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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo Out./Dec. 2015

 

OUTRAS PALAVRAS

 

O que a subjetividade contemporânea tem a ver com o romance e o miniconto?

 

What does contemporary subjectivity have to do with novel and very short story?

 

¿Qué tiene que ver la subjetividad contemporánea con la novela y el minicuento?

 

 

Luciana Saddi

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em Psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora dos livros O amor leva a um liquidificador (Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Jaboticaba)

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo demonstra haver uma forte ligação entre diferentes afirmações de Fabio Herrmann sobre o quotidiano, o pensamento, o ato e sua ideia de que a ficção é o análogo da psicanálise. Partindo de uma breve investigação sobre os gêneros literários e seus vínculos com a história e com os povos, a autora traça algumas relações entre a modernidade, o romance e o neurótico a fim de empreender uma análise sobre o miniconto, evidenciando sua ligação com as novas patologias e a subjetividade contemporânea.

Palavras-chave: ficção; romance; modernidade; miniconto; novas patologias.


ABSTRACT

This paper demonstrates the existence of a strong relationship between Fabio Herrmann's different statements about everyday life, thinking, act, and his idea of fiction as being the analogue of psychoanalysis. Starting from a brief investigation into literary genres and their relations with history and peoples, the author relates modernity, novel and the neurotic, in order to perform an analysis of the very short story, emphasizing its connection with new pathologies and the contemporary subjectivity.

Keywords: fiction; novel; modernity; very short story; new pathologies.


RESUMEN

El artículo demuestra que existe una fuerte conexión entre diferentes afirmaciones de Fabio Herrmann sobre lo cuotidiano, el pensamiento, el acto y su idea de que la ficción es el análogo del psicoanálisis. Partiendo de una breve investigación sobre los géneros literarios y sus relaciones con la historia y con los pueblos, la autora traza algunas relaciones entre la modernidad, la novela y lo neurótico, a fin de emprender un análisis del minicuento, mostrando su relación con las nuevas patologías y con la subjetividad contemporánea.

Palabras clave: ficción; novela; modernidad; minicuento; nuevas patologías.


 

 

Introdução

Este artigo pretende demonstrar duas diferentes afirmações de Fabio Herrmann, que se comunicam e formam uma totalidade que merece ser explorada.

A primeira afirmação se encontra no livro Psicanálise do quotidiano (1997). Diz respeito a conhecer o mundo psicanaliticamente: psicanálise da cultura. Herrmann afirma que, para conhecer as fontes de nossas ideias sobre o mundo, é preciso levar em conta o seu regime de pensamento para não desarraigar o sujeito individual, porque desarraigado ele não existe. O pensamento não pode ser considerado como algo apartado do mundo, em estado puro, flutuando por aí. O pensamento vem do mundo e a ele se dirige, pois este se pensa através de nós, e o modo do nosso pensar é o modo de ser do nosso mundo.

O mundo enquanto pensamento é psique em ação, é forma e origem. Portanto, para conhecer psicanaliticamente o mundo é necessário conhecer as fontes de nossas ideias sobre ele: estas nos são inoculadas pelo Real, o grande produtor de sentido, que se esconde por trás de seus produtos. Assim, só temos acesso ao Real por meio da realidade, ou seja, por meio de uma série de relações - relações que, vistas na interioridade do sujeito psíquico, denominamos identidade e, quando observadas no mundo em que vivemos, chamamos de realidade.

Herrmann também define o que significa um quotidiano: quotidiano, para a Teoria dos Campos, é o campo geral de nossas relações, o lugar onde o Real se transforma em realidade. O psicanalista, por meio de uma imersão simpática em seu objeto, o reino dos sentidos, pode investigar um dado fenômeno da cultura ou da realidade social.

A segunda afirmação é proveniente de suas aulas na PUC-SP (Herrmann, no prelo) e diz respeito ao trabalho teorizante do analista. Ele afirma que a ficção é o análogo da psicanálise. A forma como se constroem os conhecimentos em psicanálise é dada pelo surgimento de sentido. É provável que tenha partido da ideia de que a matemática é o análogo da física, e que as demonstrações matemáticas conferem cientificidade à física.

A nossa é uma ciência interpretativa, e o lugar em que seus conhecimentos são produzidos assemelha-se ao lugar ocupado pela literatura de ficção - esta também uma interpretação ficcional do homem e do mundo. Como os escritores, nós, os psicanalistas, não buscamos os fatos: criamos a oportunidade para que os sentidos agraciem as realidades; para expor, contar, narrar e descrever o homem, os homens e seus mundos. Os sentidos emergem pelo trabalho analítico e eles mesmos são interpretações que surgem do paciente ou da realidade - por isso a semelhança com a literatura de ficção, que faz e é, simultaneamente, um inventário de seu tempo. Para Herrmann, esse proceder interpretativo, próprio à psicanálise e criado por Freud, é análogo ao fazer do escritor de ficção ou ensaísta. Isto é, em um romance, através das peripécias de uma história, vemos as alterações nas relações sociais, na forma de amar, no sofrimento privado ou coletivo etc. O psicanalista em um procedimento análogo atravessa com o paciente suas histórias, histórias estas que se revelam pela ação interpretativa do método em sentidos múltiplos. Histórias são construídas e reconstruídas a dois; a arte de narrar e de criar sentido para a experiência humana é a arte do método interpretativo da psicanálise. É para este reino análogo, o reino da ficção, que o analista se retira tanto no seu fazer clínico como no seu fazer teórico.

No reino da psicanálise - pelas mãos de Freud - as demonstrações se dão por meio da escrita: é na escrita que encontramos o inconsciente, o aparelho psíquico, o mecanismo dos sonhos, as pulsões etc. A psicanálise, seu arcabouço teórico fundante, nasce da potência criativa que a escrita oferece para a extensão das fronteiras do pensamento e para a construção de novos conhecimentos e mundos. Ela mesma é uma interpretação.

 

Modernidade, romance, psicanálise e neurose

Octavio Paz, no livro O arco e a lira (1956/2013), afirma que não existe sociedade sem palavra poética. A poesia, segundo esse autor, transmuta um instante pessoal ou coletivo em arquétipo, por isso ela é fundante dos povos. É um produto social, um testemunho histórico. O poeta, ao "dizer das coisas que são suas e do seu mundo", não escapa da história, mesmo que a renegue. Até quando invoca as mais secretas experiências pessoais, ele as transforma em palavras sociais e históricas. E, ao mesmo tempo, com as mesmas palavras, ele revela o homem, sendo essa revelação o fundamento de todos os poemas. A revelação não se refere ao que as palavras querem dizer: refere-se a algo anterior, no qual as palavras se apoiam. Segundo Paz, é a condição do homem que é revelada, condição encarnada no poema e em permanente transcendência. Portanto, o poema fala tanto de uma "outra coisa" como disso e daquilo. Quando consagrado pela poesia, alcança a transcendência da temporalidade e revela o homem e sua condição de eterna transcendência e fala da história, da sociedade e de suas ligações com outras obras e com os gêneros literários, sem jamais se reduzir a um gênero simplesmente. "A poesia revela este mundo; cria outro."

Podemos afirmar, grosso modo, que todo o poema revela uma maneira particular de ser histórico, possui realidade histórica e função em qualquer sociedade. Seja a poesia épica, a lírica, a dramática, a tragédia, a comédia, o teatro, até mesmo o romance, filho da modernidade - não importa o gênero -, se há poesia (transcendência), chamemos de poema.

Paz afirma, a partir de uma ideia de Hegel, que não há sociedade sem épica. A épica típica da modernidade é o romance, gênero inaugurado por Cervantes, em Dom Quixote, que revela o humor e a subjetividade crítica. Realidade e fantasia, senso comum e loucura se relacionam com equilíbrio, a balança não pende jamais para um dos lados. Dom Quixote apresenta ao leitor uma realidade vacilante, sem resolução, fundindo as dicotomias pelo humor e a ironia fina. Há ambiguidade em seus personagens: ora parecem quase grotescos, fantasiosos e irreais, ora parecem habitar o senso comum, harmonicamente integrados à realidade.

O romance, enquanto gênero, encarna em uma quantidade de subgêneros como a confissão, a autobiografia e o ensaio filosófico, situando-se de maneira híbrida entre a poesia e a prosa, entre a história e o mito, entre a psicologia e a sociedade, entre a imagem e a geografia. Esse gênero é um ente impuro, rompe com as convenções e os limites dos gêneros literários, assim como a poesia moderna.

Pensemos em algumas de suas características: seus heróis são duvidosos, encontram-se entre o louco e o sensato, entre o santo e o demônio - e todos estão em conflito com o mundo.

Os heróis dos romances são anti-heróis, personagens perdidos à procura de si ou de um lugar no mundo (mas o mundo se tornou um lugar estranho), ou são como sombras, máquinas, desdobramentos do eu a atacar o eu do herói.

O gênero romance cria mundos, mundos em conflito; constrói personagens e coloca personagens em conflito; a resolução de conflitos não implica nunca no cosmo reorganizado - implica apenas em dúvidas sobre o status da realidade.

Ao nos apresentar inúmeras realidades, o gênero romance introduz humor e ironia e insere subjetividade na ordem objetiva. Coloca sob suspeita a realidade da realidade.

Vejamos o que Octavio Paz afirma:

para os antigos o mundo se apoiava em sólidos pilares: ninguém questionava as aparências porque ninguém duvidava da realidade. Na Idade Moderna aparece o humor, que dissocia as aparências e torna real o irreal, irreal o real. A arte "realista" por excelência, o romance, questiona a realidade da chamada realidade. A poesia do passado consagra os heróis, chamem-se estes Prometeu ou Segismundo, Andrômaca ou Romeu. O romance moderno os examina e os nega, mesmo quando se apieda deles. (p. 224)

Assim o leitor é convidado a habitar o mundo construído pelo romance e por cada romance. Ainda que adentre num mundo incerto, vacilante e por vezes surpreendente, há um sentido de continuidade interna que poderá ser rompido apenas ao final da leitura. Antes disso, porém, um universo foi apresentado, uma visão de mundo construída e em seguida destruída. O leitor se relaciona com os personagens, se identifica e se sente inserido numa narrativa possível de ser compartilhada pela comunidade. Há uma história a ser contada no romance, às vezes difícil, às vezes fragmentada no tempo, que comumente surpreende com reviravoltas. Uma história que coloca em dúvida a continuidade das características das personagens e da própria história. Mas, mesmo que duvidemos da própria história, ao final da leitura não negamos que essa tenha sido construída e apresentada ao leitor.

O gênero romance nasce na modernidade e, como vimos, fala de um momento histórico específico. O romance revela a modernidade e a modernidade revela o romance de maneira indissociável. Essa poderia ser uma afirmação de Herrmann ao dizer que, em cada quotidiano, ou seja, em cada porção do mundo, é preciso levar em conta o regime de pensamento dele, pois este não está desarraigado do sujeito individual. Se essas afirmações forem verdadeiras, encontraremos no romance a modernidade, a psicanálise e o neurótico, e vice-versa. Cada quotidiano revelará homem e mundo.

Segundo Paz, "a revolução moderna tem uma característica que a faz única na história: sua impotência para consagrar os princípios em que se baseia" (p. 227). A modernidade parece condenada ao sacrilégio sem que seja sucedido pela consagração de novos princípios; gera um vazio na consciência. Assim, a pátria deixa de ser uma comunidade, uma terra, algo concreto e se converte em nação: uma ideia pela qual todos os valores humanos podem se sacrificar. O tirano é substituído pelo Estado, uma ideia imortal, com eficiência maquínica e impessoal. A revolução burguesa, ao negar a nobreza e tomar o poder, engendra e expõe outro conflito, o conflito com a classe operária, que a nega. A técnica substitui a magia - no mundo mágico, há uma visão cósmica, interpenetrante do homem com o Universo, tudo se transforma em tudo, tudo se comunica com tudo, tudo é vivo -, mas nem por isso o homem moderno entra em contato com a natureza, porque esta se tornou um complexo sistema de relações causais, ordenações e quantidades. Na modernidade, pessoas se tornam utensílios, instrumentos; é a reificação, que consiste em considerar o trabalho como mercadoria e o homem como coisa. O Iluminismo critica a religião e questiona a fé, mas as ilusões tomam o lugar da fé e até mesmo essas se evaporam. O espírito crítico, a dúvida racional, mais que um instrumento de libertação, é o próprio fundamento da modernidade - entendido como um movimento constante de destruição da ordem do mundo. A crítica, o princípio da sociedade moderna, gera a negação de si mesma, é "seu alimento e seu veneno".

A psicanálise também nasce na modernidade, do projeto racional e científico, mas ela própria coloca em crise esse projeto racional e científico, e de roldão se vai a noção de realidade, pois a ideia do inconsciente freudiano inverte a proposição racional do conhecimento científico e positivo. Ao aceitarmos a presença do inconsciente na vida mental, passamos a falar em realidades, em níveis de consciência e, principalmente, passamos a admitir que não controlamos nossos pensamentos e sequer somos senhores em nossa própria casa, a razão. Herrmann (1997) afirma que é possível que Freud acreditasse ter cumprido, com a criação da psicanálise, o projeto do conhecimento ocidental, levando-o a seu termo, quando, na verdade, já abalara seu mais prezado fundamento: a cuidadosa distinção entre razão e loucura.

E o neurótico, o que ele tem a ver com a modernidade, com o romance e com a psicanálise? Acredito que, no mínimo, a psicanálise o tenha, se não criado, ao menos revelado - esse sofredor imaginário, capaz de contar-se e recontar-se sem jamais encontrar uma única solução plausível. Um sofredor de doenças que não se encontram em nenhum lugar do corpo, conversões sem base material, abrindo-se para tantas outras realidades que a escuta psicanalítica revela. O neurótico é aquele que não sabe; e, quando sabe, nega e se nega. Duvida de si e do mundo. Vive em conflito com partes de si e com a própria realidade. Suspeita do amor e, por vezes, suspeita da própria existência. Sofre com suas ficções e padece de suas próprias ficções. Sua excitação erótica depende do conflito entre tentação e proibição. A dicotomia instalada por Freud entre a consciência e o inconsciente, sobrepondo outra cena e outro espaço entre o mundo interno e a realidade social, parece ser o espaço habitado por ele. Nas neuroses, de modo geral, as fantasias ganham status de realidade e a realidade ganha o de ficção, e tudo é intercambiável. Ou como fala Viñar sobre o paciente de análise: "o sujeito crítico, questionador e autoteorizante, próprio da modernidade, que normalmente vinha ao nosso divã..." (2012, p. 67).

O neurótico é o herói do romance, é aquele que se deita no divã, é também o homem da modernidade, vive no tempo da psicanálise. Nas palavras de Horenstein: "Em sua condição fractal, a psicanálise permite observar, sob o microscópio de cada cura, a mesma estrutura que governa a experiência em termos de época" (2012, p. 28).

Se o neurótico encarna seu tempo e encarna o romance, como pensar sua cura, sua superação? Segundo Kehl (2001), o que está em jogo numa análise é "a passagem do romance ao conto", frase de Lacan que ela explora num artigo em que procura relacionar a subjetividade oitocentista e sua literatura. Kehl lança mão da ideia de que, no lugar de uma longa e contínua explicação sobre si, no lugar de uma compulsão que visa deter o tempo e eliminar o movimento errático da vida e/ou o movimento das pulsões, encontraremos uma ficção mais imprecisa, mais misteriosa, que dá suporte aos enigmas no lugar de procurar esclarecê-los. O conto seria uma encarnação de menor implicância com a própria história, mais "desencanado", nas palavras da autora, menos centrado no individualismo e mais referente a dívidas e dependências do sujeito com seu semelhante. O conto trai as regras do romance e revela seus truques, mas principalmente tem a elegância de ser conciso.

Muitos autores da literatura consideram o conto como o gênero da segunda metade do século XX. Eles não ousam voar tão longe quanto Lacan, citado por Kehl, e nem poderiam tecer argumentos sobre psicanálise e cura. Mas, ao consagrarem o conto como o gênero que representa os últimos cinquenta anos do século XX, engrossam a ideia de que cada época tem sua épica, e o caracterizam não somente pelo tamanho, uma narrativa curta e concentrada, mas também pela variedade e pela liberdade, tornando difícil definir de maneira mais geral suas características. Podemos considerar que no conto encontramos ruptura com a linguagem e com a narrativa tradicionais; nele a frase se torna mais curta, a comunicação mais breve; uma narrativa condensada e penetrante compreende que o tempo do homem se encurtou e também é fruto desse mesmo fenômeno. Muitos reconhecem a importância histórica da expansão da imprensa escrita em sua divulgação e proliferação como gênero. A título de exemplo, Italo Calvino, em Por que ler os clássicos (1993), comenta que a nossa época (anos 1980) é a época do conto e do romance breve.

 

Pós-modernidade, miniconto, novas patologias

Se as afirmações anteriores forem verdadeiras, qual seria a épica da pós-modernidade? Qual quotidiano estudaríamos para demonstrar as ideias de Herrmann sobre a ficção como análogo da psicanálise e sobre o Real como o grande produtor dos pensamentos? As novas patologias problematizam a relação entre os tradicionais eixos do pensamento psicanalítico (embora o peso dado a cada um desses eixos varie muito entre os analistas) - constituição, cultura e relação infantil? A sociedade da informação, do espetáculo, o amor líquido? Escolhi o miniconto como quotidiano a ser estudado. Antes de tudo, quero dizer que não sei se o miniconto é tido como um gênero aceitável nos meios acadêmicos da literatura. Ele foi escolhido pela sua popularidade recente na mídia, estando em diversas publicações. É um texto pouco inteligível, me causa enorme estranheza, não é um verso, não é um conto, nem sequer uma piada. Foi a negatividade do miniconto, um subgênero marcado pelo não ser, que me levou a empreender esse breve estudo. Vejamos um miniconto bastante interessante:

Um tiro na boca e este vermelho, cereja, cerzindo ziguezague a camisola do dia. (Ivan Bonatelli, comunicação pessoal)

Suas características são diferentes das de um "conto pequeno". No miniconto, mais importante que mostrar é sugerir, deixando ao leitor a tarefa de "preencher" as frestas narrativas e dar sentido à história por trás da história escrita.

Quanto menor o espaço, mais direta a narrativa. Os personagens são planos, não há espaço para aprofundá-los; a descrição do personagem não passa do essencial para aquele pedaço de história. A narração insinua um acontecimento, um acontecimento que muitas vezes não se conclui. Podemos encontrar situações de proibição, de transgressão ou combate sem que haja um desfecho claro. Isso deixa o leitor à vontade para preencher os espaços da narrativa.

Muitos minicontos apresentam a narração em apenas uma linha, para que no mínimo de palavras tenhamos um contexto e uma ação. Um dos mais famosos foi escrito por Augusto Monterroso e se chama "O dinossauro":

Quando despertou, o dinossauro ainda estava lá. (Monterroso, online1)

Uma característica importante é o efeito de choque: os minicontos "causam"! Levam ao desconcerto para depois exigirem um trabalho de superinterpretação. O leitor deve imaginar, a partir dessa frase, os eventos que precedem o acontecimento, assim como as consequências após a descoberta do dinossauro. Com um número pequeno de palavras, há uma expansão de significados. O personagem aqui não é definido, o sujeito da narrativa fica em aberto. Seria o dinossauro o coadjuvante para auxilar o herói ou quem lhe designou uma prova a fim de comprovar suas forças? O miniconto trabalha com narrações inteiras subentendidas em pequenos contextos e ações que dependem da superinterpretação do leitor. Mas o que isso tem a ver com a subjetividade contemporânea?

Um mínimo de realidade se alia ao máximo de interpretações. Num miniconto, habitamos um mundo dessubstancializado, que exige do leitor a construção da história e do sentido. O leitor se torna o grande construtor do que pensa ser a realidade, mas essa já se evaporou, transformada em qualquer coisa e em coisa nenhuma, convertida em imagem, em informação, virtualizada - significando que um mínimo de caracteres com sentido equivale a um mundo. O miniconto pode retratar a sociedade da informação, e paradoxalmente retrata a desconfiança que temos da realidade, gera desconforto, pois não há substância narrativa a que se apegar. O leitor se encontra reduzido no espaço e no tempo - achatado, como se fosse uma tela; então, sente-se obrigado a interpretar solitariamente, desconectado dos seus pares, obrigado a construir uma narrativa ou infinitas, pois todas são possíveis. É como se estivesse num desses jogos virtuais em que é o grande construtor isolado de cidades, hospitais, vidas, famílias, fazendas, contos e histórias - não importa. O construtor isolado do mundo é o onipotente criador de realidades infinitas e não compartilhadas. Tudo pode em frente ao seu computador; no mundo virtual, o jogador é rei e o mundo se oferece por inteiro a ele. E ele se retira do mundo para construí-lo.

O miniconto não permite o compartilhamento de uma saga qualquer, não há o que compartilhar, nada de patrimônio construído pelas nossas histórias, as de nossa língua, de nossa literatura ou de nossa família e juventude. Nada temos em comum. Há um excesso de individualismo. Destrói-se a horizontalidade do encadeamento de ideias, abole-se o diálogo e perdem-se os vínculos lógicos com um conjunto de ideias. Enfim, os laços com o mundo humano, dos quais a literatura é um grande representante, parecem desfeitos. Em vez do diálogo horizontal próprio das discussões, da criação de cidades, famílias, hospitais, fazendas e mesmo contos ou histórias, cada indivíduo é chamado a opinar e construir sozinho mil mundos inexistentes, que deixam de ser criações históricas e sociais.

Segundo Herrmann, o caráter de não transformar criticamente o que colhemos é um tipo de ato disfarçado de pensamento. É quando os atos constroem suas próprias razões e se autodemonstram. Essa parece ser uma característica da pós-modernidade, o que ele denominou de regime do atentado (Herrmann, 1997, p. 170). Em função do desenvolvimento tecnológico e científico, vivemos hoje numa sociedade baseada na informação, em que a distância entre as ideias e as coisas fica perdida. No mundo pós-moderno, o homem se sente impotente, pois a ordem tradicional foi substituída por outra ordem, sem raízes nos fatos, constituída por interesses que jamais poderemos provar, sem sentido fixo, criando um sentimento de irrealidade e desconfiança: nada é o que parece ser, nem a palavra nem a experiência possuem valor. Na pós-modernidade, a perda da noção de realidade se agrava. Dessa crise surge uma forma violenta de estar no mundo, a fim de garantir algum tipo de substância para o existir. Por isso, jovens "causam", precisam ser intensos e chocantes. Antigamente, bastava que acontecessem. Por isso também ações de marketing, pacotes econômicos de governo e ações políticas ou promocionais se assemelham a atentados. A perda de substância do mundo e do homem levou-nos a funcionar sobre as mesmas regras que os regem: aliar o máximo de potência ao mínimo de alvo. E assim coagular os atos. A única confiança, prova de realidade e de continuidade cotidiana, se dá nos atos, atos em forma de ações autoritárias, porque os atos mesmos perderam eficácia. Assim, as ações se transformam em sentidos em si, porque os sentidos estão perdidos, transformados em imagens virtuais, em ações sem pensamento. Poderíamos usar essas mesmas considerações sobre a pós-modernidade para o miniconto: nele encontramos as mesmas regras descritas por Herrmann para o mundo em que vivemos.

A superinterpretação exigida ao leitor nesse gênero se assemelha a uma ação ininterrupta ou a uma produção em massa de facsímiles e parece cair num vazio; é tudo muito, até o pouco é muito, mas sobretudo é desnecessário. Como se tivéssemos acesso a um número infinito de informações, mas fôssemos incapazes de fazer algo construtivo ou de produzir conhecimento com elas. E nem sequer proporciona a diversão de um videogame.

A transcendência, qualidade fundamental para que o poema seja agraciado com a poesia, segundo Paz, está ausente num miniconto. Não há transcendência porque não há existência temporal a ser permanentemente transcendida. A condição do homem de ser e não ser, ao mesmo tempo e sempre, não está presente no miniconto. Sua leveza vazia e exigente de superinterpretações não permite nenhuma revelação de natureza transcendental. O que não é não é, máxima extraída do poema de Parmênides, poderia ser aplicada a esse gênero.

Uma característica do miniconto, que não me parece herdeira da modernidade, é não ser possível criticar o mundo num miniconto - não há suspeita sobre a realidade da realidade - nem destruí-lo - é necessário criá-lo; os leitores ficam fascinados por poucos instantes e esquecem. Pensar numa sociedade que tenha o miniconto como sua épica é pensar no day after do fim do mundo, nos destroços. É possível que esse estranho gênero seja herdeiro da bomba atômica que destruiu a humanidade! Ao menos a destruiu enquanto possibilidade fantasiada.

Aprendi com Herrmann que o nosso método apresenta ao homem o absurdo que o constitui e, se possível, o ajuda a reconciliar-se com o absurdo e consigo mesmo.

 

Nota

1 Recuperado em 27 mar. 2015, de http://minimicrocon-tos.blogspot.com.br.

 

Referências

Calvino, I. (1993). Por que ler os clássicos (N. Moulin, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Herrmann, F. (1997). Psicanálise do quotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Herrmann, F. (no prelo). Sobre os fundamentos da psicanálise: quatro cursos e um preâmbulo (L. Herrmann, Org.). London: Karnac.         [ Links ]

Horenstein, M. (2012). O vaso e as sementes de girassol: notas para uma tradição que virá. Calibán: Revista Latino-Americana de Psicanálise, 10(1),27-38.         [ Links ]

Kehl, M. R. (2001). Minha vida daria um romance. In G. Bartucci (Org.), Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação (pp. 57-89). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Paz, O. (2013). O arco e a lira (A. Roitman & P. Wacht, Trads.). São Paulo: Cosac Naify. (Trabalho original publicado em 1956)        [ Links ]

Viñar, M. (2012). Tradição - Invenção. Calibán: Revista Latino-Americana de Psicanálise, 10(1),66-76.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luciana Saddi
Praça Morungaba, 66, Jardim Europa
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lusaddi@uol.com.br

Recebido em 24.4.2015
Aceito em 3.7.2015

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