É com esta revelação inesperada da análise que o sujeito se vê confrontado, podendo responder com uma opção íntima de rejeição (a reação terapêutica negativa descrita por Freud) ou de aceitação e consentimento, dando lugar a uma nova satisfação.

Aceitação não resignada do irredutível do saber inconsciente no real, que põe um término na busca do analisando, com o alívio conseguinte de poder concluir a análise depois de tanto tempo transcorrido. Consentimento que resulta dessa conversão de horror em entusiasmo que, para Lacan, origina e sustenta esse desejo inédito: o desejo de analista, que abre a possibilidade, para um sujeito que tem atravessado um processo de transformação na economia do seu desejo, de converter-se em analista. Posição subjetiva que, por outra parte, nem toda análise produziria.

Esta colocação evoca a questão freudiana de um estado do sujeito que apenas resultaria de uma experiência de análise; no entanto, fazer desse entusiasmo um signo necessário da existência do analista é dar à presença do afeto uma nova função, postulando que essa "escura decisão do ser", em sua contingência, adquire primazia sobre o saber adquirido. Disso pode concluir-se que o desejo de analista, muito menos frequente que o desejo de ser analista, não será igualmente acessível para todo analisando.

Durante a análise, na corrida atrás da ilusão da verdade, o sentido e o gozo do sentido cobram primazia sobre o real do gozo fora de sentido. Mas, para que haja um fim, Lacan sustenta que o real, contrapondo-se a essa corrida, deve pôr um freio aos amores com a verdade. A satisfação que marca o fim surge para interromper essa outra satisfação que esteve sustentando todo o processo da análise. Esta mudança de satisfação não obedece a nenhum automatismo; é somente possível, mas estar advertido dessa possibilidade como resultado de sua análise de formação é o que permite ao analista se colocar a serviço da transferência e de seus chamarizes.

Nova satisfação que indica um fim, menos ligado a uma conclusão articulada que a uma mudança de gozo e que, mais que um sinal dessa conclusão, é o que toma o seu lugar, vale por ela própria. Esta virada, mudança de rumo teórico, está relacionada com a ênfase que Lacan, nessa época, coloca sobre o real fora do simbólico, campo do vivente, que, por estar marcado por lalangue na pulsão e no sintoma, não deixa de constituir um desafio sobre o que disso, com certeza, se pode saber ou dizer. O que é certo é que afeta, e que isso não engana.

 

Nota

1 Trabalho apresentado na VII Jornada de Lacan na IPA, sobre a angústia, realizada na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 9 e 10 de maio de 2014

 

Referências

Deleuze, G. (2013). El saber: curso sobre Foucault (P. Ires & S. Puente, Trads., Vol. 1). Buenos Aires: Cactus. (Trabalho original publicado em 1985)        [ Links ]

Freud, S. (1986a). Análisis terminable e interminable. In S. Freud, Obras completas (J.L. Etcheverry, Trad., Vol. 23, pp. 211-254). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Freud, S. (1986b). Inhibición, síntoma y angustia. In S. Freud, Obras completas (J.L. Etcheverry, Trad., Vol. 20, pp. 71-164). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1926(1925]         [ Links ])

Freud, S. (1986c). Lo ominoso. In S. Freud, Obras completas (J.L. Etcheverry, Trad., Vol. 17, pp. 215-251). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Lacan, J. (2004). Le seminaire, livre 10: l'angoisse (19621963). Paris: Seuil.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Carlos Barredo
Armenia 2248 PB "A" (1425)
C.A.B.A. Argentina
calibar1@hotmail.com

Recebido em 11.5.2015
Aceito em 25.5.2015

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