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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.3 São Paulo July/Sept. 2015

 

RESENHAS

 

Sobre a arte da psicanálise

 

 

Nara Amália Caron

Membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)

Correspondência

 

 

Autora: Edna Vilete
Editora: Ideias e Letras, São Paulo, 2013, 269p.
Resenhado por Nara Amália Caron

 

 

O percurso original de uma analista

O livro de Edna mostra o grande desafio de quem se lança na profissão de psicanalista, e permite ao leitor acompanhar o amadurecimento da autora, através do aprofundamento de suas ideias, na sequência não cronológica dos textos por ela selecionados. Faz transparecer uma trajetória persistente, consistente e coerente de investigação psicanalítica, com intensa participação pessoal, muito estudo, larga e permanente experiência clínica, bem como afinidade, sintonia fina, com os desenvolvimentos trazidos por Winnicott à teoria e à técnica psicanalítica. As experiências vividas e relatadas neste livro se baseiam em alguns de seus trabalhos realizados desde a década de 1970, bem como em diversos seminários e cursos ministrados. Sua formação, como médica e analista dedicada ao ensino de psicanálise, contribuiu para que Edna se tornasse uma das mais importantes referências sobre o pensamento de Win-nicott em nosso meio psicanalítico. Tal como Winnicott, valoriza o campo da arte para a compreensão dos fenômenos primitivos ligados ao início da vida e para uma nova teoria da técnica. Com muita sensibilidade, Edna mostra como a arte pode iluminar o trabalho do analista e ajudar a ilustrar clinicamente os conceitos winnicottianos de difícil tradução para a clínica, como o espaço potencial do brincar e da criatividade. Assim sendo, podemos considerar o presente livro uma referência valiosa para a compreensão da clínica winnicottiana. Um livro certamente para ser "encontrado e usado".

Em seus escritos, ocupa-se, especialmente, do ser humano desalojado do seu próprio corpo e, consequentemente, alienado dos seus processos criativos - pacientes esquizoides, psicóticos, psicossomáticos, com patologia borderline, narcisista e falso self. Coerente com o pensamento winnicottiano, essa tragédia humana com a qual lidamos na clínica, e que também se expressa na arte, nos ajuda a descortinar a verdade interior do ser humano, sua fragilidade, falta de integridade, inteireza, e a necessidade de alguém que o mantenha inteiro, ajudando-o na sustentação de uma continuidade de existência. A possibilidade de vivenciar esses aspectos da natureza humana, seja na clínica, seja na arte, contribui para a expansão do mundo interno, ampliando a nossa capacidade de receptividade ao primitivo no ser humano e à verdade inconsciente. O material ilustrativo selecionado para o presente livro - casos clínicos, filmes e textos - é claramente expressão do interesse, trabalho e dedicação de Edna às etapas primitivas do desenvolvimento humano, que conduziram Winnicott a uma nova compreensão dos fenômenos psíquicos inconscientes e a uma nova teoria da técnica.

O livro se divide em três partes: na primeira, "A clínica", a autora se debruça sobre casos clínicos e os principais pressupostos da teoria e da clínica winnicottiana que embasam sua obra; na segunda, denominada "Psicanálise e cinema", Edna reúne oito trabalhos realizados a partir de filmes; na terceira, "Psicanálise e literatura", encontram-se seis trabalhos baseados em textos selecionados da literatura. De forma criativa e muito vivenciada, Edna trabalha analiticamente esses filmes e textos como casos clínicos, e vai trazendo os principais conceitos da teoria e da técnica winnicottiana com pacientes graves, alienados de si mesmos. Põe em evidência nesses artigos os desafios que esses pacientes regredidos trazem para o trabalho analítico, para a relação analista-paciente e para a contratransferência do analista. São temas recorrentes: a comunicação primitiva, silenciosa; a dependência, o desamparo e o medo de amar; a imposição do ambiente e a deformação do si mesmo; o isolamento defensivo; a dor da incomunicabilidade humana.

Desde o prefácio, a autora destaca a arte como possibilidade de iluminar a teoria psicanalítica e as patologias clínicas. Defende a vantagem das histórias narradas pelo cinema e pela literatura - poderem ser igualmente compartilhadas por diferentes grupos de pessoas - sobre o material clínico de um paciente com seu analista: este, além de ser oriundo de uma experiência restrita analista-paciente, não atende o sigilo do paciente. Assim, Edna utiliza, com extrema habilidade, liberdade e conhecimento, diferentes expressões da arte, especialmente do cinema e literatura, para traduzir a condição humana e o que acontece na relação analista-paciente.

Cabe aqui destacar a Edna escritora - criativa, livre, sensível e consistente -, que se nutre da clínica e da arte, e escreve claramente o que vê, de forma ágil, leve, desinibida e corajosa, porque está sintonizada e identificada com o seu ofício, encantada por esse lugar de difícil acesso que é o inconsciente. Abre espaço para o leitor pensar, imaginar, e lhe apresenta as suas ideias esperando que ele encontre e crie as suas próprias. De início, já coloca questões centrais que reaparecem na sequência dos capítulos - por exemplo, como entender o setting analítico e a natureza do ofício do analista - e faz uma indagação que entrega ao leitor: "O psicanalista - um artista em seu trabalho?" (p. 6). Assim, convida o leitor para uma parceria ativa e a viver uma experiência criativa na leitura de seus textos, de forma lúdica, e dar respostas próprias às indagações surgidas.

Sem buscar convencer ou persuadir o leitor, Edna não deixa, contudo, de afirmar as suas próprias ideias, construídas durante um longo percurso de estudos e trabalho intenso como analista. Compartilha suas ricas descobertas sobre o aprendizado que a compreensão do ofício do artista lhe trouxe para a compreensão do ofício do analista. Sustenta que o artista experimenta na arte aquilo que o analista experimenta no setting analítico com pacientes regredidos ou o que a mãe experimenta com seu bebê no início da vida. Edna valoriza o setting analítico, tal como descrito por Winnicott, o qual reproduziria as técnicas de maternagem dos estágios iniciais. Destaca a entrega, as emoções que fazem parte do trabalho do artista, mas também do analista e da mãe com seu bebê: "é necessário que aconteça tal absorção e esquecimento do mundo, como característica da atividade criativa e herança dos estados primitivos e bem-sucedidos de não integração" (p. 21). Isso talvez explique a intensa dedicação de cada qual ao seu ofício, apesar do risco, sempre presente, à sua integridade psíquica. O artista torna-se "um abrigo de emoções" que se relacionam com as verdades inconscientes mais íntimas, e as traduz, transforma e compartilha por meio de um quadro, escultura, filme ou livro. De forma análoga, o analista entra em contato com suas emoções mais íntimas para traduzir e transformar, por meio de seu próprio corpo, gesto ou interpretação, as emoções comunicadas pelo paciente no setting analítico, assim como a mãe, identificada com seu bebê, se torna uma intérprete de comunicações primitivas dele. Lembra Edna que o analista,

de depositário das vivências que o paciente sofre, transforma-se no artífice de seus sentimentos quando, ao interpretar, consegue transmitir toda a atmosfera emocional que cerca suas ideias [...] por ser não somente observador, mas também participante na relação, através das inflexões da sua voz, pela forma como interpreta, as palavras que emprega, sua atitude, enfim, pode levar ao paciente a veracidade do que diz e a convicção de sua empatia. (p. 23)

Esse trabalho criativo permite ao analista, assim como à mãe com seu bebê e ao artista em seu ofício, integrar experiências novas e, "na fonte inesgotável das fantasias e vivências contratransferenciais" (p. 21), expandir seu mundo interno e alcançar vivências e sensações intensas e primitivas de felicidade, de estar vivo, no contato direto com a própria verdade inconsciente. O processo analítico torna-se, assim, "um processo interminável de introspecção, de observação e descoberta de si mesmo, uma análise sem fim" (p. 21), do qual ambos saem enriquecidos e transformados. Assim, conclui Edna, "o trabalho criativo do psicanalista e do artista pertence à mesma 'praia de mundos sem fim' (Tagore) onde crianças brincam" (p. 20). De forma coerente e consistente, as implicações clínicas de suas descobertas são postas em evidência:

Os aspectos artísticos do trabalho clínico apresentam a psicanálise não em sua versão de psicoterapia que persegue a cura - seremos pobres se formos apenas sãos - mas com o propósito mais amplo e, sem dúvida, mais ambicioso de intensificar a vida interna de nossos pacientes e avivar a centelha de sua criatividade, pois só assim - aprendemos com Winnicott - a vida vale a pena ser vivida. (p. 24).

 

 

Correspondência:
Nara Amália Caron

Av. Carlos Gomes, 1.286/301
90480-001 Porto Alegre, RS
Tel: 51 3335-1427

nacaron@portoweb.com.br

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