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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo Apr./June 2015

 

OUTRAS PALAVRAS

 

O uso de histórias na clínica psicanalítica: uma experiência em oficina terapêutica com crianças em grave sofrimento psíquico

 

The use of stories in psychoanalytic practice: experiencing a therapeutic workshop with children in severe psychological distress

 

El uso de historias en la clínica psicoanalítica: una experiencia en taller terapéutico con niños que sufren grave angustia psíquica

 

 

Jéssica de Sousa VillelaI; Audrey Setton Lopes de SouzaII

IPsicanalista, mestre em Psicologia Escolar e de Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP), professora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Unidade de Lorena, SP
IIPsicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), professora doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) e membro e professora do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo estudar o uso de histórias na clínica psicanalítica com crianças em grave sofrimento psíquico. O tema surgiu a partir da própria experiência clínica, numa oficina terapêutica de história que era parte do dispositivo clínico Giramundo, da Clínica Psicológica da PUC-SP. Destacamos a importância de considerar a psicanálise como ferramenta de trabalho nos enquadres clínicos diferenciados, ou seja, a extensão da psicanálise para além do seu enquadre tradicional. O estudo foi realizado por uma leitura das situações e cenas vividas no encontro clínico e resgatadas de um registro textual, o Livro da oficina de história. De forma geral, notamos que o registro marca dois momentos principais: no primeiro o registro era uma narrativa do que acontecia na Oficina, enquanto no segundo momento as crianças tiveram um papel mais ativo na construção das narrativas, inventando histórias e experimentando o mundo do faz de conta. A experiência de vivenciar um eu-descrito possibilitou o surgimento de um eu-narrador - momento no qual as crianças eram, ao mesmo tempo, personagens e criadoras de personagens, e, de alguma forma, começaram a brincar de fazer histórias.

Palavras-chave: clínica psicanalítica; oficina terapêutica; sofrimento psíquico na infância; histórias; brincar.


ABSTRACT

This paper intends to study the use of stories in psychoanalytic practice with children in severe psychological distress. This subject was extracted from the clinical practice in a therapeutic workshop of stories, which was a part of Giramundo - a clinical device of Psychological Clinic in PUC-SP. We underline the importance of considering psychoanalysis as a work tool in the different clinical frames, i.e., the extension of psychoanalysis beyond its traditional framing. It is a study made by observing ("reading") scenes and situations which were experienced in clinical encounters and extracted from a textual record, the Book of the workshop of stories. Overall, we notice two main moments are pointed out in this record: in the first one, the narrative describes what was happening in the workshop, whereas, in the second moment, children took a more active role in the construction of the narrative, when they created new stories and experienced the make-believe world. It seems that the experience of a described-self enables a narratorself to emerge: that moment when children were, at the same time, playing characters and being character creators, and they somehow started playing by making-up stories.

Keywords: psychoanalytic practice; therapeutic workshop; psychological distress in childhood; stories; playing.


RESUMEN

Este trabajo tiene como objetivo estudiar el uso de historias en la clínica psicoanalítica con niños que sufren grave angustia psíquica. El tema surgió a partir de la experiencia clínica, en el taller terapéutico de historia que formaba parte del dispositivo clínico Giramundo de la Clínica Psicológica de PUC-SP. Destacamos la importancia en considerar el psicoanálisis como una herramienta de trabajo en los diferentes encuadres clínicos, es decir, la extensión del psicoanálisis más allá de su forma tradicional. El estudio fue realizado mediante la lectura de las escenas y situaciones vividas en el encuentro clínico rescatadas de un registro textual, el Libro del taller de historia. En general se observa que el registro posee dos momentos clave: el primero consiste en un relato de lo que sucedió en el taller, mientras que en el segundo momento los niños tuvieron un papel más activo en la construcción de las narraciones, inventando nuevas historias y experimentando el mundo imaginario. La experiencia de vivir un "yo-descrito" permitió el surgimiento de un "yo-narrador": momento en el cual los niños eran, al mismo tiempo, los personajes y los creadores de personajes, y de alguna manera comenzaron a jugar haciendo historias.

Palabras clave: clínica psicoanalítica; taller terapéutico; trastornos psicológicos en la infancia; historias; jugar.


 

 

Pretendemos neste trabalho defender a utilização de histórias na prática clínica com crianças em grave sofrimento psíquico. Para isso, nos servirá de ilustração o relato de uma experiência na oficina terapêutica de história que era uma das modalidades do Giramundo, da Clínica Psicológica da PUC-SP.1

O trabalho em oficina terapêutica é considerado um enquadre clínico diferenciado,2 isto é, uma extensão da psicanálise para além do seu enquadre tradicional: o consultório, com um analista e um analisando.

As crianças atendidas pelo serviço participavam semanalmente das oficinas terapêuticas de música, história e teatro, cada uma delas com duração de cerca de 40 minutos. No início e ao final da oficina de história, fazíamos todos - crianças e terapeutas - uma roda com entoação musical. As rodas buscavam dar um contorno ao setting analítico, serviam como uma marca concreta do início e do fim da oficina. Fora as rodas, a oficina não possuía um roteiro preestabelecido: seu "funcionamento" era bastante flexível e passou por várias mudanças ao longo do tempo.

Durante a oficina terapêutica de história, foi produzido o Livro da oficina de história, elaborado conjuntamente por crianças e terapeutas,3 entre 2007 e 2009. O objetivo do livro foi o de, inicialmente, agrupar as produções gráficas das crianças; posteriormente, o livro guardou o registro das histórias produzidas durante as oficinas.

O material da oficina - livros, revistas, papel - estava a serviço de um fazer terapêutico, e o ambiente teve papel fundamental em sua apresentação, pois o material ofertado às crianças não era necessariamente novo em termos de contato - elas podiam já ter visto um livro em casa ou na escola -, mas era novo num ambiente especializado e acolhedor do gesto de cada criança em relação a ele.

O foco, portanto, estava nas relações possibilitadas pelo ambiente, na qualidade do contato. Essa característica pôde configurar uma nova experiência, pois o fazer só é terapêutico na medida em que favorece o desenvolvimento emocional, a espontaneidade e o gesto criativo.

A oficina de história constituiu-se não enquanto técnica, mas como nova possibilidade de experimentar um fazer criativo e, quando possível, um fazer junto com o(s) outro(s). Dessa forma, o trabalho oferecia um novo mundo a essas crianças e, talvez mais do que isso, a possibilidade de criar um mundo. Nesse sentido, entendemos que inventar uma história em conjunto aproxima a vivência de se construir um mundo junto.

Trabalhamos com a hipótese de que contar histórias é uma das formas de organizar a experiência vivida. Benjamin (1994) não distingue a experiência transmitida pelo conteúdo de uma história e a experiência de se ouvir ou ler uma história. Para o autor, a narrativa tem sua fonte na oralidade; isto significa que, tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma, ela cumpre as mesmas funções de uma história na tradição oral, ou seja, possibilita uma nova experiência. Seguindo Benjamin, também consideraremos as histórias dessa maneira; faremos, entretanto, uma distinção entre a experiência de se ouvir/contar/ler uma historia (formas de acesso a seu conteúdo) e a experiência de se criar uma história (que será melhor analisada no relato e na discussão da experiência clínica).

A experiência com as histórias (de ouvir, ler ou criar) favorece a construção de novas possibilidades para a criança. Ao entrar em contato com uma história, a criança transita entre as palavras e as imagens e ideias que se constituem a partir delas, entrega-se à história pelo sentido das experiências narradas ali, e não pela veracidade dos fatos contados. Tomemos como exemplo o conto "A gata borralheira", que narra as desventuras de uma jovem órfã aos (des) cuidados da madrasta e de duas irmãs invejosas, mas que, naturalmente, pode dizer respeito a qualquer criança que se sinta rivalizada pelos irmãos e injustiçada pelos pais, entendendo que "irmãos" e "pais" podem ser quaisquer outras pessoas.

A história ocupa, então, o lugar entre a vivência do mundo externo, do ambiente (pais, irmãos vivendo suas próprias vidas e em relação com a criança), e a vivência do mundo interno (as fantasias, medos e desejos da criança em relação aos mesmos pais e irmãos). As histórias podem ser consideradas, portanto, fenômenos transicionais, uma vez que se localizam numa "área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade externa quanto a vida interna" (Winnicott, 1971, p. 15).

Rodulfo destaca o papel da transicionalidade na constituição do mundo simbólico: o objeto transicional "não tem valor simbólico, não substitui o objeto faltante ou perdido" (2009, p. 47), mas, primordialmente, capacita a criança a simbolizar.

A criança precisa de um período de tempo no qual experiências estáveis nos relacionamentos podem ser utilizadas para o desenvolvimento da área intermediária, na qual fenômenos transicionais ou lúdicos possam se estabelecer para a criança. [...] Desse momento em diante, a criança pode desfrutar tudo o que deriva do uso do símbolo, pois o símbolo da união proporciona um alcance mais amplo à experiência humana do que a própria união (Winnicott, 2005, p. 130).

Dessa maneira, percebemos que a capacidade de simbolização tem estreita relação com o desenvolvimento da área que os fenômenos transicionais ocupam. Winnicott postula o lugar do brincar entre o mundo externo e o mundo interno, área intermediária em que, como dito antes, também se situam as histórias, que favorecem o trânsito e a comunicação entre esses espaços. Em outras palavras, as histórias contribuem para o desenvolvimento e o enriquecimento da capacidade simbólica; favorecem a articulação da rede de todas as funções e tarefas pelas quais passamos para o desenvolvimento do sentimento de si mesmo.

Nesse contexto, constatamos que as histórias podem constituir-se como brincar, conforme proposto por Winnicott, não apenas por aquilo que as caracteriza, mas pela sua função. As histórias constituem-se na busca por permanência, no trânsito de experiências e na afirmação de um viver criativo.

As histórias veiculam experiências que não são de um homem em particular, e sim, potencialmente, de todos os homens, uma vez que são fenômenos transicionais. Muitas vezes apresentam à criança e recuperam ao adulto experiências primordiais e, nesse sentido, estão relacionadas à natureza humana de forma mais significativa do que a realidade factual do mundo. Portanto, o acontecer humano se dá fundamentalmente no lugar intermediário da experiência - a criança contamina o mundo e é, ao mesmo tempo, contaminada por ele. Uma das possibilidades de adoecimento psíquico, então, se dá quando a experiência transicional não se constitui de forma satisfatória e o indivíduo opera psiquicamente num dos dois extremos entre os quais a transicionalidade se interpõe.

Compreendemos que, dentre as diversas formas de existir, há organizações psíquicas não moldadas em termos pessoais, isto é, indivíduos que não se tornaram pessoas e vivem uma espécie de não existir em vida. Houve uma falha nas tarefas básicas de constituição do si mesmo. "Em casos graves, tudo o que importa e é real, pessoal, original e criativo permanece oculto e não manifesta qualquer sinal de existência. Nesse caso extremo, o indivíduo não se importaria, de fato, em viver ou morrer" (Winnicott, 1971, p. 99).

Uma vida não pessoal é extremamente restrita em função da falta de movimento e dinamismo psíquicos; o trânsito de experiências fundamentado na transicionalidade fica comprometido, podendo haver a incapacidade de articulação das experiências, a incapacidade de transitar suas vivências.

No entanto, Winnicott defende a ideia de que a criatividade permanece potencialmente em todos os indivíduos, pois, "oculta em alguma parte, existe uma vida secreta satisfatória, pela sua qualidade criativa original a esse ser humano" (1971, p. 99).

Adotar essa perspectiva clínica significa aceitar que essa capacidade criativa potencial pode ser vivida e favorecida se pudermos oferecer a essa personalidade sofrente novas experiências, num ambiente especializado. Assim, a tarefa clínica se organizará de forma a favorecer, através do acolhimento de qualquer gesto espontâneo, o resgate do brincar e, dessa maneira, uma relação criativa da criança com a própria vida. De acordo com Winnicott, "é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu" (1971, p. 80).

Assim, ao contar uma história a essa criança - cujo desenvolvimento emocional está paralisado ou desorganizado - buscamos arejar sua experiência pessoal, dar elementos a esse viver. Nesse sentido, contar uma história é uma maneira de promover um contorno à experiência fragmentada da criança em sofrimento psíquico. E criar uma história junto com essa criança é uma possibilidade de experimentar o brincar criativo para nele encontrar sentidos relativos à sua própria vida.

 

Considerações metodológicas

O relato da experiência em oficina intenta ilustrar como o uso de histórias na clínica psicanalítica pode favorecer (ou restabelecer) uma vivência mais criativa e pessoal. Com esse intuito, realizaremos a análise de algumas histórias do Livro da oficina de história, pois entendemos que o registro do livro comporta a expressão daquilo que foi vivenciado nas oficinas e, portanto, pode servir como ilustração da experiência de contar histórias e criar histórias no encontro clínico com crianças em grave sofrimento psíquico.4

Optamos por realizar uma leitura do material selecionado buscando regularidades e diferenças (no texto e na vivência que este condensa) que permitam atribuir significados às histórias e entrar em contato com os conteúdos latentes daquilo que está registrado, em um movimento que se inicia no plano descritivo e atinge o plano compreensivo, como também parte do concreto em direção ao mais abstrato: em direção ao sentido e à experiência. Ao considerar que há um conteúdo latente no registro textual, adotamos uma perspectiva psicanalítica na metodologia do nosso trabalho.

Seguiremos num horizonte de compreensão que busca entender as transformações que a oficina possibilitou ao grupo de crianças e terapeutas em oficina, no período em que as narrativas que seguem ocorreram. Ressaltamos que um longo trabalho foi necessário antes da confecção do livro da oficina, pois muitas crianças nunca haviam visto ou manuseado um livro: o colocavam na boca, o amassavam etc. Com o tempo, entenderam a finalidade do objeto e o buscaram por outros sentidos e para outras experiências.

As histórias selecionadas eram compostas durante a oficina: os terapeutas diziam em voz alta o que estavam escrevendo; assim, a história era narrada e registrada ao mesmo tempo. Com efeito, devemos considerar que muitos aspectos importantes num trabalho clínico - tais como a história de vida de cada criança, sua composição familiar, dados pessoais etc. - serão aqui deixados de lado, embora fossem considerados no trabalho realizado em oficina terapêutica e nos núcleos do Giramundo.

 

Relato da experiência

Primeiro momento: eu-descrito

As histórias selecionadas nos permitem considerar alguns pontos em relação à presença e participação das crianças em oficina como parte do grupo. De forma geral, vemos que o registro do Livro da oficina de história marca dois momentos principais: no primeiro momento, o registro era uma narrativa do que acontecia na oficina, quem estava presente, o que estava fazendo etc., e uma história se desenrolava a partir daí.

HISTÓRIA 1

Era uma vez um menino [numa] oficina de história. Ele estava conhecendo os livros, porque não tinha muito contato com eles. Ele gostou muito do livro da Moranguinho.

Esse menino era animado e gritava bastante. Gostava de se mexer muito. Ligava sempre a torneira. Esse menino chamava Edu.

O outro menino se chamava Léo. Ele conhecia o alfabeto todo, gostava das letras, de escrever e dos livros. Fazia muitos barulhos com a boca.

Os dois meninos gostavam de ouvir barulhos (com a boca ou com as coisas). Um dia, todo mundo começou a fazer barulho e todos estavam felizes.

Edu estava prestando muita atenção em Léo e (Edu) fez carinho na cabeça dele. Foi muito legal, porque foi a primeira vez que ele ficou mais tempo na oficina.

E quando essa história foi feita, as duas terapeutas perceberam que Edu e Léo estavam prestando atenção na história. Foi um momento em que todos estavam juntos.5

Nesse primeiro momento, fazer uma história correspondia, em grande medida, a descrever o que estava acontecendo, o que as crianças estavam fazendo. Essas histórias descritivas tinham uma função muito importante e organizadora para os terapeutas. Retomando-as, percebíamos que era nos momentos de maior "desorganização" das oficinas que optávamos por escrever uma história, para que aquelas experiências, agora transformadas em palavras, pudessem amenizar nossas angústias e fornecer a ilusão necessária de que fazíamos alguma coisa juntos.

Essas histórias serviam como eixo organizador também para as crianças, na medida em que eram contadas e retomadas constantemente nas oficinas pelas crianças que buscavam o Livro da oficina. Levando em conta que a experiência clínica é conjunta, afeta tanto o analista quanto o analisando, a sensação de que os terapeutas faziam algo junto com as crianças quando descreviam o que estava acontecendo possibilitou a existência de novos momentos e outros sentidos para aquilo que estava sendo narrado. Era como se os terapeutas começassem a brincar de estar juntos com as crianças, experimentar dar nomes, descrever aquilo que acontecia. Podemos pensar que essa acolhida dos gestos esboçados pelas crianças em oficina já ilustrava a emergência do aspecto criativo no grupo. A vivência narrada não apenas se tornava comum e passível de ser partilhada como também criava um espaço entre a criança e a sua história.

HISTÓRIA 2

Era uma vez uma oficina com pouca gente: T., C., Léo, Edu e U. Logo no começo, Edu parecia estar com uma dor muito grande. Será que era saudade? Será que era raiva? Será que era tristeza? A gente não sabia o que era, mas será que ele sabia?

O Edu saiu da sala com U., depois de ter gritado muito, chorado e batido no tanque. Enquanto isso, Léo tapava os ouvidos. Parecia que não queria saber o que estava acontecendo...

Algumas vezes [Léo] ficava de costas para a gente, e outras [vezes] chegava bem pertinho. Acho que [ele também não sabia] o que queria. Será que foi difícil ver Edu daquele jeito? Será que queria "fingir" que nada daquilo estava [acontecendo]? Será que os barulhos que ele fazia com a boca eram uma forma de se expressar?

Ficaram muitas perguntas nesta oficina, mas deu pra perceber que foi difícil para Edu, que saiu da sala, e para Léo, T. e C., que ficaram.

Embora descritivas, essas histórias forneciam uma possibilidade de experiência para além da descrição, despertavam ressonâncias nas crianças, que agora podiam ouvir a respeito de si mesmas numa organização narrativa.

A criança personagem podia ser vista como uma outra criança; uma criança que gostava de barulhos, uma que gostava do alfabeto e outra que nos intrigava: chorava por fome? Por medo? Por raiva? Não sabíamos as respostas, e as histórias tecidas pela matéria-prima daquelas experiências também não as forneciam. Em oficina, sugeríamos, nos intrigávamos e escrevíamos, e esse fazer contornava as experiências dos pequenos oficineiros. Ao dar contorno, podemos pensar que parte da experiência estava sendo organizada.

Os terapeutas, ao contar e criar as histórias, possibilitavam às crianças criar novas imagens e um saber a respeito de si. As nossas próprias dificuldades eram também registradas, e o registro do não saber introduzia um sentido para a própria experiência, que poderia ser entendida como uma ação ou cena sem sentido. Nomear a situação aparentemente sem sentido era também uma forma de contornar e de possibilitar, pela indagação, um sentido para a vivência descrita.

Segundo momento: eu-narrador

Já o segundo momento de participação das crianças em oficina que destacamos aponta para um papel mais ativo das crianças na construção das narrativas, inventando histórias novas e adentrando no mundo do faz de conta.

Quando contávamos as histórias registradas, cada criança tinha a chance de se ouvir ou de se enxergar de um outro lugar. Quase intuitivamente, passamos a construir um caminho em que as nossas vivências em oficina se tornavam algo fora, algo que podia ser retomado concretamente, que podia não apenas ser lembrado, mas também manuseado na forma de um livro de registro.

A história 3 marca a transição entre os dois momentos citados - entre o momento em que as histórias descreviam o que acontecia nas oficinas e o momento em que as crianças puderam criar histórias junto com os terapeutas.

HISTÓRIA 3

Era uma vez o aniversário da Ana e teve uma festa na casa dela. Tinha bexiga, desenho, bolo de chocolate, música, dança, risadas e palhaço que dava risada.

Todo mundo estourou as bexigas ao mesmo tempo. Estavam: Hugo, Léo, Edu, Iara, J., M. e T.

T. comeu o bolo todo e o brigadeiro sumiu! Hummmm! Brigadeiro é boooom! Será que foi o Léo que comeu? Tinha também barulho do palhaço e de gente conversando: blá-blá-blá.

O Edu estava jogando bola, enquanto Hugo procurava os brigadeiros. Iara estava triste na festa, mas ninguém sabia [por quê]. O palhaço conseguiu animar a Iara! Será que o palhaço dá medo nela? Será que o trator vem?

A história inventada está ancorada na vivência que uma das crianças compartilhou em oficina: Ana contara que seu aniversário tinha sido alguns dias antes e então, juntos, imaginamos como seria sua festa, inventando uma história. A partir disso, pudemos acessar as diferentes experiências das crianças em relação a uma festa de aniversário: estourar balões, comer bolo, ver palhaços etc.

O barulho feito por uma das crianças (Edu), que se mantinha mais afastada do grupo, foi acoplado à narrativa por outra criança, que disse que era barulho de palhaço, e assim por diante. Um movimento similar (por parte das crianças) se deu com Iara, que não estava em "clima de festa", mas foi animada pelo palhaço-criança.

Também destacamos o surgimento do elemento "trator" na história. Numa oficina de passeio, fomos visitar um parque estadual e vimos um trator que se movimentava devagar e fazia muito barulho, e essa figura despertou um medo enorme em Ana. Algum tempo depois, na oficina de história, compondo uma narrativa com aquele grupo, ela pôde retomar a experiência do trator, vivida juntamente com o grupo. As oficinas abarcavam também os temores e ansiedades que muitas vezes desorganizavam as crianças.

É importante notar que as próprias crianças incluíam as que tinham maior dificuldade de comunicação na feitura da história, como era o caso de Edu, que, embora bem comunicativo, não falava, mas tinha a participação garantida por Hugo, que o ouvia e entendia que ele fazia o barulho do palhaço. Muitas vezes as histórias eram, de fato, experimentadas em oficina: escrevíamos "cantamos 'Parabéns' para Ana" e lá estávamos em volta de Ana cantando "Parabéns". Os gestos e sons nascidos da narrativa davam ainda mais colorido às histórias criadas: nos divertíamos na confecção de cada uma delas.

No novo momento, as contribuições partiam de situações que as crianças traziam à oficina e, posteriormente, a iniciativa de inventarmos uma nova história também surgia diretamente das crianças. Dessa forma, pudemos constatar que é necessário ser para poder criar e fazer; e este foi o caminho psicoterapêutico que construímos juntos em oficina, em que partimos de uma experiência aparentemente indiferenciada com o mundo, na qual surgia um fio de criação e experimentação - fio com o qual muitas tramas podiam então ser arranjadas. Trilhou-se um caminho rumo à alteridade.

A alteridade "é o objeto percebido como outro diferente do self e irredutível ao self' (Rodulfo, 2009, p. 42). Com efeito, alteridade é uma aquisição em termos de desenvolvimento emocional, é a percepção e sensação de que há algo que "sou eu" e algo diferente de "eu", externo a mim. Assim, a alteridade capacita a criança a realizar o movimento de se ver de fora, como outro (percebido objetivamente), para reconhecer a si mesmo naquele outro.

Podemos perceber, portanto, a passagem do eu-descrito para o eu-narrador. O eu-descrito é descrito pelo outro, por outra pessoa: a criança tem a possibilidade de se ver através do eu-descrito, de retomar a si mesma a partir de algo fora dela. A posição das crianças em relação às histórias inventadas, no entanto, é outra, com outra qualidade de participação, uma vez que as criam.

HISTÓRIA 4

Era uma vez a chuva de verão no zoológico. Logo que parou de chover abriu um céu azul com algumas nuvens. Passou uma nuvem escura.

Começou a chover quando estávamos vendo o elefante. Até batemos palma para a chuva, de tanto calor que estava. Fizemos o caminho do alfabeto para ver os bichos. Estávamos prestando atenção no búfalo quando o céu ficou pretão. Ventava tanto e chovia tanto que os lobos começaram a uivar, e saímos correndo para procurar um teto.

Parou de chover e fomos andar a cavalo.

Iara gostou muito! Até que ouvimos um barulho estranho. Será que foi o hipopótamo que quebrou o espelho do zoológico? Depois outro barulho: era o uirapuru?

Então ouvimos o canto desse passarinho e começamos a [assobiar]. Fiu-fiu-fiu...

Por último, vimos a zebra, que é a última [letra] do alfabeto. Aproveitamos que o céu estava meio azul e fomos embora cantando a música "Era uma vez [uma oficina de histórias, toda quinta-feira, e esta termina agora]"...

Nessa história, as crianças eram elas próprias as personagens, mas o cenário da história - o zoológico - não fazia parte da experiência conjunta do grupo. As crianças trouxeram alguns aspectos climáticos para dentro da narrativa, se aproximaram de uma experiência cotidiana e sensível a todas elas (sentir frio, sentir calor, sentir a chuva cair no corpo). A chuva, na verdade, correspondia aos barulhos que Edu e Hugo estavam fazendo quando batiam numa lâmina e, depois, faziam barulho de trovão com a boca.

Os animais que visitávamos foram selecionados de um livro que Léo folheava enquanto construíamos a história: "Qual animal vamos ver agora, Léo?"; "Búfalo, búfalo" ele nos respondia, e lá íamos criando a nova cena. Léo havia se incluído na criação da trama por um meio concreto - o livro - e, aos poucos, foi passando a ter uma participação maior no passeio ao zoológico, experiência abstrata, de faz de conta. O fim da história coincidiu com o fim da oficina e a nossa roda de finalização ficou registrada no papel.

A experiência das crianças no grupo começou a ser ampliada pela possibilidade de exercício de um fazer criativo. Podemos perceber já nessa história a construção de um mundo comum desse grupo de crianças. Elas eram, ao mesmo tempo, personagens e criadoras de personagens; de alguma forma, começaram a brincar de ser outra pessoa nas histórias posteriores.

HISTÓRIA 5

HISTÓRIA 5a - UM PASSEIO PELA CIDADE Estávamos andando na calçada quando de repente vimos um caranguejo verde. Foi engraçado, porque nunca tínhamos visto um caranguejo assim.

Dissemos: "Bom dia, caranguejo!"

"Bom dia!", respondeu o caranguejo, "Que lindo dia de sol!"

"Caranguejo, o que você está fazendo aqui na calçada da cidade?", perguntamos.

"Uhrahuplu", respondeu com um barulho estranho. E disse: "Eu queria conhecer a cidade, andar de trem."

"Caranguejo, nós somos da cidade! Venha, que vamos te mostrar tudo! Vamos mostrar as escolas, os supermercados, os carros, os circos, os parques, os museus, os cinemas, as casas e apartamentos, o metrô... Puxa, mas a gente nem sabe o seu nome. Como você se chama?"

"Eu me chamo 3224 4000."

"Nunca ouvimos um nome assim. E nem vimos um caranguejo na cidade, muito menos [um] verde! Que situação gozada!"

Nessa história, podemos perceber claramente a introdução de elementos criativos por parte das crianças. Nunca havíamos dado nome - um título - às nossas histórias. Nessa oficina, após a roda de abertura, Ana pegou o Livro e balbuciou o nome da história.

As crianças dão voz e vida ao caranguejo. Ana diz que o caranguejo é verde; quando perguntamos o que ele estava fazendo na cidade, o caranguejo nos responde com o mesmo som gutural que Edu sempre emite; o caranguejo Hugo nos conta que quer conhecer a cidade; e o caranguejo Léo nos diz que se chama 3224 4000. Não é à toa que o final da história transmite certa surpresa: "que situação gozada" experimentamos ao brincar de criar uma história com os oficineirozinhos!

HISTÓRIA 5B

No caminho, atravessamos ruas, vimos uma oficina de moto, carros, ônibus, prédios, árvores, pessoas andando e passeando com cachorros. Também escutamos barulhos de carro, de buzina que fazia "fon-fon", "bi-bi-fon-fon", "béeee"... Ouvimos também barulho de pássaros que faziam "piu-piu", de crianças gritando na escola [e] fazendo bagunça.

Chegando ao Museu das Invenções, vimos muitas coisas diferentes. Tinha muito barulho! Vimos uma coisa legal: um álbum de fotos que falava, um teclado de computador e um piano [que eram] moles, de borracha. E nessa hora percebemos que essa história juntava coisas que vivemos e que encontramos no mundo, por aí, e coisas que inventamos.

Duas oficinas depois e ainda estávamos passeando pela cidade com o caranguejo verde. As crianças sugeriram que fôssemos ao Museu das Invenções, lugar que havíamos conhecido recentemente numa oficina de passeio. Até a criação dessa história não havíamos nos atentado ao fato de que o trajeto até o Museu havia sido tão significante para elas. Em função de o Museu das Invenções ser bem próximo à Clínica Psicológica, realizamos o trajeto a pé. E tal experiência foi retomada com uma ênfase maior pelas crianças na feitura dessa história do que as vivências no próprio Museu. É como se o setting de cuidado das oficinas (talvez, enquanto uma sensação de cuidado/acolhimento) tivesse sido transportado para as ruas pelas quais transitávamos, e fosse sustentado pela presença dos terapeutas. Assim, estar no mundo de forma corriqueira e cotidiana talvez tenha configurado uma experiência inédita para as crianças.

HISTÓRIA 5C

Então chamamos o 3224 4000: "Oh, você aí! Venha, 3224 4000! Vamos para um lugar animado. Vamos para o Playcenter!" O caranguejo gostou tanto da ideia que deu um pulo que não imaginávamos que ele podia dar. Mas bem nesse dia começou a chover. Será que a gente devia ir mesmo assim?

Resolvemos ir mesmo assim, e foi bom porque no caminho abriu o sol. Chegando lá, ensinamos para o caranguejo que na cidade há vários lugares [em] que precisamos usar dinheiro. No Playcenter temos que pagar para entrar. "Quanto custa?", perguntamos. "É R$ 15", respondeu o moço do caixa. E o caranguejo já tinha dinheiro para pagar.

Entramos. O primeiro brinquedo [ao qual] levamos o caranguejo foi a roda-gigante. Depois fomos ao carrinho bate-bate. O Hugo era muito barbeiro.

Então nós fomos lanchar e comemos um belo sanduba. Hummm!

Veio o garçom: "O senhor aceita alguma coisa?"

M. estava indeciso, mas escolheu um sanduba de mortadela e suco de laranja. O garçom não queria trazer o suco sem açúcar. M. e o garçom discutiram muito tempo sobre isso. Ana aceitou a sugestão do garçom: hambúrguer de carne e suco de maçã. Léo não quis comer. E depois, T. quis um milk-shake.

Continuamos nosso passeio pela cidade. Nessa história, fomos a um parque de diversões e pudemos encenar todas as situações descritas na história. No começo da oficina, Edu entrou na sala do espelho6 e fez um pouco de barulho: pronto, começou a chover! Mas logo ele voltou e se juntou a nós; assim, o sol se estabeleceu com força e pudemos, todos juntos, continuar o passeio. Pagamos a entrada ao moço do caixa. Brincamos de roda-gigante e de carrinho de bate-bate. Hugo brincou de ser garçom, mas não se conformava com algumas escolhas dos clientes: "Suco sem açúcar?! Blé!", e queria que todos os clientes aceitassem suas sugestões; em função disso, discutiu por muito tempo com o cliente M. a respeito de seu suco sem açúcar.

Houve um "clima" de cumplicidade muito grande nessa oficina, estávamos todos engajados no mesmo fazer - até mesmo Edu, que no começo da oficina "ameaçou" ficar nos bastidores, pôde entrar no jogo e criar aquelas cenas.

Na semana seguinte, mal terminamos a roda de entrada da oficina e o cenário da lanchonete do parque de diversão já estava a postos na imaginação dos oficineiros. As cenas foram retomadas e continuadas, ilustrando uma facilidade na nova brincadeira inventada, uma certa intimidade em se criar algo junto.

A História 5 tem uma característica que a diferencia das demais: ela aconteceu e se desenrolou por nove oficinas (aqui descrevemos apenas três partes da história). Assim, tal qual a criança que repete a brincadeira - ou pelo conteúdo que a diverte, ou por viver, a cada repetição, um novo sentido -, essa história foi retomada por nove vezes seguidas. Poderiamos argumentar que o que se deu não foi uma repetição, já que a cada oficina uma nova história era inventada; no entanto, a repetição se deu na atitude das crianças. Mal chegávamos à sala e fazíamos a roda, e as crianças iam lá buscar o livro para que continuássemos nossa aventura: "Vamos continuar na lanchonete hoje?"

A repetição diz respeito ao sentido que inventar histórias possibilitou à vida pessoal de cada criança e ao grupo: finalmente elas puderam brincar de ser outras pessoas. Também os cenários que constituem a longa História 5 eram trazidos da experiência pessoal de cada criança em seu cotidiano, e já lhes era possível compartilhar, minimamente, essas situações. O trecho "percebemos que essa história juntava coisas que vivemos e que encontramos no mundo, por aí, e coisas que inventamos" (História 5b) nos mostra de que forma a experiência passada e compartilhada pôde ser retomada e elaborada enquanto narrativa. A experiência coletiva pôde ser transformada e transformadora para a posição das crianças em oficina. Podemos observar as mudanças descritas não apenas pelas histórias, mas pela própria percepção dos terapeutas; o relatório da oficina elaborado durante esse processo7 contém a seguinte passagem:

Percebemos três tempos possíveis na confecção das histórias: o tempo do passado, em que se recupera algo que já aconteceu (história do grupo, história individual ou eventos do mundo); o tempo do presente, em que se nomeia o que está acontecendo no aqui e agora e se desenvolve uma narrativa a partir disso; o tempo de invento, em que se constrói uma história inventada, de faz de conta.

Vemos que a mudança da presença das crianças em oficina transformou a percepção dos terapeutas a respeito do próprio grupo. A diferença notada no tempo das histórias é um fator a ser considerado. As histórias do "aqui e agora" eram as histórias relativas ao eu-descrito: as crianças ouviam suas situações e aquilo que elas despertavam nos narradores durante a realização das oficinas; dessa forma podiam entrar em contato com a ressonância de suas ações nesse outro ambiente. Em seguida, percebeu-se o surgimento de um "tempo de invento", tempo que não é passado nem futuro, mas é o tempo de possibilidades que o eu-nar-rador inaugurou, o tempo de experimentação, invenção e criação de novas tramas. Assim, consideramos que há uma diferença qualitativa na experiência de ouvir uma história e na experiência de criar uma história; e essa diferença indica uma conquista na forma dessas crianças de estar no mundo, ainda que circunscrito pela oficina.

 

Discussão

Entendemos que uma história é uma expressão coletiva que acarreta diversas ressonâncias na experiência individual. A possibilidade de compartilhar histórias em oficinas (mesmo de uma forma que poderíamos considerar precária) só se deu a partir de um imenso trabalho de acolher desde o mínimo gesto criativo das crianças, o que transformou a própria experiência pessoal e coletiva, tornando o brincar uma direção possível. De acordo com Kupermann:

O sentido de existir coincide com a possibilidade de um gesto criador, e a criatividade, por sua vez, depende da competência do ambiente em propiciar a experiência ilusória da onipotência a partir da qual a criança transitará em direção a uma contínua e gradual adaptação ao sentido de realidade - por meio de processo evolutivo que passa dos fenômenos transicionais para o brincar, deste para o brincar compartilhado e, finalmente, para as experiências culturais (2008, pp. 182-183).

É importante apontar que as mudanças descritas neste trabalho não significaram uma "cura" dessas crianças. Boa parte de suas dificuldades permaneceu, mas em alguns momentos essas crianças puderam, cada qual a seu modo, brincar. Também temos de considerar que todas as crianças eram acompanhadas em outros espaços psicoterapêuticos - análise individual e/ou familiar, acompanhamento terapêutico etc. - e que as pequenas vitórias em cada oficina nunca eram, dessa forma, vitórias solitárias.

No encontro clínico, as crianças tiveram seus gestos acolhidos e significados: sua experiência ganhou contorno, se transformou em palavra, virou história que foi colocada num livro e compartilhada. As crianças experimentaram continuidade e puderam viver de outra forma as relações entre si e com os terapeutas.

Neste ponto é importante retomar a questão de ser no pensamento winnicottiano; os estados de sofrimento psíquico são considerados sob a ótica da luta por ser. Tomar esse sentido na clínica psicanalítica significa sustentar sempre a aposta de que cada pessoa, por mais grave que se apresente em termos psicopatológicos, luta por se tornar alguém, por um sentido de ser. Nessa perspectiva, o papel do ambiente na clínica é o de poder restabelecer, a partir do cuidado e da confiança, o cenário ideal para o indivíduo vir a ser, para se manifestar e desenvolver, ser acolhido, espontâneo e criativo. Segundo Vaisberg (2004), na clínica winnicottiana "se pode lidar com o que aconteceu ao indivíduo antes de este estar capacitado a articular simbolicamente sua experiência emocional e também com o que não aconteceu, mas deveria ter acontecido" (p. 42).

Kupermann (2008) aponta que o trabalho clínico com essas crianças "assume como meta facilitar a emergência de processos criativos nessas mesmas subjetividades sofrentes" (p. 174). Assim, o encontro clínico pode abrir espaço para a retomada de um desenvolvimento paralisado, o que justifica a importância da narrativa - presente no brincar, na leitura e na criação de uma história - no processo clínico, evidenciando a narrativa enquanto expressão fundamental do viver criativo. Ouvir, contar e criar histórias recuperam vivências pessoais, a história individual é ressignificada a partir das histórias imaginadas.

Considerando que a impossibilidade de fundar uma história em termos pessoais é uma das principais características de crianças em grave sofrimento psíquico, podemos pensar que inventar uma história é, então, poder deixar aparecer, através da invenção de um mundo fantástico, a descoberta de um mundo pessoal. Da mesma forma que uma criança que brincou já é outra criança, uma criança que esboçou a invenção de seu mundo já vive uma nova história.

 

Considerações finais

Buscamos neste percurso delinear apontamentos sobre a utilização de histórias na clínica psicanalítica com crianças em grave sofrimento psíquico. Preocupamo-nos em evidenciar a possibilidade de essas crianças sofrentes vivenciarem narrativas.

Entendemos que o uso de histórias na clínica favorece ao analisando uma nova relação com o mundo e consigo mesmo, possibilita o trânsito de experiências que destacamos como a característica fundamental da transicionalidade. Nesse sentido, criar uma história instaura esse caráter constante de contato e troca com o mundo: uma constante renovação.

Contar histórias é o modo como o homem excede a si mesmo, configurando-se substancialmente como vir a ser. As histórias são uma expressão original do existir humano e contar histórias num trabalho clínico é um modo de se entrar em contato com a dimensão humana por excelência. O caráter terapêutico das histórias é a própria possibilidade de experimentá-las, muito mais do que extrair seus significados.

Criar histórias com crianças sofrentes é, antes de tudo, uma crença na preservação do caráter humano, mesmo nas vivências mais limitadas e fragmentadas. Crê-se não na cura absoluta, mas na possibilidade de cultivo de uma experiência fundamental. As histórias inventadas proporcionam um universo profundamente humano e garantem um direito muitas vezes vedado a crianças em grave sofrimento psíquico: o direito de poderem também elas exceder a própria realidade. Por fim, defendemos a importância do uso de histórias na clínica psicanalítica, uma vez que, participando de histórias inventadas, contadas ou criadas, a criança tem a oportunidade de ser autora e protagonista de uma nova história.

 

Notas

1 Giramundo Oficinas Terapêuticas e Inclusão era o dispositivo terapêutico destinado ao tratamento de crianças e adolescentes com graves transtornos psíquicos e de seus familiares; modalidade de Aprimoramento Clínico e Estágio para os alunos do último ano da graduação do curso de Psicologia na Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic, clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

2 Vários autores contemporâneos consideram essa extensão: Fabio Herrmann (clínica extensa) e Antonio Lancetti (clínica peripatética), por exemplo.

3 Termo usado para estagiários, aprimorandos, colaboradores e auxiliares voluntários que coordenavam as oficinas.

4 Os nomes das crianças e terapeutas foram alterados de modo a garantir seu direito à privacidade e ao sigilo.

5 Os trechos entre colchetes indicam a inclusão de palavras ou frases suprimidas no texto original, mas que beneficiam a leitura das narrativas.

6 Em clínica-escola, é comum haver nas salas de atendimento uma pequena sala de observação separada por um espelho, de tal modo que o observador enxerga a sala, mas quem está na sala vê apenas o espelho.

7 Processo de elaboração do Livro da oficina.

 

Referências

Benjamin, W. (1994). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In W. Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (S.P. Rouanet, Trad., pp. 197-221). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Kupermann, D. (2008). Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Rodulfo, R. (2009). Trabajos de la lectura, lecturas de la violencia: lo creativo-lo destructivo en el pensamiento de Winnicott. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Vaisberg, T.M.J.A. (2004). Ser e Fazer: enquadres diferenciados na clínica winnicottiana. Aparecida, SP: Ideias e Letras.         [ Links ]

Winnicott, D.W. (1971). O brincar e a realidade (J. Salomão, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Winnicott, D.W. (2005). Tudo começa em casa (4a ed., P. Sandler, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
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Audrey Setton Lopes de Souza
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Recebido em 5.5.2014
Aceito em 4.12.2014

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