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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo out./dez. 2015

 

TRABALHOS PREMIADOS

 

Ensaio sobre algumas abstrações nosso universo simbólico -a valência da palavra1

 

Essay on some abstractions: our symbolic universe - the valence of word

 

Ensayo sobre algunas abstracciones: nuestro universo simbólico - el valor de la palabra

 

 

Sandra Luiza Nunes Caseiro

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto (SBPRP)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora procura apresentar e comparar alguns aspectos do pensamento de Cassirer e do de Bion sobre a existência e a formação de um sistema simbólico na mente do homem. Mais especificamente, busca localizar e resgatar o conceito de símbolo na obra de Bion O aprender com a experiência, bem como a complexidade desse conceito e sua importância no intricado trabalho de psicanálise. Além disso, são apresentadas algumas considerações sobre as dificuldades para a aquisição e expansão desse universo simbólico, e também sobre algumas particularidades de nossa cultura atual que parecem não colaborar para esse processo de desenvolvimento, ao menos na forma como estamos habituados a pensá-lo.

Palavras-chave: psicanálise; símbolo; universo simbólico; linguagem; palavras.


ABSTRACT

This paper is the author's attempt to present and compare some aspects of Cassirer's and Bion's ideas of the existence and the constitution of the symbolic system in the human mind. The author also writes about common aspects found in both of their ideas. More specifically, the purpose of this paper is to find and rescue the concept of symbol in Bion's work Learning from experience. This paper also aims to emphasize the complexity of this concept and its importance for the complicated psychoanalytic work. In addition, the author presents some thoughts on the difficulties in obtaining and expanding the symbolic universe. Furthermore, she writes about some features of our current culture that seem not to help in this development process, at least, in the way we are used to think of it.

Keywords: psychoanalysis; symbol; symbolic universe; language; words.


RESUMEN

La autora tiene como objetivo presentar y comparar algunas ideas propuestas por autores de diferentes disciplinas, Cassirer (filosofía) y Bion (psicoanálisis), en relación a la existencia y a la formación del sistema simbólico en la mente del hombre. De una forma más específica, el texto busca sondear afinidades de pensamiento entre los dos autores. También busca localizar y rescatar el concepto de símbolo en el texto de Bion El aprender con la experiencia y enfatizar la complejidad de ese concepto y su importancia en el trabajo del psicoanálisis. Además, se presentan algunas consideraciones sobre las dificultades para la adquisición y expansión del universo simbólico, así como algunas particularidades de nuestra cultura actual que parecen no colaborar con ese proceso de desarrollo en la forma como estamos habituados a pensarlo.

Palabras clave: psicoanálisis; símbolo; universo simbólico; lenguaje; palabras.


 

 

No belo filme Palavras e imagens (Schepisi, 2013), Jack Marcus (interpretado por Clive Owen) é um escritor e professor de inglês numa escola secundária. Durante uma aula, propõe aos seus alunos se comunicarem por sons e gestos, como se pertencessem a uma tribo primitiva anterior à aquisição da fala. Jack especifica o que cada aluno deve "dizer":

- Shaftner, me diga que está com fome;

- Finetti, diga a Tammy que está atraído por ela;

- Tammy, diga a ele que não gosta dele;

- Stanhope, diga que quer reunir a tribo ao meio-dia: quer falar sobre fazer flechas e achar um lugar melhor para buscar raízes...

Os três primeiros alunos conseguem expressar a mensagem solicitada pelo professor através de sons e gestos. O quarto aluno: sem palavras!

Cassirer (1944/1994), importante filósofo alemão do século XX, identificado como o maior representante da tradição neokantiana, afirma que o homem está mais bem definido não como sendo um animal racional, mas como sendo um animal simbólico. Entre as coisas e os fatos nus e crus e o homem, existe um universo composto por sua história, pela linguagem, pelo mito, pela religião, pela arte e pela ciência. Um sistema receptor de estímulos e um sistema efetuador dos sucessos provocados por esses estímulos são observados em todas as espécies de animais. No homem, encontramos um terceiro sistema mediador: um sistema simbólico. O autor enfatiza a diferença entre sinais ou signos e símbolos: os primeiros mantêm estreita proximidade com o mundo sensível; os últimos pertencem ao mundo humano do significado. Cassirer escreve que, se uma ideia não ultrapassasse o nível de uma reprodução dos elementos captados pelos sentidos, aquilo que denominamos de cultura humana não existiria como o "organismo vivo que é", em constante processo de evolução e expansão. A ideia, ou a abstração, mantendo um delicado fio de conexão, pode distanciar-se da experiência que a originou, pode alcançar um nível simbólico.

Como uma moeda, um símbolo possui duas faces. A universalidade do símbolo, aquilo que se relaciona com o senso comum, com as convenções, com o fio que o conecta ao objeto que o originou, é uma de suas faces, que permanece ao lado de outra extremamente variável. A capacidade humana de ir e vir no tempo e no espaço, sua imaginação, dá ao símbolo a qualidade de se metamorfosear. Aquilo que é universal num símbolo, ao lado de sua qualidade extremamente variável, é que funda a complexidade do pensamento simbólico e cria a possibilidade do pensamento relacional ou, dito de outra forma, cria a possibilidade de abstrair as relações existentes entre os diversos objetos. A simples consciência das relações não alcança um pensamento lógico, abstrato ou simbólico. É necessário afastar-se dos dados visuais, auditivos, tácteis e cinestésicos e também isolar e considerar as relações em "si mesmas", distanciadas dos elementos que as configuraram.

"Não podemos conceber qualquer coisa real", afirma Cassirer (1944/1994, p. 73), "exceto sob as condições do espaço e do tempo". Segundo Kant, citado por Cassirer, o espaço é a forma de nossa "experiência exterior" e o tempo é a forma de nossa "experiência interior". Cassirer descreve as diferentes relações que os organismos vivos estabelecem com o espaço e o tempo. A relação mais simples refere-se ao espaço e tempo orgânicos. O homem estabelece uma relação abstrata ou simbólica com o espaço. A astronomia babilônica parece ser o primeiro exemplo histórico da concepção de um espaço simbólico. Quanto ao tempo, o homem estabelece relações de seu tempo presente com seu tempo passado e de seu tempo presente com seu tempo futuro, configurando-se, assim, um tempo passado e um tempo futuro simbólicos. "A memória simbólica", diz Cassirer (1944/1994, p. 89), "é o processo pelo qual o homem não só repete sua experiência passada, mas também reconstrói essa experiência. A imaginação torna-se um elemento necessário da verdadeira lembrança". "É característico de todo início do desenvolvimento da vida das ideias", escreve William Stern, citado por Cassirer (1944/1994, p. 91), "que elas não aparecem tanto como memórias que apontam para alguma coisa do passado, mas como expectativas dirigidas para o futuro".

Do mundo do significado do homem nasce a linguagem. Como fenômeno extremamente complexo que é, possui diferentes níveis de manifestação que apresentam diferentes propriedades. Um primeiro nível, o mais primitivo, a linguagem emocional, intimamente ligada ao sensível, ao tempo e ao espaço presentes; e uma camada mais sofisticada, a linguagem proposicional, que estabelece relações entre coisas, fatos e ideias, indo e voltando no espaço e no tempo. A linguagem proposicional, a fala ou as palavras alcançam uma abstração que permite que todo tipo de relação seja estabelecido entre "as coisas" longe da presença "das coisas": as palavras alcançam um nível simbólico. "A diferença entre a linguagem proposicional e a linguagem emocional", escreve Cassirer (1944/1994, p. 55), "é a verdadeira fronteira entre o mundo humano e o mundo animal". A linguagem proposicional, a fala humana, não é apreendida como uma evolução linear da linguagem emocional, mas como uma criação original da espécie, uma mutação. O humano utiliza-se dos dois níveis de linguagem em sua comunicação.

O autor descreve um momento especial da evolução educacional do caso de uma criança cega, surda e muda - um momento no qual houve um salto mental, o momento em que a criança alcança o nível simbólico das palavras:

Helen Keller havia antes aprendido a combinar uma certa coisa ou evento com um certo sinal do alfabeto manual. Uma associação fixa fora estabelecida entre essas coisas e certas impressões tácteis. Mas uma série dessas associações, mesmo quando repetidas e amplificadas, não implica ainda uma compreensão do que é e significa a fala humana. Para chegar a tal compreensão, a menina teve de fazer uma descoberta nova e muito mais significativa. Teve de entender que tudo tem um nome - que a função simbólica não está restrita a casos particulares, mas é um princípio de aplicabilidade universal que abarca todo o campo do pensamento humano. [...] Aprendeu a usar as palavras não como meros sinais ou signos mecânicos, mas como um instrumento inteiramente novo de pensamento. (Cassirer, 1944/1994, p. 62)

Numa psicanálise, a palavra é um instrumento fundamental. Buscar um nome ou uma frase que cinja os fenômenos que desejamos comunicar é tarefa árdua para analista e analisando. Nessa busca, nos embaraçamos com toda a complexidade descrita acima. Embaraçamo-nos ao tentar discernir a linguagem emocional da linguagem proposicional. Nossa mente se embaça ao procurar discriminar as diferentes relações que estabelecemos com os tempos e com os espaços presentes, passados e futuros, a qual ou quais tempos e espaços estamos tomando como referência. Toda essa complexidade, presente na mente do analisando e na mente do analista, se amplifica exponencialmente durante uma sessão de análise, porque ali comunicamos e recebemos comunicações todo o tempo, um trânsito contínuo de uma mente para a outra.

Bion (1962/1966) descreve como se daria, na mente do indivíduo, a instalação de um vocabulário, a alfabetização,2 dentro do processo de desenvolvimento mental ou, dito de outra forma, a instalação do sistema simbólico. O curso se inicia com um estado de mente adaptado para receber uma gama restrita de fenômenos (pré-concepção) e o encontro com o fenômeno, a percepção dos dados sensoriais referentes a esse fenômeno, acontecendo, assim, uma experiência, uma realização. A realização pode ser positiva, quando a experiência emocional é de satisfação, ou negativa, quando a experiência emocional é de frustração. A realização pode passar por um processo (função alfa, elementos alfa) que resulta numa abstração, num nome que mantém conectado: a palavra que nomeia uma coisa em si mesma como se supõe existir na realidade (o nome em si), os elementos sensoriais constantemente conjugados a esse nome (dados visuais, auditivos, tácteis e cinestésicos), as sensações e os sentimentos suscitados por esses elementos sensoriais ou pela ausência desses elementos. Tudo o que a abstração ou o nome "conecta" constitui o que Bion denomina de concepção, os pensamentos em geral. A concepção tem a característica de ser ao mesmo tempo invariável e variável. Sua face invariável possibilita o reconhecimento dos mesmos elementos conjugados na situação original como presentes em uma nova situação. Sua face variável possibilita que os novos elementos da nova situação sejam agregados à concepção original, ampliando-se, assim, a abrangência da concepção, do conceito, do nome, da abstração. Ou, nas palavras de Bion, para que ocorra a aprendizagem com a experiência, processo que possibilita o desenvolvimento mental, uma concepção deve guardar o valor de pré-concepção, deve manter-se incompleta.

Os conceitos de pré-concepção, de realização, de função alfa, de elementos alfa e de concepção formulados por Bion (1962/1966) abarcam toda a complexidade descrita por Cassirer referente ao sistema simbólico, ao espaço e o tempo simbólicos.

Bion e Cassirer estão buscando caminhos para alcançar uma abstração da mesma qualidade de fenômenos, diga-se, da expansão da mente humana, através de vértices e escalas diferentes?

Penso que as descrições de Cassirer sobre o processo de alcançar o universo simbólico e as descrições de Bion sobre o processo de aprender com a experiência denotam grande afinidade. Cassirer se ocupa de processos universais que ocorrem na mente do homem e na cultura humana, ou, por assim dizer, com os saltos mentais na história da humanidade em relação à sua capacidade de abstração, de simbolização. Inicia sua trajetória procurando compreender a cultura humana para chegar à compreensão do homem. Bion está olhando e procurando descrever o universo microscópico de uma sessão de análise, do vínculo estabelecido entre analista e analisando num dado momento. Busca observar os microssaltos na capacidade mental do analisando de abstrair sua experiência, de transformar os elementos brutos da experiência (elementos beta) em elementos pertencentes ao universo simbólico (elementos alfa). Esses microssaltos podem ocorrer em sentidos opostos, o analisando apresentando maior ou menor condição para abstração. Nesse exercício de observação, Bion não se ocupa especificamente com o símbolo, mas com a diferença (se houver) entre o símbolo e a coisa simbolizada, a diferença entre a coisa em si mesma como se supõe existir na realidade e a abstração alcançada. "Desde que demos prioridade ao vínculo e concordamos em delimitar sua representação através dos 3 sinais - L, H, K, é possível", escreve Bion (1962/1966, cap. 17, § 4), "abordar o problema da representação considerando quais caminhos poderiam ser necessários para estabelecer um método de representação". E continua:

As situações encontradas em análise são: (1) Um paciente, incapaz de abstração, esforça-se para existir com um aparelho mental ocupado em introjeção e projeção de elementos beta. (2) Um paciente capaz de abstração produz sistemas teóricos retirados da bagagem de realizações das quais abstraiu, mas prolifera esses sistemas de acordo com regras que fazem as abstrações em qualquer sistema congruentes umas com as outras. (3) Um paciente capaz de produzir abstrações prolifera sistemas que parecem obedecer um sistema de regras que não se podem averiguar. Embora a realização original seja desconhecida (a esse respeito parecendo (2) acima) e do mesmo modo o sistema de regras no qual as abstrações foram manipuladas, ele pode achar realizações que aproximem às suas afirmações abstratas. (4) Um paciente capaz de abstração e formação de sistemas de acordo com regras que asseguram que o sistema não é incompatível consigo mesmo, e mesmo assim incapaz de encontrar uma realização à qual os sistemas abstratos possam ser aplicados. (5) Um paciente capaz de abstração e de combinar essas abstrações dentro de sistemas de acordo com regras (cuja natureza pode ser demonstrada) que assegure que os sistemas não são incompatíveis com eles próprios. Pode ser possível deduzir qual era a realização original da qual se derivou a abstração. As realizações posteriores podem se aproximar do sistema dedutivo científico embora não se soubesse que as últimas realizações existiam quando a abstração que as representa foi pré-figurada primeiro. (cap. 20, § 4)

As diferentes situações enumeradas referem-se às diferentes qualidades de representações, boas ou más, possíveis de serem publicadas pelo analisando durante a sessão de análise. Afirma Bion:

Existem duas tarefas nas quais é necessário embarcarmos. A primeira é a elucidação de realizações originais da abstração. A segunda tarefa é elucidar a relação do modelo [...] com a realização da qual a abstração e os sistemas dedutivos teóricos se derivaram. (cap. 20, § 6)

Em texto posterior, Transformações (1965/2004), aprofundando e expandindo seu pensamento e expressando-se numa "outra língua", utilizando-se de uma linguagem fenomenológica, Bion procura elucidar "o espaço" entre a realização e a abstração derivada, as transformações que ocorrem nesse espaço. "O âmbito do psicanalista", escreve Bion (1965/2004, p. 62), "está situado entre o ponto onde um homem recebe impressões sensoriais e o ponto onde ele dá expressão à transformação que ocorreu". Nesse texto, Bion apresenta as transformações em alucinóse, transformações projetivas, transformações em movimento rígido e as transformações em K. O quinto nível de abstração descrito (Bion, 1962/1966) e as transformações em K (Bion, 1965/2004), penso, aproximam-se do que Cassirer descreve como "ocorrer uma revolução intelectual, ver o mundo sob uma nova luz" (1944/1994, p. 62). Bion diz:

Na atividade K na qual estou envolvido, principalmente com o conhecer, devo ser consciente da minha experiência emocional e apto a abstrair, de maneira adequada, uma afirmação que irá representar essa experiência. Se essa abstração é feita e representa outras experiências desconhecidas, ela me dá confiança. O sentido de confiança é semelhante àquele que acontece quando uma crença parece se apoiar no bom senso. A confiança aparece, concomitantemente, ao saber que existe uma correlação entre os sentidos [...] ou que mais de uma pessoa em um grupo pensa que parece ser a mesma afirmação, da mesma representação, de uma experiência emocional. (1962/1966, cap. 17, § 1)

Escreve Cassirer, indo ao encontro da ideia de "confiança" da citação acima:

A língua (la langue) é universal, ao passo que o processo da fala (la parole), como processo temporal, é individual. Todo indivíduo tem sua própria maneira de falar. Mas em uma análise científica da linguagem não nos preocupamos com essas diferenças individuais; estamos estudando um fato social que segue regras gerais - regras totalmente independentes do indivíduo que fala. Sem essas regras, a linguagem não poderia ser empregada como meio de comunicação entre todos os membros da comunidade falante. (1944/1994, p. 203)

A psicanálise é uma das disciplinas que se ocupam com as diferenças individuais em relação à linguagem, e Bion é um importante representante dessa ocupação.

Os psicanalistas detêm-se no que antes foi descrito como alcançar e ampliar o universo simbólico ou engendrar-se num processo de desenvolvimento mental, com o mesmo cuidado que a mãe Tétis da mitologia grega mergulhou seu filho Aquiles no rio Estige. E, para todos, persiste o calcanhar! Por que engasgamos nesse processo?

Uma vinheta de sessão de análise figurada em algumas frases e palavras numa página borra a complexidade que foi experienciada pela dupla analista/analisando:

A verdadeira diferença entre as línguas não é de sons ou sinais, mas de "perspectivas de mundo". [...] Uma língua não é um simples agregado mecânico de termos [...] é o esforço reiterado da mente humana no sentido de usar sons para expressar pensamentos. (Cassirer, 1944/1994, p. 200)

Cassirer refere-se às diferentes línguas dos diferentes povos. Em psicanálise, é produtivo adotar a "metáfora" de que cada um de nós fala, se comunica, por meio de diferentes línguas simultaneamente.

Teseu, um analisando, entrava na sala de análise com seu andar peculiar, mantinha-se no divã na mesma posição por toda a sessão, o corpo enrijecido, e falava mais ou menos assim: "Então, essa semana nós tentamos fazer duas vezes. Na primeira vez estávamos... Aí eu... Aí ela... Na segunda vez estávamos. " Algumas vezes, além da interminável descrição de ações nas tentativas frustradas de relações sexuais, um detalhe ou outro, referente à pessoa dele, seu trabalho ou sua namorada, "escapava". Em algumas ocasiões, eu lhe contava algum mito, os que me pareciam ter conexão com sua fala. Numa sessão, ele estava, mais uma vez, relatando um encontro sexual. Comenta que sua namorada colocou-se numa posição que deixava sua vagina bastante exposta e que isso o deixou muito inquieto. Não conseguia olhar para a vagina e não conseguia parar de pensar que a vagina estava lá. Digo-lhe que "seu pensamento estava engolido pela vagina". Ele silencia por segundos e depois diz: "Li uma história de um cara que entrava num labirinto e tinha que matar um monstro, e tinha uma deusa que emprestou um fiozinho para ele, e aí ele achou a saída". Era uma comunicação vinda dele de uma qualidade muito diferente da habitual, não o relato do mito, mas o movimento mental que deve ter acontecido para realizar essa associação, a vivacidade de sua comunicação e alguma qualidade a mais para a qual não encontro palavras: Teseu revelava um salto mental! Aos poucos, a pessoa de Teseu, os assuntos pelos quais mostrava curiosidade em refletir foram se ampliando e se transformando:

Sabe aqueles dois quadros que você tem na sala de espera?A primeira vez que eu olhei pareciam fotos de uma erupção vulcânica. Depois achei que fossem duas vaginas desenhadas, até achei muito estranho você ter quadros assim. Hoje que eu vi que são fotos de flores! Lindas as flores!

Bion (1962/1966, cap. 27) coloca que o desenvolvimento mental, ou o desenvolvimento para a capacidade de abstração, é função do crescimento da capacidade de captar dados sensoriais junto com o crescimento da capacidade para a consciência dos dados sensoriais. Por sua vez, ambos os crescimentos são função da condição que o indivíduo encontra para sustentar e transformar as emoções que sente e, assim, preservar os fios diacrônico e sincrônico de suas experiências, possibilitando-lhe aprender com elas. Para Bion, as emoções podem ser metaforizadas como os fios que formam a parede de um retículo endoplasmático. São as emoções que conectam uma abstração à outra, formando o tecido placentário que abriga, nutre e gera todo o nosso mundo de significados.

A condição para sustentar e transformar emoções é o fio de Ariadne para sair do mundo sensível em direção ao universo simbólico. Paradoxalmente, é a evitação dessas emoções que nos repele para longe desse universo!

Pergunta-se Bion:

Será possível que exista algum crescimento sem resistência? [...] Será que existe algum sentimento ou ideia que não esteja sujeito à resistência como uma porção inevitável da escolha ou mudança? [...] Os problemas de decisão são re-ativados como turbulências emocionais. (1977/1987, p. 123)

Afirma Cassirer indo ao encontro da citação acima:

Em todas as atividades humanas vemos uma polaridade fundamental, que pode ser descrita de várias maneiras. Podemos falar de uma tensão entre estabilização e evolução, entre uma tendência que leva a formas fixas e estáveis de vida e outra que rompe esse esquema rígido [...] uma luta incessante entre a tradição e a inovação, entre forças reprodutivas e criativas. (1944/1994, p. 365)

É fácil observar como levamos certo tempo para fazer amizade com um novo celular. Pelo exposto, parte da demora deve-se à resistência ao novo. Para irmos em direção ao novo, é necessário nos desgarrarmos do já estabelecido, enlutarmos em relação ao já conhecido. O movimento em direção ao novo é sempre acompanhado de sentimentos de incerteza, de medo, de sensação de embriaguez mental ou, até mesmo, sensação de caos mental. Evitamos essas sensações e sentimentos.

Quero enfatizar a importância das relações que estabelecemos com o tempo e o espaço para a criação e expansão do universo simbólico, nosso sistema simbólico. Nos tempos atuais, os avanços tecnológicos modificaram, no sentido pragmático, nossas tradicionais relações com o tempo e o espaço: posso "estar" num lugar a milhares de quilômetros de distância do lugar em que estou, instantaneamente, mesmo "não estando"! Além da "conhecida" resistência ao novo, que outros fenômenos podería-mos intuir como também influenciando negativamente (?) na expansão do universo simbólico de um indivíduo? Como exercício de pensamento, cito abaixo algumas ideias de outro pensador.

Flusser, filósofo tcheco que se ocupava da teoria da comunicação, escreve sobre o desenvolvimento do nosso processo imaginativo, ou de abstração, ao longo da história. Comenta que, não excluindo a possibilidade de alguma função estética, a figuração do cavalo na gruta de Peche Merle, provavelmente, é uma representação de um contexto com a finalidade de uma comunicação: uma abstração de uma experiência privada tornada pública através da figuração da abstração. O significado de uma imagem sincroniza os elementos de uma experiência, mas o passo seguinte é decodificar a imagem: diacronizar a sincronicidade. Das imagens, o homem evoluiu para a escrita:

A invenção da escrita deve-se, em primeiro lugar, não à invenção de novos símbolos, mas ao desenrolar da imagem em linhas. [...] Por isso a linha (o texto) significa não a circunstância diretamente, mas a cena da imagem, que, por sua vez, significa a "circunstância concreta". [...] Códigos lineares exigem uma sincronização de sua diacronia. Exigem uma recepção mais avançada. E isso tem como efeito uma nova experiência temporal, a saber, a experiência de um tempo linear, de uma corrente do irrevogável progresso, da dramática irrepetibilidade, do projeto, em suma, da história. (Flusser, 1972/2007, p. 132)

Flusser afirma que, desde o século XIX, o nível de consciência histórica torna-se universal em decorrência do alfabeto começar a funcionar efetivamente como código universal. Porém, a partir do final do século passado, através das novas tecnologias, o texto vem perdendo sua hegemonia em relação à imagem. "Isso é o que consideramos", afirma Flusser (p. 136), "como 'crise dos valores': o fato de termos retornado do mundo linear das explicações para o mundo tecnoimaginário dos 'modelos'."

Um novo luto! Uma pergunta que me ocorre é se, nesse longo percurso, nossa mente pôde acompanhar o ritmo dessa evolução, se não perdemos o fino fio que nos conecta à experiência original, ao menos em alguns contextos, abstraindo-nos, assim, do significado das "coisas".

O que poderíamos pensar aqui sobre as redes sociais, as centenas de amigos virtuais, o "apego" à internet? Tantas novas possibilidades digitais, virtuais! Tantos tempos e espaços simultâneos! Quais efeitos têm provocado em nossa forma de nos relacionarmos com o mundo e conosco? E quanto ao valioso instrumento da sessão de psicanálise, a palavra, o que há de novo?

 

Notas

1 Texto vencedor do Prêmio Fábio Leite Lobo, conferido durante o XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em São Paulo/SP, de 28 a 31 de outubro de 2015.

2 "Em português, a etimologia da palavra 'alfabeto' está muito clara, procedendo do grego 'alfa + beta'. Porém, o termo ab ou ib foi usado também pelos hebreus para denominar a divindade máxima da religião monoteísta, Deus. Segundo esta etimologia ab são as duas primeiras letras do alfabeto hebraico e grego, respectivamente: a = aleph e alpha ou no hebraico pai; e b = bet e beta ou no hebraico útero ou casa e é uma palavra feminina. A união destas compõe a própria palavra alfabeto ou A Palavra, a Verdade, ou o Verbo, segundo a Bíblia, ou o próprio Deus ou, dentro desta concepção hebraica, pai e mãe" - https://pt.wikipedia.org/wiki/Alfabeto (recuperado em 12 nov. 2015).

 

Referências

Bion, W. R. (1966). O aprender com a experiencia (J. Salomão & P. D. Corrêa, Trads.). Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Bion, W. R. (1987). Turbulência emocional. Revista Brasileira de Psicanálise, 21(1),121-133. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

Bion, W. R. (2004). Transformações: do aprendizado ao crescimento (P. C. Sandler, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

Cassirer, E. (1994). Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana (T. R. Bueno, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1944)        [ Links ]

Flusser, V. (2007). O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação (R. Cardoso, Org., R. AbiSâmara, Trad.). São Paulo: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1972)        [ Links ]

Schepisi, F. (Dir.) (2013). Words and pictures [Filme]. USA: Roadside Attractions.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Sandra Luiza Nunes Caseiro
Av. Sen. César Vergueiro, 1.175, Jardim São Luis
14020-500 Ribeirão Preto, SP
Tel: 16 3911-5184
sn.caseiro@bol.com.br

Recebido em 10.11.2015
Aceito em 24.11.2015

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