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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo jul./set. 2015

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Silvana Rea

Editora

 

 

Como paradigma da rivalidade fraterna, conta-nos o Antigo Testamento que Caim matou Abel por ameaçar o seu lugar de preferido.

Na mitologia grega, Pólux, ao oferecer a Júpiter sua própria vida pela do irmão Castor, morto em guerra, é recompensado com a permanente companhia dele na constelação de Gemini. Na mitologia romana, Rômulo mata seu gêmeo Remo e funda a cidade de Roma.

Temos ainda Jacó, que se faz passar por Esaú para receber, em seu lugar, a bênção da primogenitura - personagens retomados por Machado de Assis na pele de Pedro e Paulo, que brigavam antes mesmo de nascer, no ventre materno. E José, que é vendido como escravo pelos irmãos, ameaçados pela iminência de sua soberania - mito também revivido na literatura, aqui por Thomas Mann, em José e seus irmãos. Ainda na literatura, encontramos Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski; no Brasil, os Dois irmãos, de Milton Hatoum, e o recente relato de Chico Buarque sobre o seu Irmão alemão.

Certos irmãos permanecem em nosso imaginário de maneira forte: Paul e Camille Claudel, a parceria de Theo e Vincent van Gogh. Alguns, assim se apresentam: os cineastas Irmãos Taviani e Irmãos Coen; no Brasil, os grafiteiros osgemeos e os designers Irmãos Campana.

Na mitologia freudiana, a origem do processo civilizatório se dá a partir da disputa entre os irmãos da horda primitiva, que assassinam o pai tirânico ao qual estão submetidos, organizando-se em fratrias. Para Freud (1913/19690), a rivalidade, a inveja e o ciúme estão na base afetiva desta nova formação, que, para se manter coesa, institui o tabu do incesto e a exogamia no lugar da lei do desejo. Os investimentos e identificações antes dirigidos ao pai deslocam-se para a figura do irmão, nos rudimentos de uma vida em sociedade.

Ser irmão é um estado que passa pela presença do outro. Ou seja, tornar-se irmão passa pela alteridade, pela instauração da diferença, portanto. Mas também pela semelhança, pelo laço comum de filiação - um semelhante que demarca a primeira aparição do estranho, do Unheimliche, segundo Kancyper (1999). Um outro diferente e complementar, o irmão funciona, simultaneamente, como fundador de aspectos do eu e da alteridade.

Evidência da "traição" parental - afinal, são os pais em cópula que decidem pelo novo integrante -, a chegada de um irmão modifica a configuração familiar, perturba o equilíbrio e exige uma reestruturação. O primogênito perde o lugar de único e a ele cabe levar em conta a existência do mais novo, a quem cabe a função de descobrir e conquistar territórios. Abrir mão da ilusão de ser o predileto e suficiente para a satisfação dos pais é um sofrimento considerado por Kaës (2011) como traumático para o narcisismo primário - fato já observado por Freud (1909/1969a) ao admitir o trauma narcísico no pequeno Hans, provocado pelo nascimento de sua irmã.

Na lógica edípica, o irmão é o rival. Mas ele pode ser, especularmente, o duplo. Ou o cúmplice em relação ao que lhes é exterior. A relação fraterna, marcada pela horizontalidade consanguínea, possui características próprias. Seria ela uma construção psíquica especificamente grupal e comum aos membros de uma fratria, que cria subgrupo dentro do grupo familiar ou mesmo fora dele? O vínculo fraterno recusa-se a ser um derivado da relação edípica com os pais?

Kaës (2011), discutindo o modelo de 1913 proposto por Freud, mostra que se faz necessário considerar o complexo fraterno: uma formação intrapsíquica de representações inconscientes sobre o papel do irmão no psiquismo, definida por uma organização de desejos amorosos, de ódio e agressividade dirigidos ao irmão; complexo que se manifesta nas relações intersubjetivas e que pode ter funções tanto defensivas e substitutivas quanto elaborativas de questões edípicas e narcísicas, bem como ser estruturante, por seu caráter organizador (Kancyper, 2002). Retomando a noção freudiana de fratría, Kehl (2000) a propõe como um operador substituto à falência da função paterna e à consequente perversão dos laços sociais que se observam nas sociedades contemporâneas ocidentais.

De fato, deve-se ressaltar que Totem e tabu enfatiza a importância da ligação fraterna para a vinculação social. A cumplicidade pelo assassinato do pai seguida de culpa promove efeitos na religião, no código moral e na organização de grupos - sendo esta marcada também pela interdição de matar o irmão, a santificação dos laços de sangue e a solidariedade entre todos os membros do mesmo clã, garantindo-lhes a vida. Estas hipóteses são retomadas por Freud (1921/2011) em Psicologia das massas e análise do eu, ao relacionar a horda primeva e a organização em fratrias aos fenômenos de massa e seus processos identificatórios.

Do ponto de vista social, já nos aponta Bauman (2005) que, no mundo líquido moderno, partido em fragmentos que não se coordenam e onde as existências individuais são reduzidas a uma sucessão de episódios fragilmente conectados, surge a necessidade de pertencer a alguma comunidade de ideias e princípios que seja integrada. O "eu", experiência seminal para a modernidade do início do século passado, já não se sustenta mais. Como diz Maffesoli (Silva, 2013), não podemos mais permanecer numa compreensão individualista do mundo. Imprescindível, na contempora-neidade, o sentido de "nós": seja pelo triba-lismo, seja pelo grupo, seja pela comunidade.

Portanto, se ter um irmão convoca a ser irmão, aqui ter é ser - o que evidencia a importância das relações fraternas na constituição do sujeito. Sem a sua presença, muitas destas questões não teriam a oportunidade de serem elaboradas. O parceiro, o duplo, o intruso, o competidor, o cúmplice, o apoio - o papel do irmão é fundamental, tanto nas relações internas à família quanto em sua ampliação pela organização de grupos ou tribos na vida social.

São estas as questões que este número pretende abordar, pelo olhar de Miguel Calmon du Pin e Almeida, Eliana da Silveira Cruz Caligiuri, Ignacio Gerber, Regina Orth de Aragão, Ada Morgenstern, Adela J. Stoppel de Gueller, João Lindolfo Filho e Maria Rhode. Boa leitura!

 

Referências

Bauman, Z. (2005). Identidade (C.A. Medeiros, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Freud, S. (1969a). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 10, pp. 13-156). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1909)        [ Links ]

Freud, S. (1969b). Totem e tabu. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 13, pp. 13-198). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)        [ Links ]

Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do eu. In S. Freud, Obras completas (P.C. de Souza, Trad., Vol. 15, pp. 13-113). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)        [ Links ]

Kaës, R. (2011). O complexo fraterno (L.M. E. Orth, Trad.). Aparecida, SP: Ideias & Letras.         [ Links ]

Kancyper, L. (1999). Confrontação de gerações: estudo psicanalítico (A. Venite, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Kancyper, L. (2002). O complexo fraterno e suas quatro funções. Revista de Psicanálise, 9(1),9-39.         [ Links ]

Kehl, M.R. (Org.) (2000). A função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará         [ Links ].

Silva, J.M. da. (2013, 21 de maio). Entrevistas: Maffesoli e a pós-modernidade. Correio do Povo. Recuperado em 31 ago. 2015, de http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/?p=4107        [ Links ]

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