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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo Out./Dec. 2015

 

TRABALHOS PREMIADOS

 

Contribuições para uma teoria sobre a constituição do supereu cruel1

 

Contributions to a theory about the constitution of the cruel superego

 

Contribuciones para una teoría sobre el superyó cruel

 

 

Marion Minerbo

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora esboça uma teoria sobre a constituição do supereu cruel na qual o inconsciente do objeto primário tem um papel preponderante. Em função da angústia ligada a seu núcleo paranoico, o objeto defende seu narcisismo atacando, inconscientemente, o narcisismo do infans com elementos-beta que podem ser caracterizados como tanáticos. O psiquismo em formação se defende desse ataque por meio de duas defesas primárias, a clivagem e a identificação com o agressor, que originam o núcleo psicótico a que chamamos supereu cruel. Dois fragmentos clínicos são usados para tentar reconhecer quais são e como agem os elementos-beta tanáticos. O primeiro permite identificar uma forma de abuso psíquico na qual o objeto obriga a criança a "pagar a conta" do trabalho psíquico que não consegue realizar. O segundo revela a relação entre as características do supereu cruel (ódio ao eu, controle tirânico, falta de empatia) e a intolerância do aspecto paranoico do objeto às manifestações da subjetividade do infans.

Palavras-chave: supereu cruel; elementos-beta; clivagem; identificação com o agressor; núcleo paranoico.


ABSTRACT

The author outlines a theory of the constitution of the cruel superego. The unconscious of the primary object has a leading role in this constitution. Because of the angst related to his own paranoid nucleus (paranoid core), the object defends his narcissism by unconsciously attacking the narcissism of the infans with beta elements that can be characterized as thanatic. The developing psyche defends itself from this attack by using two primary defenses: the cleavage and the identification with the aggressor. These defenses create the psychic core (psychic nucleus) we call cruel superego. The author presents two clinical vignettes in order to attempt to identify these beta elements, and to understand how they act. The first vignette allows us to recognize a form of psychic abuse in which the object forces the child to "pay the bill" for the psychic work that he or she cannot perform. The second vignette reveals the relationships between some features of the superego (hatred of ego, tyrannical control, lack of empathy) and the intolerance of the paranoid aspect of the object to the manifestations of the infans subjectivity.

Keywords: cruel superego; beta elements; cleavage; identification with the aggressor; paranoid core (paranoid nucleus).


RESUMEN

La autora esboza una teoría sobre la constitución del superyó cruel en la que el inconsciente del objeto primario tiene un papel preponderante. En virtud de la angustia relacionada con su propio núcleo paranoico, el objeto defiende su narcisismo atacando inconscientemente el narcisismo del infans con elementos beta que se pueden caracterizar como tanáticos. La psique en formación se defiende con dos defensas primarias, escisión e identificación con el agresor, que originan el núcleo psicótico que llamamos superyó cruel. Se utilizan dos fragmentos clínicos para tratar de reconocer cuáles son y cómo actúan los elementos beta tanáticos. El primero nos permite reconocer una forma de abuso en el que el objeto requiere que el niño "pague la factura" del trabajo psíquico que no puede realizar. El segundo revela la relación entre las características del superyó (odio al yo, control tiránico, crueldad, falta de empatía) y la intolerancia de los aspectos paranoicos del objeto a las manifestaciones de la subjetividad del infans.

Palabras clave: superyó cruel; elementos beta; escisión; identificación con el agresor; núcleo paranoico.


 

 

Introdução e hipótese

Todo psicanalista sabe como é difícil trabalhar com o sofrimento ligado aos ataques do supereu cruel contra o eu. Tentar atenuar a ferocidade do primeiro é tão inútil quanto limitar-se a empatizar com o sofrimento do segundo. Impotente e ameaçado em seu narcisismo, o analista pode atuar sua contratransferência negativa, levando o processo a um impasse. O caminho para a análise e a desconstrução do supereu cruel passa, necessariamente, por uma teoria sobre como ele se constitui. Meu objetivo é contribuir para essa teoria com algumas hipóteses, a fim de, no final do texto, sugerir possíveis caminhos para o trabalho clínico com esses pacientes.

Essa instância ataca e desorganiza o eu em três figuras da psicopatologia psicanalítica: (1) no funcionamento melancólico, o embate entre supereu e eu se dá principalmente no plano intrapsíquico ("sou um fracasso, um ser desprezível, indigno de amor"); (2) no funcionamento paranoico, o sujeito se identifica ao supereu e coloca o outro no lugar do eu, tratando-o com a mesma crueldade com que o supereu trata o eu na melancolia ("você é mau, um ser desprezível, não merece o meu amor"); (3) no funcionamento masoquista, o sujeito "convoca" o outro por identificação projetiva a se identificar com o supereu cruel e a massacrá-lo ("sou culpado, sou mau e desprezível, mereço ser punido").

Frente aos desafios colocados pela análise desses pacientes, não encontrava na literatura respostas para as seguintes questões: por que o supereu tem tanto ódio do eu? Por que é controlador e tirânico? O que ele não tolera no eu? Qual é o gatilho que desencadeia o ataque feroz do supereu ao eu? O que ele exige do eu? Por que não é capaz de empatizar com suas limitações e deficiências?

Não pretendo fazer uma revisão da bibliografia sobre o supereu, mas apenas contextualizar minhas hipóteses. Encontramos em Freud duas acepções distintas sobre a origem do supereu. Por um lado, é apresentado como instância gestora e legisladora do desejo e do prazer, herdeiro do Édipo (1923/1975c), que se manifesta na clínica como culpa neurótica. Mas o supereu aparece também, na melancolia, como resultado da identificação do eu com a sombra do objeto (1917/1975d). É uma instância que planta suas raízes no Isso e extrai sua força das pulsões de morte (1923/1975c). Esse supereu - Freud o denomina severo e cruel - tem características psicóticas: ele não critica algo que o sujeito fez, como o herdeiro do Édipo, mas ataca, desqualifica e destrói aquilo que ele é. Mas o que significa "a sombra do objeto"? O que, do objeto, cai sobre o eu, levando às identificações que constituem o supereu cruel? É o que tentarei desenvolver ao longo do texto.

Klein (1932/1975) foi a pioneira no estudo da constituição do supereu cruel. Para ela, essa instância está diretamente ligada à presença e atuação, desde o início da vida, de uma pulsão de morte inata. A projeção defensiva do sadismo e da destrutividade leva à constituição do objeto mau, que será internalizado, originando o núcleo desse supereu. Essa teoria toma em consideração o corpo pulsional do sujeito, mas não o inconsciente do objeto, justamente o elemento que estará no centro do meu argumento.

Ferenczi não se ocupou diretamente do supereu cruel, mas em seu texto "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte" (1929/2011b) ele coloca o inconsciente do objeto no centro da constituição do psiquismo e da própria pulsão de morte. Nessa mesma linha, em sua tese de doutorado orientada por Jean Laplanche, Marta Resende Cardoso encaminha a hipótese de ser essa instância um enclave psicótico constituído por aspectos inconscientes, e portanto não metabolizáveis, da alteridade do objeto. Remeto o leitor ao seu excelente livro Superego (2002). Mas quais seriam esses aspectos inconscientes do objeto?

Dando continuidade a essa hipótese, gostaria de acrescentar que os aspectos não metabolizáveis do objeto dizem respeito ao seu núcleo paranoico. O supereu cruel é um núcleo psicótico específico que se organiza no infans em resposta aos momentos de funcionamento paranoico do objeto primário. Nesses momentos, o objeto projeta no infans seus próprios objetos internos maus. Essa hipótese constitui, por assim dizer, a outra face da moeda da idealização do bebê apontada por Freud em "Introdução ao narcisismo" (1914/1975e). Nesse texto, o fundador da psicanálise afirma que os sentimentos ternos e a idealização que os pais fazem de seu bebê resultam da projeção de seus próprios aspectos infantis idealizados. Os pais transferem para o bebê os aspectos imorredouros ligados ao próprio narcisismo. Visto como perfeito, o bebê é amado pelos pais. A outra face da moeda seria a transferência, ou a projeção, para dentro do bebê, dos aspectos denegridos e persecutórios dos pais - na linguagem de Melanie Klein, projeção de seus objetos internos maus. Visto como "mau" pelo aspecto paranoico da figura parental, o bebê será odiado e atacado. Não por sadismo, que implica no gozo ligado ao sofrimento do outro, mas porque nesse momento ele representa uma ameaça ao narcisismo dos pais. Naturalmente, essas duas correntes afetivas coexistem, ou melhor, se alternam, no vínculo primário.

Uma situação banal do cotidiano de todos nós ajuda a esclarecer essas ideias. Uma criança passa correndo pela sala e derruba um vaso, que se quebra. A mãe avança para cima dela, berrando: "VOCÊ QUER ME DEIXAR LOUCA!!!" É um micromomento de funcionamento paranoico. Por quê? Porque durante alguns segundos - apenas na vigência da identificação projetiva - as fronteiras sujeito-objeto se desfazem, e a mãe confunde seu filho com seu próprio objeto interno mau. Por alguns segundos, ela o vê como um inimigo que quer destruí-la e o odeia por isso. Essa cena é muito diferente daquela em que a mãe diz: "Tenho vontade de esganar essa criança!" Aqui, em vez de atuar, ela é capaz de representar o seu ódio, que por isso mesmo já não é ódio, e sim "mera raiva".

É importante notar que não há, na cena do vaso, um terceiro que intervenha com firmeza dizendo tanto para a mãe quanto para a criança algo como: "Calma, ela não quer te deixar louca, apenas foi desastrada". Ele está ausente ou por omissão, ou por medo, caso em que abandona a criança à própria sorte. Ela se vê confundida com algo, ou alguém, que não é ela, e ao mesmo tempo se vê objeto de uma carga de ódio em estado bruto, um ódio não simbolizado. Nesse sentido, trata-se de um microvoto inconsciente de morte. No segundo seguinte, a mãe se recompõe e volta a ser a mãe amorosa de sempre. Nem se lembra da violência com que atacou a criança em seu microssurto psicótico. Mas a criança registrou com terror que a mãe, de quem depende de forma absoluta, avançou para cima dela com ímpetos assassinos. Cenas como essa podem ser muito esporádicas. Mas há casos em que se repetem o tempo todo, deixando marcas profundas. Quanto mais extenso o núcleo paranoico do adulto, mais cruel será o supereu que se constitui no psiquismo em formação.

As hipóteses acima delineadas começaram a ser gestadas num trabalho anterior (Minerbo, 2010). Na ocasião, sustentei que, na ausência de função alfa, o objeto primário responde às demandas da criança com elementos-beta - tóxicos e não metabolizáveis pelo psiquismo em formação. Denominei-os elementos-beta tanáticos (eβ-T)2 porque, para defender seu próprio narcisismo, o psiquismo parental ataca inconscientemente o narcisismo da criança com identificações projetivas. Esta experiência é vivida como agonia e terror sem nome. Duas defesas primárias interligadas procuram garantir a sobrevivência do eu: a clivagem (Freud, 1938/1975f; Roussillon, 1999) e a incorporação da sombra do objeto (Roussillon, 2002, 2012). Segundo minha hipótese, a clivagem dos afetos em estado bruto e as identificações narcísicas com os aspectos tanáticos do objeto estão na origem do núcleo psicótico denominado supereu cruel.

Dando continuidade a essas ideias, o objetivo deste texto é reconhecer, a partir de dois fragmentos clínicos, quais são e como agem esses eβ-T. O primeiro mostrará como a figura parental abusa de seu poder sobre a criança, obrigando-a a "pagar a conta" do trabalho psíquico que não consegue realizar. O segundo revelará que as características do supereu (ódio ao eu, controle tirânico, crueldade) decorrem da incorporação de eβ-T que se originam no aspecto paranoico do objeto primário. Este objeto ataca sistematicamente o eu do infans porque não consegue empatizar com suas necessidades e desejos nem tolera as manifestações de sua subjetividade.

 

O abuso de poder no vínculo primário

Marcia e sua família estavam em férias num resort. O filho de 10 anos entra suado no quarto, toma um banho rápido e sai correndo para continuar brincando. Nisso, deixa a toalha molhada jogada no chão. Fervendo de ódio, ela cata a toalha e a pendura no banheiro. Horas depois ainda estava profundamente irritada. Dirige-se a mim num desabafo indignado: "Custava ele catar sua toalha do chão?"

Por que Marcia fica com tanto ódio do filho? Não pode ser só porque ele não pendurou a toalha. Outra mãe poderia ver a mesma cena como um descuido, ou como pressa de ir brincar, e não sentiria ódio. Mas Marcia "vê" ali alguma coisa que toca em um nervo exposto e a retraumatiza. Tanto é que ela pula de ódio. O caráter alucinatório da experiência indica a atualização transferenciai de um núcleo psicótico.

O que será que ela "vê"? Pergunto a ela por que ficou com tanto ódio. Responde que ele pensa que o tempo dele vale mais do que o dela e espera que ela fique à sua disposição 24 horas. Além disso, como sabe que a mãe vai acabar pendurando a toalha, empurra para ela a tarefa que caberia a ele. É um abusado.

Todas essas leituras são autorreferidas e "contra ela": o filho pode viver (ir brincar), mas ela não (tem de ficar à disposição 24 horas) - o que revela a atividade de um núcleo paranoico.

Mas quem é o filho que, nesse momento, ela odeia? Certamente não é mais o filho querido, mas um abusador que tenta submetê-la tiranicamente, exigindo que fique à sua disposição 24 horas. Ele representa um aspecto abusador do objeto primário. É esse objeto que ela odeia. É com ele que Marcia confunde seu filho neste momento.

De que abuso se trata? Ela afirma que o filho é um abusado porque o trabalho de pendurar a própria toalha caberia a ele, mas sobra para ela. Na escuta analítica, a toalha molhada representa o trabalho psíquico que caberia ao objeto - trabalho que, por algum motivo, ele não faz e sobra para ela. No exemplo da criança que quebra o vaso, o trabalho psíquico que cabe ao adulto é, primeiro, ser capaz de conter sua própria angústia e, segundo, assumir sua parte de responsabilidade no desastre - afinal, quem deixou o vaso em lugar impróprio foi ele. Mas, como isso ameaça seu narcisismo, defende-se pondo a culpa na criança. É como se dissesse: "Não sou eu que não consigo fazer o trabalho psíquico que me cabe, é você que é mau, que quer me destruir, e eu te odeio por isso".

Como afirma Ferenczi em seu artigo "Confusão de língua entre os adultos e a criança" (1933[1932]/2011a), o elemento traumático no abuso (sexual) é o desmentido do adulto. O adulto não assume que abusou da criança. Em vez disso, acusa-a de estar mentindo ou até de tê-lo seduzido. "Não fui eu que... é você que..." O que faltaria acrescentar é que o desmentido nem sempre é resultado de má-fé, caso em que estaríamos diante de um núcleo perverso. Na situação que estamos examinando, o desmentido está ligado às limitações psíquicas do adulto em função de seu núcleo paranoico. Ele de fato não tem como pagar a conta e por isso a empurra para a criança. Do ponto de vista do adulto, a identificação projetiva é necessária e defensiva. Mas, do lado da criança, ela é vivida como abuso psíquico.

Como o adulto "passa a conta" para a criança? Por meio de identificações projetivas ou de evacuações de elementos-beta. Em função da assimetria da relação, a criança não tem como recusar: vai ter que se virar para pagá-la. Trata-se, por assim dizer, de um abuso de poder: o adulto faz um uso não consentido do psiquismo infantil, que ela não tem como impedir.

Afirmei acima que, se Marcia pula de ódio ao ver a toalha no chão, é porque se retraumatiza. Gato escaldado tem medo de água fria. Se o gato tem medo de água fria, é porque foi escaldado. Já viveu o terror de quase morrer e não está disposto a viver isso novamente. Se Marcia interpreta a toalha no chão como abuso, é porque ela já viveu algo análogo no vínculo primário. Esse "algo análogo" nunca foi digerido nem integrado.

Qual seria a experiência indigesta? Na linha proposta por Freud em "Construções em análise" (1937/1975b), o analista precisa ser capaz de imaginar, de criar a partir de sua própria mente - em linguagem contemporânea, ele precisa sonhar - o núcleo de verdade histórica contido no pesadelo que se repete. Do meu ponto de vista, a experiência indigesta é a identificação projetiva do adulto. No exemplo do vaso, a criança se vê confundida com um objeto mau, destinatária de um ódio que não lhe diz respeito, sem um terceiro que possa intervir para salvá-la.

A experiência completa de abuso inclui não apenas o ódio do adulto, mas o terror da criança (angústia de aniquilamento), que está "nas mãos" do adulto, e o ódio pela injustiça de se ver alvo de moções pulsionais tanáticas que ela "não merece". Ainda não foi dito que o abusador pode ser o aspecto paranoico do pai, da mãe ou de ambos. Seja como for, essa experiência não tem como ser metabolizada. Até porque o adulto, que normalmente é quem ajuda a criança a dar sentido a suas experiências, não percebe nem a própria violência nem o terror que ele produz na criança. A experiência não integrada volta e volta, tal como o sonho de angústia (Freud, 1920/1975a): o pesadelo que se repete re-apresenta, na forma de percepções alucinatórias,3 o traumatismo precoce não simbolizado.

A criança não tem alternativa a não ser pagar a conta. Como? Sacrificando seu narcisismo em favor do narcisismo do adulto. Isso é feito por meio de duas defesas primárias: a clivagem dos afetos envolvidos na experiência e a identificação com o agressor. São elas que irão constituir o núcleo psicótico a que chamamos supereu cruel (Roussillon, 2002, 2012). Veremos adiante como isso se dá.

Agora podemos entender a pergunta que Marcia me dirige: "Custava ele catar sua toalha do chão?" Em termos metapsicológicos: "Custava meu objeto primário fazer o trabalho psíquico que lhe cabe, sem empurrar (evacuar) esse trabalho para mim? Custava ele dar um destino mais apropriado a seus dejetos psíquicos - sua toalha molhada? Custava ele não me usar como continente para suas identificações projetivas?"

Ela recorre a mim como a um terceiro capaz de dar um testemunho sobre o trauma. Como veremos na última parte do texto, uma das funções do analista é instalar a função do terceiro, sistematicamente ausente da cena traumática. De fato, o objeto primário deveria ser capaz de realizar o trabalho psíquico que lhe cabe. O que ela ainda não sabe - e de alguma forma isso teria que ser descoberto em análise - é que, se o adulto não faz sua parte de trabalho psíquico, não é propriamente por abuso, mas por suas limitações.

 

Falta de empatia e intolerância à alteridade no vínculo primário

O segundo fragmento vai nos ajudar a reconhecer outro tipo de microvotos inconscientes de morte que estão na origem do supereu cruel. Eles têm a ver com a falta de empatia e com a intolerância do aspecto paranoico do adulto em relação às manifestações da subjetividade da criança.

Marcia vai comemorar o aniversário do filho com um lanche para a família. Está angustiada, pois teme o olhar crítico da sogra. O marido se oferece para ajudá-la depois do almoço, já que de manhã vai jogar tênis. Marcia ferve de ódio. Pergunto-lhe o que esperava.

Esperava que ele acordasse às 7h da manhã e passasse o dia ao meu lado, ajudando em tudo o que eu precisasse. Mas ele não está nem aí comigo, vai jogar aquela merda daquele tênis ridículo. Custava ele abrir mão do tênis por mim?

Aqui Marcia ocupa uma posição identificatória inversa à do fragmento 1, mostrando que as posições ocupadas pelo eu e pelo supe-reu são complementares e intercambiáveis.

Mas quem é o marido nesta cena? Na minha escuta, ele representa a criança-abusada-nela. Embora o trabalho psíquico ligado à festa caiba a ela, tenta empurrar a conta para ele, exigindo que abra mão do tênis e fique às suas ordens o dia todo. Exatamente como o filho, que segundo ela exigia que ela ficasse à disposição 24 horas por dia. Reencontramos aqui a fórmula do abuso: "Não sou eu que não dou conta do lanche, é você que não está nem aí comigo".

Enquanto Marcia me relata essa cena, minha contratransferência acusa o massacre à subjetividade do marido (que representa a criança-abusada-nela). Em identificação com ele, consigo imaginar seu sofrimento e sua perplexidade frente: (1) à exigência tirânica (passar o dia todo às ordens dela), (2) à desqualificação (a merda do tênis) e (3) ao desprezo (tênis ridículo) por seu desejo. Se insiste em ter existência própria (jogando tênis), é considerado um fraco (precisa do tênis ridículo) e um traidor (não está nem aí comigo). Ele é desprezado e odiado por isso.

Ao mesmo tempo, percebo que ela não se dá conta, de modo algum, do abuso, da tirania e do massacre à subjetividade do marido. E faz todo sentido: esse comportamento não está subjetivado (Roussillon, 2002). Não é ela (enquanto um eu-sujeito), mas sim o supereu-nela, que tenta aniquilar a subjetividade do marido (que representa, na minha escuta, a criança-nela). Por isso, se eu tentasse lhe mostrar que faz com o marido a mesma coisa que, segundo ela, o filho fez com ela, seria incapaz de reconhecer isso. Minha fala seria vivida como uma crítica injusta, e eu me transformaria imediatamente no supereu cruel, retraumatizando-a e colocando a análise em risco. Como veremos na última parte, o segundo front no trabalho com o supereu cruel é criar as condições para que a alteridade possa ser tolerada, em vez de sistematicamente atacada.

Por que ela tenta aniquilar a subjetividade do marido? Porque tem uma intolerância às suas manifestações. Uso o termo intolerância no mesmo sentido de intolerância à lactose. Quando a pessoa não tem a enzima para digerir leite, apresenta uma série de sintomas desagradáveis. Naturalmente, vai evitar esse alimento para não sofrer. A mesma coisa pode ser dita da intolerância de Marcia (identificada ao supereu cruel) às manifestações da subjetividade do marido (que representa a criança-nela). Quando ele diz que vai jogar tênis, ela tem uma espécie de reação alérgica porque não tem a "enzima psíquica" para metabolizar a alteridade.

Entende-se, então, que Marcia tenha que atacar, desqualificar, desprezar e tentar controlar tiranicamente as manifestações da subjetividade do marido (microvotos de morte). São tentativas de evitar aquilo que ela não tem condições de digerir e que, por isso mesmo, a retraumatiza. A pergunta "Custava ele abrir mão do tênis por mim?" indica que ela acredita que seria perfeitamente possível ele abrir mão de sua subjetividade para cuidar da angústia dela na preparação do lanche. Se não o faz, é porque é um fraco e "não está nem aí comigo".

O supereu é cruel porque, para dispensar o seu amor ao eu, faz uma exigência impossível de ser cumprida: que o eu renuncie a ser e a existir. É como se o supereu dissesse ao eu: "Não sou eu que não consigo tolerar sua subjetividade, é você que se recusa a renunciar a ela, o que prova que você não me ama; você é mau e eu te odeio por isso". A acusação é, obviamente, injusta. Reconhecemos aí um sintoma muito comum entre os paranoicos: a extrema sensibilidade a situações injustas e a luta feroz para fazer valer os seus direitos (ou de outros, com quem se identifica). Trata-se, nem mais nem menos, do direito de existir. Metapsicologicamente, são os traços mnésicos perceptivos da experiência real de injustiça que se re-apresentam de maneira alucinatória (cf. nota 3).

Apesar disso, é fundamental reconhecer que, se o supereu faz essa exigência, é porque não tem empatia para com as necessidades e desejos do eu, vistos como fraquezas inadmissíveis, intoleráveis e desprezíveis. Como exemplo da falta de empatia, cito outra paciente, que ouvia de seu avô: "Se pedir, não ganha, e se chorar, apanha". Em submissão a essa injunção, o eu se dilacera tentando não ter necessidades e desejos para, enfim, merecer o amor do supereu. Eis a origem da exigência de perfeição, sempre presente nesses pacientes. É interessante notar que o supereu funciona como se ele mesmo fosse perfeito. Entende-se, pois o aspecto paranoico da figura parental que lhe deu origem projetou suas imperfeições "desprezíveis" na criança, se livrou delas, e se tornou, por assim dizer, "perfeito".

Por que o supereu não tem empatia pelas necessidades do eu? A empatia, que é a capacidade de se identificar com os estados emocionais do outro, é construída no vínculo primário (Roussillon, 2010/2014) contanto que o bebê encontre as condições necessárias para isso.

E quais são essas condições? Roussillon (2008) resume com o conceito de homossexualidade primária em duplo as condições que o bebê precisa encontrar no vínculo primário para que a alteridade possa ser tolerada, e até, quem sabe, vir a ser fonte de prazer.

Homo significa igual e se opõe a hetero, que significa diferente. O bebê precisa descobrir seu objeto como um igual a ele. Como uma massinha de modelar viva, a mãe apaga, tanto quanto possível, sua subjetividade e se adapta às necessidades dele. Ela aceita não introduzir as diferenças antes da hora. Caso contrário, a alteridade será vivida como traumática, produzirá alergia e será recusada.

■ O termo sexualidade indica que a mãe e o bebê precisam sentir prazer um com o outro. Ao lado do prazer de encher a barriga e de sugar, que são só do bebê, é fundamental que ambos, graças às suas respectivas competências, consigam estabelecer uma comunicação primitiva, corporal e emocional, bem-sucedida. Quando isso acontece, a satisfação experimentada cria condições libidinais para que as inevitáveis frustrações ligadas à alteridade do objeto possam ser toleradas e metabolizadas.

■ Com a expressão em duplo, Roussillon se refere à função reflexiva da mãe. Como um espelho vivo, ela se disponibiliza para traduzir o bebê para ele mesmo. Aqui entra a empatia da mãe: ela precisa ser capaz de se identificar com os estados emocionais dele para fazer uma tradução mais ou menos compatível com o que ele está sentindo. Caso contrário, irá refletir uma imagem em que o bebê não se reconhece. Ele não poderá empatizar consigo mesmo nem com o outro.

Tudo isso nos auxilia a entender a exigência, aparentemente absurda, de que o marido passasse o dia à disposição, ajudando em tudo o que ela precisasse. Para a escuta analítica, é um apelo desesperado para que ele funcione como duplo, limitando-se a se adaptar, a ecoar e a compartilhar com prazer os movimentos de Marcia na preparação do lanche. A persistência dessa demanda tão primitiva mostra que seu objeto fracassou em criar, no vínculo primário, as condições que acabamos de ver. Essa compreensão orienta o trabalho do analista, que precisará "se fazer de duplo", evitando intervenções em que sua subjetividade apareça demais: intepretações simbólicas ou diretamente transferenciais. Ou elas não farão sentido algum, ou retraumatizarão o paciente.

 

O núcleo paranoico do objeto primário e a constituição do supereu cruel

Por que, afinal, o objeto primário não é capaz de criar as condições sintetizadas na expressão homossexualidade primária em duplo? Por que a mãe não consegue ser empática, por que se enrijece, por que não consegue atenuar sua subjetividade nem refletir ao infans apenas coisas que digam respeito a ele?

Do meu ponto de vista, o fracasso se deve à atividade do núcleo paranoico do objeto. Quanto mais extenso, mais a mãe faz identificações projetivas com o bebê e menos ela consegue se identificar empaticamente com ele. Em vez de interpretar corretamente suas necessidades, responde a partir de interpretações paranoicas.

Para o núcleo paranoico da mãe, o bebê não chora porque sente desconforto, mas para tiranizá-la. Ou seja, em vez de refletir ao bebê algo que diga respeito a ele, ela introduz no campo intersubjetivo elementos que dizem respeito a ela. Em vez de apagar sua subjetividade, o objeto a impõe precocemente, na forma de interpretações paranoicas nas quais o bebê não se reconhece - e que serão, contudo, internalizadas em uma identificação com o agressor (Ferenczi, 1933[1932]/2011a).

Além disso, se ela vê o bebê como um tirano, inevitavelmente precisará se defender do abuso. Ela se enrijece e entra em um braço de ferro com ele. Resiste à suposta tirania, não se submete, exige que ele não chore, que não lhe faça demandas. Não sou eu que sou paranoica, é você que é um vampiro voraz, e eu te odeio por isso". Aterrorizada, a criança percebe que suas demandas produzem uma reação de ódio no objeto, mas não é capaz de dar sentido a essa experiência absurda. Naturalmente, todo esse processo é inconsciente para o objeto. Ele não é capaz de reconhecer que se sente ameaçado pela subjetividade do bebê nem que se defende atacando o psiquismo em formação. Por isso, não consegue ajudá-lo a metabolizar as mensagens tanáticas que ele mesmo emite.

Não é demais insistir que tais elementos tanáticos são evacuados defensivamente por uma figura parental que, quando entra em funcionamento psicótico, alucina o bebê como abusador e tirânico. O adulto pode entrar e sair desse estado em questão de segundos, e por isso tal dinâmica não é fácil de ser reconhecida a olho nu. Uma mãe suficientemente boa terá seus microssurtos psicóticos quando seu narcisismo se sentir ameaçado e responderá com microvotos de morte sem sequer se dar conta disso, já que tais atuações defensivas são da ordem do inconsciente. E isso não a impede, em absoluto, de ser extremamente amorosa e adequada no exercício da função materna na maior parte do tempo. O mesmo vale para o pai ou substituto.

Percebe-se que, quanto mais extenso o núcleo paranoico da figura parental, mais intensos os microvotos de morte e mais cruel o supereu. No limite de sua crueldade, o supereu força o melancólico ao suicídio e o paranoico ao homicídio.

 

Clivagem e identificação com o agressor

Acompanhamos até aqui o papel do inconsciente do objeto na constituição do supereu cruel. Cabe agora detalhar o papel do psiquismo em formação. Dois mecanismos de defesa primários são acionados automaticamente para garantir a sobrevivência do eu na situação traumática: clivagem e identificação com o agressor (Roussillon, 2012).

1. Identificação com o agressor

Em função da violência da comunicação psicótica, bem como de sua imaturidade, o infans não tem alternativa a não ser acolher a identificação projetiva. Percebe, aterrorizado, que o (aspecto paranoico do) objeto vê suas demandas como ofensa ao seu narcisismo. E irá se identificar ao projetado: "Meu objeto tem razão em me odiar, sou mau, sou culpado, sou fraco e desprezível, não mereço existir". Assim se constituem as identificações tanáticas com as quais o supereu ataca o eu.

É importante notar que o eu se sentirá culpado não por ter atacado o objeto bom, como na posição depressiva, mas por identificação primária com a paranoia do objeto: "Se você não erradicou sua subjetividade por amor a mim, então você é mau e eu te odeio por isso". E ainda: "Se você afirma que não consegue erradicar sua subjetividade, então é um fraco, e eu te desprezo por isso". Em consequência, o sujeito não conseguirá legitimar os próprios desejos e necessidades, que serão vistos por ele mesmo como egoístas e desprezíveis. Ele se sente culpado e envergonhado por existir. É o que Roussillon (2006) chama de culpa primária pré-ambivalente. Evidentemente, essa culpa psicótica nada tem a ver com a culpa neurótica, efeito da ação do supereu edipiano.

A incorporação forçada de eβ-T que pertencem ao espaço psíquico do objeto agressor origina uma zona de confusão sujeito-objeto. O sujeito não pode integrar tal corpo estranho, porque ele não é metabolizável. Mas também não consegue se diferenciar dos elementos tanáticos pertencentes ao inconsciente do objeto que o colonizam. É por isso que ele passará a vida se debatendo contra, mas também se submetendo, às vozes do supereu psicótico. A tentativa de atingir a "perfeição" para merecer o amor do supereu cruel leva o eu ao desespero. Ele se dilacera na tentativa de atender essa exigência, pois, ao lado dos paranoicos que são, com toda razão, odiados, o objeto certamente tem muitos aspectos bons, adequados, cuidadores, amorosos e amados.

Quando o sujeito se submete às exigências e tenta aniquilar sua subjetividade na esperança de ser amado pelo supereu, ele se melancoliza. Quando se identifica às acusações do supereu, culpa-se por seus desejos e necessidades e sente que merece ser castigado: torna-se masoquista. E quando resiste às acusações e se revolta contra a tirania do supereu, paga o preço de se estruturar em torno do ódio à alteridade, tornando-se paranoico.

2. Clivagem

Como vimos, instala-se uma luta de vida ou morte entre o aspecto paranoico da figura parental e o psiquismo em formação, pois cada um representa uma ameaça ao narcisismo do outro. Essa situação vai gerando, além do terror ligado à ameaça de morte (angústia de aniquilamento), um ódio que se potencializa reciprocamente. Como esse ódio excede a capacidade do psiquismo de metabolização, será clivado, indo reforçar o contingente pulsional do Isso. Quando essa dinâmica tanática se instala precocemente - como é o caso nos pacientes que apresentam um núcleo psicótico importante -, podemos ter a impressão, como Klein (1932/1975), de um ódio constitucional que ataca e estraga o objeto bom.

Quando a figura parental abusa inconscientemente da criança, quando não tolera as manifestações de sua subjetividade, ela se sente injustiçada e reage com ódio. Mas a figura parental também não tolera o ódio da criança e reage com mais ódio - com mais acusações e mais intolerância. Por isso, do meu ponto de vista, o ódio é recíproco e constitui dia-leticamente um campo intersubjetivo tanático no qual já não é possível identificar o ponto zero. Este tende ao paroxismo, pois essa dinâmica torna o objeto cada vez mais paranoico, cada vez menos capaz de acolher e transformar as angústias de ambos.

A clivagem (Freud, 1938/1975f; Roussillon, 1999) salva o psiquismo de ser totalmente inundado e desorganizado pelo ódio. Em compensação, esse afeto em estado bruto irá "turbinar" o supereu. É esse ódio não subjetivado que Marcia destila cotidianamente contra o marido ou, quando isso não é possível, contra si mesma.

É notável que, com tudo isso, Marcia não imagina sua vida sem o marido. Entende-se, pois, por pior que seja a relação entre a mãe e seu bebê, estão destinados a permanecer juntos. Reitero que o ódio do bebê se dirige ao aspecto paranoico do objeto que inconscientemente deseja a sua morte, o que não o impede de lançar apelos desesperados aos aspectos amorosos e cuidadores do objeto, do qual depende de forma absoluta. Marcia (a criança-nela) sente que não conseguiria sobreviver sem o marido, em absoluta contradição com a realidade, como ela mesma reconhece.

Antes de passar à última parte do texto, na qual abordarei o trabalho do analista com o supereu cruel, gostaria de retomar as questões formuladas no início para sintetizar o percurso realizado. Como se constitui o supereu cruel? Pela clivagem e identificação com microvotos inconscientes de morte, isto é, com elementos-beta tanáticos provenientes do aspecto paranoico do objeto primário, na ausência de um terceiro que possa barrá-lo. Por que o supereu cruel tem tanto ódio do eu? Porque o aspecto paranoico do objeto interpreta certos movimentos pulsionais do eu como ameaça à sua integridade. O que o supereu não tolera no eu? Por quê? Não tolera as manifestações de sua subjetividade, porque, como não tem as "enzimas psíquicas" para processar o que vem do outro, a alteridade é vivida como traumática - produz "alergia psíquica". Por que o supereu é controlador e tirânico? Para impedir que o eu tenha vida própria, evitando a emergência da alteridade, vivida como traumática. O que o supereu exige do eu? Exige uma prova de amor impossível de ser dada pelo eu: que se submeta inteiramente à injunção de "não ser". Qual é o gatilho que desencadeia o ataque feroz do supereu ao eu? A "insistência" do eu em ter vida própria é interpretada pelo supereu como afronta, ofensa ou traição, o que desencadeia microvotos inconscientes de morte contra o eu. Por que ele não é capaz de empatizar com as limitações e deficiências do eu? Porque a empatia consigo próprio, e depois com o outro, depende de certas funções que o objeto não consegue realizar devido à atividade de núcleo paranoico. São elas: a função meio maleável, necessária para se adaptar às necessidades da criança; a função reflexiva, necessária para traduzir a criança para ela mesma; e a capacidade de estabelecer uma comunicação corporal/emocional prazerosa e satisfatória para ambos, mãe e bebê, necessária para instalar o processo de simbolização da alteridade e da diferença.

 

O trabalho do analista com o supereu cruel: caminhos possíveis

Como afirmei na introdução, minha tentativa de esboçar uma teoria sobre a constituição do supereu cruel se deve inteiramente às dificuldades encontradas na clínica. E é na clínica que poderemos comprovar, ou não, se essas hipóteses são produtivas.

Strachey (1934) argumentava que, para serem mutativas, as intepretações deveriam ser transferenciais. A expressão costuma ser entendida como sinônimo de interpretações que apontam diretamente para a transferência com o analista. Mas ela pode ser entendida também como interpretações (ou manejos) na transferência, isto é, no campo transferencial-contratransferencial que se estabelece entre paciente e analista. Nesta compreensão, o analista não é apenas uma tela de projeção da transferência das questões intrapsíquicas do paciente. Ele também participa, com sua subjetividade, junto com o paciente, na criação do campo transferencial-contratransferencial. Ou seja, a transferência depende não só das questões intrapsíquicas do paciente, mas também de como o analista "se comporta", de como ele responde.

No trabalho com o supereu cruel, o analista pode de fato ser confundido transferencialmente com essa instância, mas isso apenas potencialmente. Se ele interpretar qualquer coisa que se pareça, mesmo de longe, com a fórmula "Não sou eu que... é você que. não é o esperado", o analista se transforma efetivamente em uma nova encarnação desse supereu. A repetição se instala na transferência de forma idêntica, retraumatizando o paciente e levando a análise a um impasse.

Como exemplo, trago uma vinheta da análise de Marcia. A cada vez que a recebo na sala de análise, ela diz: "Obrigada". Intrigada, eu lhe pergunto, ainda no primeiro mês: "Obrigada, por quê?" A pergunta era no sentido de identificar o que ela sentia que recebia de mim antes mesmo de iniciada a sessão. Sua resposta ficou no plano formal da boa educação. No entanto, como ela me contou três anos depois, ela sentiu hostilidade no tom da pergunta e a recebeu como uma "bronca". Fico sabendo, então, que quase foi embora no primeiro mês. Já fora do âmbito do retorno alucinatório do traumático, ela me explica o motivo: sentiu que estava sendo criticada, não por algo que fez, como entrar com sapatos sujos de lama, mas por algo intrínseco a ela. Ela aprendeu a agradecer e não pode deixar de fazer isso. Se eu não permitia que ela agradecesse, ela não poderia continuar ali. Para ela, minha pergunta tinha um tom hostil e evocava a segunda parte da fórmula: "Você está errada em me cumprimentar". Sem que eu tivesse a mais pálida ideia, minha intervenção funcionou como um micro-voto de morte. Três anos depois, quando eu repito a pergunta, ela me conta tudo isso. Mas então, graças ao caminho percorrido, eu já podia me atrever a fazer uma interpretação diretamente transferencial. Acompanhando o humor com que ela se recorda do passado, digo que "hoje a gente entende por que ela me agradece toda vez que entra na sala de análise. É porque, por mais um dia, eu lhe concedo a dádiva de tolerar a sua existência!" Rimos juntas.

Pois bem, de um lado, procuro evitar a repetição do mesmo. Mas como abrir espaço para a criação do novo? O que fiz durante esses três anos? Trabalhei na transferência orientada pelas ideias que apresentei na primeira parte do artigo. Da mesma forma como, potencialmente, posso vir a repetir o supereu cruel, levando a análise a um impasse, posso também, potencialmente, vir a ser dois novos objetos que lhe possibilitem sair da repetição psicótica em que está aprisionada. Mas isso vai depender das respostas que eu puder dar a ela na situação transferencial.

O primeiro novo objeto que eu precisaria encarnar na transferência é o objeto capaz de realizar a função duplo de si. Como vimos, esse objeto é necessário para que ela consiga empatizar consigo mesma e "instalar o software" (matriz simbólica) para metabolizar a alteridade. Para tanto, eu preciso conseguir me adaptar às suas necessidades, empatizar com suas experiências e traduzir a paciente para ela mesma. No segundo fragmento, relatei uma situação em que ela exige que o marido fique à sua disposição para ajudar na preparação do lanche. Evito intervenções na linha "É você que...". No lugar disso, eu me identifico e empatizo com o terror que ela sente da sogra, re-apresentação alucinatória do supereu cruel. Digo:

Você fica tão aterrorizada com as críticas da sogra que precisa fazer o lanche perfeito. E fica com ódio do marido porque ele não percebe o seu terror. Em vez disso, vai jogar tênis e te abandona à própria sorte.

São dezenas, ou centenas, de situações desse tipo, nas quais intervenho mais ou menos nessa linha. Depois de um ano e meio de trabalho, sou surpreendida com um novo primeiro objeto empático, que surge na figura de um chefe. Ele diz algo que a toca profundamente, algo que "eu nunca tinha ouvido de ninguém até hoje". Ela reproduz o tom de aceitação carinhosa com que o chefe lhe diz: "Eu entendo o que você está dizendo, sei do que você está falando'".

O segundo novo objeto que eu precisaria encarnar na transferência é o terceiro, aquele que não estava presente na cena em que o objeto primário evacua eβ-T no psiquismo da criança. Em praticamente todas as situações relatadas, só estão presentes ela e seu objeto primário, geralmente representado pelo marido, engalfinhados em uma luta de vida ou morte. Com sua ausência, o terceiro deixou a criança abandonada à própria sorte e não a ajudou a dar sentido à sua experiência. Até pouco tempo atrás não havia, no material, nem sombra de um terceiro que pudesse se interpor entre a criança e o objeto para barrar os microvotos de morte.

Como encarnar este objeto na transferência? Mais uma vez, este é um lugar que está potencialmente presente, mas só se tornará de fato presente nas/pelas respostas que eu puder dar, a cada vez que o microfilicídio se re-apresentar de forma alucinatória. E isso vai depender da minha capacidade de sonhar o pesadelo que se repete. Por exemplo, quando ela traz situações com o marido que seguem o modelo "Não sou eu que... é você que...", procuro imaginar, com ela, por que será que ele precisa ficar tão na defensiva. Tenho em mente a teoria de que é o aspecto paranoico do objeto, portanto sua fragilidade, que o leva a atacar para se defender. É uma tentativa de permitir que apareçam outros aspectos do marido, visto como entidade onipotente detentora dos poderes de vida e morte sobre ela.

Um fragmento clínico recente mostra um primeiro esboço do lugar do terceiro sendo construído. A sogra temida quer passar o réveillon com Marcia e seu marido. É praticamente impossível dizer não, pois ela estará comemorando seus 80 anos. O marido, que não quer viajar com a mãe, não sabe como sair dessa situação. Na frente da mãe, ele pergunta para Marcia, fingindo inocência: "Querida, nós temos algum plano para o réveillon?" Pela primeira vez, ela se deu conta de que o marido tem pavor da própria mãe. É claro que ele sabe que eles têm planos de viajar só com os filhos! Com essa pergunta, o coitado estava implorando para ela se interpor entre ele e a mãe e salvá-lo da fúria dela. O marido, que para ela sempre foi uma "entidade" que desconhece as fraquezas humanas, "parecia um menininho de 6 anos'".

Espero ter conseguido mostrar como uma teoria sobre a constituição do supereu cruel nos ajuda a intervir na clínica. Evitando repetir o objeto abusador com alguma formulação do tipo "Não sou eu que. é você que." e respondendo de modo a ir instituindo alternadamente os lugares do objeto duplo de si e do terceiro, procuro criar, na transferência, condições para que Marcia comece a se descolar das identificações tanáticas que a aprisionam.

 

Notas

1 Texto vencedor do Prêmio Durval Marcondes, conferido durante o XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em São Paulo/SP, de 28 a 31 de outubro de 2015.

2 Numa extensão do conceito bioniano de elemento-beta, propus no texto de 2010 uma distinção entre elementos-beta eróticos e tanáticos: os primeiros dizem respeito aos elementos não simbolizados ligados ao Édipo e à sexualidade (o recalcado), que serão atuados com a geração seguinte; os segundos, aos elementos não simbolizados ligados às dificuldades na constituição do eu (o clivado).

3 Em "Le processus hallucinatoire", Roussillon (2001) discute a diferença entre a realização alucinatória do desejo e o retorno alucinatório do traumático: a primeira pressupõe que o princípio do prazer já foi instaurado, o que ainda não é o caso na segunda situação. "Já evocamos que depois de 'Construções em análise' e 'A clivagem do eu' ... [Freud acrescentará] a ideia da coexistência da percepção e da alucinação na clivagem, mas também remeterá a alucinação não mais às representações do objeto do desejo, mas a percepções traumáticas anteriores não subjetivadas" (p. 93). Por outro lado, mas na mesma linha, retoma as consequências da revolução epistemológica feita por Winnicott com o conceito de objeto criado-achado. Roussillon mostra como esse conceito desconstrói a clássica, mas ingênua, oposição entre percepção e alucinação: é possível perceber alucinatoriamente. O ursinho de pelúcia é percebido na realidade, ele existe, é macio, e por isso mesmo se presta a ser alucinado como sendo a mãe. A criança não poderia alucinar a mãe em um ursinho áspero ou espinhudo. Para Roussillon, a percepção será infiltrada pelo alucinatório quando determinada situação atual tiver elementos reais que remetam o sujeito à experiência traumática não simbolizada e não integrada (clivada). Esta se re-apresentará - o termo é de Freud - à psique tal qual, sem transformação, infiltrando a percepção. O retorno alucinatório do traumático clivado infiltra a percepção da situação atual resultando em uma percepção alucinatória.

 

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Correspondência:
Marion Minerbo
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Recebido em 3.11.2015
Aceito em 17.11.2015

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