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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.2 São Paulo abr./jun. 2015

 

DIÁLOGO

 

A memória do sonho: um conflito epistêmico na teoria freudiana1

 

The memory of dream: an epistemic conflict in Freudian psychoanalytic theory

 

La memoria del sueño: un conflicto epistémico en la teoría freudiana

 

 

Sára BotellaI; Tradução Claudia Berliner

IPsicanalista, membro formador da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A noção de "memória do sonho" (Traumgedãchtnis) aparece logo de início na obra freudiana, desde o primeiro capítulo d'A interpretação dos sonhos. Revela o interesse de Freud pelas "experiências" e pelas "impressões sensoriais" dos "primeiríssimos tempos da infância". Mas a importância concedida a essa memória da "vivência" da primeira infância que só o sonho é capaz de conservar, uma "memória sem lembrança", desaparecerá, sobretudo a partir dos anos 1910, em prol da memória da "transferência infantil", do conteúdo do relato do sonho, portadores das lembranças representadas. Para a autora, Freud impõe, assim, uma limitação a seu método e reduz o campo da rememoração. Isso torna ainda mais marcante o retorno da concepção de 1900 no final da obra freudiana. Em 1938, no Compêndio de psicanálise, a retomada da noção de "memória do sonho" deve ser entendida como um momento de ampliação do método, como indicação por parte de Freud da via a seguir para ter acesso aos traços não representáveis dos traumas dos "primeiríssimos tempos da infância", sem o que a análise fracassa, tal como a do Homem dos Lobos.

Palavras-chave: memória do sonho; sentimento de realidade efetiva; emergência sensorial; pré-história; conflito epistêmico.


ABSTRACT

The notion of "memory of the dream" (Traumgedächtnis) is presented in Freud's early work, since the first chapter of The interpretation of dreams. It reveals that Freud was interested in the "experiences" and the "sensorial impressions" of the "earliest childhood". However, the importance given to the memory of "living" the early childhood - a memory that only dreams are able to preserve (a "memory without memory") - will disappear to make way for the memory of "infantile transference", of the content of the reported dream, which brings represented memories. It starts especially from the second decade of the 20th Century. In the author's opinion, Freud imposes a limit on his method, and reduces the rememorization field. It makes the return of the 1900's thinking in Freud's late work even more outstanding. In 1938, the return to the notion of "memory of the dream" (in An outline of psychoanalysis) should be understood as the moment when the method is extended, as a Freud's suggestion of the path that should be taken in order to access the not representable traumas of the "earliest childhood"; without that, analysis has no success, just like happened in the case of the Wolf Man.

Keywords: memory of the dream; feeling of effective reality; sensorial emergency; prehistory; epistemic conflict.


RESUMEN

La noción de "memoria del sueño" (Traumgedächtnis) aparece de forma temprana en las obras freudianas, en el primer capítulo de La interpretación de los sueños. Revela el interés de Freud por las "experiencias" y por las "impresiones sensoriales" de los "primerísimos tiempos de la infancia". No obstante, la importancia concedida a esa memoria de la "vivencia" de la primera infancia que solamente el sueño es capaz de conservar, una "memoria sin recuerdos", desaparecerá, principalmente a partir de la década de 1910, en pro de la memoria de "transferencia infantil", del contenido del relato del sueño, portadores de los recuerdos representados. Para la autora, Freud impone, de esta forma, una limitación a su método y reduce el campo de la rememoración. Eso torna aún más importante el retorno de la concepción de 1900 al final de la obra freudiana. En 1938, en el Esquema del psicoanálisis, la retomada de la noción de la "memoria del sueño" debe ser interpretada como un momento de ampliación del método, como una indicación por parte de Freud del camino a seguir para tener acceso a los trazos no representables de los traumas de los "primerísimos tiempos de la infancia", con el objetivo de evitar el fracaso del análisis, como sucede en el caso del Hombre de los Lobos.

Palabras clave: memoria del sueño; sentimiento de realidad efectiva; emergencia sensorial; prehistoria; conflicto epistémico.


 

 

 

1. A memória do sonho2

Desde minha primeira leitura d'A interpretação dos sonhos, chamaram minha atenção as duas principais ideias do primeiro capítulo: a importância que Freud dá ao pensamento de Aristóteles sobre o sonho - ao qual retornarei - e a afirmação da inseparabilidade entre sonho e rememoração. Cito: "Devemos, pelo menos, considerar conhecimento incontestável que todo o material que compõe o conteúdo onírico provém de alguma forma da experiência e, portanto, que é reproduzido, ou lembrado, no sonho." No entanto, ele adverte o leitor:

Seria um erro, contudo, supor que essa ligação entre o conteúdo onírico e a vida de vigília se produza sem esforço, como resultado evidente de uma comparação. [...] Em primeiro lugar, pode surgir no conteúdo onírico um material que, na vida de vigília, não reconhecemos como parte de nossos conhecimentos e experiências. Lembramos bem o que sonhamos, mas não lembramos que foi vivenciado nem quando o foi. [...] Precisamos admitir, então, que sabíamos e que lembramos no sonho algo que estava bloqueado à capacidade de reme-moração (1900/2003, pp. 37, 39 e 47)I.

Alguns parágrafos adiante, Freud insiste: "é um fato tão notável e teoricamente significativo que eu gostaria de chamar ainda mais a atenção para ele." Tanto assim que ele esclarece: "O comportamento da memória onírica é com certeza de grande interesse para qualquer teoria da memória em geral."

Em seguida, Freud continua expondo a vinculação entre o sonho e a memória, que ele concebe numa relação profunda, invariável e permanente: o sonho

tem à sua disposição as nossas mais precoces memórias infantis e [...] inclusive traz à tona particularidades desse período da vida [...] que, na vigília, são consideradas esquecidas há muito tempo (p. 200).II

Ou então: "as experiências infantis mais antigas não estão mais disponíveis como tais, mas [...] são substituídas na análise por 'transferências' e sonhos" (p. 221).III3,4

Contudo, apesar da força desta ideia de um profundo enraizamento comum entre sonho e memória, surpreende o pouco espaço que Freud lhe concederá em seus outros textos. Ela voltará a aparecer uma vez em 1914; depois, será preciso esperar seu último texto, o Compêndio, em 1938.

Quando Freud evoca novamente a memória do sonho em 1914, é a propósito da rememoração da cena primária na análise do Homem dos Lobos:

Sonhar é também recordar, embora sujeito às condições do período noturno e da formação do sonho. Esse retorno em sonhos explica, segundo creio, que nos pacientes mesmos se forme gradualmente uma forte convicção da realidade dessas cenas primárias, uma convicção que em nada fica atrás daquela baseada na recordação. (1918[1914]/1988a, p. 49)IV

Embora naquele mesmo ano de 1914, em "Recordar, repetir e elaborar", ele o reafirme com firmeza, parece experimentar certa desconfiança e lança uma solene advertência:

Em se tratando de um tipo particular de experiências extremamente importantes, situadas nos primeiríssimos tempos da infância [e em relação às quais] geralmente nenhuma lembrança consegue ser despertada [...] seu retorno nos sonhos é um assunto [que] exige tanta cautela crítica e introduz tantos elementos novos e desconcertantes. (1914/2005, p. 189)V

É provavelmente nessa nova noção de convicção, associada ao "sentimento de realidade efetiva" do sonho, à qual Freud atribui o mesmo efeito mnemônico que o da recordação, que se encontra sua reticência em manter a noção de memória do sonho. Pensemos no que isso supunha em relação à teoria da neurose que ele fundava naqueles anos de 1910-1914, com base nas noções metapsicológicas da primeira tópica. Se a memória do sonho pode produzir a mesma convicção e o mesmo efeito terapêutico que o retorno de lembranças das representações recalcadas, esse fato analítico poderia fragilizar, ou até contradizer, o método analítico que Freud estava repensando naqueles mesmos anos, à luz de sua nova formulação da noção de transferência.

Com efeito, a partir dos anos 1910, a transferência deixa de ser entendida como um simples deslocamento entre representações, ela é transferência do infantil. Doravante, o método de todo tratamento estará orientado para o conflito infantil e para os afetos recalcados relativos aos pais. Isso irá se confirmar em "Recordar, repetir e elaborar", em que a análise se torna análise da neurose de transferência, reedição no tratamento da neurose infantil. Freud utilizará com gosto a metáfora arqueológica.

A isso se seguirá a concepção de uma espécie de "funil de memórias"VI que regeria o tratamento, com o analista só se interessando pelo que disso decorre, ou seja, a rememoração do infantil recalcado. Nada mais deverá ser escutado. A amnésia infantil é redefinida, então, no sentido da teoria do recalcamento, como amnésia dos traços mnêmicos, "vestígios" históricos das representações inconscientes. Ora, na concepção freudiana de antes de 1914, a amnésia infantil era definida como um conjunto mais vasto, que compreendia também traços de experiências precoces situados fora dos traços mnêmicos e cujo acesso à consciência tomava vias diferentes das do retorno do recalcado, tal como aquela que nos interessa aqui, a memória do sonho.

Assim, para desenvolver sua nova concepção da transferência, e da neurose de transferência como força organizadora do trabalho do tratamento, Freud abandonará sua ideia de 1900 que evoquei anteriormente: o sonho "tem à sua disposição as nossas mais precoces memórias infantis [...] que, na vigília, são consideradas esquecidas há muito tempo." Freud parece estar diante do que hoje podemos entender como um "conflito epistêmico" entre a memória do sonho e a memória da neurose. Mas ele nunca abordará esse problema nos seus escritos, talvez por nunca realmente ter tido consciência dele. Parece evitá-lo fazendo uma escolha radical: a noção de memória do sonho desaparece e, com ela, as de atenção flutuante e de regressão formal do pensamento, oriundas da experiência de autoanálise e da teoria do sonho. Reduzido ao âmbito da teoria da neurose, o método freudiano vê-se, então, limitado, como assinala César Botella (2011).

É nesse contexto de abandono de certas noções que podemos de fato entender a importância de Aristóteles para Freud. Queria dizer algumas palavras agora sobre isso, antes de voltar para esse conflito epis-têmico entre a memória do sonho e a memória da neurose.

 

2. De Aristóteles a Freud

O que diz Aristóteles sobre o sonho e a memória que tanto interessou Freud? Irei me referir a dois textos: "Sobre a memória" e "Sobre os sonhos" (2000),VII,5,6 em que Aristóteles define o sonho como "imagem que provém do movimento (em potência que produz) das impressões sensíveis, quando se está dormindo e conquanto se durma" (p. 152).

Definição que revela todo o seu alcance teórico quando Aristóteles aproxima sonho e memória : "a memória [...] não existe (tampouco existe) sem imagem."

E ele define a memória como "ato [...] em busca de uma imagem em alguma coisa corporal"; "aquele que rememora [...] move (obrigatoriamente) algo corporal."

Aristóteles insiste aqui nos pontos comuns ao sonho e à memória e nos leva a conceber uma grande proximidade entre os processos mnemônicos e oníricos, e a estudar a natureza do vínculo entre eles, que ele qualifica de imagem, de inteligibilidade compartilhada entre sonho e memória.

À luz dessa breve retomada das ideias aristotélicas, volto para o conflito epistê-mico, em Freud, entre sonho e memória.

 

3. O conflito epistêmico

Duas observações: em primeiro lugar, não é muito difícil nos darmos conta de que, de Aristóteles até nossos dias, a resposta às perguntas: "Como sonhamos?", "Como rememoramos?" é indissociável da ideia de uma emergência sensorial, inclusive em neurobiologia.

Pavlov, contemporâneo de Freud, considerava que a salivação condicionada do cão à espera de alimento equivalia ao pensamento do homem que rememora e procura uma imagem na emergência sensorial dos traços de estímulos já percebidos. Todavia, a extrema precocidade de seu corpo erógeno lhe oferece uma ampla paleta sensorial, que não está limitada a seus órgãos dos sentidos. Poderiamos então dizer que, com certeza, o homem, assim como o animal, extrai sua capacidade de rememoração de "algo corporal", mas no homem trata-se dos traços precoces libidinalmente investidos na relação com o objeto ou, como dizia Pavlov, dos traços investidos como desejo e, portanto, em oposição aos traços investidos como "atenção" sensorial no animal.

Minha segunda observação: levando em consideração o vínculo sensorial entre o processo onírico e o processo de rememoração, podemos levantar a hipótese de que o sonho e a memória seriam produtos psíquicos de mesma origem e que uma mesma exigência de inteligibilidade os desperta, tendo por finalidade econômico-dinâmica a mesma necessidade de descarregar uma tensão sob forma de um trabalho psíquico, cujo produto é idêntico e que Aristóteles chama de imagem. Como o sonho, a lembrança seria um produto decorrente do mesmo imperativo de conter a descarga, seria também um trabalho endoalucinatório, e não só a descoberta de vestígios. Eu acrescentaria que a diferença entre sonho e memória reside sobretudo no grau de regrediência. A lembrança própria da rememoração diurna só alcança uma regrediência limitada. É até uma espécie de barreira que obriga a regressão a abandonar o caminho regrediente.

Em A interpretação dos sonhos, Freud diz que, de dia, "é necessário deter a plena regressão para que ela não vá além da imagem mnêmica e que, partindo desta, ela possa buscar outras vias que finalmente levem ao estabelecimento da identidade desejada, a partir do mundo externo" (1900/2003, p. 620).

Em oposição, o sonho, que não tem essa limitação, pode alcançar o mais alto grau de regrediência e é sua plena qualidade endoalucinatória que lhe dá acesso a zonas de memória situadas mais além da lembrança representada.

Como já disse (2012), essa ideia, com exceção de um breve momento em 1914, será abandonada até 1937, quando Freud volta a ela de maneira surpreendentemente explícita em "Construções em análise". Sobre as imagens das lembranças "excessivamente nítidas" e "muito vivazes" que são produzidas nos estados de sonho diurno, ele escreve:

Essas lembranças poderiam ter sido qualificadas de alucinações se à nitidez delas tivesse se acrescentado a crença na sua atualidade [...] Uma característica geral da alucinação talvez pouco apreciada até aqui é a de que nela retorna algo que foi vivido nos tempos mais remotos e depois foi esquecido, algo que a criança viu ou escutou numa época em que ela mal era capaz de falar. (1937/2010b, p. 70).

Um ano depois, em 1938, Freud retoma finalmente, no Compêndio (1938/2010a),VIII a noção de memória do sonho, evocando cada um dos pontos expostos em 1900. Resumindo:

a. "A memória do sonho é muito mais abrangente que a memória do estado desperto";

b. Ela "reproduz muito frequentemente impressões (Eindrücke: impressão, pressão, marca) da primeira infância do sonhador";

c. E ele acrescenta uma novidade relativa às capacidades da memória do sonho: ela "traz à luz [...] parte da herança arcaica da criança [...] antes de qualquer experiência própria"; ela é "uma fonte da pré-história humana". Essa possibilidade de encontro entre as experiências das duas pré-histórias, a da humanidade e a da criança, fará Freud dizer que "a criança é psicologicamente o pai do adulto".

A ideia dessa memória da pré-história da humanidade como dimensão pré-histórica do isso percorre a obra de Freud por meio da noção de precipitado (Niederschlag) ou da noção de sedimento, tomadas da química. Ele afirmará: "A pulsão é o precipitado de efeitos de excitações externas durante a filogênese" e "A forma é o precipitado de um antigo conteúdo". A noção de precipitado, tal como Freud a utiliza, nos permite pensar na existência de formações psíquicas originárias constituídas por forças, movimentos e acontecimentos que se tornaram irreconhecíveis, ininteligíveis para o pensamento diurno.

Contudo, o acontecimento fundador de toda pulsionalidade é figurável: o assassinato do pai da horda primitiva. E é precisamente por intermédio da potência metafórica das fantasias originárias, elas mesmas consideradas por Freud como "precipitados da história da evolução humana", que a memória do isso penetraria no trabalho do sonho e abriria a memória deste para uma dimensão pré-histórica.

Com esse retorno da noção de memória do sonho, poderiamos pensar que Freud quer, finalmente, se confrontar com o conflito epistêmico entre a memória do sonho e a memória da neurose. Mas ele continua a proceder de modo clivado. Assim, no mesmo Compêndio, à margem da sua retomada do interesse pela memória do sonho, Freud declara algumas páginas adiante: o sonho é (portanto) uma psicose. Afirmação ainda mais surpreendente, já que em 1915, no "Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos", em que reata com a orientação de sua teoria do sonho compartilhada com o pensamento aristotélico, ele já tinha retomado sua ideia exposta em 1900 sobre a necessidade de lançar luz sobre as psicoses mediante uma análise comparativa entre sonho e psicose (1900/2003, pp. 126 e 622).IX Concluía que, em si, o sonho não é psicose, mas há psicose quando o sonho perde sua organização e há regrediência sem fechamento da motilidade.

Como entender, então, na obra de Freud, essas flagrantes contradições no tocante à memória do sonho, depois de tê-la, contudo, considerado um incontestável objeto de conhecimento? Com efeito, no final deste percurso, pode-se entrever uma causalidade outra que não a epistemológica: o conflito jamais resolvido entre a teoria da neurose e a teoria do sonho traduziria um antagonismo nos ideais de Freud. Como garantir a perenidade de sua teoria da psicanálise? Por um procedimento próximo do pensamento médico, menos revolucionário, mas mais fácil de transmitir do que a teoria do sonho, ou pelo aprofundamento de um pensamento sobre a vida psíquica que desse prosseguimento às descobertas dos princípios, dos modos de inteligibilidade, tanto diurnos quanto noturnos?

Se considerei necessário destacar o conflito epistêmico entre sonho e neurose ao longo de toda a obra freudiana foi porque essa ausência de resolução, por mais teórica que seja, esse non liquet do pensamento de Freud, ainda prejudica, hoje assim como ontem, a compreensão de certos aspectos da prática analítica. Vou tentar ilustrar esse problema por meio do fracasso do tratamento do Homem dos Lobos.

 

4. A respeito da análise do Homem dos Lobos

A análise se desenrola entre 1910 e 1914. Freud se vê então confrontado com os efeitos da memória da transferência infantil recalcada e com o impacto dos traços de experiências precoces traumáticas não ligadas de seu paciente (1918[1914]/1988a). Vai progressivamente tomando consciência da grande dificuldade que representam para seu método essas experiências precoces que escapam da neurose de transferência infantil.

Sabemos que a "inabalável convicção" (sicher Überzeugung) da realidade da cena primária na infância não se deu no caso de Serguei. Em parte, provavelmente, porque o conteúdo dessa "inabalável convicção" em Freud não foi pelo caminho endoalucinatório tomado pelo sonhador, que evoca o que percebeu no seu sonho. Teria sido preciso que ambos compartilhassem de uma experiência regrediente que os tivesse aproximado para criarem juntos a memória de uma cena primária, por assim dizer, "sonhada" em sessão pelos dois. A cena primária não era uma descoberta comum, mas dedução de um Freud preocupado em achar a causalidade originária de toda neurose e, mais amplamente, os elementos fundantes do psiquismo humano. Seu ideal científico exigia que continuasse como "observador" e pesquisador capaz de demonstrar a realidade de sua descoberta. E Serguei, como as crianças que só acreditam nos contos de um narrador "comprometido", isto é, suficientemente sustentado por sua própria atividade endoalucinatória, jamais acreditará na realidade da observação do coito dos pais. Sabemos o que, muito mais tarde, ele dirá a esse respeito à jornalista vienense Karin Obholzer:

Convenhamos que todas essas construções têm mesmo de ser postas em dúvida. A senhora por acaso acredita em todas essas construções dos psicanalistas? [...] Pois bem, aquela cena com os lobos brancos, que supostamente eram meus pais e o coito deles, e que esta seria a causa de tudo, a senhora acredita nisso? (1980/1981, p. 74).

Graças aos avanços da psicanálise na prática dos tratamentos dos pacientes-limite, podemos pensar hoje que a repetição do pesadelo no paciente correspondia mais à repetição das vivências de pavor (Schreckerlebnis)7 (Freud, 1900/2003, p. 656) X dos terrores noturnos de sua primeira infância, sem representações, sem imagens, do que a uma cena precisa, do que a um pesadelo provido de um conteúdo portador das imagens que já teriam dado sentido às experiências brutas das moções, das sensações; uma cena que já teria estabelecido ligações com representantes de objetos parentais da primeira infância. Serguei, na verdade, não teria efetuado um verdadeiro trabalho do sonho. No divã de Freud, ele apenas teria repetido, de forma idêntica, "o sentimento de realidade efetiva" (193j[1932]/1995, p. 163)XI 8 do impacto das moções, das experiências sensoriais de sua infância, que ele jamais teria conseguido transformar dando-lhes um sentido que, posteriormente, pudesse ter sido recalcado. E teria sido no intenso trabalho de busca de inteligibilidade de sentido realizado durante as sessões que a vivência precoce de pavor sem imagem teria progressivamente ganhado um conteúdo, mas não o da cena primária encontrado por Freud. Será por meio da criação de um relato de sonho com lobos que Serguei terá acesso ao "sentimento de realidade" do terror de sua primeira infância e formará laços associativos com contos de lobos ou com a lembrança de sua irmã lhe mostrando repetidamente a imagem de um lobo em pé, com todas as garras de fora, e que o aterrorizava. Em suma, acho que o desacordo entre paciente e analista dizia respeito apenas ao conteúdo da realidade histórica da cena primária.

Nesse sentido, o historiador Carlo Ginzburg (1986/1989) critica a análise de Freud por não ter levado em conta a crença xamânica da "nânia" muito religiosa e supersticiosa de Pankejeff e o fato de ele ter nascido com a "coifa" no dia de Natal. Critica-o também por não ter levado em conta a homogeneidade cultural entre os pesadelos das crianças, os contos e as crenças vinculadas às figuras de lobos, dos homens que nascem com a "coifa", dotados de poderes excepcionais, particularmente o de virarem "lobisomens" e irem periodicamente, pelo espírito, ao mundo dos mortos.

À luz desse vasto complexo cultural mítico, a crítica de Ginzburg me parece correta. Contudo, o historiador ter generalizado sua crítica de que Freud só se interessaria pela história e experiência individuais me parece um tanto injustificado se considerarmos o interesse de Freud pelo alcance espaçotemporal da pré-história do indivíduo e da humanidade por meio da análise das experiências individuais de seus pacientes. Foi justamente o reconhecimento dessa vasta dimensão temporal constituinte da teoria freudiana, com os diferentes níveis e qualidades de traços de memória e vias de retorno, que possibilitou este breve estudo de um conflito epistêmico na teoria freudiana.

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 2013: Revue Française de Psychanalyse, 77(1),160-169.

2 Traumgedachtnisses: 5 ocorrências em A interpretação dos sonhos (1900); Traumgedachtnis: 3 ocorrências, 1 no começo dos escritos, "Projeto" (1895), e 2 no último texto, Compêndio de psicanálise (1938).

I N.T.: Freud, S. (2012). A interpretação dos sonhos (R. Zwick, Trad., pp. 25, 27 e 35). Porto Alegre: L&PM.

II N.T.: p. 185 da ed. brasileira.

III N.T.: p. 205 da ed. brasileira.

3 Uma ideia próxima já estava presente em 1896, em "Nouvelles remarques sur les névropsychoses-de-défense" [Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa]: "essas alucinações nada mais eram que partes do conteúdo das experiências infantis recalcadas" (1896/1989, p. 142).

4 Deve-se entender aqui, por "transferência" (Umset-zen), "transpor, fazer um trem passar de uma via para outra". A noção de deslocamento (Verschiebung) está ligada à ideia de livre deslocamento dos processos primários, um dos mecanismos do trabalho do sonho.

IV N.T.: Freud, S. (2010). História de uma neurose infantil. In S. Freud, Obras completas (P.C. de Souza, Trad., Vol. 14, p. 71). São Paulo: Companhia das Letras.

V N.T.: Freud, S. (2010). Recordar, repetir e elaborar. In S. Freud, Obras completas (P.C. de Souza, Trad., Vol. 10). São Paulo: Companhia das Letras.

VI N.T.: no original, entonnoir mémoriel, ideia presente no texto de César Botella citado mais adiante.

VII N.T.: obra também conhecida como Parva Naturalia.

5 A ideia de um refluxo de movimento de respostas motoras que vai até o polo perceptivo-alucinatório e o transforma em "potência sensorial" está presente desde os Estudos sobre a histeria. Voltamos a encontrá-la em 1915, em "As pulsões e seus destinos", como potência que obriga o psíquico a trabalhar, noite e dia; e isso, "em consequência de sua relação com o corporal" (1915/1988b).

6"De noite", escreve Aristóteles, "devido à inatividade dos sentidos [...] e da sua impotência para se atualizar por causa do refluxo, os movimentos são desviados para o princípio da sensação [...] e se tornam manifestos com o apaziguamento da agitação" (p. 147). Para Aristóteles, de noite, os movimentos só estão presentes em potência, mas o princípio é o mesmo de dia e de noite. Quer os movimentos estejam presentes em ato ou em potência, quer produzam uma atividade sensorial percebida ou endopercebida sob a forma de sensações, de impressões, o trabalho de pensar procede segundo o mesmo princípio. Aristóteles prossegue: "Acontece também de uma grande quantidade de simulacros em movimento (alucinações motoras) aparecerem no escuro para sujeitos muito jovens, mesmo que estejam de olhos bem abertos; de sorte que eles cobrem o rosto de pavor" (p. 151). Mas "nem toda imagem presente durante o sono é um sonho", "nem todos os pensamentos (tal como são na vida de vigília) que ocorrem durante o sono" tampouco. "É lógico que nenhuma imagem apareça para aqueles que produzem uma grande quantidade de movimentos [...] [nestes últimos] as impressões sensíveis não se produzem, não podem se produzir" (p. 152). Hoje em dia, diríamos isso daqueles que não realizam uma regrediência à endopercepção.

VIII N.T.: Freud, S. (2014). Compêndio de psicanálise (P.H. Tavares, Trad., pp. 69-71 e 123). Belo Horizonte: Autêntica.

IX N.T.: pp. 109 e 620 da ed. brasileira.

7 Embora o pavor (Schreck) seja considerado, no conjunto da obra de Freud, como condição determinante da neurose traumática, por vezes designada como "neurose de pavor" (Schreckneurose), também devemos levar em consideração o que, no Compêndio, é assinalado como "fator infantil", ligado ao afluxo de excitação sem descarga designado como "vivência central" (Zentral Erlebnis) de um período precoce da infância (Freud, 1938/20103, p. 281). [N.T.: p. 123 da ed. brasileira.]

X N.T.: p. 628 da ed. brasileira.

XI N.T.: Freud, S. (2010). Novas conferências introdutórias à psicanálise. In S. Freud, Obras completas (P.C. de Souza, Trad., Vol. 18, p. 192). São Paulo: Companhia das Letras.

8 Wirklichkeitsgefühl. Creio que seria mais correto traduzir Gefühl aqui por "sensação": "sensação de realidade".

 

Referências

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Correspondência:
Sára Botella
11, rue Jean de Beauvais
75005 Paris, France
sara.botella@orange.fr

Recebido em 24.04.2015
Aceito em 08.05.2015

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