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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo out./dez. 2015

 

EM PAUTA

 

Metapsicologia: a "pedra angular" que sustenta o edifício da psicanálise

 

Metapsychology: the "cornerstone" of the psychoanalytic building

 

Metapsicología: la "piedra angular" que sustenta el edificio del psicoanálisis

 

 

Ignácio Alves Paim Filho

Psicanalista, membro pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA), membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA), autor do livro Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte

Correspondência

 

 


RESUMO

Este texto tem por objetivo fazer uma contextualização dos 120 anos da metapsicologia freudiana - nossa perene pedra angular. Para realizar tal meta, toma por interlocutor os centenários textos metapsicológicos de 1915. Sendo assim, discorre sobre sua pré-história, história e, por último, os desdobramentos da história. Diante desse contexto, acredita ter criado condições para legitimá-la como fonte fecunda na exploração das profundezas do Acheronta do ser contemporâneo.

Palavras-chave: metapsicologia; pulsão; representação; irrepresentável.


ABSTRACT

This paper aims to contextualize 120 years of Freud's metapsychology - our perennial cornerstone. In order to achieve this goal, the author takes the centenary metapsychological papers (from 1915) as an interlocutor. He writes about its prehistory, history and, lastly, the ramifications of history. Given this context, the author believes he has created conditions to legitimate metapsychology as a prolific source, in order to explore the depths of the contemporary human being's Acheronta.

Keywords: metapsychology; instinct; representation; irrepresentable.


RESUMEN

Este texto pretende hacer una contextualización de los 120 años de la metapsicología freudiana - nuestra perenne piedra angular. Para lograr tal objetivo toma por interlocutor los centenarios textos metapsicológicos de 1915. De esta forma, habla de su prehistoria, historia y, por último, los desdoblamientos de la historia. Ante este contexto, se considera que se han creado las condiciones para legitimarla como una fuente fecunda para explorar las profundidades de la Acheronta del ser contemporáneo.

Palabras clave: metapsicología; pulsión; representación; irrepresentable.


 

 

[...] estou quase inteiramente sozinho [...] frequentemente sinto-me tão sozinho como nos primeiros dez anos, quando era cercado pelo deserto. O produto desses meses provavelmente adotará a forma de um livro com doze ensaios, começando por um sobre as pulsões e suas vicissitudes. O livro já está terminado, falta apenas a revisão necessária causada pelo arranjo e os ajustes dos ensaios individuais.

(Freud a Lou Andreas-Salomé, 30.7.1915)

 

Arando a terra: da metafísica à metapsicologia

Não obstante, qualquer coisa que possa indicar que a vida mental é de algum modo independente de alterações orgânicas demonstráveis [...] alarma o psiquiatra moderno, como se o reconhecimento dessas coisas fosse trazer de volta, inevitavelmente, os dias da Filosofia da Natureza e da visão metafísica da natureza da mente.

(Freud, 1900)

 

Século XX, meados da segunda década: 1914/1915. O mundo vive os horrores da Primeira Guerra. Freud encontra-se duplamente solitário - inteiramente sozinho: de um lado, sua clínica está com poucos pacientes; de outro, seus filhos, genro e discípulos estão nos fronts de batalha. Enquanto isso, a psicanálise vive ainda as ressonâncias de um combate particular, que determina a primeira ruptura do movimento psicanalítico, culminando com a deserção de Adler e Jung: frequentemente sinto-me tão sozinho como nos primeiros dez anos, quando era cercado pelo deserto.

Em meio a esse contexto, Freud vê-se compelido e investido do desejo de estruturar o arcabouço teórico de sua ciência - a metapsicologia. Experimenta mais do que nunca a necessidade de que esta adquira um corpus teórico próprio, que a perpetue mais além de seu tempo. A metapsicologia - neologismo freudiano - cobrava de seu criador que lhe propiciasse uma real existência, visto ser até então uma virtualidade que continha uma proposta: criar uma "metapsicologia", que, em consonância com a "metafísica", teria por meta ir além das suposições básicas de sua ciência de origem - a psicologia, comprometida com os dados fornecidos pela veracidade atribuída pelo imediatismo da consciência. Sua aspiração: conceber uma psicologia das profundezas.

Sabemos, através de sua correspondência com Fliess, que a ideia de construir uma metapsicologia acompanhara Freud desde muito cedo. Por exemplo: "Tenho-me ocupado continuamente com a psicologia - na verdade com a metapsicologia" [13 de fevereiro de 1896] (1985a, p. 173). Entretanto, somente em 10 de março de 1898 explicita sua pretensão a Fliess: "A propósito, vou perguntar-lhe a sério se posso usar o nome metapsicologia para minha psicologia que se estende para além da consciência" (1985c, p. 302). Cabe destacar que, antes mesmo de fazer tal inquirição, Freud na mesma carta constata: "Parece-me que a teoria da realização de desejo trouxe apenas a solução psicológica, e não biológica - ou melhor, metapsíquica" (p. 302). Mais uma vez, é colocado em evidência o anseio de avançar, ultrapassar a compreensão vigente sobre o psíquico e alcançar o "metapsíquico", mesmo sabendo dos riscos de manter-se exilado do pensamento científico da sua época - "qualquer coisa que possa indicar que a vida mental é de algum modo independente de alterações orgânicas demonstráveis [...] alarma o psiquiatra moderno" (Freud, 1900/1969i, p. 73). Teria essa constatação validade em nossa modernidade?

Entretanto, o termo metapsicologia surgirá em seus textos teóricos somente em 1901, no capítulo 12 da Psicopatologia da vida cotidiana: "Poder-se-ia ousar explicar dessa maneira os mitos do paraíso e do pecado original, de deus, do bem e do mal, da imortalidade, etc., e transformar a metafísica em metapsicologia" (Freud, 1901/1969p, p. 224).

Diante desse cenário, uma pergunta se impõe: o que significa transformar metafísica em metapsicologia? Para equacionar tal questão, façamos um rápido percurso, num primeiro momento, por alguns elementos que julgamos relevantes na concepção freudiana da metafísica - Filosofia da Natureza - para, a seguir, tecermos considerações pontuais sobre essa enigmática transformação - visando arar a terra. Contudo, antes de iniciar tais considerações, creio ser pertinente uma tomada de posição quanto ao empirismo freudiano.

Depreendo da leitura do texto de Freud que sua metapsicologia não está assentada num empirismo clássico, ou seja, não parte da observação, ou de uma experiência direta, de um determinado fenômeno e como isso descreve o que se passa. Ao contrário, o não observável, o desconhecido, precisa ser construído, inventado. Nesse sentido, recordo que a metapsicologia é uma ficção teórica: "conjunto de modelos conceituais mais ou menos distantes da experiência" (Laplanche & Pontalis, 1967/1992, p. 284); ou ainda: "consiste na elaboração de modelos teóricos que não estão diretamente ligados a uma experiência prática ou a uma observação clínica" (Roudinesco & Plon, 1997/1998, p. 511). Essa ficção está comprometida com a busca de fundamentar e legitimar a verdade da realidade psíquica ou, sendo mais específico, a verdade do inconsciente - o primeiro shibboleth da psicanálise (Freud, 1923/2007b). O inconsciente é concebido no encontro da pulsão com o objeto. Freud, por ver na pulsão o lineamento de base - conceito-limite -, diz o seguinte: "A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões são entidades míticas, magníficas em sua imprecisão" (Freud, 1933[1932]/1969d, p. 119). Ficção - invenção - mitos: arquitetura que vai mais além do experienciado, modos de poder pensar o que não pode ser conhecido, preceitos da psicanálise, essa ciência unheimlich.

Isto posto, o que dizer da proposta freudiana metafísica/metapsicologia? Segundo Chauí (2005), a metafísica - a filosofia primeira - é movida pela busca de responder duas grandes questões, tendo por objeto de estudo o "Ser enquanto Ser": o que existe? E qual a essência daquilo que existe? Podemos nos aventurar a dizer: a psicanálise também transita por essas questões. Entretanto, o pensar filosófico, oriundo de Aristóteles, centrado na ideia da supremacia da consciência e da razão, trabalha com o seguinte princípio: mesmo que não possamos conhecer, em sua totalidade, o que existe e qual a essência das coisas do mundo, há uma verdade em si mesma, da qual a verdade do sujeito é um simulacro. Freud, com sua postulação da hegemonia do inconsciente, magistralmente explicitada na expressão "O Eu não é senhor em sua própria casa" (1917/19690, p.178), afirma a veracidade da realidade do inconsciente. Esta não como uma cópia deformada do mundo externo, mas ambos como duas verdades paradoxais, que nunca serão conhecidas em sua totalidade: o homem cria o mundo externo e o mundo externo cria o homem.

Seguindo por essas trilhas, encontro no pensar de Garcia-Roza uma via facilitada, ao propor a existência do "objeto absoluto da falta" (1990, p. 64), vendo neste a marca, por excelência, da antimetafísica freudiana. Esse pensar está balizado pela ideia de que a metafísica trabalha com a existência do objeto absoluto, a verdadeira realidade, e com a meta, mesmo que inatingível, de como é possível conhecê-lo, enquanto Freud deixa implícito nesse princípio estrutural a incompletude constitutiva do meio cultural e individual: a existência da não existência do "objeto absoluto da falta". Essa possiblidade ganha maior consistência quando vinculada com o conceito-limite de pulsão - entidade mítica - que está situada em um espaço virtual, entre o somático e o psíquico: só sabemos dela por sua representância - potência indeterminada, por si só é pura quantidade, sem qualidade. De uma forma especulativa, ousaria dizer: o objeto absoluto na metafísica é a coisa-em-si, enquanto na psicanálise o objeto absoluto da falta é a própria pulsão, com sua intrínseca relação com o desamparo de nossas origens.

Após esse esboço introdutório, vejamos por quais caminhos Freud vai fundamentar sua pedra angular - esta que tem a pretensão de ser, para a psicanálise, algo equivalente à metafísica para a filosofia.

 

A pré-história: semeando um sonho

Mas o senhor quer semear e [...] fazer a colheita.

Em um ponto estamos de acordo: remover a terra.

(Groddeck a Freud, 1923)

Como apontado anteriormente, a palavra metapsicologia passa a existir oficialmente em 1901. Esse ato inaugural será seguido por uma ausência de 14 anos, até 1915, no artigo "O inconsciente". Nesse ressurgir, Freud declara sua especificidade: "Sugiro chamar toda a descrição do processo psíquico que envolva as relações dinâmicas, tópicas e econômicas de descrição meta-psicológica" (1915/2006b) p. 33).

Com essa conceitualização em mente, façamos um retorno, visando reconstruir o percurso realizado por Freud na estruturação de sua ficção teórica, sua pedra fundamental. Para realizar tal meta, faz-se necessário remover a terra, a fim de reencontrar o semeado em tempos originários.

No transcorrer deste período - das origens a 1914/1915 -, Freud produz uma série de trabalhos que irá edificar a metapsicologia, esta que visa descrever e fundamentar em termos teóricos os processos psíquicos inconscientes. Nesse sentido, destaco:

■ "Projeto para uma psicologia científica" (1950[1895]1969n): neste texto, encontramo-nos com uma primeira proposta de psiquismo, aparelho neuronal, uma topografia que tem em Ψ sua essência. Nesta instância temos inscritas as experiências de satisfação e de dor, modelos que estão implicados na criação do estado de desejo, estado este que tem sua circulação balizada pelas barreiras de contato, facilitações e vias colaterais, que em seu dinamismo são responsáveis pela administração da força propulsora do psiquismo. Tal sistema tem como fonte abastecedora as Qn endógenas - intensidades constantes, das quais o sujeito não tem como fugir. Sendo assim, há de ocorrer uma ação específica, viabilizando o transcorrer da função primária para a função secundária. Temos nessas Qn as origens da teoria pulsional. Ressalto que, na parte 2, nos é apresentada a primeira noção do a posteriori, ligado à teoria do trauma em dois tempos - abertura para fazer trabalhar o processo de ressignificação, exemplificado de maneira lapidar no caso do Homem do Lobos (1918[1914]/1969f) -, temporalidade que remete a uma dupla função: o passado produzindo transformações no presente e o presente produzindo alterações no passado, dinâmica fundamental do processo analítico.

■ Em 1896, na Carta 52 (1985b), temos um avanço: de um aparelho neuronal, passamos para a proposta de um aparelho de memória - semente fecunda do que virá a ser o inconsciente como substantivo. A analogia entre a tessitura de um texto e o psíquico ganha contornos significativos: inscrição, transcrição e retranscrição nas instâncias psíquicas. Ideia de uma temporalidade própria, inscrições com condições de sofrer rearranjos e outras que seguem prisioneiras de um anacronismo (o traumático). Aqui temos as bases para fundamentar a hipótese topográfica, da dupla inscrição, que será retomada em 1915 no artigo "O inconsciente".

A interpretação dos sonhos (1900/1969i), momento de fundamentação do inconsciente com seu universo representacional, surgimento de uma topografia psíquica que sustenta um processo dinâmico, que delineia a relação intrínseca entre inconsciente e recalcamento, bem como o vínculo indissociável com o estado de desejo. Encontramos a essência dessa construção no capítulo 5, no item "Sonhos sobre a morte de pessoas queridas": fala pela primeira vez, em uma publicação, sobre a tragédia edí-pica de Sófocles, conjuntamente com o drama de Hamlet, tecendo sua relação com a constituição do desejo recalcado - incesto e parricídio; no capítulo 6, "O trabalho do sonho", trata de condensação, deslocamento e das condições de representabilidade; e no capítulo 7, "A psicologia dos processos oníricos", apresenta o aparelho psíquico com sua bipartição: inconsciente e pré-consciente/consciente - a célebre primeira tópica. Diante dessa concepção, tem recursos para elaborar conceitos como: regressão, realização de desejo e os processos primário e secundário. Assinalo que essa tópica será o pano de fundo sobre o qual constituir-se-ão os textos metapsicológicos de 1915. Denuncia em suas narrativas a pertinência dessa tópica e, ao mesmo tempo, deixa indícios da necessidade de ampliar sua territorialidade: da arte linear à arte moderna (Freud, 1933[1932]/1969d) - o surgir da segunda tópica em 1923.

Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1969s): a sexualidade infantil, com sua disposição perversa polimorfa, estabelecendo e determinando a essência da sexualidade humana, quer na criança, quer no adulto. Freud, ao inventar a psicobissexualidade como constitutiva da psique, perverte o saber vigente sobre a sexualidade e, por conseguinte, seu lugar nos destinos da subjetividade do humano. A libido passa a ser reconhecida de forma contundente como a energia da pulsão sexual. O lugar do autoerotismo - estado primordial da sexualidade infantil - torna-se relevante no desenvolvimento do Eu, estado precursor do estabelecimento do narcisismo. Possibilidade de estruturar o desenvolvimento do psiquismo na interrelação: autoerotismo - narcisismo - amor objetal.

■ No texto "Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico" (1911/2004c), trabalha a ideia de que o princípio do prazer e da realidade são os responsáveis pela dinâmica psíquica, elementos ordenadores do estado anímico. Retoma suas preocupações com a constituição do Eu, descrevendo o Eu-prazer (Lust-Ich) e o Eu-real (Real-Ich). O Eu clama por uma tópica.

■ Em 1913 escreve Totem e tabu (1969r), com o compromisso de legitimar o lugar paradigmático do complexo de Édipo: momento que postula uma metapsicologia para seus destinos. Nesse livro, explicitará as vicissitudes constitutivas do desejo edípico - incesto e parricídio -, compondo o enlace entre a estruturação da cultura e a do sujeito. O lugar da interdição fundamentada na construção da função paterna ganha status estruturante: "o pai morto tornou-se mais forte do que fora o pai vivo" (p. 171). Pai morto e devorado pelos filhos insurgidos, estabelecimento de um pacto: ninguém ocupará o lugar do pai. Em decorrência disso, criam o totem e instauram as duas leis universais: a proibição do acesso às mulheres do pai e a proibição da destruição do totem, sabendo que a ruptura do pacto é sempre uma possibilidade - o desejo de ocupar o lugar do pai da horda é renunciado, mas não destruído. Na vida psíquica, esse desejo será contido pela força do recalcamento. Desejo que pulsa, de eterno, em busca da satisfação plena: entre Narciso e Édipo. As teses aqui desenvolvidas retornam no Moisés de Freud (1939[1934-38]/1969k), o estrangeiro, como uma espécie de recomendação final aos que exercem a psicanálise: a complexidade do complexo de Édipo.

Os textos destacados são uma pequena amostra da fertilidade do pensamento freudiano - fertilidade que lhe permitiu chegar à metade da segunda década do século XX em condições de sustentar sua proposição de construir uma psicologia das profundezas: sonhar um sonho. Arou e removeu a terra, semeou e agora se anuncia a época da colheita.

 

A história: colhendo o sonhado

O arado só quer remover a terra e ir de soslaio entre as pedras, procurando não perder o fio.

(Groddeck a Freud, 1923)

Esses trabalhos, erigidos no decorrer desses vinte anos, formam uma espécie de apanhado da grande síntese preparatória - ir de soslaio entre as pedras - que possibilitou a Freud embrenhar-se, a partir de 1914, na configuração de sua metapsicologia. Contudo, antes de prosseguir, façamos um pequeno parêntese, visando alguns esclarecimentos. Freud explicitará a seus correspondentes o desejo de escrever doze artigos metapsicológicos, como podemos observar na carta de Freud a Lou Andreas-Salomé, dos quais temos acesso a apenas seis: "Pulsões e destinos da pulsão" (1915/2004e), "O recalque" (1915/2004d), "O inconsciente" (1915/2006b), "Luto e melancolia" (1917[1915]/2006c), "Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos" (1917[1915]/2006d) e finalmente o manuscrito de "Neurose de transferência" 1987), também de ^5, porém apenas encontrado em ^83, entre as cartas de Freud e Ferenczi, e publicado em ^85. Os demais artigos ou não foram escritos, ou foram destruídos - o livro já está terminado... Segundo Jones (1953/1989), tratariam de: consciência, angústia,1 histeria de conversão, neurose obsessiva, sublimação e projeção.

Como podemos depreender do esclarecimento acima, o trabalho "À guisa de introdução ao narcisismo" (1914/2004a) não faz parte oficialmente dos tradicionais textos metapsicológicos freudianos. No entanto, trata-se do escrito elemento que edifica a fundamentação para os escritos posteriores, bem como cumpre a função de ligação com as ideias anteriormente forjadas. Nele vamos nos deparar com o que pode ser considerado um texto complementar ao trabalho de 1913 - lá, destino; aqui, origens metapsicológicas do complexo de Édipo. Sob esse enfoque, merece destaque especial a concepção de narcisismo primário e suas especulações sobre a estruturação do Eu (Eu Ideal e Ideal de Eu). Sublinho, procurando não perder o fio, que nessa "Introdução" o objeto passa a ter uma relevância fundamental na estruturação do psiquismo, fornecendo subsídios para pensarmos, em consonância com os desdobramentos metapsicológicos pós-1920, em uma disposição feminina originária. Diante dessas constatações, esse estudo ganha o direito legítimo de ser considerado o texto primeiro da metapsicologia trabalhada por Freud a partir de 1915.

No início da primavera, em fins de março, Freud debruça-se, por um período de seis semanas, sobre os escritos de sua psicologia primeira. Toma como ponto de partida o trabalho "Pulsões e destinos da pulsão". Esse texto estrutura-se em três segmentos, que propõem desdobramentos do nome do artigo - pulsões e pulsão. No primeiro segmento, Freud fala das pulsões, tendo em mente a dualidade entre a pulsão de autoconservação e a pulsão sexual. No segundo segmento, ocupa-se especificamente da pulsão sexual, assinalando sua singularidade, quanto a suas características - fonte, meta, força, objeto - e seus destinos: transformação no contrário, retorno sobre si mesmo, recalque e sublimação. Entretanto, os dois primeiros, chamados de destinos pré-recalque, são o objeto de investigação privilegiado nesse texto. Esses destinos são abordados pelo viés da atividade versus passividade - centrado no par complementar sadismo/masoquismo - e o fator conteúdo: amor/indiferença, amor/ódio e amar/ser amado. No terceiro segmento, segue trabalhando sobre a estruturação do Eu. Freud, ao nomear esses destinos pulsionais de pré-recalque, estaria deixando em aberto a possibilidade de pensarmos no que diferencia a fundação do aparelho psíquico da fundação do inconsciente recalcado? Entendo que sim, sobretudo se associarmos com a proposição assinalada na introdução do texto "O inconsciente": "o inconsciente tem maior abrangência que o recalcado" (Freud, 1915/2006b, p. 19). Seguindo esse direcionamento, postulo que a fundação do psiquismo se dá por ação dos destinos pré-recalque, enquanto a do inconsciente recalcado pela ação do recalque originário.

Cumpre destacar que, até os anos 1920, Freud trabalha com a ideia de um bebê ativo primariamente, pelo pulsional e em termos da sua vida fantasmática. Sobressai que a ordem dos fatores pode alterar o produto. Temos isso caraterizado na noção de um sadismo primário, que sofrerá transformação quando do advento do masoquismo primário em 1924.

Nessa sequência, surge o texto "O recalque", que foi considerado por Freud, em 1914, em "A história do movimento psicanalítico" (1969g), a pedra angular do edifício da psicanálise. A ideia do recalque o acompanha desde os primórdios, porém associada à questão da defesa. Contudo, seu caráter estruturante começa a ser delineado em 1911, no Caso Schreber (1969m). Neste encontramos nomeado pela primeira vez o recalque em seus três tempos: fixação (recalque primário), recalque propriamente dito e o retorno do recalcado. Estas formulações sobre o que está "situado entre a fuga e o repúdio condenatório" (Freud, 1915/2004d, p. 177) são retomadas no artigo de 1915, fornecendo elementos para especularmos a relação do recalque primário com a fundação do inconsciente recalcado - desse que prolifera no escuro (Freud, 1915/2004d). No texto, deparamo-nos com a discriminação do recalque nas diferentes psiconeuroses. Todavia, estamos aqui sob a vigência do recalque, cuja falha gera angústia. Sabemos que, em 1926 (1969h, essa concepção sofre uma alteração, "transformação ao contrário": agora é a angústia que aciona o recalque. Momento de ampliar a relevância do complexo de castração para além das diferenças anatômicas entre os sexos.

Acredito que estes dois textos, sobre a pulsão e o recalque, prepararam o terreno para o surgir do artigo "O inconsciente" - elo central da metapsicologia de 1915. Confrontamo-nos, já no primeiro parágrafo, com uma declaração importante que ampliará e suscitará a necessidade de rever a abrangência do inconsciente: "esclarecemos de antemão que o recalcado não abarca todo o inconsciente" (Freud, 1915/2006b) p. 19). Como veremos, Freud retoma essa injunção, de forma contundente, ao propor uma segunda tópica (1923). Mas nesse escrito vai fundamentar, tendo por delineador as ideias de 1900, a existência de uma topografia e de uma dinâmica circulando entre o inconsciente e o pré-consciente. Fornecerá suas características e, sobretudo, dirá como se organiza o psiquismo, que tem nas representações sua essência. Assim, retoma as ideias, forjadas em 1891, de sua monografia Sobre as afasias (2004b) - concepção de um aparelho de linguagem. Marca o lugar das representações de coisa - abertas, infinitas possiblidades de combinações - na constituição do inconsciente recalcado; das representações de palavras e da representação de objeto - fechadas, os limites das palavras - constituintes do pré-consciente. Merece destaque que a representação de objeto é produto da vinculação da representação de coisa com a representação de palavra, advento da capacidade simbólica.

Essa temática sobre a representação tem seu embasamento na proposição de que do encontro da pulsão com o objeto ocorrerão as inscrições psíquicas - produtos dos atributos do objeto, que possibilitam a construção de uma história. Não do vivido em si, mas sim do percebido: percepção - inscrição. É importante lembrar que toda a representação é um conjunto de impressões e traços mnêmicos (1895/1896). Freud deixa em aberto a discussão sobre a dinâmica psíquica centrada na hipótese da dupla inscrição e na hipótese funcional. Na primeira, teríamos uma inscrição de uma representação de coisa no inconsciente, que por deslocamento e condensação criaria uma nova/velha representação de coisa no pré-consciente: uma retranscrição. Esta hipótese parece-me essencial para dar sustentabilidade ao retorno do recalcado. A funcional implica ligação entre as instâncias sem retranscrições. Compreendo sua validade quando associada ao mediador das instâncias, o recalque propriamente dito. Esse contexto sinaliza a meta do processo analítico: revelar o inconsciente.

Como sabemos, os três textos acima foram redigidos e publicados em 1915. Os demais também são de 1915, porém publicados em 1917. Segundo os biógrafos, isso se deve às dificuldades de publicação nesse período de guerra. Entretanto, indo mais além desse fato, ocorrem-me outros possíveis impedimentos. Penso, por exemplo, na temática que abordam, de uma complexidade que faz deles uma espécie de precursores imediatos da virada de 1920: tempo de elaboração? Talvez "Luto e melancolia" traduza essa densidade com mais envergadura: como especular sobre autodestrutividade sem a ideia da pulsão de morte, com sua vinculação com o masoquismo primário, ou ainda de um Supereu sádico atuando sobre um Eu masoquista?

Bem, deixemos em aberto essas divagações. Pensemos no "Suplemento metapsicológico" - suplemento que cumpre a função de revitalizar as ideias de 1900, mas também cumpre a meta de ressignificar o processo alucinatório. Temos nesse texto a possibilidade de referendar o lugar da alucinação mais além da patologia. O aparelho psíquico existe para alucinar as demandas das pulsões de autoconservação, e não para satisfazê-las. Repensar o processo alucinatório permite refletir sobre as condições de figurabilidade (Darstellbarkeit) com maior consistência metapsicológica do que como proposto em A interpretação dos sonhos (1900/1969i). Entendo que esse escrito contribui para diferenciar com maior clareza as condições de representabilidade, no sentido de viabilizar que a realidade do inconsciente recalcado seja encenada, desde as mais variadas perspectivas, das condições de figurabilidade, no sentido de criar meios para a metamorfose das inscrições psíquicas da impressão/traço à representação. Sendo assim, penso na relevância de uma nota de rodapé em que Freud ressalta o papel da alucinação negativa como precursora, em relação à alucinação positiva, no estudo da alucinação. Proposição de grande destaque para os pós-freudianos, quando postulam suas ideias sobre a importância da figurabilidade, por parte do analista, como recurso para trabalhar com as patologias do irrepresentável.

Nesse texto, comprova o valor da alucinação na constituição da psique. Diante desse contexto, abrem-se as portas para a importância de pensar por imagens e sua relevância no processo analítico. Lembrando uma das máximas de 1900: "O pensamento, afinal, não passa de um substituto do desejo alucinatório" (Freud, 1900/1969i p. 517).

Condizente com a meta de repensar os textos de 1915, chegamos ao texto derradeiro, que foi escrito, juntamente com seu predecessor, em um período de doze dias, entre 23 de abril e 4 de maio: "Luto e melancolia", texto que narra de forma mais explícita o poder do objeto. Retrata o sofrimento psíquico diante da perda: podemos saber quem perdemos, porém, como lidar com a dor do desencontro, quando não sabemos o que perdemos nesse alguém? O dito luto normal produz elaboração, possibilidade de reconhecer quem e o que perdemos. Entretanto, como sabemos, a melancolia tem similitudes com o luto, mas são as diferenças que revelam a tragédia diante da perda do objeto. Refletindo sobre o outro na dinâmica psíquica, ganha maior consistência a temática das identificações - em especial, as identificações narcísicas. Sendo assim, a célebre frase "a sombra do objeto caiu sobre o Eu" (Freud, 1917[1915]/2006c, p. 108) torna-se emblemática da não autonomia do sujeito em relação a seus objetos primordiais. Nesse trabalho ganha destaque a regressão da escolha de objeto para as identificações primárias - ser, e não ter, o objeto -, estas anteriores a qualquer investimento objetal.

A intensidade da temática sobre a melancolia ganha contornos de suma importância quando Freud refere-se a um complexo melancólico (Freud, 1917[1915]/2006c, p. 111), complexo que convoca a pensar em seus correlatos: complexo do semelhante, complexo de Édipo e complexo de castração. Seria esse complexo tão relevante quanto os demais? Julgo que esse modo de se expressar não é destituído de significado; acredito que fica posta a necessidade de estruturado. Parece-me que esse complexo insinua a possibilidade de referendar-se a melancolia mais além da patologia, havendo nele algo constitutivo: o eterno desamparo, o objeto absoluto da falta, anseio (Begierde) de um reencontro de um encontro que nunca houve (Paim Filho et al., no prelo)?

Ao concluirmos esse rápido percurso pelo sonho sonhado de Freud - estruturar sua psicologia das profundezas -, estamos em condições de explorar seus derivativos metapsicológicos, os quais suscitam releituras, na medida em que o além do princípio do prazer impõe sua preponderância sobre as leis que regem o princípio do prazer - princípio que até então era o grande organizador do psíquico. O além, o que está por vir, anuncia a força da destrutividade: o não desejo - o desejo de destruição, o não representável. A pulsão de morte trabalhando por sua metapsicologia.

 

Os desdobramentos da história: assimilando e desassimilando o sonhado

Logo chega a verdadeira pedra ou, em todo caso, aquilo que entendo por pedra: o psíquico. O camponês sabe que a terra é pedregosa, o arado percebe-o pela mão cuidadosa que o guia. Também se dá conta de que o camponês observa atentamente a terra fértil do Isso que o rodeia.

(Groddeck a Freud, 1923)

Groddeck, em meio às ressonâncias do trabalho de Freud de 1923, "O Eu e o Id" (2007b), associa o psiquismo a uma pedra. Porém, acredito que a grande pedra no caminho dos psicanalistas refere-se à relação entre a pulsão de morte, com seus desdobramentos, e a tópica inaugurada nesse texto. Pedra de um lado, terra fértil de outro. A preponderância desses elementos está na direta dependência da mão cuidadosa que os guia: trabalho de elaboração/criação entre assimilação e desassimilação do sonhado, situado na realização do desejo recalcado.

Com a expectativa de ser um guia atento e cuidadoso, vejamos por quais caminhos podemos repensar os destinos da metapsicologia de 1915, com o advento do postulado revolucionário da pulsão de morte.

O período que vai do final da década de 1910 ao início da década de 1920 será marcado pela efervescência no pensar de Freud. Temos uma amostra desse momento na produção praticamente simultânea de dois trabalhos: "O estranho" (1919/1969e) e Além do princípio do prazer (1920/2006a). Podemos considerá-los dois tempos de um mesmo projeto: trazer à luz o postulado da pulsão de morte. Em 1919, Freud dispõe-se a construir uma proposta estética para a psicanálise, centrada na ideia do horror, que seria marcado por uma peculiar qualidade do sentir. Esse horror decorreria do encontro com algo que é da ordem do conhecido e, ao mesmo tempo, do desconhecido. Mesmo propondo que a sensação de estranhamento resulta de uma forma singular de retorno do recalcado, deixa aberta a possibilidade de que se possa especular o estranho como procedente de uma força pulsional não ligada. Por esse caminho, pode-se divagar e construir pontes entre o estranhamento - esse sentir que não é um sentimento - e as formas de apresentação do irrepresentável da pulsão de morte. O duplo, com seus aspectos construtivos e destrutivos, é ressignificado. O narcisismo ressurge, volta à cena, prefigurando as complexidades que advirão com o acontecer da pulsão de destruição. Postulará também o caráter repetitivo da pulsão. Diante dessa hipótese, podemos fazer trabalhar a nossa "feiticeira" e, assim, especular sobre a força da pulsão que insiste e persiste sem estar atravessada pelo desejo: a precariedade da solidariedade-excitatória-sexual.

Com o advento do conceito de pulsão de morte (1920), a vida psíquica passa a ser concebida na dualidade "pulsão de morte" versus "pulsão de vida". Destrutividade e libido passam a ser faces de uma mesma moeda. Mais do que nunca, o deus Jano ganha significação, sobretudo pelo vértice das portas que se abrem para a metapsicologia freudiana com o advir da pulsão de morte. Esse é o momento em que Freud reinventa a si mesmo, fazendo da libido o agente primordial para enlaçar o pulsar dessa pulsão originária e, com isso, viabilizar o acontecer da vida psíquica. Com a pulsão de morte, retorna ao cenário psíquico o não sexual e, portanto, o não representável. Entra em cena um alargamento da compreensão da compulsão à repetição: esta também passa a ser ligada à repetição do que nunca foi prazeroso para o sujeito. Essa compulsão vem juntar-se à proposição de 1914: "Recordar, repetir e elaborar" (1969q), compulsão ligada a um excesso de investimento libidinal.

A vigência dessa nova dualidade pulsional, mais a questão do Eu, com sua instância crítica (1917[1915]/2006c), pressiona a tópica de 1900 - centrada na ideia do inconsciente recalcado com sua dinâmica representacional - para expandir seus limites. Diante desse contexto, Freud avançará e proporá uma nova tópica em 1923: Id - Eu - Supereu. Esse modelo, em 1933, sofrerá uma sutil, porém importante, modificação: terá uma abertura em sua base que permitirá uma comunicação direta com o corpo pulsional. Portanto, a pulsão avança e dilata sua influência de ação direta, transitando entre o somático e o psíquico, e passa a adentrar e circular com mais liberdade pela psique. Cria dados significativos tanto na patologia, a intensidade do traumático, quanto na "normalidade", maiores recursos para desconstruções e construções de novos sentidos.

Penso ser pertinente assinalar que, nesse texto de 1923, é enunciada a seguinte frase: "Assim, ao nos encontrarmos agora diante da necessidade de admitir um terceiro Ics. não recalcado..." (Freud, 1923/2007b p. 32). Inconsciente não recalcado que passará, juntamente com o inconsciente recalcado, a ser o determinante dos destinos do sujeito do inconsciente. Reencontramo-nos aqui com o enunciado em 1915, o recalcado é apenas uma parte do inconsciente. O Eu passa a ser portador de uma topografia, tão inconsciente como o recalcado, adquirindo o seu real grau de complexidade. O estabelecimento de um Eu - com seu correlato, o Supereu - cumpre a função de validar um lugar que albergue a instância crítica e os ideais, aos quais o Eu deve corresponder: tens que ser como eu e, ao mesmo tempo, tens que não ter como eu (Freud, 1923/2007b). Esse velho/novo contexto, no qual se encontra configurado o Eu, permite a Freud em 1927, em "Fetichismo" (2007c), e em 1938, em "A cisão do Eu nos processos de defesa" (2007a), ocupar-se de outras formas de negativar a força da pulsão, além do recalque (Verdrangung). Por exemplo, a renegação (Verleugnung), também presente na neurose. Contexto que nos incita a retomar a ideia das três correntes psíquicas propostas no Homem dos Lobos (1918[1914]/1969f), diante do confronto com a castração: a que reconhece sua existência e abdica de seu desejo (Verdrangung); a que reconhece, mas cria duas verdades paralelas - uma que confirma a existência da castração, outra que a nega (Verleugnung); e uma terceira que nem leva em conta a realidade da castração (Verwerfung).

Cumpre destacar que essa nova dualidade vai ganhando consistência metapsicológica no decorrer dessa década - 1920-1930 - nos trabalhos: "O problema econômico do masoquismo" (1924/2007d), "A negativa" (1925/1969l) e O mal-estar na civilização (1930/1969j).

No trabalho de 1924, encontramos explicitada por Freud a concepção do masoquismo primário erógeno fundando a psique, marcando destinos. Deixa aberta a possibilidade para especularmos sobre o masoquismo primário não erógeno e suas repercussões estruturais e psicopatológicas. Refletir sobre essa anterioridade do não erógeno nos fornece recursos para teorizar sobre o não representável, presente nas patologias atuais, nas patologias do vazio, na clínica do negativo, como também no arcaico na neurose. Esse artigo traz para o primeiro plano a passividade originária. Diante desse cenário, temos posto que o sadismo passe a ser um segundo momento desse tempo das origens, fazendo valer a tese: toda a gratificação é masoquista, quer seja no sujeito, quer no objeto - preponderância da tessitura identificatória. O texto de 1921, Psicologia das massas e análise do Eu (1969o), é um complemento indispensável para assimilar essa composição, juntamente com a proposição da preponderância do objeto, revitalização dos textos de 1914 (2004a) e 1917[1915] (2006c). Nesse sentido, no capítulo 8 desse texto de 1921, Freud fala do fascínio, da devoção e do sacrifício aos quais o Eu se vê submetido por amor ao objeto idealizado.

Entre as inúmeras possibilidades de abordar o trabalho de 1925, "A negativa", proponho-me a seguir um roteiro que viabilize legitimar a positividade da negatividade que o conceito de pulsão de morte requer para ser apreendido em sua amplitude, enquanto eterno enigma em busca de deciframento. Cabe destacar que algumas dessas ideias já estão postas no texto de 1923, como: "a pulsão de destruição é colocada regularmente a serviço de Eros" (2007b, p. 50); ou ainda: "ele ajuda as pulsões de morte a controlarem a libido no Id" (p. 63). No entanto, a relevância do trabalho da positividade da pulsão de destruição adquire maior envergadura com o texto de 1925. Freud, com sua negativa, deixa várias postulações pedindo por mais esclarecimento. Permite-nos, por exemplo, ficcionar sobre a relação da seguinte série complementar: pulsão de destruição - expulsão - negativa - recalque. De forma sucinta, podemos fazer uma integração da pulsão de destruição com o recalque, destino da pulsão sexual, no sentido de que Eros possa tomar para si a força disjuntiva da pulsão de destruição e utilizá-la para manter a cisão que o recalque perpetra. Portanto, a negação do recalque, abastecido pela força da pulsão primordial, torna factível que esse negado (recalcado) se mantenha exilado e, ao mesmo tempo, trabalhando para obter satisfação. Forças que agem para viabilizar o desenvolvimento da psique.

No trabalho de 1930, encontramos o momento de maturidade do conceito de pulsão de morte: adquire o status de elemento fundante do pensamento metapsicológico; Freud faz a interação entre o individual e o social e afirma a autonomia dessa pulsão - pulsão primordial, concebida também como destrutividade. Destrutividade que ganha pertinência na medida em que vai sendo investida por Eros. As interrogantes suscitadas pelo narcisismo adquirem nova dimensão em direta proporção ao entrelaçamento deste com a força destrutiva da pulsão de morte. Sendo assim, o narcisismo primário e o masoquismo primário ganham a possibilidade de serem equacionados como elementos que configuram as bases estruturais da psique. Quinto destino das pulsões?

Ao direcionar meu olhar para a última década da produção freudiana e para a conclusão deste texto, sinto-me compelido a sinalizar os artigos que julgo fazerem parte dos desdobramentos metapsicológicos finais do pensamento de Freud - desdobramentos que visam instrumentalizar as vicissitudes de sua metapsicologia, na interação da dualidade pulsional inaugurada em 1920, com os desafios que a clínica impõe na vida cotidiana dos analistas do século XXI.

Com o advento da "destrutividade não erótica" (Freud, 1930/1969j, p. 142), dois trabalhos são emblemáticos da interação clínica/metapsicologia, ambos de 1937: "Construções em análise" (1969b) e "Análise terminável e interminável" (1969a).

No início de 1937, Freud vai debruçar-se na escrita do texto "Análise terminável e interminável". Neste, encontramos suas preocupações com os limites do processo analítico. Porém, compreendemos que coloca o acento principal não na patologia do paciente, mas na do analista. Com isso, retoma e amplia suas recomendações aos que exercem a psicanálise, no sentido de colocar em primeiro plano, também, a pessoa do analista. Na última seção desse artigo, reencontramos o tema da cisão - esta como fator metapsicológico que determina o interminável de toda análise. Devemos atentar para o fato de o interminável estar assentado no princípio de um aparato psíquico que segue produzindo derivativos. Freud, então, cunha a expressão repúdio da feminilidade (p. 285), significando "o quanto do psiquismo não sucumbe à castração". Esse desejo de completude seguiria vigente no fundo do psiquismo ou, ainda, no leito de rocha. Como trabalhá-lo? Esse é o desafio que está posto para a psicanálise contemporânea.

Entendemos que Freud, ao trazer para o palco analítico a individualidade do analista, fornece um guia fundamental para nos atrevermos a avançar pelos labirintos da cura, com a meta de trabalhar o não trabalhável do arcaico. Na direção tomada, parece-nos muito pertinente e instrutivo que tenha escrito o artigo "Construções em análise" nesse mesmo período, de forma contígua a "Análise terminável e interminável". Nele teremos como foco o material psíquico não passível de ser recordado, ligado às experiências primitivas do sujeito. Construir, desafio de alta complexidade para o analista, implica maior capacidade de discriminar o material oriundo dos inconscientes (analisando - analista). Em nossos dias, essa questão está intimamente atrelada ao conteúdo psíquico não representável, ao postulado de um inconsciente não recalcado. A construção freudiana clássica seria, em sua essência, uma reconstrução, pois está assentada sobre a teoria representacional. No sentido da questão, poderíamos advogar uma construção mais além da freudiana, sobretudo quando nos deparamos com traumas precoces que carecem de significação - portanto, excluídos da dinâmica do a posteriori (Nachtraglichkeit).

Encerrando minhas especulações, penso na pertinência de (re)visitarmos o vasto legado freudiano com o intuito de estabelecer uma interlocução com sua metapsicologia (1895-1939), que está sempre em constante trabalho de transformação. Ao me propor fazer essa breve contextualização, tinha em mente caracterizar esse processo, que entendo ser a marca distintiva que torna Freud um pensador que traz consigo a insígnia da atemporalidade. Sendo assim, segue vigente o seu convite para fantasiar metapsicologicamente (Freud, 1937/1969a) sobre as profundezas do Acheronta.

 

Nota

1 Assinalo que, em 1926, Freud vai escrever o que podemos chamar Livro da angústia, em que caracteriza as suas fontes fundamentais: angústia pela separação do corpo da mãe, pelo desmame, pela perda das fezes e, por último, a angústia das diferenças anatômicas entre os sexos.

 

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Correspondência:
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Recebido em 16.11.2015
Aceito em 30.11.2015

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