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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo July/Sept. 2015

 

PONTO DE VISTA

 

Hip hoppers: os manos na cultura

 

Hip hoppers: “bros” (brothers) in culture

 

Hip hoppers: los hermanos en la cultura

 

 

João Lindolfo Filho

Sociólogo, mestre em Psicologia Social e doutor em Antropologia Urbana na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade de Lisboa, tendo apresentado trabalhos na Universidade de Coimbra (2004/2014) e também na Sorbonne, em Paris (2015). Músico, cantor, compositor. Idealizador das bandas Negão e Banguela de Batom (reggae, funk, blues). Atualmente, é pós-doutorando em Antropologia Urbana com o tema Tribos urbanas blacks: São Paulo, Lisboa e Paris e os griots do terceiro milênio. Foi diretor musical do programa Axé Se Liga, Brasil, veiculado pela TV Bandeirantes em 1998, idealizado pelo prof. dr. Hélio Santos. Também é o idealizador e apresentador do programa Cabeça de Nego (www.cidadafm.com.br), aos sábados, às 14h

Correspondência

 

 


RESUMO

Laços tribais destruídos por sequestro, incursão oceânica compulsória e trabalho escravo sob coerção. Novas irmandades de resistência e luta se formam quotidianamente a partir, principalmente, dos traços culturais comuns e dos ideais de liberdade, igualdade, fraternidade e felicidade, também para os filhos da África. Ideais que se espalham e se reinventam de maneira virótica pelo planeta em reinterpretações e interações com outras culturas e etnias, desde os primeiros diálogos transatlânticos até a atualidade. Transformando, paulatinamente, a paisagem sociocultural mundial, tornando-a menos desigual, mais livre, consciente, fraterna, colorida, musical e alegre, apesar dos obstáculos que se lhes apresentam.

Palavras-chave: diáspora; resistência; identidades; juventude das periferias das metrópoles; produções culturais; sociabilidades; genocídio.


ABSTRACT

Tribal bonds were destroyed by kidnapping, compulsory oceanic raid, and forced, slave labor. New brotherhoods of resistance and fight are formed every day especially from common cultural traces and ideals of freedom, equality, fraternity, and happiness; it also happens for the children of Africa. These ideals have spread and reinvented themselves virally across the planet, in reinterpretations and interactions with other cultures and ethnicities, since the first transatlantic dialogues. Little by little, world social and cultural scenery has been changed, becoming less unequal and freer, friendlier, happier, more conscious, more colourful, and more musical, despite the obstacles they face.

Keywords: diaspora; resistance; identities; suburban ghetto youth (youth in the outlying ghettos of a metropolis); cultural productions; sociabilities; genocide.


RESUMEN

Lazos tribales destruidos por el secuestro, la incursión oceánica obligatoria y el trabajo esclavo bajo coerción. Nuevas hermandades de resistencia y lucha se forman cotidianamente, a partir, principalmente, de los rasgos culturales comunes y de los ideales de libertad, igualdad, fraternidad y felicidad, también para los hijos de África. Ideas que se difunden y se reinventan de manera viral por el planeta, en nuevas interpretaciones e interacciones con otras culturas y etnias, desde los primeros diálogos transatlánticos hasta la actualidad. Transformando, paulatinamente, el paisaje sociocultural mundial, tornándolo menos desigual, más libre, consistente, fraterno, colorido, musical y alegre, a pesar de los obstáculos que se les presentan.

Palabras clave: diáspora; resistencia; identidades; juventud de las periferias de las metrópolis; producciones culturales; sociabilidades; genocidio.


 

 

1. Invasão, sequestro de irmãos, exploração e resistência cultural

O século XV presenciou nações euro-peias adentrarem o continente africano, onde, conforme se sabe atualmente, se deu o surgimento do homem original. Com o poder da pólvora de origem chinesa, prevalecendo-se das rivalidades tribais históricas entre os grupos étnicos autóctones, desenvolveram a prática de armar algumas tribos para subjugar outras, que teriam seus membros sequestrados e vendidos como escravos nas Américas. Ao mesmo passo, ocorria a sistemática depreciação das culturas que havia na África, quando não se negava a existência delas.

Na abordagem oficialmente propagada, a história da África teria início com a chegada do europeu. Já o conceito afrocêntrico, desenvolvido nos Estados Unidos, por influência do movimento de pan-africanismo,1 a partir da década de 1950, responde a esta questão colocando o papel do negro africano no centro da História e de culturas humanas pregressas, anteriores à invasão e sequestro pelos europeus. Desse modo, a Europa é retirada do centro da realidade africana, recuperando-se a ideia de como teria sido a trajetória do continente africano caso ele tivesse sido autônomo e não explorado à exaustão, inclusive em vidas e almas, conforme ocorreu.

A afrocentricidade promove a oportunidade de reconstrução histórica na perspectiva do negro africano como protagonista. Somente nas últimas décadas é que os esforços de intelectuais de várias partes do planeta passaram a ser organizados numa obra financiada pela UNESCO. Tratase da História geral da África (Ki-Zerbo, 1981/2010), que recupera e torna conhecida uma enorme parte da real história que não foi contada, e que questiona sobremaneira aquela até então difundida. Os audazes artistas, manos das periferias, de maneira semelhante aos ancestrais griots,2 têm contado e cantado essa outra perspectiva há três décadas. Ainda bem! Mas por que a História demorou tanto para trazer à luz a realidade da diáspora africana? Seguramente, podemos encontrar parte da resposta em Paulo Freire (1984), quando afirma que seria uma atitude muito ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que permitisse às classes dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica.

Com efeito, em conformidade com a História, um fato que sucedeu à invasão e ao sequestro foi o loteamento do continente africano entre as nações mais poderosas, e, talvez propositalmente, sem respeito algum pelas fronteiras étnicas e culturais, o que propiciaria a promoção de políticas de dividir para melhor dominar.

Situações de guerra sempre pautaram, ao longo dos séculos, o quotidiano do continente africano, pois os dominadores europeus promoviam o acirramento de rivalidades étnicas existentes, talvez anteriores a sua chegada, para tirar proveito. Valeram-se delas, por exemplo, nas operações de captura de indivíduos para serem escravizados. O quadro se agrava quando, em determinados territórios, como estratégia de dominação, fomentam-se guerras étnicas, como no caso recente de Ruanda, na década de 1990, em que forças europeias priorizaram e armaram a etnia dos hutus para se confrontar com a etnia dos tutsis. Da mesma forma, houve várias outras aterradoras práticas que não vêm ao caso para esta abordagem sucinta acerca da resistência étnico-cultural nas metrópoles.

O que mais nos interessa neste texto é referir que a diáspora africana, que espalhou o negro pelo mundo para ser explorado na condição de escravo, muito embora carregasse uma inexorável capacidade de destruição de vidas e almas, acabou também, como consequência, por disseminar a cultura africana. Ocorre que os africanos, espalhados pelas Américas, levaram consigo a visão de mundo, a forma de relação com o cosmo, a ginga, a música e a cultura que constavam em sua bagagem.

Condenados, coercitivamente, à condição de escravos, foram submetidos a situações extremamente degradantes, nesta prática que foi uma das mais aterradoras selvagerias cometidas contra seres humanos, que eram coagidos quotidianamente a cruéis abusos, sob ameaça de castigos, açoites, tortura física, mental e/ou morte. E mesmo em meio às atrocidades vivencia-das, ou como consequência delas, a cultura desses escravos se constituiu em substrato para resistência e luta, e portanto exercitada diuturnamente, na forma de música, batuques, cultos religiosos abertos ou disfarçados, bem como outras manifestações.

A partir de então, a paisagem cultural de qualquer ponto do planeta jamais seria a mesma, sendo transformada, perpassada pelo crivo da cultura negra, que historicamente funcionou como elemento de sustentação e de resistência à violência que lhe infligiam os seus algozes, desde o sequestro na África até os locais para os quais foram conduzidos.

Para Pierre Verger,

a presença das culturas africanas no Novo Mundo é uma consequência do tráfico de escravos. Escravos estes que foram trazidos para os diferentes países das Américas e das Antilhas, provenientes de regiões da África escalonada de maneira descontínua, ao longo da costa ocidental, entre Senegâmbia e Angola. Provenientes, também, da costa oriental de Moçambique e da ilha de São Lourenço, nome dado nessa época a Madagascar. Disso resultou, no Novo Mundo, uma multidão de cativos que não falavam a mesma língua, possuindo hábitos de vida diferentes e religiões distintas. Em comum, nada tinham, senão a infelicidade de estarem, todos eles, reduzidos à escravidão, longe das suas terras de origem. (1997, p. 13)

Embora a dominação priorizasse juntar apenas pessoas de etnias e, portanto, de dialetos diferentes para dificultar a comunicação entre elas nos espaços para onde seriam levadas, ocorreu invariavelmente que, em suas interações, além de aprenderem os idiomas locais, a partir destes ainda criavam outros dialetos para se comunicarem entre si, sem que os proprietários de escravos pudessem compreendê-los e flagrá-los em suas atividades, com vistas às possibilidades de resistência. Trata-se do creole, falado ainda hoje por afrodescen-dentes e em diversos países.

Quanto à alfabetização, é importante frisar que os norte-africanos já seriam letrados e de tradição islâmica; portanto, liam o Alcorão. Ainda, na África, arqueólogos encontraram traços de uma civilização mais antiga, os adrinka, na qual já existia uma escrita icônica chamada sankofa, tão importante quanto a egípcia. Em conformidade com Larkin (1994), trata-se de ideogramas de uma escrita antiga que torna evidente ter surgido na África a prática da escrita, apesar de tal fato nunca ter sido mencionado, a não ser nas últimas décadas, ao mesmo tempo que a ciência passou a admitir que o homem original tenha surgido na África, assim como as sociabilidades e interações humanas.

Conforme afirma Lindolfo,

alguns tornavam-se analfabetos apenas nas línguas dos países para os quais eram conduzidos e, como lhes era negada a alfabetização, retomavam a tradição oral, existente mesmo nas culturas letradas, como a árabe. Entretanto, aqui não se originou apenas em virtude da ausência de cultura letrada, mas principalmente do hábito de reunir o grupo em torno do narrador, como modo de divertir e apreciar a habilidade de contar histórias. O narrar, em muitas culturas, permanece por meio da tradição dos griots, responsáveis por narrar a história e a cultura de seus povos, peregrinando pelas aldeias, levando notícias e memórias, quer faladas, quer cantadas, e as influências desta figura ancestral podem ser percebidas em todas as formas culturais e musicais de origem africana, que por seu turno têm potencial de agregar audiências, simpatizantes e formar seguidores. (2004, p. 131)

A partir da condição de cativeiro, movimentos de resistência e lutas por libertação sempre pautaram o quotidiano desses filhos da África, que concomitantemente, conforme o mencionado, desde que, arrancados de suas terras, foram disseminando as suas culturas, foram também influenciando, por assim dizer, as culturas locais e sendo influenciados por elas com a intersecção ocasionada pela travessia atlântica.

Os movimentos abolicionistas foram se avolumando e tiveram desdobramentos culturais, sociais, políticos, econômicos e revolucionários diferentes em cada um dos países escravistas. É o caso do Haiti, onde se presenciou uma revolução negra vitoriosa contra o jugo europeu. Nos Estados Unidos, ocorreu a Guerra de Secessão, na qual o norte desenvolvido enfrentou o sul, que era ainda rural, para lograr a extinção do sistema de produção escravista. Em outros espaços, a libertação veio paulatinamente, sendo conquistada com lutas, recuos e avanços.

O sonho da abolição da escravatura foi pouco a pouco se tornando realidade nas Américas, ainda que o Brasil tenha insistido em mantê-la, até ser o último país a assumi-la, em 13 maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, mas também com protagonismo imprescindível dos quilombos e de Zumbi dos Palmares, que é cultuado, atualmente, como um grande herói da causa afro-brasileira pela libertação da escravatura.

A escravidão trouxe como saldo para as Américas a paisagem social, econômica e cultural transformada sobremaneira pela presença, trabalho e crescente participação e resistência cultural do negro, e muito embora os preconceitos, historicamente, insistam em perdurar, em contrapartida há resistência quotidiana.

 

2. Interações dos irmãos nas metrópoles

Com base no conceito de que nada é mais concreto do que a História, e referindo-nos aos Estados Unidos e ao Brasil como exemplos para este item, por meio de uma análise de história comparativa, tem-se como evidente que tanto a Guerra de Secessão3 nos Estados Unidos quanto as leis que restringiram a escravidão local - Sexagenários, Ventre Livre e Lei Áurea de 1888 - no Brasil, a proibição do tráfico de negros africanos imposta pela Inglaterra a Portugal e a abolição da escravatura em colônias inglesas no Caribe, em 1838, não lograram garantir a integração do negro em nível satisfatório à vida social desses países.

Ou seja, em vez de integrar o negro na sociedade, continuou-se a discriminá-lo étnica, racial, social, econômica e culturalmente ao longo das décadas posteriores, até a contemporaneidade.

No Brasil, recém-saído da condição de força de trabalho do sistema de produção escravista, o negro não teve a oportunidade de, em pé de igualdade com o branco imigrante, integrar-se no sistema de produção assalariado que se instalava. O contingente explorado no sistema escravista foi, a priori, excluído e julgado incompetente para as vagas de trabalho assalariado, enquanto as vagas disponíveis eram ocupadas por imigrantes. Como torna evidente o professor Clóvis Moura (1988), o negro foi integrado de forma marginal, isto é, empurrado para os piores setores da economia, em que a extração de mais-valia se explicitava de forma mais exacerbada. Este pensador nos coloca, ainda, diante da relação intrínseca que existe entre racismo e capitalismo. No emblemático Santos (2001), no Brasil, o negro vive um "Eterno 14 de maio".

Essa situação de subalternidade acabou por constituir, nesses países, uma questão que recebeu até então diversas formas de tratamento. No Brasil, mesmo depois dos emancipacionistas, imigrantistas e abolicionistas, insistia-se numa superioridade da raça branca sobre a negra, como enfatiza Oliveira Viana em seus escritos (por volta de 1920 e 1930). Contrapondo-se a essa teoria, porém não com tanta veemência, os estudos de Gilberto Freyre (1961) apontavam que a solução para as desigualdades entre brancos e negros seria o amalgamento cultural e racial da sociedade para a eliminação do racismo, o que serviu de base para a posterior ideologia da democracia racial,4 por um lado, e para a relativi-zação do racialismo científico,5 por outro.6

Somente na década de 1950 é que começou a surgir a concepção baseada na teoria de classes sociais desenvolvida por Florestan Fernandes e Octavio Ianni. Esses cientistas trazem à luz o fato de que a questão do negro no contexto dessa sociedade provém da exploração e dominação entre grupos sociais, ou seja, a constatação de uma desigualdade fundada no preconceito racial. E, conforme visto, apesar de a abolição da escravatura alterar o modo de produção para mão de obra assalariada, ocorreu que, com receio de que o Brasil pudesse se tornar um país negro, as autoridades optaram por abrir as fronteiras para imigrações europeias.

Florestan Fernandes argumenta que, na passagem do sistema escravista para a industrialização, os negros, abandonados à própria sorte, foram considerados inaptos e descartados, sem reparações, enquanto os postos de trabalho assalariado utilizavam, cada vez mais a mão de obra de imigrantes europeus.

Como não se manifestou nenhuma impulsão coletiva que induzisse os brancos a discernir a necessidade, a legitimidade e a urgência de reparações sociais para proteger o negro (como pessoa e como grupo) nessa fase de transição, viver na cidade pressupunha, para ele, condenar-se a uma existência ambígua e marginal. Em suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo. Em certas situações histórico-sociais, como parece suceder com a cidade de São Paulo na época considerada, essa responsabilidade tornou-se ainda mais penosa e difícil, dadas as possibilidades que poderiam ser realmente aproveitadas em sentido construtivo pelo negro. (Fernandes, 1978, p. 20)

Gozando desse status extremamente diferenciado que lhe fora reservado e estrategicamente organizado, acompanhado em seu quotidiano pelo senso comum gerado, de modo mais específico, pelas teorias que justificam a escravidão, o negro no Brasil seguiu uma trajetória de exploração muito superior à imposta pelo sistema de produção capitalista. Não tinha a possibilidade de vender essa força de trabalho barata nem qualquer perspectiva de vida e mobilidade social.

Nas metrópoles em que a presença negra é marcante, a maioria deles permanece no limite das condições de vida precária. Embora o processo estadunidense de mobilidade social para negros tenha se apresentado menos lento do que outros, basta ver como ainda hoje se vive no Bronx, em Nova Iorque; nos bairros de lata de Kingston, na Jamaica; ou nas periferias paulistanas. O negro continua a viver em habitações precárias; em todas as situações, foi empurrado para as periferias do processo produtivo e levado a ir ocupando as regiões mais afastadas das metrópoles. As gerações posteriores desse contingente sobrevivem a duras penas, entregues a um quotidiano de miséria, discriminação e exploração até a contemporaneidade.

Com efeito, a inserção do negro nas sociedades ocidentais se deu sempre de forma a lhe garantir um caráter de subalternidade socioeconômica, confirmando a discriminação racial como um dos aspectos fundamentais do sistema capitalista de produção. Mas, em contrapartida, o decorrer dos anos e a resistência cultural às situações estabelecidas foram dando conta de transformações nas relações sociais dos negros nos diversos espaços do mundo para os quais foram levados. Isso porque nunca deixaram de resistir por meio de sua cultura, que, posteriormente, veio a se tornar traço marcante nas grandes metrópoles do mundo, chegando em alguns países, como no Brasil, a se configurar em traço de identidade nacional.

Isto traz à luz o fato de que, embora a dominação se pretendesse monolítica, o negro, por sua resistência em meio às transformações sociais e econômicas, acabou paulatinamente, também mediante sua cultura, por lograr superação. Desse modo, garantiu cada vez mais sua inserção, ainda que desigual, por intermédio de movimentos de resgate de identidade, afirmação e conquista de cidadania.

No Brasil, é bastante recente o gradativo reconhecimento do papel civilizatório que o africano realizou na construção desta nação. Foi somente a partir da alteração da Lei de Diretrizes e Bases, 10.639, em 2003, que se tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em todas as escolas de ensino fundamental e médio, com vistas ao reconhecimento das contribuições das etnias para a formação cultural da sociedade brasileira e da chamada raça brasilis. A partir de então, os educandos têm a oportunidade de acesso à História que não foi contada e que nos conduziu ao presente momento da questão racial, cabendo à obra História geral da África, mencionada anteriormente, editada por Joseph Ki-Zerbo, uma substanciosa parcela das informações necessárias para o intento.

 

3. Emancipações por minuto, os manos e as tribos urbanas

Nesta panorâmica que nos conduz ao breve, criativo e singular século XX, para complementar os aspectos históricos abordados sobre a trajetória dos irmãos e das culturas negras pelo mundo, tornam-se imprescindíveis considerações sobre afrodescendência, juventude, sociabilidades, interações e, principalmente, música, disseminação e identidades culturais urbanas contemporâneas, que é onde se encontram os manos na cultura, audazes protagonistas, herdeiros diretos de toda a saga descrita nos tópicos anteriores.

Libertando-se gradativamente das amarras, ao redor do mundo, a começar pelas Américas, o negro vem cultivando sementes das culturas musicais de matrizes africanas, propiciando fusões com gêneros locais, diversas criações e, principalmente, recriações de gêneros musicais que transformariam de maneira definitiva o universo musical e cultural de enorme parte do planeta, ao mesmo tempo que, paulatinamente, agregariam simpatizantes e entusiastas de sua cultura e sua luta. Por exemplo, o gênero reggae, em diversas ocasiões, demonstra ser combativo e decisivo em sua expressão.

Foram momentos marcantes dessa saga dos filhos da África aqueles em que foram às lutas pela descolonização do continente africano, lutas que, muitas vezes, traziam em sua dinâmica alguns componentes de contornos culturais e/ou musicais. Por exemplo, nas batalhas pela libertação da Rodésia do jugo inglês, os combatentes encontravam na música reggae "Zimbabwe" (1979), do maior astro pop do Terceiro Mundo, Bob Marley, inspiração para os confrontos de guerra. A música se tornou o hino dessa conquista, e a letra diz:

Todo homem tem o direito de decidir seu

próprio destino

E nesse julgamento não há parcialidade

Então, armas em mãos, com o exército

Vamos lutar esta pequena luta

Porque esta é a única forma de superarmos

nossos poucos problemas

Irmãos, vocês estão tão certos

Nós vamos lutar

Nós vamos ter que lutar pelos nossos direitos

A trégua ocorreu somente em 1980, momento no qual a ONU e a Grã-Bretanha reconheceram a independência da Rodésia (Zimbábue). O dia 18 de abril de 1980, data da oficialização da independência da Rodésia, foi um momento que ficou gravado no legado do artista militante Bob Marley: nesse dia, ele fez um concerto naquele solo africano, no qual interpretou a canção antes citada, causando enorme comoção. Na ocasião, houve vinte e uma salvas de canhão. Inclusive, conforme especulações, Bob Marley também teria auxiliado nas negociações de armas para as tropas rebeldes desta guerra contra os ingleses, numa perspectiva de África para os africanos, alusão máxima das abordagens pan-africanista e afrocêntrica. Nesta mesma época, Marley escreveu "Redemption song" (1980), em alusão à paz universal e inspirada nos discursos pan-africanistas de Marcus Garvey:

Velhos piratas, sim, eles me roubaram

Me venderam para navios mercantes

Minutos depois de eles terem me tirado

Do poço sem fundo

Mas minha mão foi fortalecida

Pela mão do Todo-Poderoso

Nós avançamos nessa geração

Triunfantemente

Você não vai me ajudar a cantar

Estas canções de liberdade?

Pois, tudo que eu sempre tenho:

Canções de redenção

Canções de redenção

Libertem-se da escravidão mental

Ninguém além de nós mesmos

pode libertar nossas mentes

Não tenha medo da energia

atômica

Porque nenhum deles pode parar

o tempo

Até quando vão matar nossos

profetas

Enquanto nós permanecemos de

lado, olhando?

Alguns dizem que isso faz parte

Nós temos que cumprir o Livro

Você não vai me ajudar a cantar

Estas canções de liberdade?

Pois, tudo que eu sempre tenho:

Canções de redenção

Canções de redenção

Canções de redenção

Afinal, o movimento pan-africanista - nascido na Jamaica, entre as décadas de 1920 e 1930, com a participação do jamaicano Marcus Garvey, e que migrou para os Estados Unidos - tinha, curiosamente, o pai de Malcolm X como um dos ativistas, motivo pelo qual foi assassinado pela Ku Klux Klan. É justamente no pan-africanismo que se encontram as bases da mencionada perspectiva afrocêntrica gestada em meados da década de 50 nos EUA - abordagens para as quais o gênero musical reggae acabou por se tornar a trilha sonora.

Outro momento decisivo, entre muitos, para os afrodescendentes pelo mundo, foram as lutas que os negros estadunidenses empreenderam, em meados da década de 1950 e, principalmente, na de 1960, pelos direitos civis, nas quais se destacam Rosa Parks, Martin Luther King e o próprio Malcolm X. Vale lembrar que a música "Negro é lindo" (1971), de Jorge Ben, foi inspirada no mais importante movimento dessa época, o Black Power, assim como "Tributo a Martin Luther King" (1967), de Wilson Simonal, o mesmo ocorrendo com músicas de Billie Holiday e outros.

Negro é lindo

Negro é lindo

Negro é amor

Negro é amigo

Negro também é

Filho de Deus

Negro também é

Filho de Deus

Eu só quero que

Deus me ajude

A ver meu filho

Nascer e crescer

E ser um campeão

Sem prejudicar

Ninguém porque

Negro é lindo

Negro é amor

Negro é amigo

Negro também é

Filho de Deus

Negro também é

Filho Deus

Preto velho tem

Tanta canjira

Que todo o povo

De Angola

Que todo o povo

De Angola

Mandou preto velho chamar

Eu quero ver

Preto velho dizer

Eu quero ver

Preto velho cantar e dizer

Negro é lindo

Negro é amor

Negro é amigo

Negro também é

Filho de Deus

Negro também é

Filho de Deus

Tributo a Martin Luther King

Sim, sou um negro de cor

Meu irmão de minha cor

O que te peço é luta, sim,

luta mais, que a luta está no fim

 

Cada negro que for, mais um negro virá

Para lutar com sangue ou não

Com uma canção também se luta, irmão

Ouvir minha voz, oh yeah, lutar por nós

 

Luta negra demais

é lutar pela paz

Luta negra demais

para sermos iguais

Essas manifestações de resistência, persistência, lutas e vitórias têm seus pilares profundamente enraizados em aspectos culturais que tornam muito presente uma sensação de pertencimento, que funciona como elemento de sustentação mental, física e espiritual para os artífices envolvidos, os quais têm encontrado nessas culturas que remetem a uma África mítica o substrato para o resgate de sua história e virtuosas conquistas.

Estudos de Lindolfo dão conta de que sempre foi, e ainda é, imensa a produção cultural e musical dos afrodescendentes, inclusive alusiva a esses marcantes episódios e seus heroicos protagonistas. Desta feita, inevitavelmente, as metrópoles presenciam o surgimento e a solidificação de um traço cultural que tende cada vez mais a se amalgamar com outras culturas, a transformar, a se recriar e se difundir, agregando mais e mais entusiastas, independentemente da condição étnica, de forma que, gradualmente, grande parte da produção musical do Ocidente vai sendo, inexoravelmente, influenciada pelo crivo das produções musicais de matrizes africanas.

Há muito de cultura africana na música contemporânea e, em conformidade com o observável, o número de adeptos desses gêneros marcadamente afro-originários não para de aumentar. Por exemplo, o blues, o jazz, o rock, o samba e o reggae têm atingido enorme espaço nas mentes e corações, entre outros gêneros de menor alcance devido às limitações midiáticas, mas não menos interessantes e/ou importantes - gêneros esses que se constituem ora em moedas, ora em matrizes para recriações de outros gêneros musicais.

São diversos e numerosos os gêneros afro-originários e, dentre os afro-americanos, podemos destacar o candombe do Uruguai e o merengue da República Dominicana, bastante popular em Porto Rico, Haiti, Venezuela e Colômbia. Tais gêneros foram trazidos pelos escravos da África Austral, Angola. O calipso de Trinidad e Tobago era tocado em galões que, anteriormente, continham óleo combustível. E há ainda o mambo, a rumba, o maxixe, a salsa, o bolero, o blues, o samba, assim como as várias fusões.

O blues, oriundo dos lamentos nas colheitas de algodão, em fusão com a música tradicional jamaicana originou o reggae. Já o jazz, também derivado do blues, originou o rock and roll, que se difundiu pelo planeta. E o jazz se junta ao samba, que por sua vez proveio dos toques de candomblé dos terreiros de culto, das lavouras de cana e café do Brasil, originando a bossa nova, que se tornou mundialmente conhecida, transformando sobremaneira a história da música, entre outras fusões, criações e recriações da música popular brasileira.

Com efeito, os gêneros musicais produzidos no Brasil têm logrado respeito nas metrópoles do mundo. O samba, nascido com conteúdo realista e de reflexão social, foi proibido na década de 1920, criminalizado pelo código penal de então. Hoje, se tornou distintivo de identidade nacional e tem sua apoteose em forma de enredo no Carnaval de São Paulo e no do Rio de Janeiro, considerado o maior espetáculo da Terra.

O samba-reggae ijexá era a marginal fusão do samba com o reggae jamaicano que teve expressão nos blocos afros Ilê Aiyê e Olodum, e por meio de Margareth Menezes, artista posteriormente descoberta por David Byrne (que pertencia ao grupo inglês Talking Heads), tornou-se axé-music. Aliás, axé em nagô é "poder de realização".

Atualmente, a axé-music se espalha pelos Estados Unidos e pela Europa na voz de Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Claudia Leitte, Carlinhos Brown, Olodum, Ilê Aiyê, Timbalada, entre outros artistas e grupos que exportam alegria de Carnaval e contam com muita receptividade. Este gênero tem o seu clímax no Carnaval da Bahia, que agrega multidões de muitos estados do Brasil e de diversos países.

Há também o funk carioca que, no início, descrevia a realidade das comunidades do Rio de Janeiro e chegou a ser proibido. No entanto, sobreviveu sob o sugestivo codinome de funk proibidão, comercializado clandestinamente nas barracas de CDs da zona sul do Rio, e hoje, com seu tom satírico, altamente sexualizado e voltado ao luxo, se tornou um importante gênero da música brasileira, movimentando muitos dividendos.

A música caipira, que outrora fora discriminada nas grandes metrópoles brasileiras, originou a música sertaneja universitária, detentora de um imenso mercado, notadamente cada vez mais juvenil.

Embora com menor expressão, há também o forró, que se transformou em forró universitário. E a música rap,7 enquanto uma das formas de expressão do movimento hip hop,8 tornou-se um capítulo à parte, por singularidades que engendra. Todos esses gêneros musicais, de origem afro-brasileira, após um período de marginalização e/ou proibição, acabaram sendo abordados pela chamada indústria cultural, que, em sua inexorável ânsia por dividendos, imprimiu a sua capacidade de domesticação de conteúdos, visando à maior aceitação pelo público e, consequentemente, um significativo alcance do "produto".

Assim foi com o samba, que se tornou pagode; o samba-reggae ijexá, que se transformou em axé-music; a música caipira, que se modificou para sertanejo universitário; o forró, agora forro universitário; o funk carioca, com as versões charme e ostentação, entre outros. Conforme já mencionado, o samba era outrora proibido e hoje é traço de identidade nacional. Com o rap, por sua vez, que já foi discriminado, a situação é um tanto diferente e tem originado um fenômeno ao qual primamos por nos referir: este gênero musical, que tem sido produzido e vivenciado pelos manos na cultura das periferias das metrópoles pelo mundo, no Brasil e na França, tem resistido às investidas da indústria cultural e garantido grande parte de seu conteúdo contestatório.9 Na atualidade, os jovens afrodescendentes das metrópoles do globo têm se agrupado em torno de uma cultura vivenciada nas periferias dessas metrópoles, formando um movimento social que vem capitaneando uma releitura das histórias, culturas e do quotidiano dos afrodescendentes no planeta, influindo sobremaneira nos rumos dessas culturas.

A cultura hip hop, que carrega em seu bojo enorme parcela dos aspectos culturais, políticos e sociais a que o presente texto vem se referindo até aqui, tem agregado mais e mais jovens de diferentes etnias. Aproveitamos para indagar: poderia tratar-se, mesmo, de movimento social, de movimento cultural de juventude ou de ambos? Ou poderiam, ainda, alargando o conceito de Michel Maffesoli (1988), serem denominados de Tribos Urbanas Blacks? Ou apenas, como neste texto estou denominando, manos na cultura?

 

4. Manos blacks, multicores, cultura das periferias das metrópoles e certas incógnitas

Em conformidade com Michel Maffesoli, na obra Les Temps de Tribus (1988), as tribos urbanas se constituem em microgrupos de sociabilidades que se originam em meio à massificação e ao individualismo que marcam as sociedades pós-modernas. Na sua perspectiva, à medida que o sistema de produção capitalista produz a massificação, e esta origina ambientes de solidão em meio a multidões, a juventude tem caminhado na direção contrária, ao se organizar nos mencionados microgrupos de sociabilidades, pautados por ligações estéticas, éticas e pessoais, compartilhamento de ideologias e sentimentos quanto a um assunto, com regras e rituais a serem seguidos local e globalmente pelos diversos agrupamentos juvenis.

Esse primoroso trabalho de Maffesoli instiga a observar, com severa acuidade, a juventude na paisagem urbana mundial, notando não somente suas diferenças e semelhanças, mas também seus movimentos e direções, procedimento que nos foi paulatinamente aguçando a curiosidade analítica ao oferecer, invariavelmente, uma brisa fresca de novidades e indagações sobre declínio das individualidades, aumento das sociabilidades, avanços, recuos, alcances e limites das propostas desses microgrupos nas sociedades multiétnicas contemporâneas, conforme o são.

Considerando as inquietações que nos surgiram desses diversos aspectos abordados, e apoiando-nos nas releituras que efetuamos da obra do autor, é que acabamos tentados a propor o alargamento do conceito de Maffesoli para abrigar tribos urbanas blacks, que teriam como partícipes os manos hip hoppers, os sambistas, os funkers, entre outros grupos. Pois, se a massificação imposta no quotidiano pelo sistema propicia a solidão nas metrópoles, tornaram-se inevitáveis as indagações sobre juventude negra e a solidão experimentada pelos jovens que, por terem sua participação social condicionada à situação de subalternidade nas metrópoles mundiais, são historicamente expostos a discriminações, preconceitos e humilhações, tanto pelas populações quanto pelo poder público. Este, dentro do possível, resiste ao máximo às possibilidades de introdução de políticas de promoção do negro e de mitigação dos efeitos nocivos do racismo nessas sociedades - principalmente do pior de todos, o racismo institucionalizado, que atua de maneira indireta. Os preconceitos podem estar ausentes dos discursos e, ainda assim, disseminar seus efeitos. Conforme ilustra David T. Wellman,

quando os brancos querem manter um status quo que os beneficia em detrimento dos negros, recusando mudanças institucionais que poderiam modificar a situação, eles não adiantam argumentos racistas. [Da mesma forma] ninguém milita na França em favor da discriminação das mulheres na vida política, mas todos os indicadores mostram que seu acesso às responsabilidades ou à representação política é singularmente desigual, inscrito no funcionamento das instituições apesar das declarações igualitárias de todos os atores políticos ou institucionais. (Wie-viorka 2007, p. 31)

E ainda há o racismo "inocente",10 conceito que venho desenvolvendo e discutindo com outras vítimas das situações descritas.

Por outro lado, observa-se também que, atualmente, a população de quase todas as metrópoles do mundo tem seu quotidiano perpassado por manifestações culturais que sofreram influências do crivo das culturas de matrizes africanas, a exemplo dos gêneros musicais acima mencionados, além de indumentárias, danças, comportamento etc. Já os jovens das periferias das metrópoles têm apresentado uma crescente identificação cultural, prioritariamente, com a cultura hip hop, ao mesmo tempo que a produzem e, por meio dela, em muitos casos, chegam a alcançar independência financeira.

Esses audazes artífices, com base na cultura apreendida, da história do negro no mundo, das agruras quotidianas, historicamente sofridas e/ou presenciadas, estão produzindo a cultura e a crítica jovem contemporânea das periferias das metrópoles, que lhes têm servido de base identi-tária, e alcançado espaços significativos no mainstream. Por exemplo: John Galliano, quando estilista da Maison Dior, promoveu uma coleção inspirada em streetwear, levando para a alta costura insights colhidos da indumentária casual e quotidiana da chamada cultura de rua e dos manos.

Contudo, percebe-se que essas manifestações juvenis não podem mesmo ser entendidas sem referência ao quadro mais amplo das lutas sociais, em especial, às referidas lutas pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Tais demandas que, muitas vezes, terminavam em confrontos abertos e violentos na década de 1960, deram rumo e uma bandeira para os movimentos negros das épocas posteriores. Essa vinculação, para os manos, é direta: Malcolm X e Martin Luther King são referências constantes no universo negro, tanto estadunidense quanto de outros países, em especial na França, que figura como segundo país em que a produção de cultura hip hop tem expressiva projeção e visibilidade, e com seu conteúdo contestatório mais preservado, assim como no terceiro, o Brasil, sendo que os eua são o primeiro - em quantidade de hits e exportação, e dividendos.

O hip hop, parece-nos, segue paralelamente à evolução desses movimentos. Surgiu originariamente negro no início da década de 1970, no Bronx, bairro de Nova Iorque, e se proliferou por este mundo que se globaliza como expressão da chamada cultura de rua. No decorrer das décadas, adquiriu status de fenômeno urbano mundial e, passando a contar com a simpatia de considerável parcela dos jovens, foi conquistando, nas metrópoles, melhoria de status cultural para os negros. Diante da proliferação do estado de miserabilidade no mundo e da derrocada das grandes utopias, o rap tem trazido para o cenário mundial, por meio da mídia que o hostiliza e que ao mesmo tempo o fortalece, os questionamentos de parcelas das sociedades que vêm alcançando a vez e a voz que lhes foram historicamente negadas. Particularmente interessante é que, atualmente, o gênero rap pode ser ouvido em português, inglês, francês, espanhol, japonês, italiano, alemão, russo, polonês, árabe etc. como expressão de desprivilegiados, independentemente da etnia.

Musicalmente, as filiações não são menos interessantes, apesar de indissociáveis do contexto social. O gênero rap deriva do reggae, nascido na Jamaica - que migrou para Londres e foi recepcionado pela juventude, a qual, à época, também professava uma crítica social. De lá seguiu para os Estados Unidos da América e daí, por meio da mídia, para o mundo.

Importa acrescentar que o universo simbólico dos afrodescendentes, conforme mencionado anteriormente, sempre foi considerado pelos dominantes como cultura menor, mas, de uma forma ou de outra, inseriu-se na cultura hegemônica, ainda que de início como tribalismo, primitivismo, superstição, feitiçaria. Entretanto, tem conseguido, mediante reelaborações de sua música, recuperar o que foi mantido oculto ou incompleto na cultura, e esta tem funcionado como mecanismo de integração ou inclusão dos negros, tanto no âmbito local quanto no global.

A revolução das comunicações e a indústria cultural, com a consequente diminuição dos ciclos de produção e consumo de produtos, favoreceram a divulgação da música das minorias (a exemplo da cidade de São Paulo, por meio de rádios comunitárias) e o incremento da renda das populações marginalizadas que concorreram para fazer vigorar o caráter musical do movimento hip hop. Os manos, propagadores dessa cultura (por meio de aparatos que no início eram, em parte, por eles desenvolvidos para dar conta de possibilidades outras, criadas por eles próprios),11 trazem à luz uma música que carrega em si a metáfora da superação da discriminação imposta.

De origem humilde, inteligência inquieta, eles são, conforme resultados de análise preliminar que venho desenvolvendo, críticos dos questionáveis currículos escolares formais. Por isso, alguns complementam sua informação para o exercício da cidadania em espaços extraescolares12 e difundem sua crítica de maneira criativa. Constroem, por assim dizer, juntamente com os outros vértices da cultura hip hop, o discurso de oposição da juventude no mundo atual.

Esses gêneros musicais acabaram por determinar uma estética corporal e de sonoridade que influenciou, inclusive, o comportamento de outros jovens, independentemente de sua raça e classe. O que se observa é que, cada vez mais, essa aceitação e adesão são auxiliadas pelo processo de globalização, que possibilita que manifestações locais sejam conhecidas além das fronteiras regionais ou nacionais. Segundo Renato Ortiz,

na virada do século, percebemos que os homens encontram-se interligados, independentemente de suas vontades. Somos todos cidadãos do mundo, mas não no antigo sentido, de cosmopolita, de viagem. Cidadãos mundiais, mesmo quando não nos deslocamos, o que significa dizer que o mundo chegou até nós, penetrou nosso quotidiano. Curioso. Uma reflexão sobre globalização, pela sua amplitude, sugere à primeira vista que ela se afaste das particularidades. Pois se o global envolve "tudo", as especificidades se encontrariam perdidas na totalidade. Ocorre justamente o contrário: a mundialização da cultura se revela através do quotidiano. (1994, p. 8)

Este é o quadro que origina os manos. A cultura se mundializa num fenômeno que não vai do local ao global, mas que transcende esse aspecto: é local e global ao mesmo tempo. A simultaneidade, favorecida pela televisão, pelo cinema, pela internet, torna dispensável o caráter de adesão ideológica dos novos adeptos do hip hop.

É facilmente perceptível que os discursos de ativistas políticos, como os de Marcus Garvey, Luther King, Malcolm X e Louis Farrakhan13 não tiveram tanta circulação quanto os hits desses gêneros musicais contestadores. O artista, parece-nos, ocupa posição destacada em relação às questões sociais porque veicula mensagens que passam simultaneamente pela razão e pela emoção, de tal modo que as produções artísticas que propagam mensagens políticas costumam ser, muitas vezes, mais rapidamente compreendidas e incorporadas pelos grupos aos quais se dirigem do que os discursos intelectuais a respeito dos mesmos temas.

A equação que origina estes artífices é a seguinte: a cultura desde sempre funcionou como ferramenta de resistência às adversidades às quais os negros foram acometidos desde o sequestro em África e a diáspora. Também a juventude, historicamente, se apresenta como mola propulsora de transformações sociais, observáveis nos movimentos culturais de juventude - rock, beat, hippie, Maio de 68, Primavera de Praga, punk e hip hop -, que invariavelmente trazem para a ordem do dia discussões até então desprezadas. É desta feita que cultura negra, jovem, afro-originária e contestação nos conduzem a este ponto.

Atualmente, conforme insistentemente referido, jovens de todas as partes do mundo têm seu quotidiano perpassado pelo crivo da cultura de matrizes africanas. Uns menos, outros mais. Já no caso dos manos na cultura, os hip hoppers, independentemente da etnia, configuram-se num caso à parte.

A ancoragem que, parece-nos, muitos têm a uma "África mítica" serve-lhes de plataforma para as trocas de experiências, de informações sobre o histórico das lutas pelos direitos que os negros empreendem pelo mundo, de estratégias de sobrevivência e enfrentamento ao controle social que lhes é imposto, resultando em produções culturais que, por isso, se configuram em veículos de identidades pan-africanistas e afrocentradas que lhes permitem tanto ampliar o debate no tecido social como ainda alcançar respeito, atenção e divulgação de suas prerrogativas nas metrópoles.

Ainda que surgidos por volta dos anos de 1970, os manos na cultura, como objeto de reflexão, exigem esta perspectiva histórica de alguns séculos que foi abordada. Conforme já referido, se por um lado os problemas sociais dos negros nas sociedades de hoje tiveram origem no regime escravocrata - que, mesmo após sua extinção, desencadeou um modo de discriminação racial e manteve o negro oprimido em favor da maior solidez do status quo das sociedades patriarcais e de classes - os manos na cultura carregam em si o ethos da figura ancestral do griot.

Como griots do terceiro milênio, representam a metáfora do sobrepujamento da condição de subcidadão que lhes é imposta e vêm logrando, paulatinamente, um maior exercício de influência no mainstream, em que os anteriormente mencionados Zumbi, Malcolm X e outros líderes são resgatados como heróis da causa. Mas isto não se aprende nas escolas formais, e sim nas posses, onde esses jovens têm se informado e se formado para prosseguir no seu intento de questionar, conscientizar e mobilizar a juventude para reflexões que se fazem cada vez mais necessárias. Por exemplo, não é curioso que, para a construção das pirâmides egípcias, 3.500 anos antes de Cristo, seja, em tese, necessário o conhecimento do teorema que o matemático Pitágoras "inventaria" somente 3.000 anos depois (ele teria vivido entre 570 e 497 a.C.)? Atualmente, já sabemos, por comprovação científica, que o homem original nasceu na África. Assim sendo, não seria motivo de surpresa se, daqui a alguns anos, os cientistas descobrissem ser a África o berço nascedouro, também, da escrita, da moeda e da filosofia, entre outras, e não a Grécia, como aprendemos e ensinamos.

Os irmãos em cultura que têm construído e difundido o discurso de oposição da juventude das metrópoles do mundo vêm tratando de culturas de matrizes africanas, que, portanto, não passam ainda pelos cânones acadêmicos. Por conseguinte, torna-se inevitável indagar: teriam os manos, na atualidade, a capacidade de, por meio dessas culturas, influenciar positivamente nas construções de identidades de irmãos brancos, negros, indígenas, asiáticos, entre outros, e nas trajetórias de alguns jovens fadados a um destino funesto? E alterariam a percepção deles sobre as relações sociais e sua possibilidade de crítica e ação quotidiana?

Um panorama desta monta conduziria inexoravelmente para o fomento de culturas de paz entre todos os irmãos da única raça comprovada pela ciência, a humana. Para o horror daqueles que sofrem de negrofobia.

 

Notas

1 Movimento cultural, político e filosófico que, a partir do século XX, propôs, entre outras questões, a unidade política de toda a África, como também o reagrupamento das diferentes etnias, divididas por imposições dos colonizadores. Deu origem ao conceito de afrocentrismo, e ambos foram perspectivas bastante presentes nas guerras de descolonização dos países africanos. Entre os artífices e entusiastas: Edward Du Bois, Marcus Garvey e, no Brasil, Abdias do Nascimento.

2 Griots é o nome dado aos contadores e/ou cantadores das histórias das etnias africanas. Peregrinavam pelas aldeias comunicando e compartilhando memórias. São comparáveis aos aedos e rapsodos que apresentavam-se na Ágora na Grécia, conforme se aprende na escola. Homero seria um exemplo e a Ilíada e a Odisseia, os registros de memórias, consideradas parte da história da humanidade. Somente na recente obra citada, História geral da África, é que os relatos dos griots, africanos vêm sendo considerados como história.

3 A Guerra de Secessão visava ao fim da escravatura no sul dos Estados Unidos da América e à união das províncias (estados) sob uma mesma lei. O norte não era escravocrata e propiciava melhores condições de vida para a população negra. Com o final da escravidão no sul, parte dessa população emigra para o norte, insere-se no sistema produtivo mais avançado, ascende à educação e forma as primeiras lideranças pelos direitos civis de negros americanos, o que vai repercutir por mais de um século, até o movimento e a assinatura da Lei dos Direitos Civis em todo o país.

4 A perspectiva da democracia racial propagava a ideia de que, no Brasil, brancos e negros viviam em absoluta harmonia - discurso que escondia as desigualdades, preconceitos e incongruências vivenciados diuturnamente pelo negro brasileiro.

5 Derivado das teorias bioantropológicas que estigmatizam o negro como delinquente.

6 As releituras de Gilberto Freyre feitas atualmente não deixam de criticar sua retórica das diferenças entre o branco patriarcalista e o negro escravizado, porém tem sido considerado mérito desse autor retirar parte do impacto de um racismo extremado, do qual Oliveira Viana, por exemplo, é representante destacado.

7 Gênero musical que se configura em ritmo e poesia sobre uma base musical, cujas letras são declamadas dentro de compassos musicais e geralmente têm conteúdos contestatórios ou denunciadores das condições sociais.

8 A cultura hip hop compõe-se basicamente de três vértices: o rap (música), o break (dança) e o grafite (desenhos feitos pelos muros e paredes das metrópoles), mas também se apresenta em outros campos - Spike Lee, cineasta afro-americano, afirma que ele não seria quem é se não fosse a cultura hip hop, ou seja, considera sua obra cinematográfica como sendo hip hop. Há também a prática de dj como vértice.

9 Nos Estados Unidos, quando do surgimento do rap 11 com o grupo Public Enemy, entre outros, afirma-se que foi formulado um dossiê pela CIA ou pelo FBI intitulado O rap e a segurança nacional. Imagina-se 12 que, dessa feita, a indústria cultural teria se encarregado da amenização dos conteúdos deste gênero musical nos eua.

10 O racismo "inocente" trata do racismo inconsciente, que subsiste como semente não germinada, diante 13 da norma do preconceito de ser preconceituoso, e que, em determinados momentos, desavisadamente aflora, surpreendendo o próprio indivíduo que o pratica, que de imediato tenta corrigir. Para citar um exemplo recente, entre inúmeros: o supermercado Pão de Açúcar, de São Paulo, colocou como propaganda de sua panificação a escultura, em tamanho natural, de um menino negro carregando um enorme cesto de pão e com grilhões nos tornozelos. Assim que foram notificados, imediatamente o retiraram. E "inocente" com aspas no sentido atribuído por Pais (1999), quando o autor explica a utilização de aspas como um recurso metodológico para se referir "não ao que se lê, mas ao que permite a leitura" (pp. 14-15).

11 Atualmente a Technics, empresa de produtos eletrônicos, tem desenvolvido equipamentos específicos para DJS.

12 Diante de uma escola que não é cidadã, alguns desses jovens acabam por se organizar em espaços físicos que denominam de posses, onde trocam não somente formações como também informações sobre músicas, ícones, entre outros.

13 São líderes que representam a luta dos negros pelos direitos humanos no mundo.

 

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Correspondência:
João Lindolfo Filho
jlindolfo@hotmail.com

Recebido em 26.08.2015
Aceito em 09.09.2015

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