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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo Out./Dec. 2015

 

EM PAUTA

 

Metapsicologia: a criança ideal, a criança de nossas dores

 

Metapsychology: the ideal child, the child of our pains

 

Metapsicología: el niño ideal, el niño de nuestros dolores

 

 

Daniel Delouya

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor segue os passos da construção da noção de metapsicologia, expondo nela o método da descoberta, próprio à psicanálise. Para tanto, adentra algumas passagens do primeiro ensaio da metapsicologia de 1915. A pulsão como conceito-limite é problematizada em relação à constituição de nosso conhecimento. E, também, como sendo a condição de possibilidade da abertura da pulsão ao trabalho do objeto. Este participa no engendramento dos representantes da pulsão, implicando-se nos destinos de seus fins para a construção da malha de representações que constituem a vida psíquica. O trabalho discute as consequências da implicação do objeto na configuração clínica de paranoia feminina, agregando outro ensaio de Freud, do mesmo ano em que se empenha em redigir uma coletânea da metapsicologia.

Palavras-chave: metapsicologia; pulsão; conceito-limite; representante; trabalho do objeto.


ABSTRACT

The author follows the stages of construction of the metapsychological notion, in which he exposes the discovery method. This method is typical of psychoanalysis. To this end, the author examines some excerpts from the first metapsychological essay (1915). The instinctual drive as a limitidea is questioned in relation to the way our psychoanalytic knowledge is built. And it is also analyzed as a condition for the instinctual drive to possibly open itself to the object work. This object takes part in engendering instinctual (drive) representatives, and it is involved in the result of their purposes, in order to build the representational net of the psychic life. This paper discusses the effects of the implication of object work in the clinical configuration of the female paranoia. It evokes another Freudian essay from 1915, in which Freud strives for writing a metapsychological compilation.

Keywords: metapsychology; instinctual drive; limit concept; representative; object work.


RESUMEN

El autor sigue los pasos de la construcción de la noción de metapsicología, dejando al descubierto en ella el método del descubrimiento propio del psicoanálisis. Para esto, se adentra en algunos pasajes del primer ensayo de metapsicología de 1915. La pulsión como concepto límite plantea problemas en relación a la constitución de nuestro conocimiento. Y, también, como siendo la condición de posibilidad de apertura de la pulsión al trabajo del objeto. Este participa en la creación de los representantes de la pulsión, vinculándose en los destinos de sus fines para la construcción de la red de representaciones que constituyen la vida psíquica. El trabajo discute las consecuencias de la implicación del objeto en la configuración clínica de la paranoia femenina, agregando otro ensayo de Freud, del mismo año, en el que se empeña en reescribir una colectánea de la metapsicología.

Palabras clave: metapsicología; pulsión; concepto límite; representante; trabajo del objeto.


 

 

Bem lá atrás encontra-se minha criança ideal, a de minhas dores, a metapsicologia.

(Freud a Fliess, 17.12.1896)

Aliás, vou lhe perguntar seriamente se posso utilizar o nome metapsicologia para minha psicologia que me leva para o que está atrás da consciência.

(Freud a Fliess, 10.3.1898)

 

Introdução

Uma série de ensaios redigidos entre novembro de 1914 e junho de 1915 pretendia compor um livro de metapsicologia. A metapsicologia define a meta da investigação psicanalítica pela descrição de processos psíquicos sob três aspectos: tópico, dinâmico e econômico (Freud, 1915/1991c). A incerteza gerada pela guerra deve ter motivado Freud a cogitar este livro como espécie de extrato concentrado dos princípios da psicanálise para sua restauração em tempos de paz. Ele nunca publicou o livro com este título, mas suas cartas atestam o esforço de redação de uma dúzia de ensaios dos quais sobraram apenas seis, um dos quais (o décimo segundo) foi encontrado há trinta anos entre os documentos da correspondência com Ferenczi.

O termo metapsicologia aparece pela primeira vez na obra de Freud em 1901, ao se referir à psicologia dos processos de fundo da alma, jamais apreendidos diretamente (como estados subjetivos disponíveis à consciência), mas apenas inferidos, percebidos a posteriori. Assim, afirma Freud, a visão mitológica (e sua extensão nas religiões) nada mais é senão uma psicologia de nosso inconsciente projetada sobre o mundo exterior; e "a metafísica", sobre o surgimento do homem, sua alma e seus atributos morais, "transforma-se em metapsicologia" (1901/1989a, p. 330).

Não obstante, o termo metapsicologia surge sob a pena de Freud muito cedo, desde fevereiro de 1896, nas cartas a Fliess, como substituto mais preciso do que denomina minha psicologia. Esta comparece pela primeira vez no final de março de 1895, quando do vislumbre do "Projeto de uma psicologia" (1995), redigido seis meses depois. A psicologia é minha porque se impõe, desde sempre, como "tormenta", "preocupação", e revela ser "paixão devoradora [...] não reconhece moderação alguma [...] um tirano, para falar com Schiller [...] A psicologia se abateu sobre mim desde tempos imemoriáveis, e, agora, ao se deparar com as neuroses, sinto-me mais perto dela" [maio de 1895 (Freud, 2006, p. 167)]. Quatro anos depois, nas "Lembranças encobridoras" (189971989b), Freud concebe sua escolha da psicologia, aos 30 anos de idade (após estágio com Charcot), como fruto de trabalho de elaboração do assalto da sexualidade na adolescência; e que se impõe pela via de evocação de cenas infantis inocentes (sexuais encobertas). Não seriam esses insights golpes de percepção - surgindo em cascatas après-coup num eixo da espiral do tempo (Freud de 44 anos capturando nele a emergência, aos 30 anos, do psicólogo, que o remete ao adolescente de 14-18 anos, cujos conflitos encontram convicção em cenas de 4-7 anos) -, tormentas do "tempo imemoriável", do recalcado, sexual e infantil, que insiste em se fazer perceber?

A metapsicologia, como fonte, requer geração do tempo, o depois, como condição de percepção da cena psíquica traumática. A percepção não ocorre na contemplação direta de fatos da experiência, mas em apreensão implicada, como na estética, em que a perspectiva surge pela dissimetria estrutural de sua criação a posteriori. A cena que se articula a essa "volta do recalcado" presta-se então ao exame de sua trama tópica, dinâmica e economia. E pode se inserir, a partir daí, em ocupações mais amplas acerca da vida psíquica. Na carta citada de maio de 1895, Freud constata que a companhia das neuroses orientou sua psicologia a se centrar em

dois objetivos [que] me atormentam: 1. Descobrir qual a forma que assumiria uma teoria de funcionamento psíquico caso introduzíssemos nela a abordagem quantitativa; 2. Tentar extrair da psicopatologia um ganho para a psicologia normal. Não é possível atingir uma concepção geral satisfatória de distúrbios psíquicos se ela não puder se associar a hipóteses claras sobre os processos psíquicos normais. (2006, p. 167)

Linhas inseridas quase que literalmente, quatro meses depois, na abertura do "Projeto de uma psicologia". Mais um esboço de modelos descritivos do mundo psíquico, nesse caso o econômico, para a consolidação, três anos mais tarde, do termo metapsicologia. Nesta, articula o desejo do sonho ("normal") com o da economia da sexualidade infantil na fantasia, e suas veleidades ("psicopatológicas"), desde o tempo em que este desejo foi deslocado do plano real da sedução do adulto (perverso) para a estrutura da fantasia [21 de setembro de 1897 (Freud, 2006, pp. 334-337)]. Não obstante, "O projeto..." incorpora os respectivos modelos linguístico e fisiológico [Concepção das afasias (1891/1983) e "O grafo da sexualidade" (Manuscrito G-Melancolia, janeiro de 1895; Freud, 2006, pp. 129140)], assim como prenuncia o modelo "semiológico" de 6 de dezembro de 1896 [carta 52/112 (Freud, 2006, pp. 263-273)] e sua versão publicada no capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (1900/1965).

A metapsicologia "oficial" de 1915 (e seus desdobramentos ascendentes, entre 1908 e 1938, iniciando turnos desde os textos nodais de 1911, 1914, 1915 e até 1920, 1923, 1924, 1925, 1933 e até 1938) se coloca no mesmo eixo vertical da espiral, perpassando os mesmos pontos, embora em novas alturas, em que se tecem, a serviço da clínica e do desenho do ser psíquico, os esboços modelares acima citados da década anterior. Eis a insistência do trabalho psíquico après-coup, tempo autofigurativo da evolução da obra de Freud e, a meu ver, também de toda produção na psicanálise inteira até hoje.

 

Problematizando a metapsicologia: pulsão, concepção e limite

Como visto no item anterior, o testemunho epistolar de Freud, assim como o seu livro princeps, A interpretação dos sonhos, colocam a fonte da metapsicologia na ordem dos insights, da percepção implicada, da rede representativa de quem a gera, o que difere da montagem de teorias, a exemplo da filosofia clássica, com base em abstrações depuradas de experiências para a geração de definições primeiras, seguindo, a partir daí, para postulados mais amplos etc. Freud inicia sua metapsicologia de 1915, em "As pulsões e seus destinos" (2010c), distinguindo, como em 1914, a fonte de nossa ciência. Nossos conceitos, diz ele, não são definições acabadas, mas abertas à modificação pela experiência. Como na física, os conceitos não são saturáveis, mas aguardam novidades para se transformar em convenções, de uma para a outra. Porém, a experiência e a observação ligadas à empiria não são primárias, mas já prenhes da teoria à qual são submetidas. Novamente, a experiência, através do insight, golpes de percepção, toma partido da teoria que a permeia, après-coup, e transforma-se. Ou seja, não se trata de fatos empíricos, mas de algo encontrado-criado (Winnicott, 1971). Como?

O preâmbulo de Freud visa introduzir o primeiro e fundamental "conceito": Trieb, pulsão. A pulsão parece com o estímulo que carrega o tecido vivo de energia da qual tende a se livrar, descarregado em ato, conforme o modelo do arco-reflexo. Mas a pulsão é um estímulo peculiar, oriundo de dentro, e não esvanece pela motricidade: para que este estímulo cesse, é necessária uma ação específica. "Fácil" distinguir: um estímulo advindo da realidade externa (luz, fricção) é descarregado pela ação motora, ao passo que o ataque de dentro, como a fome, não se liquida pelo espernear do bebê e sua "expressão de (que nos parecem) emoções" (dor, raiva...) (Darwin, citado por Freud, 195o[1895]/1995, p. 31), mas precisa de atendimento específico, proveniente de um ser experiente. Assim, distingue-se o externo do interno. Freud opta então pelo termo exigência; a pulsão pressiona, exige trabalho: de início, sobre o ambiente, gerando desenvolvimento da psique; depois, sobre a própria psique, ampliando-a.

Afirmo isso saltando uma longa elaboração do texto na qual Freud nos lembra que a questão das pulsões deve-se à clínica das neuroses, que não pode prescindir da premissa de haver conflito entre pulsões de autoconservação e pulsões sexuais, ou entre moções centrípetas, de defesa, e outras, centrífugas, de excitação e expansão. Em 1914, com a consideração do narcisismo como "complemento libidinal do egoísmo da pulsão de autoconservação", Freud logo confere ao adulto a promoção desse investimento, como "nova ação psíquica" (1991b, p. 69). Intervenção do adulto, de cuidado e sedução, que coloca em relevo as pulsões sexuais enquanto desvio de urgências vitais, de pulsões de autoconservação. Somente a posteriori supõe-se que a pulsão, sexual e infantil, estava outrora fundida e indistinta de outra exigência, vital e da qual se desviou, passando a se apoiar nela. Autoconservação faz crer numa pulsão, pois a exigência parece herdeira do desespero e urgência que o desamparo inicial deflagra. Entretanto, a pulsão, enquanto sexual e infantil, só transparece com a "nova ação psíquica", do adulto. Será desvio esculpido de uma fusão, ou desvio devido à implantação e/ou transformação?

Se a pulsão é descrita pelos seus quatro componentes - força, fim, objeto e fonte -, logo, a suposta pulsão de autoconservação deve ser destituída enquanto pulsão por conta de seus fins e objetos. Na autoconservação, o objeto não pode ser contingente, se é que objeto há; e, quanto ao fim, sua satisfação não seria da mesma ordem da pulsão sexual, já que esta última se realiza em desvio da via vital, ou seja, a satisfação se dá no plano da fantasia, e tendo como substrato inicial a alucinação. E mais, somente a pulsão sexual pode sofrer alteração em seus fins, ter outros destinos (inibição, reação, recalque, reversão no contrário, dessexualização, sublimação, volta sobre si, etc.). A "pulsão" de autoconservação não demonstra vicissitudes nos seus fins ou nos seus objetos. O instinto (Instinkt), este sim, tem objetos e caminhos fixos, inscritos em coordenadas prefixadas de ação. Porém, Freud insiste: a pulsão, embora ela mesma delegada de uma fonte somática, só a conhecemos pelos seus representantes, enquanto aberturas sobre o ambiente: representantes psíquicos da pulsão (Psychiktriebrapresentanz), disponíveis à criação de cenas; assim, a pulsão pode se prestar, depois, a se expressar pelos seus representantes nas representações (Vorstellungtriebrapresentanz) em consequência de sua transformação junto aos objetos e seus destinos.1 É essa abertura para a representação que distingue as pulsões dos instintos.

Tais inferências e distinções, que se colocam a Freud a partir de sua clínica, e a necessidade de encontrar inteligibilidade para ela no "psiquismo normal" o levam a uma definição instigante da pulsão:

a "pulsão" nos aparece como um conceito-limite entre o somático e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo e que atingem a alma, como uma medida do trabalho imposto à psique por sua ligação com o corpo. (1915/2010c, p. 57)

Ou seja, a pulsão é um conceito-limite, está no limite em sê-lo, entre o somático e o psíquico. A pulsão é um conceber estando no limite entre um teor de observação (somático) e um vivido enquanto cena que se apercebe aprés-coup. Concebe-se, no limite, nem um nem outro, mas algo entre, como representante, de excitação, de exigência de trabalho imposto pelo corpo sobre a alma. Trabalho matizado no representante que faz suspeitar de ter emanado não diretamente do somático biológico, mas de um canal aberto neste pelo objeto/ambiente/cultura. Laplanche, com sua teoria generalizada da sedução, deve ser lembrado, assim como Green, ao reconhecer mais tarde que a pulsão não é dada de antemão, mas é consequência de elaboração junto ao objeto.

Entretanto, para avançarmos nesta direção, desde o texto de 1915, qualquer ideia de sujeição ao objeto precisa se valer dos destinos da pulsão (inibição, recalque, sublimação, dessexualização, identificação, reversão, etc.). Estes resultam do efeito da moção centrípeta, de retração, contrapondo-se à força motriz de estímulo que dota a pulsão de sua expansão, centrífuga! Ou seja, para que a pulsão se revele em seus destinos, como condição de possibilidade da psique, inscrevendo-se nela, o elo de ligação deve ser duplamente determinado: na ação de moções defensivas centrípetas (da autoconservação) sobre as moções centrífugas. Isso se torna possível graças à "nova ação psíquica" por meio da qual o objeto propicia investimento (como complemento libidinal) de moções vitais. A distinção de pulsões sexuais, como desvio e apoio sobre outras, de autoconservação, ocorre, portanto, em concomitância com o trabalho do objeto no plano do narcisismo, dando vez à paulatina criação dos precursores do eu (eu-realidade-primitiva ↔ eu-prazer-purificado ↔ eu-realidade-final), suas polaridades (eu-mundo, prazer-desprazer, ativo-passivo) e suas relações (indiferença ↔ ódio ↔ amor). "As pulsões e seus destinos" aborda toda essa complexidade, mas quanto à teoria da pulsão, como conceito-limite, manifestando-se somente por meio de seus representantes, adquire estatuto de entidade de ficção, passando a compor "nossa mitologia" (Freud, 1933/2010b).

Contudo, a permeabilidade da pulsão, sua "evolução", como diz Freud, em ondas, integrando a cada uma a passividade - contenção e ligação - pela via das moções centrípetas junto ao trabalho do objeto, e seu inconsciente, remete forçosamente à reformulação da dualidade pulsional, já preconizada em 1895, em pulsões de morte e de vida. A retração, o desligamento, da pulsão, de morte, trabalha pela vida se o objeto a utiliza, contendo com ela as excitações em prol das ligações. Muitas vezes, porém, o objeto falha em investir a ligação, deixando a pulsão solta, promovendo desligamento, em busca do anseio originário em alcançar o gozo da quietude. O texto de 1924 "O problema econômico do masoquismo" (1991a) permite certamente avançar a questão, mas não sem o auxílio de nosso texto de 1915.

Os derivados da pulsão evoluem, diz Freud, desde uma incitação em fissura, como delegados psíquicos primários abertos a propostas do mundo humano (como na oralidade primitiva e drogadição), até sua revelação através de e pelas representações já constituídas (veja acima). Não seria essa fissura primária, em busca de realização, já consequência de primeira diferenciação imputada ao corpo pela presença do adulto enquanto emissor de enigmas? Isto é, o estímulo passaria então, em função de seu desespero (do fosso em que está), a encontrar um gancho na brecha da dissimetria do inconsciente do adulto - canal para o qual acena o infantil que compromete as mensagens do adulto. Assim, seria impulsionado a representar. Formulação emprestada de Laplanche, mas que gostaria de inserir em um outro contexto mais preciso de Freud.

Prefiro pensar que se trata aqui de uma transformação de um estímulo em representação pela via de futura fixação de uma alucinação em percepção, modo de realização primária proposta pelo objeto. A percepção é, no início, indistinguível da projeção e da ação alucinatória que a determina, afirma Freud, como a mais fundamental e consistente base, animista, de nosso psiquismo (Freud, 1900/1965, 1914/1991b). No nível do sujeito, ela é certamente consequência de Darstellbarkeit, terceiro setor da fábrica dos sonhos que tece o sensório do mundo com o do corpo em figura e presença (torna figurável, segundo Botella; presentifica, segundo Laplanche), propicia condições de representação (Stratchey). Se o estímulo se torna permeável e passível de se transformar em representante psíquico, é porque as moções retrativas que agem sobre ele o submetem a essa ligação e construção pelo objeto. É o efeito de tensão, da dissimetria nas fantasias originárias [entre adultos e criança (sedução); entre gerações (cena primária); alteridade na oposição dos sexos (castração)], da qual o objeto é porta-voz, que incita o impulso a representar em busca de apaziguamento (promessa de nirvana, quarta fantasia, de união, ao qual almeja cada eixo dissimétrico). O despertar para esse aporte é instintivo, embora seu desencadeador seja econômico. A abertura tópica a tais orientações é instintiva2 - o bebê se identifica, "reconhece" o "pai filogenético" (Freud, 1914/1991b), mas só o investe enquanto instrutor dessas coordenadas em função de seu estado de desespero, em busca de representantes, matizando-se na alucinação. Apoia-se, para tanto, no aspecto negativo, na dissimetria inconsciente que abre no adulto, ao mesmo tempo que o acervo adquirido deste - simbólico, narrativo e mítico -, que permeia a presença e o enunciado do adulto, presta-se como meio de tradução, gerando representantes. Estes são passíveis de prover condições de passagem da não representação para a representação, desde sua figuração alucinatória até sua inscrição em relevo (Prägung), como representação - o adulto, diz Freud, providencia "imagens de movimento" para se tornarem "notícias de si" (Freud, 1950[1895]1995), precursores autoeróticos da representação.3

O estímulo e seus representantes surgem, portanto, a cada passo, englobando o trabalho de objeto, em formas progressivas de ampliação dos limites da pulsão. Esta se torna concebível desde a figuração alucinatória do terror ["objeto hostil" (Freud, 1950[1895]/1995)], passando pela fissura e, de lá, apropriando-se, no limite, na fantasia que impregna a sexualidade perversa polimorfa, até sua instauração em referências autoeróticas da representação. Entretanto, o psíquico da pulsão "evolui" (Freud, 1915/2010c), se apassiva em ondas e amortece o próprio efeito traumático, que a projeção, construída junto ao objeto em matéria alucinatória, atende, cura, mas ainda sem instaurar um investimento propício ao golpe de percepção, como insight do próprio palco. A alucinação pode se restringir ao gozo de projeção in situ, como no entorpecer da fissura oral junto ao seio, à droga ou ao álcool - estes últimos estados encontram-se nas hibernações depressivas. E se carência maior da presença do objeto há, nem mesmo a projeção salvaria o desligamento, e sua ira em se desvincular de traços de inscrição os apagaria ou mal permitiria que se constituíssem. Mas a projeção como retorno desde o fora, daquilo que foi abolido ou não sustentado dentro das malhas das representações do sujeito, como ocorre na recusa ou na forclusão psicóticas, pode ser vista como esforço de retorno para a esfera psíquica. Compulsão e insistência de ligação, e fixação, daquilo que mal pôde se constituir autoeroticamente nas malhas das representações.

Neste sentido, outro texto de Freud, também de 1915 (2010a), sobre um caso de paranoia feminina, merece menção como exemplo. Uma jovem mulher move uma ação judicial contra o seu amante e colega de trabalho, alegando para o advogado que o homem vem se utilizando do flerte para denunciá-la junto a sua diretora, manchando sua honra e seu pudor. O advogado, com dúvida, recorre a Freud, levando a mulher ao seu encontro. O despudor na descrição do flerte denota ausência completa de qualquer sinal conversivo feminino de vergonha. Uma cena de cochicho, íntima, entre o amante e sua chefe, a convence da denúncia, a partir da qual passa a suspeitar de provas que ele possa apresentar, suscitadas e construídas α posteriori. A chefe tem a idade de sua mãe, além de apresentar feições físicas (cabelo) e psíquicas parecidas - mãe viúva a quem a única filha faz companhia -, despontando, portanto, nessa mulher, um elo de amor, homossexual maternal, a esta chefe. As provas remontam a uma cena de namoro no apartamento do amante, durante o intervalo de almoço: semidesnuda, entretida em carícias amorosas, parece ter ouvido um click vindo de trás da cortina, na frente da qual fica uma mesa. Ela interrompe a cena e sai pela porta, encontrando, na escada do prédio, dois homens, um sorrindo para o outro que carrega um objeto embalado num papel de jornal. Ao indagar o amante, talvez em outra oportunidade, sobre a origem do barulho, ele cogita que seja o click do relógio posto sobre a mesa. Ela se convence então de que o colega se aproveitou de seu flerte, registrando a cena (click oriundo da câmera de um dos homens escondidos atrás da cortina) para comprometê-la em seu posto e junto a sua chefe. Nem o amor e tampouco os protestos do amante, enviados em cartas, movem-na de sua convicção.

As duas cenas narradas dos dois casais (colega e chefe, de um lado, o colega e ela, de outro) levam Freud a pensar que sua identificação e rivalidade edípica com a mãe/chefe, junto ao homem em relação ao qual tem desejo de se juntar, se tornam insustentáveis. Por isso, a excitação, na segunda cena - na sequência de envolvimento preliminar, com beijos e carícias -, de seu clitóris, um click de seu relógio feminino, que não podia ser assumido e passou a ser projetado na realidade como denúncia de sua infidelidade e agressão à mãe, ao ousar, na fantasia, ultrajá-la, separando-se dela e substituindo-a, tomando o lugar de mulher junto a um homem. Uma histérica teria, pela mesma problemática, convertido a excitação em um mal-estar ou em frigidez; teria recalcado o desejo, que retornaria ao próprio palco de sua realidade psíquica, convertido junto a seus impasses, reforçando seu elo oral com a mãe ou abafando seu desejo "genital". Aqui, porém, a projeção, "o recalque para fora", ou a volta desde o real - daquilo que deveria ter sido instalado enquanto apropriação autoerótica e a serviço da elaboração edípica -, encontra um impasse quase que incontornável. Entretanto, a falência do trabalho do objeto - verdadeiro "perseguidor", deslocado e confundido com o objeto de amor -, tal como pode ser vislumbrada neste exemplo, aponta para falhas de constituição de representantes da pulsão, permeáveis à integração de referências autoeróticas para a vida de amor. Falhas flagradas no regime da projeção em sujeitos cujo caso, não raro, não ultrapassa os meandros das varas de justiça, consolidando sua paranoia em proveito de uma contemporaneidade vigilante e opressora.

 

Nota final

Nas pontuações acerca da metapsicologia de 1915, discutimos os limites e as expansões do conceito-limite, a pulsão, com o qual Freud abre essa série de ensaios. Tentamos situar essa contribuição dentro do método de descoberta que ele nos legou, assim como mostrar a relevância teórico-clínica da pulsão e seus destinos para a psicanálise e sua prática, desde seus princípios até hoje.

 

Notas

1 A distinção entre os dois representantes, um evoluindo do outro, é citada em "O inconsciente" (1915/19910).

2 Os esquemas filogenéticos hereditários no homem, um tipo de conhecimento análogo ao de instintos (Instinkts) dos animais, encontram-se nas fantasiasoriginárias, Urphantasien, afirma Freud no final de seu ensaio sobre o Homem dos Lobos (1918(1914]).

3 Nosso artigo de 2010 desenvolve com mais vagar esses aspectos do trabalho do objeto - de inscrição, construção e simbolização - sobre os estímulos corporais.

 

Referências

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Correspondência:
Daniel Delouya
Rua Capote Valente, 439, conj. 104
05409-001 São Paulo, SP
danieldelouya@gmail.com

Recebido em 08.12.2015
Aceito em 22.12.2015

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