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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo out./dez. 2015

 

RESENHAS

 

Psicanálise entrevista (Vol. 2)

 

 

Dora Tognolli

Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), mestre em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)

Correspondência

 

 

Organizadoras: Mara Selaibe & Andréa Carvalho
Editora: Estação Liberdade, São Paulo, 2015, 360 p.

 

 

 

 

O livro Psicanálise entrevista contém uma série de entrevistas realizadas pela revista Percurso, entre 1988 e 2014. Muitas histórias. Muitas memórias. Seu formato coloca um desafio para a proposta de uma resenha: tarefa impossível, diante de tantas veredas que se abrem, no tempo, no espaço, entre diversos países, instituições, afinidades eletivas e temáticas. Quase três décadas de percurso, a passagem pelo novo milênio, pelo novo século, e a psicanálise operando em cada experiência que temos o prazer de ler.

A leitura do volume deixa a impressão de que ele contém em si vários livros, ou vários idiomas, expressão utilizada por um dos entrevistados, Christopher Bollas, quando propõe a ideia radical de que cada paciente é um idioma. Podemos assumir, então, que cada entrevista transcrita pode ser lida como um idioma, que nos transporta a um universo particular, sem deixar de lado o leitmotiv que acompanha todas as narrativas: a experiência de trabalho no campo psicanalítico.

Cabe mencionar o elenco de entrevistados que compõem o livro: Radmila Zygouris, Jean Laplanche, Maud Mannoni, Monique Schneider, Bernard Penot, Anne Alvarez, Christopher Bollas, Luis Hornstein, Elisabeth Roudinesco, Jean-Jacques Rassial, Juan-David Nasio, Luís Carlos Menezes, Maria Rita Kehl, Maria Cristina Kupfer, Miriam Chnaiderman, Madre Cristina, Chaim Samuel Katz e Zygmunt Bauman.

O cuidado e a escuta dos entrevistadores, que permitem a abertura de questões para cada entrevistado e seu contexto, oferecem ao leitor a possibilidade de se deslocar e acompanhar experiências muito ricas, que interrogam a clínica e a metapsicologia.

A organização do livro é caleidoscópica: o critério não é perceptível ao leitor, que pode passear pelas inúmeras páginas e escolher a ordem da leitura de forma livre e pessoal. Há uma qualidade que merece destaque: a vivacidade das experiências, a paixão de cada entrevistado ao se contar, a pertinência a um campo perturbador e transformador que entra em cena, a partir do método que a psicanálise propõe e que sempre nos conduz a territórios que causam surpresa e espanto.

Através dos relatos dos psicanalistas, é possível tomarmos contato com o tripé que funda qualquer campo de conhecimento: a história, a teoria e o projeto. Algumas entrevistas abordam aspectos históricos, dos quais somos herdeiros, e vale notar que nem sempre nos damos conta das filiações que nos acompanham, de mestres que nos antecederam, e que explicam nossas afinidades e escolhas; já outras entrevistas se descortinam como verdadeiros seminários conceituais, tratando de forma criativa conceitos que são ferramentas de nossa clínica; e ainda nos encontramos com a questão do projeto, que indica o porvir da psicanálise - até que ponto vivemos hoje realidades que nos põem diante de sintomas inusitados e manejos que precisam ser problematizados? O que o mundo contemporâneo apresenta? Estamos preparados para a clínica atual? E o que é de fato esse atual? Os conceitos que prezamos dão conta das novas realidades? O que fica de resto não metabolizado? Não há resposta, mas a inquietação que esse pensamento traz nos tira da familiaridade que tampona todo o mundo pulsional.

Em relação ao aspecto institucional, as narrativas, vindas de épocas e continentes tão diversos, trazem à tona as vantagens e os riscos que a institucionalização propõe para a psicanálise: questões de poder, de arrogância, de guerras entre escolas, vaidades são abordadas por diversos entrevistados, como Roudinesco, Bollas, Menezes e Kupfer. E podemos identificar, em nosso território, como esses temas sempre se recolocam e precisam ser incluídos e problematizados.

O risco da endogamia, apontado por Zygouris e discutido em outras entrevistas, ganha espaço, e o livro nos apresenta inúmeros exemplos históricos de grandes psicanalistas e seus discípulos que formaram grupos de poder e de saber, alguns passando por rupturas, outros se mantendo a duras penas. Lacan aparece em vários contextos, tratado por discípulos, rivais, admiradores e herdeiros.

Se não é possível tornar-se psicanalista sozinho, ou seja, necessitamos de uma fratria, a leitura dos colegas psicanalistas descortina vários modelos de grupo, em que o maior risco é o dogmatismo, a fossilização, a paralisia, a repetição.

Seria tentador fazer um breve resumo de cada entrevista, no sentido de não deixar escapar o trabalho da memória contido na fala de cada psicanalista entrevistado. Mas, como esta tarefa não é factível, a opção é ilustrar o texto com alguns exemplos.

Laplanche nos brinda com um seminário em que aborda o "sexual, suas mensagens e traduções". Provavelmente, muitos de nós, psicanalistas, já atravessamos seus raciocínios brilhantes, mas escutá-lo formular sua teoria no calor de uma entrevista reaviva em nós a importância dessas considerações in statu nascendi. Um dos vários pontos tratados por ele refere-se à atuação do superego, que se intromete e impede a tradução, cristalizando as mensagens. O Outro, o estrangeiro, sempre nos propõe um enigma, que conduz à tradução e não à verdade. Considero este um aspecto importante no consultório, nas análises, nas instituições.

O conceito de recusa (Verleugnung) surge com muita potência na entrevista de Bernard Penot, colocando em cena o tema do segredo, da falta de simbolização, da ignorância psíquica. Esse tema é problematizado no seio das instituições, uma vez que o psiquismo funciona através de mecanismos que criam circuitos pulsionais nem sempre benéficos e que impedem a constituição de novos sentidos.

A trilha histórica e genealógica, foco de Elisabeth Roudinesco, aponta as posturas dogmáticas e fóbicas de profissionais e instituições; num certo momento, é retomado um diálogo entre Roudinesco e Derrida que veicula a ideia de que "a melhor maneira de ser fiel a uma herança é ser infiel a ela". Dentro desse raciocínio, destaca-se o risco que acompanha as sociedades ocidentais quando se prendem a metas de suprimir os conflitos inerentes aos grupos e erigir novos deuses.

Uma das manifestações de dogmatismo é a recusa de novas realidades. Em várias entrevistas, o conceito de recusa emerge rondando os psicanalistas, que muitas vezes se recusam a problematizar o mundo atual, fechando-se em seus consultórios, em seus templos e em seus conceitos. Recusa também da parte das instituições, que, nas palavras de Luis Hornstein, são marcadas por estereotipias, sacralizam o enquadre e fazem uso das teorias como função defensiva.

De forma bem-humorada, Nasio afirma não desejar "ser comido pelo conceito". Não deixando de reforçar a tradição, demarcando sua filiação entre diversos analistas de gerações distintas e desembarcando em Freud ("nosso tataravô"), Nasio enfatiza a importância de três momentos em seu trabalho: o primeiro grande momento, da clínica, da escuta, que tem como ferramenta o inconsciente do analista; o segundo, da transmissão; e o terceiro, da escrita, cujo maior desafio é "escrever na língua de todo mundo", ou seja, fazer-se entender, na medida do possível, por um outro.

A medicalização excessiva, evasão da dor, é tratada por vários psicanalistas. É Nasio que fala da importância de fazermos da dor um conceito psicanalítico, que em última instância remete à angústia, motor e caminho de nosso trabalho.

Cabe destacar a saborosa entrevista de Luís Carlos Menezes, que compartilha conosco sua história de migrações, deslocamentos, amizades e novas inserções; suas memórias de infância e juventude, a atração pela hipnose e a descoberta do texto freudiano, tomado como Conan Doyle e seu Sherlock Holmes, nos estudos sobre histeria. É com Menezes que adentramos no estranhamento necessário e inerente à convivência com colegas de escolas diferentes, mas com a possibilidade de trabalho em grupo, participação institucional e política. Menezes aborda de forma exemplar o tema do narcisismo e dos ideais, a tensão entre a massificação e o que ele denomina ato lúcido.

Fica o convite para a leitura dessas entrevistas, que constituem um acervo fundamental - trabalho de memória, que ilumina veredas importantes do campo psicanalítico, colaborando para garantir o espaço psíquico, o lugar do pensar e da política.

 

 

Correspondência:
Al. Rio Negro, 911/712, Alphaville
06539-205 Barueri, SP
Tel: 11 4191-6936
dorat.g@terra.com.br

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