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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo Out./Dec. 2015

 

OUTRAS PALAVRAS

 

O campo do "poético" nas situações-limite do tratamento analítico1

 

The field of "poetics" in the limit situation of the psychoanalytic treatment

 

El campo de lo "poético" en las situaciones límite del tratamiento analítico

 

 

Maurizio BalsamoI; Tradução Susana Termignoni

IPsiquiatra e psicanalista. Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica Italiana. Maître de conférences e directeur de recherche, UFR Études Psycanalytiques, Universidade Paris Diderot

Correspondência

 

 


RESUMO

O seguinte trabalho explora a constituição do poético na palavra e a sua ausência nas múltiplas situações clínicas que o autor define como situações-limite, caracterizadas pela modificação dos parâmetros fundamentais do tratamento analítico. A ausência do poético dá conta da necessidade de uma linguagem monossêmica, aderente à coisa, da supressão de tudo aquilo que poderia evocar a outra cena, a fim de evitar o reencontro com rastros e experiências perceptivas traumáticas ou destrutivas das dificuldades representativas. O objetivo da análise - reintroduzir o poético por meio da regra fundamental - é duramente posto à prova nesses casos e se supõe a sua redescoberta/constituição por meio da busca de todas as dimensões tradutório-subjetivas que existem, a despeito de cada condição.

Palavras-chave: língua; poético; palavra; situações-limite; subjetivação.


ABSTRACT

This paper explores the constitution of poetics in the word, and its lack in multiple clinical situations that the author defines as limit situations. The change in the core parameters of psychoanalytic treatment characterizes these situations. The absence of poetics deals with the need of a monosemic language, which sticks to the thing, and with the supression of everything that could evoke the other scene, in order to avoid the revival of trails and experiences - perceptual experiences that were destructive or traumatic - of representative difficulties. The purpose of the analysis, which is the reintroduction of the poetics through the essential rule, is hardly challenged in these cases, and the author assumes its rediscovery/constitution by searching for all the translational-subjective dimensions that exist in spite of each condition.

Keywords: language; poetics; word; limit situations; subjectivation.


RESUMEN

El presente trabajo explora cómo se constituye lo poético en la palabra, así como su ausencia en múltiples situaciones clínicas que el autor define como situaciones límite, que se caracterizan por la modificación de los parámetros fundamentales de la terapia analítica. La ausencia de lo poético hace que sea necesario un lenguaje de un solo significado, adherente a la cosa, la supresión de todo lo que pueda evocar a la otra escena, con el fin de evitar el reencuentro con huellas y experiencias perceptivas traumáticas o destructivas de las dificultades representativas. En estos casos se pone a dura prueba la finalidad del análisis, es decir, reintroducir lo poético por medio de la regla fundamental, entonces se supone su reconstitución, buscando todas esas dimensiones traductor-subjetivas que existen, a pesar de cada condición.

Palabras clave: lengua; poético; palabra; situaciones límite; subjetivación.


 

 

A poesia expressa uma relaçao particular com o tempo e com o conhecimento, observara Iosif Brodskij, em 1987, no seu discurso para o prêmio Nobel. Quando um poeta escreve e fica surpreso com o que aflora da sua escrita, não sabendo nunca, antecipadamente, o que dela poderá surgir, bem, naquele momento

o futuro da língua entra no seu presente. Como sabemos, existem três formas de conhecimento: o analítico, o intuitivo e o utilizado pelos profetas bíblicos - servirle da revelação. O que distingue a poesia das outras formas literárias é que ela utiliza simultaneamente os três métodos (tendendo predominantemente ao segundo e ao terceiro). (Brodskij, 1988, p. 10)

A observação de Brodskij define uma característica da dimensão criativa, mas não apenas isso: a possibilidade de encontrar aquilo que ainda não está pensado e de fazer-se atravessar, "possuir", por qualidades não previstas do objeto, na verdade, refere-se, em termos muito gerais, ao funcionamento simbolizante da psique em relação àquilo que ela não pode acolher em um dado momento, à formação do recalcamento, à dimensão da penetração do recalcado e ao esforço de integração dele. No entanto, eu colocaria em evidência, nessa formulação, principalmente a questão do profético, avalista do advento do novo, e o fato de que o poético determina uma transformação do tempo.

A ideia de um "futuro que irrompe no presente" e que desse modo define o espaço do poético não nos é desconhecida. Valéry (1948) já falara, em relação à sua escrita, de "restos do futuro", seres furtivos que acionavam percursos não previstos (Gantheret, 2014). Que o novo, o nunca ocorrido, adentre o tempo presente em forma de resíduos, restos, fragmentos não deveria surpreender-nos em demasia, considerada a natureza antissintática ou desconstrutiva do poético e a sua caraterística de tensionar a identidade do sentido e do sujeito falante (Kristeva, 1980). O futuro, nessa visão, só pode chegar onde o eu se ausenta e a palavra prevalece sobre o discurso, o marginal, ou o detalhe, sobre o centro, o fragmento, sobre a unidade e a síntese. Todavia, isso pode indicar tanto a capacidade de germinar do novo (o profético que irrompe no tempo presente, alterando-o) como a própria transformação das categorias temporais, no sentido de que é naquele momento que são instituídos, juntos, o presente e o futuro.

Analogamente, o tratamento analítico pode ser entendido a partir de uma belíssima expressão de Imre Hermann, uma máquina para "agarrar o acaso",2 para introduzir ruído em uma organização mais ou menos estável (e do grau de estabilidade, isto é, de disponibilidade de fixações suficientemente consolidadas que possibilitem movimentos regressivos, decorre, como sabemos, o enorme problema dos tempos e das formas de introdução do ruído e o de colocá-lo em segundo plano para favorecer formas mínimas de organização). A minha intenção, neste texto, é definir alguns aspectos do funcionamento psíquico em que falta uma escuta "poética", ou seja, organizações caracterizadas por um reduzido índice de transformabilidade, pela falta de comprometimentos e de pontos de vista subjetivos e por histórias com um nível narrativo e figurativo baixo. É também relevante o uso de uma linguagem monossêmica, aderente à coisa, a supressão de tudo aquilo que poderia evocar a outra cena, para evitar o contato com rastros e experiências perceptivas traumáticas ou destrutivas, e a presença de dificuldades representativas e autobiográficas importantes. O pensamento apresenta-se obstruído, a temporalidade, confusa, aniquilada - pensemos no tempo imóvel do melancólico ou do ritualismo obsessivo - ou ausente, considerada a condição de um atual imóvel, sem presente nem passado, pela simples razão de que tudo está simultaneamente na cena, fossilizado, e insiste nela. Graças a essa complexidade entendemos melhor, porém, por que presente, passado e futuro não têm o mesmo sentido em termos analíticos.

Gantheret (2014) observou que, psicanaliticamente, somente o presente é real (no sentido daquilo que existe aqui e agora), enquanto o passado é um relato habitado pela saudade, e o futuro, um relato construído pelo desejo. Somente o presente é real porque somente nele pode ocorrer a sensação, a experiência, a possibilidade de viver a transferência. O ato analítico, nisso semelhante ao ato poético, vive somente no presente da sua imediatez, do seu sentir, do puro instante que se subtrai à narração (pensemos, ao contrário, naquela máquina desafetivizante que encontramos no prazer "arqueológico" do pensamento obsessivo) ou é por ela ameaçada (como imediato afastamento, por exemplo, nas intelectualizações). Algo deve acontecer, agora, de novo e pela primeira vez, para que possam ser retirados os véus do passado e assim abrir para o futuro. Entretanto, para que isso aconteça, é necessário que o espaço do discurso se abra para o da palavra, que o simbólico se deixe interrogar e desconstruir pelo semiótico-pulsional (Kristeva, 1980),3 que algo tensione o "religioso" de cada discurso, isto é, a aderência ou a ilusão de uma aderência da linguagem à "coisa", o seu núcleo intocável, ou unicamente ao plano comunicativo.

Obviamente isso se realiza toda vez que a atividade psíquica é capaz de tolerar o contato com aquilo que recalcou ou evitou viver, com o prazer paradoxal que se instaura na delimitação dos movimentos afetivos, os quais, portanto, tornam-se perenes, a retirada dos investimentos que então decorre quando o recalcado pode ser integrado, e assim por diante. Resumindo, em todos os quadros suficientemente organizados de funcionamento psíquico nos quais o pulsional penetra de maneira não caótica, nem destrutiva, a dimensão secundarizada da mente.

Em suma, estamos diante de construções autobiográficas fortemente amputadas, opacizadas ou fragmentadas, silenciadas pela dimensão destrutiva da força de "desvinculação", ou situações dominadas pela impossibilidade de representar os movimentos representacionais, pela capacidade de investir um psíquico continuamente desvalorizado (falta a outra cena, observava McDougall), junto à construção de um self ferozmente idealizado que nega qualquer encontro com o outro (Donnet, 2000). Para esses sujeitos, de fato, a questão é organizar-se por meio de determinadas disposições (psíquicas, comportamentais, relacionais) que visam evitar os retornos do perceptivo e, com ele, experiências não simbolizadas, não subjetivadas, rastros caóticos, memórias arcaicas e traumáticas. Daí a monossemia recorrente, a sensação de tédio ou de vazio existencial, a necessidade de controlar o objeto e as suas afirmações (Balsamo, 2011), prestando atenção a todas as suas mudanças, que serão entendidas não como mudança de pontos de vista, mas como falácia da palavra dada, inconfiabilidade, mentira. Um campo de fenômenos que também pode ser bem descrito como a supremacia da língua sobre a palavra ou do impessoal sobre a transcrição subjetiva.

Poder-se-ia pensar, nessas situações, em um trabalho do negativo que conduz a um apagamento do sujeito, uma alucinação negativa do sujeito realizada pelo próprio sujeito, como propôs Green (2000).

Muitas vezes, nos breves e parcos flashes que alguns pacientes desse tipo trazem para a sua vida, já surgem algumas características relevantes do seu funcionamento mental que chamam a nossa atenção: a ausência completa de relações, um isolamento afetivo radical. "Nunca consegui tocar a minha filha quando era pequena nem brincar com ela" - diz um paciente. "Me impressionava aquele corpo que se movia, talvez seja por isso que ela me odeia e não fala comigo." Eventos rarefeitos, desconexos, aparentemente caracterizados por uma espécie de estranha insignificância e que parecem, a um olhar retrospectivo, como grumos vagantes de vínculos e de percepções em um universo líquido, no qual a confusão do analista, ao escutar esses relatos, às vezes se expressa por meio de sensações desconcertadas ou sentimentos de desconfiança ou de incredulidade. Ou então surge uma história construída essencialmente ao redor de um sintoma e de sua permanência no decorrer dos anos,4 espécie de rastro identitário e, ao mesmo tempo, processo de dessignificação. Às vezes, são relatos confusos e carregados de angústia, centrados em torno de condições infantis marcadas pelo terror das reações parentais, caracterizadas por uma incontrolabilidade e inexplicabilidade. Fica evidente nos casos que mencionei como o paciente foi reduzido ao silêncio, ou se organizou em torno dele, e como a estratégia de sobrevivência foi a de sintonizar-se o mais rapidamente possível com os estados de ânimo do agressor, para captar, preventivamente, os seus movimentos psíquicos. Gostaria também de acrescentar, como hipótese de trabalho, que alguns desses pacientes parecem não poder dispor de estados afetivos porque estão constantemente voltados ao monitoramento dos estados afetivos do outro, sentidos como particularmente ameaçadores e destrutivos. O afeto torna-se, em suma, mais um sinal a ser descoberto no outro, com o objetivo de confiná-lo, privando-o da sua dimensão relacionai, da sua capacidade de remeter a outro de si.

Dado que possamos considerar válida a hipótese de que esteja gravemente prejudicado o papel dos objetos primários e a sua utilização como objetos transformadores, bem como a tentativa de pensar-se com e mediante o outro, seguem-se soluções caracterizadas pela negação das vivências de insatisfação, de sofrimento e de necessidades não escutadas, de consequências importantes para as capacidades representativa e emocional. A negação ou a desvalorização das dimensões pulsionais do sujeito, a oposição ao perceptivo e, portanto, à experiência, apenas marca da verdade dos próprios pensamentos e afetos, é acompanhada de uma atividade representativa insuficiente ou construída contra o reconhecimento das próprias verdades.

É fundamentalmente a dimensão autorrepresentativa da mente que é atacada, e em consequência somos muitas vezes induzidos a considerar carente também a dimensão subterrânea, a representativa. Como eu dizia, tais pacientes observam de forma persecutória os movimentos do objeto, sondam os seus estados de ânimo, prenunciam as direções, as intenções, intuem e projetam maciçamente, engolindo sucessivamente as diferentes sensações e as reflexões instantâneas que nascem sobre os estados de ânimo dos outros. Ao mesmo tempo, a impossibilidade de "ausentar" o objeto primário, devido a uma inscrição psíquica que se tornou árdua pela incontrolabilidade e paradoxalidade do objeto, ou por uma incorporação defensiva (mais globalmente pela interdição originária de criar um espaço livre da colonização do objeto), dá conta também da luta contra os processos psíquicos mais desenvolvidos. Disso resulta uma construção em faux self, que permite, ao mesmo tempo, incorporar as qualidades psíquicas do objeto, afastar-se dele, destruir as emoções, evitando o risco de uma "transformação poética", uma ressonância que conduza a reintroduzir o objeto no campo perceptivo do sujeito (McDougall, 1993), salvaguardando, porém, fragmentos pulsionais mais autênticos, mas constantemente negados e ocultados.

Esse aspecto é importante por significar como na oscilação catastrófica entre presença intrusiva e distância desalentadora, ou então entre morte psíquica e aferramento tenaz - em uma destemporalização da transferência geradora de uma análise interminável (Donnet, 2000) -, a palavra é utilizada não tanto para comunicar aspectos profundos, que, aliás, são temidos, quanto para manter um contato com o objeto de uma forma que proteja tanto de uma distância excessiva quanto de uma proximidade angustiante.

Se a dimensão afetiva, a possibilidade de percorrer novamente as diferentes camadas do tempo, a reverberação do sentido, a construção de pensamentos não pensados, de reatravessar as ramificações identitárias, a apropriação de sentido e de elementos do universo psíquico, que até então tinham ficado à margem, representam os aspectos fundamentais da situação analítica clássica, que aspectos encontramos, em vez disso, em algumas condições clínicas que se aparentam a condições símil-autistas, estados-limite, angústias narcísico-identitárias profundas?

Um paciente, Ludovico, se expressa assim: "Sou muito deprimido, não sei o que venho fazer aqui, o senhor conhece os meus problemas, eu queria entender por que não consigo ter o trabalho que queria ter e encontrar uma namorada". Trata-se de um paciente com características muito pronunciadas de isolamento emocional, com o relato de uma história familiar extremamente rígida, nos limites da persecutoriedade e da rejeição de qualquer movimento instintivo. Para dar um exemplo, quando teve a sua primeira ereção, ou ao menos a que lembra como tal, se assustou muito por aquilo que lhe estava acontecendo e foi conduzido a um médico para que lhe fosse dado um tratamento adequado, alguns tranquilizantes, para liberá-lo daquele "estranho incômodo". Nunca recebeu brinquedos de presente, "eram considerados objetos inúteis"; nunca teve amigos na infância, transcorrida, portanto, em um retiro absoluto e infeliz, sob o controle de um pai que exaltava continuamente, nos seus discursos, as ditaduras mais extremistas. Fechado, taciturno, dificilmente evoca aspectos que vão além da vida cotidiana e, mesmo nesse caso, com elementos pobres. Embora tenha estado em terapia com muitos terapeutas e por inúmeros anos, tenho a impressão de que tudo escorregou pela sua pele sem deixar vestígios. Os relatos das experiências anteriores são pobres e, além disso, marcam o seu fracasso e a sua inutilidade. A meu ver trata-se, ao mesmo tempo, de um trabalho de empobrecimento emocional, de dessignificação e de migração do ódio do objeto originário para a situação analítica. O que induz a pensar que, não obstante as suas negações, algo tenha acontecido e que, embora o ódio e a rejeição sejam as características primárias que distinguem esse tipo de relação analítica, mesmo assim algum trabalho psíquico parece realizar-se (Balsamo, 2012a, 2012b, 2012c).

A sensação diante desse tipo de paciente é a de viver, eu mesmo, uma real dificuldade de pensamento e de contato emocional, na qual as minhas ideias ou as minhas observações são motivo de deboche, tornam-se inertes por uma concretização do pensamento relevante, por um "não posso saber como as coisas estão" que muitas vezes acompanham as minhas intervenções, privadas assim de qualquer ressonância. Encontro, aqui, aquele sentimento contratransferencial de indiferença e de paradoxal perda de curiosidade e empatia em relação ao outro do qual fala McDougall a propósito de seus pacientes-robô. Todavia experimento, apesar de tudo e mesmo nessas condições tão específicas, momentos tão breves quanto intensos de intimidade emocional: um olhar, um sorriso, uma brincadeira delicada. Tais momentos são raros mas importantes: parecem conseguir mostrar que o objetivo da análise não deve ser somente (ideia que pouco a pouco comecei a levar em consideração) o de fornecer um sub-rogado de vida, como se a terapia fosse utilizada como um substituto da existência, e que, às vezes, um verdadeiro encontro é possível. Na verdade, estamos aqui diante de um paradoxo substancial: a terapia é procurada e torna-se inerme ao ser apenas uma luta ou um combate mortal de sujeitos para impor o próprio ponto de vista. No entanto, paralelamente, ela surge como uma relação protegida, uma relação na qual o pai não é tão louco a ponto de produzir novos assassinatos da alma, e é possível experimentar alguns raros momentos, silentes, de intimidade e de prazer, em um universo que permanece de qualquer forma desertificado. A rigidez emocional e a utilização do outro como mero instrumento de sustentação narcisista são evidentes: ao mesmo tempo, o objeto é constantemente desvalorizado na busca ou na fantasia de um outro melhor e mais importante. Muitas vezes um objeto é valorizado (de forma superficial e distante) assim que aparecem alguns indícios de possíveis inícios de uma relação, mas com o fim de diminuir a importância do objeto presente. Trata-se de um movimento que não diz respeito à ambivalência, mas a uma verdadeira negativização do ser, construindo um simulacro de vida e de interesse, no qual cada aproximação (ainda que imaginária) é imediatamente negada pelo desinvestimento rápido e violento do objeto.

Como consequência, há uma espécie de resistência desconfiada à intervenção e às propostas feitas, que acabam coincidindo, na sua transformação desafetivizada, com o caráter bizarro das respostas parentais. O curso das sessões se desenvolve através de relatos breves de eventos cotidianos sem nenhuma ressonância emotiva. No fundo, cabe ao analista encontrá-la, criá-la; descobre-se então com interesse que a disponibilidade para sentir pode ser vivida como o acolhimento de uma eventual possibilidade de viver, como uma permissão para ser e para existir. Acredito que este campo de fenômenos ilustre bem o funcionamento "poético" do ato analítico, no sentido de não ceder à aparência das vivências ou dos relatos apresentados, e na disponibilidade de procurar, na valorização do perceptivo inconfessado, um sujeito oculto no ritmo sempre igual da repetição.

LUDOVICO: Como posso acreditar naquilo que o senhor diz? Cada terapeuta me deu uma explicação diferente, como o senhor também. Se eu desisto e vou para outro, vou receber outra explicação. Não tem nada de científico em tudo isso.

ANALISTA: Poderia tentar ouvir aquilo que sente e julgar a partir daí.

LUDOVICO: Não sinto nada. Não entende que é tudo tempo perdido?

ANALISTA: [Depois de um pouco de silêncio] Porém fica com raiva quando eu lhe peço para tentar sentir a si mesmo. Então alguma coisa você sente, mesmo que seja difícil dizer o que é para você mesmo.

LUDOVICO: Prefiro que os outros pensem.

ANALISTA: Sim, claro, assim pode controlar se não são loucos demais. Porém você me faz notar, quando me conta aquilo que vive, na maneira como me conta, que tem sempre uma ideia daquilo que acontece, embora não consiga dizê-lo para si mesmo.

LUDOVICO: [Após alguns minutos calado] Quando era pequeno acontecia de eu querer falar, mas meu pai começava a gritar e minha mãe lhe dava razão, dizendo que eu era estranho e malvado porque contestava o meu pai.

ANALISTA: Está me dizendo que desde a sua infância aprendeu a pensar em silêncio, sem mostrar para os outros?

Ludovico concorda e então me fala de uma garota que conheceu e do que aconteceu, não hesitando, por meio de uma aparente e anônima descrição da situação, em me fazer, na realidade, partícipe dos seus pensamentos secretos. O perceptivo ocultado, a marca do pulsional pelo qual se responsabiliza o sujeito, a possibilidade de uma segunda cena, além daquela aparente, podem assim emergir.

Poderíamos descrever o conjunto dos movimentos analíticos que se realizaram no decorrer desse caso como a tentativa de não fazer coincidir o campo da experiência (que nesses casos se reduz necessariamente à experiência passada, sendo invalidado qualquer futuro) com o horizonte de espera que todo movimento de desejo necessariamente introduz. A coincidência entre as duas dimensões obriga a palavra a fazer-se testemunha da história já escrita, o distanciamento entre elas introduz o possível. Aliás, lembro que era por esse motivo que Aristóteles considerava a poesia superior à história, pois esta descreve o ocorrido, enquanto aquela introduz o possível.

Entretanto, se a psicoterapia é um jogo que é preciso aprender, no dizer de Winnicott, por que não deveria ser o mesmo para a vida? "Queria falar de uma coisa" - me diz Ludovico. "Acho que aquilo que o senhor me disse na última vez me parece parcialmente certo." "Me parece já é muito" - respondo, e ele ri.

Diante do trágico e do imutável, diante do terror dos enunciados, aonde se pode ir à caça do sujeito que, mesmo assim, em algum lugar se esconde? Aprendi com esse paciente que um olhar, um sorriso, uma pequena careta (em uma amplificação máxima da atenção e em um corpo a corpo erótico que o libidiniza) são as formas com as quais pensamentos não pensáveis se realizam e marcam a própria existência. Afetos que podem ser retomados, certamente através de longos afastamentos: a vivência afetiva, para não ser destrutiva, ou uma nova imposição de um código identitário, não pode ser o resultado de uma decifração dos seus estados, mas deve passar antes por mim para mostrar-lhe que a comida que lhe ofereço não está envenenada. Poderíamos dizer que preciso antes degustar o afeto. De fato, a forma expressiva que uso mais frequentemente é: "Isso me faz pensar em... E você, o que acha?" E contudo, ao mesmo tempo, essas vivências indicam estados do ser a serem reencontrados, identificados, descobertos, diante da crença de que tudo está sem vida. Parece que formas de vida estão contidas até onde parece impossível que exista a vida comumente conhecida. E essa descoberta, no fundo, não nos faz sentir menos sozinhos?

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 2014: Rivista Italiana di Psicoanalisi, 2,295-316.

2 "A psique constitui um campo de variabilidade: ela está em comunicação com o mundo externo e com os seus inúmeros campos de variabilidade" (Hermann, 1990, p. 130).

3 Lembro que, para Kristeva, o semiótico é o rastro que o pulsional deixa na linguagem.

4 "Todos esses pacientes têm um sistema de crenças que é a explicação-chave dos seus males" (McDougall, 1993, p. 129).

 

Referências

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Correspondência:
Maurizio Balsamo
Via Piave, 36
00187 Roma
m.balsamo@mclink.it

Recebido em 17.3.2015
Aceito em 7.7.2015

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