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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo jul./set. 2015

 

OUTRAS PALAVRAS

 

As primeiras sessões com Sara, a colaborativa: uma adolescente à procura de suas asas

 

Las primeras sesiones con Sara, la colaborativa: una adolescente en busca de sus alas

 

First sessions with Sara, the collaborator: a teenager that is seeking her wings

 

 

Humberto Moacir de Oliveira

Professor da Faculdade Pitágoras de Ipatinga (FAP), Campus Horto. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenador do Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço (CEPP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem o propósito de pensar o lugar do adolescente na clínica psicanalítica, ressaltando como o fracasso do Outro provocado pela puberdade pode levar o sujeito a respostas sintomáticas graves. Para isso, o início da análise de uma adolescente de 17 anos e seu pensamento suicida serão examinados a partir de dois outros curtos tratamentos empreendidos por Freud: o Caso Dora e o Caso da Jovem Homossexual.

Palavras-chave: adolescência; caso clínico; suicídio; passagem ao ato.


ABSTRACT

This paper has the purpose of thinking about the adolescents' place in the psychoanalytic clinical practice. This study emphasizes the way the failure of the Other caused by puberty may lead the subject to severe symptomatic responses. To that end and starting from two other short treatments provided by Freud (Dora's and the Young Homosexual's Case), the author will examine the beginning of a 17-yearold adolescent psychoanalysis and her suicidal thoughts.

Keywords: adolescence; clinical case; suicide; passage to the act.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el lugar de los adolescentes en la práctica psicoanalítica, destacando cómo el fracaso del Otro causado por la pubertad puede llevar al sujeto a respuestas sintomáticas graves. Para ello, y con base en otros dos tratamientos cortos realizados por Freud - el Caso Dora y el Caso de la Joven Homosexual -, se examinarán el principio del análisis de una adolescente de 17 años y sus pensamientos suicidas.

Palabras clave: adolescencia; caso clínico; suicidio; pasaje al acto.


 

 

Introdução

Falar de adolescência exige alguns desafios bem instigantes ao clínico que trabalha com a psicanálise, principalmente porque o objeto de estudo e tratamento da psicanálise é o sujeito do inconsciente, apresentado desde cedo por Freud como um sujeito sem idades. Ou seja, é incompatível com a ideia freudiana propormos que nomes como puberdade ou adolescência deem conta de um período do desenvolvimento do sujeito com início e fim predeterminados. Isso faz vacilar o sentido da idade em psicanálise. O sujeito não é nem um corpo que com o passar dos anos sofre mutações naturais filogeneticamente programadas nem a representação social que os anos computados em sua carteira de identidade denunciam. Para ser mais exato, o sujeito trabalhado por Freud está entre a pulsão, que tem fonte corporal mas não é corpo, e a representação, que provém do campo do Outro social mas que nunca é apreendida por ele totalmente. O sujeito é, portanto, efeito de um jogo de representações em que ele não se encaixa integralmente em nenhuma delas.1 Por isso o sujeito escapa às identificações objetivas do laço social, inclusive às identificações referentes à sua idade.

No entanto, isso não implica que a psicanálise desconsidere as transformações corporais do sujeito, tampouco que o psicanalista não veja os efeitos das representações e das identificações sociais no inconsciente. Como alerta a psicanalista Alba Flesler (2012), se o sujeito não tem idades, ele apresenta tempos. Embora a ideia de tempo lógico seja desenvolvida por Lacan (1945/1998), algo semelhante, mas não idêntico, também pode ser encontrado em Freud em sua interpretação da sexualidade humana. Freud (1905/1996e), ao distinguir em seus ensaios sobre a sexualidade uma organização infantil pré-genital, seguida de um período de latência e, posteriormente, da puberdade, parece menos fixar fases de desenvolvimento a serem cumpridas cronologicamente do que tempos da constituição da sexualidade. Cada um desses tempos (o instante de ver do primeiro despertar sexual, o tempo para compreender do período de latência e o momento de concluir da puberdade), embora seja necessário para pensar a lógica da constituição da sexualidade humana, não é um fato empírico capaz de ser relacionado de modo cronológico e imediato à vida do sujeito.

É sob esse prisma que a puberdade chega até a pena de Freud. Para o psicanalista vienense, a puberdade representava, antes de qualquer fase ou idade cronológica, o tempo posterior ao período de latência. No período anterior à latência, Freud denunciava o primeiro despertar da sexualidade; assim, o período de latência seria o momento em que essa sexualidade que se despertou nos primeiros anos arrefeceria. É no período de latência que Freud supõe iniciar os principais impactos da cultura sobre o sujeito: recalque, sublimação, formação de caráter, fantasia e os primeiros arranjos sintomáticos. A puberdade aparece então como um terceiro tempo, como o momento em que ocorre um segundo despertar da sexualidade, logo após esse período de latência.

Não por acaso, será em torno da teatralização deste despertar da sexualidade que vai girar uma das poucas referências lacanianas ao tema da adolescência. Ao prefaciar a peça O despertar da primavera, de Wedekind (1973), Lacan (1974/2003) destacará essa dimensão do despertar da sexualidade dizendo que a sexualidade não faz sentido, ela faz furo no real. Isso significa dizer que a pulsão sexual não é absorvida integralmente pelas representações mentais, pois uma parte dessa energia persevera de modo livre, não vinculada às representações significantes e, portanto, "furando" qualquer enquadramento que tenha sido feito para a pulsão. A pulsão sexual, assim, seria mais causa de desestabilização de algum sentido do que causa de algum arranjo simbólico. Na peça de Wedekind, o despertar que ocorre dos personagens adolescentes é, para Lacan, um encontro com esse real que escapa às significações e ao sentido - real que, como lembra Stevens (2004), não pode ser resumido ao aumento hormonal que exige a expulsão dos líquidos sexuais, o que não provoca nenhuma crise relevante em outros animas. O real aqui deve ser entendido, principalmente, como falha do simbólico e do imaginário. Pois, se o primeiro despertar da sexualidade foi procedido de um tempo de latência em que o sujeito encontrou, ainda que precária ou fantasiosamente, alguns arranjos simbólicos e imaginários que vinculassem e organizassem minimamente suas pulsões parciais (sua perversão polimorfa, como dirá Freud), a puberdade é o momento em que esses arranjos falham. Como esses arranjos só podem ser construídos a partir de alguma assimilação do mundo externo (palavras, imagens, símbolos, leis etc.), podemos dizer que o que falha é o Outro, já que o Outro (com O maiusculo) representa na teoria lacaniana tudo o que se apresenta a nós como uma alteridade, inclusive a linguagem que usamos para traduzir nosso mundo pulsional, por natureza, sem nenhum sentido. A puberdade é, então, o momento em que esses arranjos provindos do Outro, e que dão alguma forma ao campo informe da pulsão, falham. Em outras palavras, as fantasias, o pai e as identificações não conseguem mais dar uma forma, um sentido, para as pulsões. Diante dessas falhas, o sujeito responde com um conjunto de sintomas que chamamos, desde o fim do século XVIII, de adolescência.

Tomando em conta essas definições e influenciado pelo estudo que Sonia Alberti (1999) fez sobre o suicídio na adolescência, proponho analisarmos o caso de uma jovem que recebi recentemente em meu consultório e que penso ilustrar como esse fracasso do Outro pode levar o sujeito a respostas sintomáticas graves. Evidentemente, omito o nome verdadeiro da jovem e passo a chamá-la aqui de Sara, a colaborativa.

 

De como Sara perdeu todos os motivos de ser colaborativa

O tratamento de Sara começou com uma ligação da mãe solicitando um atendimento para a filha de 17 anos. Na primeira consulta, recebi a mãe e a filha juntas, e a mãe começou dizendo que a filha precisava de tratamento porque, apesar de ser muito inteligente, estava tendo problemas na escola. Então, disse-me que a própria Sara contaria melhor o que estava acontecendo. Fiquei a sós com Sara, que começou a contar sua história. Aos 3 anos, ela e a família se mudaram para os eua, porque o pai passava por graves problemas financeiros. Morou até os 11 anos no exterior e lá fez amigos na escola, frequentou igreja evangélica, aprendeu a tocar violino e era, segundo suas palavras, muito colaborativa com os pais. Perguntei o que queria dizer isso, e ela explicou que estudava muito, tirava notas boas, cuidava da casa e não dava preocupações a eles.

Sara continuou sua história dizendo que aos 11 anos veio para o Brasil e que se decepcionou muito com esse fato. Disse que a "atrasaram" dois anos na escola porque ela não sabia português muito bem. Contou ter pensado que a atitude era provisória, que logo seria "adiantada" e voltaria a estudar com alunos da mesma idade. Destacou que sempre foi mais madura do que os colegas de sua idade e naturalmente ainda mais em relação aos colegas mais novos. Ainda assim, estudou em uma sala com alunos dois anos mais novos e foi sempre bem na escola até que conseguiu uma vaga num instituto de ensino tecnológico de sua cidade, onde foi cursar o primeiro ano do ensino médio e foi reprovada. Disse não saber o motivo da reprovação, pois é inteligente e muito estudiosa. Aliás, fez questão de afirmar que adora estudar, embora ultimamente não tenha encontrado tanto prazer nessa atividade. Completou dizendo que estudar não foi "suficiente". Comentou então que a mãe "surtou" com a reprovação e falou coisas absurdas como: "Eu desisti de você." Segundo Sara, naquele momento a mãe "tirou todas as razões que tinha de ser colaborativa". Indaguei novamente sobre ser colaborativa, e ela disse que queria dar aos pais o que eles queriam e receber de volta o que ela queria, mas que isso, na família dela, não era possível. Jurou que na família dela isso não poderia acontecer e afirmou que eu só não acreditava nela porque não conhecia seus pais, mas que se conhecesse acreditaria. Então, eu disse a ela que, embora não conhecesse seus pais, acreditava que era impossível dar o que o outro quer e receber do outro o que eu quero.2 Ela estava certa, não se tratava de "insuficiência',3 mas de impossibilidade. Ela riu e concordou comigo, mas acrescentou que com os pais dela as coisas eram ainda mais difíceis, o que eu também disse acreditar.

Terminei essa sessão falando que posteriormente ela poderia me contar mais como era a dificuldade com os pais e perguntei como ela achava que a análise poderia ajudá-la, se é que ela achava isso, pois quem havia marcado a consulta era a mãe. Ela respondeu que não sabia como eu poderia ajudá-la, mas que no início pensou que eu poderia convencer sua mãe a tirá-la do instituto de ensino tecnológico para ficar estudando só para o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), pois assim eliminaria o ensino médio e iria direto para a faculdade. Completou dizendo saber da importância da escola, mas que pensava que, no caso dela, era uma perda de tempo e que, por isso, não encontrava mais nenhum ânimo, nem mesmo pra fazer coisas de que gostava, como estudar ou desenhar. Porém, colocou uma ressalva: caso estudasse para o ENEM, seria diferente, teria ânimo. Disse ainda que sabia que eu não poderia convencer sua mãe, mas que achava que a análise deveria ajudar de algum outro modo. Respondi a ela que a análise talvez a ajudasse encontrar o que a anima, mais do que interferir diretamente nas decisões de seus pais.

Chamei a mãe novamente, que me perguntou como funcionaria a análise. Eu disse que gostaria de encontrar com Sara na outra semana, mas a mãe achou o preço muito caro e questionou-me se não poderia trabalhar com uma sessão por mês. Sugeri nos encontrarmos quinzenalmente com um pequeno desconto e a mãe aceitou.

A partir do dia seguinte, a mãe me deu uma série de telefonemas perguntando o que eu havia achado de Sara. Disse-me que era para eu cortar as asinhas da filha e que eu deveria ser duro com ela. Falou ainda que Sara havia se tornado outra menina, que se transformou e que não a escutava mais. Completou dizendo que a filha havia arranjado um namorado com um furo na orelha, totalmente diferente dos padrões da família. Mais tarde, em um desses telefonemas, comentei ter ficado preocupado com o que ela me contou, mas destaquei que minha preocupação era com ela ter dito que a filha não a escutava mais. Tentei destacar essa frase e me esquivar do assunto do namorado. Marquei, então, uma conversa com a mãe.

 

As colaborações da mãe

Freud (1933[1932]/1996c), em uma franca defesa do uso de psicanálise em crianças, alerta também para as especificidades do tratamento infantil. Segundo ele, as resistências internas que encontramos nos adultos aparecem nas crianças como dificuldades externas. Assim, os pais se constituem em veículos da resistência e "muitas vezes é necessária determinada dose de influência analítica junto aos pais" (Freud, 1933[1932]/1996c, p. 146). Não se trata de psicanalisar os pais, mas de fazer algumas intervenções pontuais que possam facilitar o andamento da análise. Embora Sara não seja uma criança, acredito que para o seu caso foi muito importante uma dose de influência analítica junto à mãe, ainda que sem indicar uma análise ou pedir que ela viesse mais vezes ao meu consultório.

A sessão com a mãe foi difícil. Ela repetiu o que havia dito ao telefone, mas não disse que Sara não a estava escutando mais. Depois de um bom tempo de queixas da mãe, consegui finalmente falar e relembrei a ela da conversa ao telefone, perguntando o motivo de Sara não estar mais ouvindo sua mãe. Ela então me disse que errou muito com a filha, que deixou Sara sozinha nos EUA para trabalhar fora e isso a prejudicou. Recontou muito do que a própria Sara havia relatado na primeira sessão. Eu disse a ela que não devia ser só o fato de ter trabalhado fora que fez a filha não ouvi-la mais, pois Sara, pelo que a própria mãe contou, pareceu ouvi-la durante muito tempo. Ela então falou da reprovação da filha e da briga que tiveram. Comentou ter exagerado no que disse, mas falou também que Sara era uma criança e estava querendo ser independente, o que a deixava sem saber o que fazer. Perguntei sobre o pai, e a mãe só falou que ele é distante. Afirmei que Sara não é tão criança e que talvez também estivesse na idade de querer dizer algumas coisas e não só ouvir. A mãe não me ouviu, respondeu que Sara era inteligente e falou da decepção que foi a reprovação. Ela contou, então, do desejo da filha de sair do instituto de ensino tecnológico a fim de estudar para o ENEM. Para a mãe, Sara já havia parado de estudar, pois ia ao instituto, mas não estudava, não fazia nada. A mãe acrescentou que não daria o braço a torcer e que Sara não sairia do instituto, pois haveria de fazer o ensino médio como todo mundo. Falei, então, da possibilidade de pensarmos uma saída para Sara que não seja exatamente a de todo mundo. Destaquei que a própria Sara era um exemplo vivo de que não há um único caminho para o ensino, pois ela teve uma educação cheia de percalços, foi "atrasada" dois anos, e ainda assim aprendeu muito, até impressionava os familiares com sua inteligência, como a própria mãe havia dito. A mãe, então, citou a pedagoga da escola e sugeriu que eu fosse conversar com ela. Aceitei a proposta, desde que Sara concordasse. Perguntei ainda sobre a possibilidade de conversar com o pai, mas a mãe desconversou, disse apenas que ele é um pouco distante da filha e que seria difícil vir - como, aliás, já havia dito a própria Sara.

 

As colaborações da pedagoga

Antes de ir à escola tive uma sessão com Sara em que ela relatou muitos desligamentos. Disse que largou a igreja, que se afastou de alguns amigos e que estava prestes a terminar com o namorado porque, entre outros motivos, ele era muito religioso. Perguntei se ela já havia pensado em que se ligaria agora, pois, se estava se desligando de tantas coisas - e em minha fala incluo os pais -, era preciso pensar também em algo para se ligar. Ela falou dos professores com admiração e de alguns amigos, e contou que eles haviam dito para ela procurar uma terapia. Mostrei-me surpreso de a mãe não ter sido a única a indicar a análise. Ela se recusou a contar o que havia levado os amigos a indicar terapia. A sessão terminou com a proposta de eu conversar com a pedagoga, com a qual ela concordou, dizendo que por ela estava tudo bem, mas que era pra eu me preparar, pois a pedagoga era chata demais.

Durante a visita, a pedagoga alegou que a solução seria tirar Sara do instituto, pois aquela era uma escola para quem queria de fato estudar. Disse-me que a aluna desistiu dos estudos e a escola não sabia o que fazer. Perguntei se ela sabia da história escolar de Sara, e ela respondeu que sim, que isso era algo que havia prejudicado demais o ensino dela. Eu disse a ela que talvez fosse esse o motivo de Sara fazer seu protesto. Contei que Sara achava que iria ser "adiantada" e que essa promessa nunca foi cumprida. A pedagoga concordou, mas falou muito das dificuldades da escola com a aluna, pois ela não queria mais estudar e o instituto era muito exigente. Por fim, disse que desconfiava que Sara fosse homossexual, pois andava com um grupo de homossexuais, e que seria bom ela contar isso pra alguém, pois poderia ser algo que a atrapalhasse. Falamos ainda dos pais de Sara e ela confirmou a ausência do pai e a total desorientação da mãe em relação ao amadurecimento da filha.

 

Pelas entrelinhas

Na próxima sessão, Sara se interessou pouco pela conversa que tive com a pedagoga. Então, perguntei novamente sobre o motivo de os colegas indicarem a análise. Ela disse que isso era o que estava tentando me contar, mas que não conseguia, que não conseguiria nunca falar sobre esse assunto, que não iria "verbalizar". Ela então passou a tentar dizer-me e contou que queria esquecer "isso", mas que retornava. Disse a ela que, se retornava, é porque era preciso falar sobre. Ela comentou que pensava que "isso" fosse uma opção, mas não queria acreditar que fosse a única. Falou que estava tentando me dizer nas entrelinhas, e eu falei que isso já era começar a dizer. Acrescentei que era um bom sinal querer dizer sobre "isso", mesmo nas entrelinhas. Pensei nesse momento que a hipótese da homossexualidade levantada pela pedagoga poderia estar correta, mas não comentei nada.

Na próxima sessão, ela voltou a falar do distanciamento dos amigos e disse que cada um tinha seus problemas. Perguntei qual era o dela. Ela falou algumas coisas triviais, mas destaquei que na última sessão ela tentou me contar algo específico. Então, para minha surpresa, ela disse, sem hesitação, que pensou muito seriamente em se matar. Era "isso" que poderia ser uma opção ou talvez a única opção. Contou que o pensamento lhe ocorreu quando a mãe brigou com ela por causa da reprovação. Lembrei que foi quando ela perdeu os motivos de ser colaborativa. Ela disse que sempre teve um plano B, mas que naquele dia viu que não havia mais solução. Falei, então, que de algum modo ela percebeu que se matar tampouco era uma solução e perguntei o que a fez perceber isso. Ela respondeu que não sabia. Eu disse que ela não sabia muitas coisas, mas que era bom tentar saber. Ela falou que talvez houvesse desistido de se matar porque tivesse planos e comentou dos planos de fazer artes visuais, mas acrescentou um novo plano: queria ter um dia uma produtora para encontrar e promover artistas desconhecidos. Perguntei o motivo dessa escolha e ela disse que sabia de muita gente que tinha potencial, mas não conseguia ser reconhecido porque não tinha os meios para isso. Apontei que esse caso parecia muito com o caso dela, e que fazer realizar seu potencial era algo que poderíamos tentar em análise. Reafirmei seu potencial, reconhecido pela mãe e pela pedagoga, e falei do interesse dela pela arte, pelos estudos, pelos professores. Era preciso agora arrumar formas de realizar seu potencial e não desperdiçá-lo (suicidando-se, por exemplo). No fim da sessão, ela contou que a mãe estava mais flexível e que pensou em colocá-la em outra escola. Disse a ela que poderia sair daí um plano B, com o que ela concordou. Concluímos então que encontramos um primeiro cliente para a produtora dela: ela mesma. Nas outras duas sessões, encontrei uma Sara diferente da que havia conhecido: mais animada, falando de planos, dos desenhos e de seus dons.

 

As asas do mestre, uma verdadeira colaboração

Freud (1914/1996a), ao escrever sobre a psicologia do escolar, diz que passou todo o período do ginásio esboçando em voz baixa a tarefa que iria propor-se no futuro. No fim de seus estudos, ele escreve em uma dissertação qual seria essa tarefa. Para Hugo Freda (1996), a tarefa a que Freud se refere representa a inscrição de um desejo no campo do Outro - tarefa que Freud atribui a todo adolescente, pois desligar-se da influência dos pais é de certo modo buscar essa inscrição para além do lar. No mesmo texto, Freud destaca a importância que os mestres, enquanto substitutos da autoridade paterna e representantes do Outro, exercem na vida dos jovens. Fala-se atualmente muito do declínio da imago paterna, o que quer dizer que as figuras que representam o pai já não servem tanto como bússola para a inscrição do desejo do sujeito no campo do Outro (campo das representações, campo da linguagem, mas também campo do mundo social e da cultura). Mas o caso de Sara mostra que o mestre ainda pode ocupar o lugar sugerido por Freud e servir como inspiração para esse trabalho de inscrição do desejo no campo do Outro. Não sei até que ponto os mestres de Sara foram responsáveis pela manutenção de sua vida, mas a admiração que ela tem por eles e a forma como ela fala da arte e dos professores me fazem supor que, ao menos um deles, teve influência decisiva no caso.

Um dia Sara chega ao consultório dizendo que sua mãe havia conseguido uma vaga em outra escola, com carga horária menor que a do instituto, e que assim poderia ter mais tempo para estudar para o ENEM sem ser reprovada. Sara passou então a falar de como os amigos e professores ficaram decepcionados com sua possível saída do instituto. Foi nesse momento que voltou a falar de um de seus professores que leciona história da arte. Contou que uma vez sua turma o presenteou com vários objetos e ela fez um desenho para ele. Pelo celular, mostrou-me a foto do desenho. Fiquei de fato impressionado com o trabalho dela, algo muito sofisticado. Ela havia desenhado o corpo do professor com as letras do nome dele, que viravam lindas asas. Ela disse que eram asas de coruja, porque coruja é símbolo de inteligência. Segundo Sara, esse professor ajuda as pessoas a voarem alto. Lembrei-me de que sua mãe havia me dito pelo telefone para cortar as asas da filha, e disse a Sara, sem mencionar a fala da mãe, que quando tentaram cortar suas asas ela resistiu. Ela disse que jamais deixaria alguém cortar suas asas. Afirmei que a prova disso era ela ter desistido do suicídio. Ela então se lembrou de algo que queria me falar: quando pensou em se matar, comentou com uma amiga - "Nem a arte é suficiente mais". Disse-me então que pensou muito seriamente em se matar e que via no suicídio a única opção. Perguntei como ela ouvia essa frase naquele momento. Ela respondeu que naquele momento a arte era tudo: "É minha vida." Lembrou-se, então, de que a mãe pediu para ela colocar artes visuais como segunda opção no vestibular, pois arte não dava dinheiro. Relatou o quanto ficou ofendida com isso. Brigou muito com a mãe e disse que se assim fizesse colocaria sua própria vida como segunda opção. Voltamos a falar do professor e de suas asas, e ela relatou um tanto apaixonada o quanto ele foi importante em sua formação.

Na próxima sessão, Sara me contou que o plano da nova escola não deu certo, mas que estava se sentindo bem, que isso não afetaria seus planos. Disse que seria chato ter que convencer a mãe a colocá-la num cursinho para estudar para o ENEM e que seria ainda mais chato fazer o primeiro ano de novo, pois seria perda de tempo. Falou também que ainda havia uma pequena chance de passar de ano, pois voltou a estudar. Mencionou as brigas que possivelmente teria com a mãe nos próximos meses e aproveitei então para indagar mais uma vez o papel do pai em sua vida. Ela disse que não havia nada para falar, pois não conversa com o pai, porque ele é grosso e chato. Segundo Sara, se ele não fosse seu pai, jamais se aproximaria dele. Contou já ter brigado muito com ele, mas que hoje não brigava mais, porque eles quase não conversavam. Perguntei quando as brigas começaram, e ela respondeu que sempre brigou com o pai. Duvidei disso e ela admitiu que as brigas começaram quando chegou ao Brasil, pois nos eua praticamente não encontrava com ele. Aqui, viu quem os pais realmente eram e se decepcionou muito. Digo que esse afastamento do pai pode ter deixado algumas marcas. Esse foi nosso encontro mais recente e penso que um passo importante será conversar com esse pai. De todo modo, o suicídio não parece mais ser encarado como uma opção.

 

Três jovens e suas relações com o suicídio

A adolescência e a menção ao suicídio no caso de Sara fizeram-me recordar de outros dois curtos tratamentos de jovens adolescentes que, diante do fracasso do Outro, responderam com sintomas que preocuparam seus pais, fazendo-os procurar um tratamento analítico para as filhas. Refirome aqui aos casos freudianos que ficaram conhecidos como Caso Dora (Freud, 1905[1901]/1996b) e Caso da Jovem Homossexual (Freud, 1920/1996d). Também a feminilidade pode ser um tema em comum aos três casos, mas, pelo menos por enquanto, Sara falou pouco de suas descobertas femininas. Mencionou apenas o curto namoro que teve e disse que sentiu alívio quando o namorado terminou, pois achava que os dois não tinham mais nada em comum. Indaguei sobre outros romances e sobre sua vida amorosa, mas pouco foi dito. Outra característica partilhada pelos três casos é o curto tempo de tratamento. Assim como Dora foi atendida somente durante três meses e a Jovem Homossexual um pouco mais do que isso, o presente artigo relata apenas os primeiros atendimentos a Sara.

Para analisar o que há de comum e divergente nos casos, vale a pena retornarmos ao problema da puberdade enquanto uma falha nos arranjos simbólicos e imaginários formados durante o período de latência. Essa falha, que nomeamos acima como falha do Outro, coloca o sujeito diante de um impossível de se nomear ou representar. A essa impossibilidade, Lacan dá o nome de real. Por isso, a puberdade, na teoria psicanalítica lacaniana, também pode ser entendida como um encontro com o real, um encontro com essa impossibilidade de representar integralmente as pulsões através dos objetos que nos são ofertados. Algo da pulsão que Freud chama de perverso polimorfo reaparece na puberdade. Isso afasta o púbere das representações e objetos que dão forma a seu mundo pulsional, colocando-o mais próximo também do que Freud chama de pulsão de morte, já que esta aparece na teoria freudiana como uma pulsão silenciosa, sem representação, sendo pura quantidade sem qualidades.

Mas a afirmação de que a puberdade é um encontro com a impossibilidade de representação da pulsão, ou um encontro com o real, não pode servir ao psicanalista como uma fórmula generalista que dá conta de uma universalidade de sintomas. Como nos ensina a psicanálise, as respostas dos sujeitos são sempre singulares, e mesmo comportamentos que se assemelham costumam apresentar estruturas bastante diferentes. Os jovens respondem de formas distintas a essa irrupção do real própria da puberdade. Por vezes, eles respondem ao fracasso do Outro com sintomas de confrontação e ataques ao Outro. A mãe de Sara acredita que o namoro da filha com o jovem da orelha furada era um sintoma dessa ordem. Hugo Freda (1996) alerta que existem outros sintomas que fogem a essa rebeldia caricata da adolescência e que caminham exatamente na direção oposta. Diante do fracasso do Outro, muitos jovens se dedicam a uma alienação no Outro ainda maior, justamente por não quererem crer no real para o qual foram despertados. Encontramos nessa situação jovens que se dedicam aos estudos tentando recuperar desesperadamente o saber que lhes foi revelado insuficiente ou que tentam cumprir com todas as exigências impossíveis do Outro. O fato de esses sintomas de alienação no Outro causarem, supostamente, menos barulho na família não deve ser considerado como sinal de menor morbidade do sintoma.

No entanto, a esse quadro de respostas sintomáticas de confronto com o Outro e de alienação no Outro, podemos acrescentar uma resposta que, essa sim, se revela mais grave que as demais, por ser uma separação muito mais radical do campo do Outro. Refiro-me aqui ao que Lacan (2005) chamou de passagem ao ato. Diante do fracasso da fantasia, do fracasso do saber dos pais e do fracasso do lugar que a cultura reservou ao púbere até então, o sujeito pode escolher se afastar absolutamente do Outro, dele se separando radicalmente, como acontece nos atos suicidas. É o caso de Moritz, um dos personagens principais de O despertar da primavera. Seus pais depositam em sua formação escolar a esperança de um futuro melhor para a família. Moritz tenta a todo custo cumprir com essa exigência alienando-se no desejo dos pais, mas diante de seu fracasso ele se afasta de qualquer laço social e se deixa guiar pela pura pulsão de morte, o que resulta no sacrifício de sua própria existência. Sonia Alberti (1999), para quem Moritz é um psicótico, destaca bem a diferença do suicídio do personagem de Wedekind e de outras tentativas de suicídio que, ainda que graves, buscam enviar uma mensagem ao Outro.

Podemos analisar os casos citados a partir dessa mensagem que é ou não enviada ao Outro. Em todos os três casos, temos decepções que parecem representar o fracasso do Outro. Para Dora, a grande decepção é se ver fora do triângulo amoroso composto pelo pai, pela Sra. K e pelo Sr. K. Segundo Alberti (1999), quando o Sr. K diz que sua mulher não é nada para ele, Dora se identifica com o nada e lhe dá uma bofetada. É o que faz Lacan (2005) afirmar que a bofetada de Dora não é um acting out, mas uma passagem ao ato. Lacan chega mesmo a afirmar que esses dois conceitos são opostos exatamente no que se refere à mensagem enviada ao Outro. Para o psicanalista francês, o acting out, exemplificado pelos atos falhos, é, em essência, uma "mostração velada", o que implica dizer que, ainda que velado, há algo que se quer mostrar, que se orienta para o Outro, que compõe, portanto, uma cena. Já na passagem ao ato, não há nada que se oriente para o Outro, não se trata de uma cena velada que apela por interpretação, mas sim de um salto para fora de qualquer cena. Portanto, se o acting out está do lado do Outro, a passagem ao ato está do lado da pulsão sem representação e, portanto, do sujeito - afinal, como ressalta Lacan, o sujeito é exatamente aquilo que no ser escapa a qualquer significação. Assim, o autor considerará a bofetada de Dora uma passagem ao ato, pois, identificando-se com o "nada" da frase do Sr. K., ela se afasta de qualquer tipo de representação e parte para um ato sem sentido, ininterpretável. Por outro lado, o comportamento paradoxal de Dora na casa dos K. será interpretado por Lacan como um acting out, uma espécie de protesto que culminará com seu encaminhamento ao Dr. Freud.

Já no caso da Jovem Homossexual, a grande pane no Outro é causada, segundo Freud, pela notícia do nascimento de outro irmão quando ela tinha 16 anos. Seguindo a reflexão de Lacan (2005), o desejo da Jovem Homossexual por um filho é, mais do que isso, o desejo de ter um falo. Assim Lacan interpreta a maneira de a Jovem cortejar a Dama, posicionando-se em relação a essa como um homem e buscando em seus passeios os olhares do pai. Por outro lado, o salto da Jovem na linha férrea sugere a Lacan que se trata de um salto para fora da cena do Outro. No Seminário 10, Lacan (2005) irá fazer uma distinção entre o que ele chama de cena do Outro (Outro que, como dito acima, é o lugar de onde advêm os materiais simbólicos que utilizamos para representar nosso mundo pulsional) e o mundo desinvestido da dimensão simbólica (que poderia ser encarado como o mundo em seu estado mais bruto, sem representação, ou, como prefere Lacan, simplesmente como real). Por isso, podemos dizer que o salto da Jovem Homossexual é um salto da cena para o real.

No caso de Sara, a decepção começa a ser desenhada já em seu retorno ao Brasil, quando ela diz conhecer quem realmente eram seus pais. Essa decepção é confirmada ou reatualizada quando ela percebe que a promessa de ser "adiantada" na escola nunca será cumprida. Por fim, a decepção aparece com força ainda maior no que ela chamou de "surto" da mãe, quando esta, após a reprovação da filha, diz: "Eu desisti de você". Essa frase soa para Sara de modo semelhante a um "Você não é nada".

Vejamos como Sara responde a esses fracassos do Outro e como essa resposta a conduziu à análise. Enquanto Dora escreve uma carta de despedida aos pais e desmaia diante de seu genitor, a Jovem Homossexual começa a sair com mulheres e se joga na linha férrea. Sara, por sua vez, é reprovada, mesmo sendo inteligente e estudiosa. Depreendemos disso uma divergência fundamental entre os casos: a já mencionada mensagem enviada ao Outro e como essa mensagem reaparece na análise. Nesse sentido, o Caso Sara está mais próximo do Caso Dora do que do Caso da Jovem Homossexual. Dora, como a Jovem Homossexual, é levada à análise pelo pai, assim como Sara é levada pela mãe. Porém, como observa Sonia Alberti (1999), a perda de consciência de Dora, que leva seu pai a procurar um analista, é um apelo ao Outro do saber e da verdade, que reaparece na análise quando Dora narra seus sonhos. O "protesto" de Sara equivale a algo dessa natureza. Com alguma inibição qualquer, ela consegue ser reprovada e convoca a mãe a repensar a promessa nunca cumprida de "adiantá-la" dois anos na escola, o que reaparece no início da análise quando ela diz que eu poderia intervir nesse aspecto. Já a Jovem Homossexual é levada à análise para que Freud a faça voltar à norma sexual, transformando-se em heterossexual. Mas, como observa Freud, não há nenhum conflito interno que ela lhe enderece. Pelo contrário, a Jovem faz questão de mostrar a Freud sua indiferença com o tratamento. Não é que ela não faça nenhum apelo ao Outro. Muitos pontos do relato denunciam esse apelo - por exemplo, seus passeios com a Dama nas proximidades do trabalho do pai -, mas ele não retorna na análise, o que determina seu término precoce.

De forma semelhante, o apelo ao Outro se revela nas intenções de suicídio de Dora e de Sara, o que não ocorre com a Jovem Homossexual. Os sintomas iniciais de Dora são descritos como atitudes inamistosas em relação aos pais e desinteresse em contatos sociais. Ou seja, ela desligava-se dos pais e não encontrava um substituto para esses representantes do Outro - muito embora seu interesse em ouvir conferências para mulheres mostre que seu desejo começava a ser inscrito além do lar. É diante desse contexto que seus pais encontram uma carta em que ela se despedia deles porque não podia mais suportar a vida. A carta com menção ao suicídio foi inconscientemente "esquecida" dentro ou sobre a escrivaninha. A carta tinha endereço e o alcançou através de um ato falho.

No caso de Sara, a mensagem da carta estava nas entrelinhas. Seus desligamentos com os amigos, com a igreja, com os estudos e com os pais causaram também um desligamento com a arte - segundo ela, sua vida. Ela não conta da intenção suicida para os pais, como faz Dora com sua carta, mas conta para uma amiga e completa dizendo que nem a arte é mais "suficiente". A amiga sugere que ela procure uma terapia. Mas Sara também se dirige à mãe através das entrelinhas. Afinal, não é por acaso que a mãe chega à mesma conclusão que a amiga de Sara e a leva ao analista. Sara, com a ajuda dos amigos, da mãe (que aceita flexibilizar um pouco a situação), do psicanalista e do mestre, consegue sair da insuficiência/impotência para a impossibilidade. A arte não era suficiente, hoje a arte é impossível de ser abandonada ou encarada como segunda opção.

Já no caso da Jovem Homossexual, sua relação com o suicídio é bem mais séria. Isso porque não parece ser uma forma de apelo ao Outro. A Jovem, quando sai para passear com a Dama por quem é apaixonada, faz algo parecido com o que Dora faz com sua carta. Ela passeia com a Dama perto do local de trabalho do pai. Até então sua carta tinha endereço também. Porém, no momento em que a Dama descobre que o homem que as olhava furiosamente era o pai da Jovem, ela rompe com a menina e pede que esta nunca mais a procure. Nesse momento, a Jovem Homossexual salta um muro e se joga na linha ferroviária. Para Freud, a Jovem vê no rompimento com a Dama o mesmo rompimento que teve em relação ao pai. Se o pai dispensava a filha para ter um filho com sua mãe, a Dama também a dispensava. Freud supõe, então, dois motivos para a tentativa de suicídio da moça: uma identificação com a mãe, e portanto uma tentativa de realizar o desejo de matar a mãe; e um retorno, para si própria, de um desejo de morte. A Jovem não se endereça ao Outro. Pelo contrário, sua tentativa de suicídio não é encarada por Freud como uma cena, uma representação ou uma mensagem enviada ao Outro, mas como expressão desse desejo de morte que retorna - desejo de morte que seria descrito por Freud, no mesmo ano de publicação do caso, como a famigerada e silenciosa pul-são de morte. Vale notar aqui que quanto mais distante do Outro, mais próximo da pulsão de morte. Nos dizeres de Lacan, a Jovem não representa nada, apenas passa ao ato. Talvez por isso Freud diga que o discernimento do pai de Dora o fez perceber que ela não tinha intenções sérias de suicídio, enquanto o próprio Freud classifica a tentativa da Jovem Homossexual como indiscutivelmente séria. Isso não quer dizer que quando há mensagem ao Outro o caso não possa ser grave e o suicídio não possa ocorrer, mas sim que a presença do Outro pode ser crucial para evitar que, da angústia causada pela falha da fantasia, o sujeito passe ao ato.

 

Considerações finais

Com seu "protesto", e bem nas entrelinhas, Sara conseguiu que a mãe ouvisse seu apelo, trazendo-a para a análise e flexibilizando sua posição quanto ao destino escolar da filha. Foram poucos encontros, não o suficiente para fazê-la voar, mas talvez para fazê-la redescobrir suas asas e protegêlas de quem as quer cortar. Sara começa a inscrever seu desejo no campo do Outro: deseja ser desenhista e sabe que isso pode lhe render pouco dinheiro, mas diz também que se tiver sorte pode acontecer o contrário - ficar rica e famosa. De todo modo, ressalta que a arte é sua primeira opção, portanto, está antes da fama e do dinheiro. Além de ser desenhista, sonha em ter uma produtora para novos talentos. Aqui é clara a influência das asas do professor - ela quer exercer de forma empresarial o que ele realiza talvez sem nem perceber: "Fazer as pessoas voarem alto". Percebo um pouco de romantismo em seus sonhos, mas quantos devem ter pensado que contribuir com algo importante para o conhecimento humano também não passava do romantismo adolescente de um jovem ginasiano! Essa era a tarefa que Freud diz ter escrito na sua dissertação final do ginásio. Sara, a colaborativa, depois da cena com a mãe, não quer mais esse nome. O que a análise pode fazer por ela é ajudá-la a encontrar outros.

 

Notas

1 Lacan (1985) defenderá essa tese dizendo que o sujeito é o que um significante representa para outro significante, ou seja, ele não é nenhum dos significantes que o representam, mas o efeito dessa articulação entre um significante e outro.

2 Essa impossibilidade de dar ao Outro o que ele quer, ou seja, de encontrar uma adequada destinação pulsional no campo do Outro, é formulada por Lacan (1985) através de sua polêmica afirmação de que a relação sexual não existe. Miller e Laurent (2005) lembram bem que quando Lacan se refere à inexistência da relação sexual é da pulsão que se trata. Dizer que não existe relação sexual é dizer que a pulsão não encontra no campo do Outro nenhuma acomodação possível ou proporcional a sua exigência. Sara parece reafirmar algo semelhante com outras palavras, o que me faz concordar.

3 Palavra que ela própria havia dito em relação aos estudos e que voltará mais tarde em relação à arte.

 

Referências

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Correspondência:
Humberto Moacir de Oliveira
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(Recebido em 26.05.2014
Aceito em 27.01.2015]

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