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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo Out./Dec. 2015

 

RESENHAS

 

Aprendendo com as mães e os bebês sobre a natureza humana e a técnica analítica

 

 

Mariângela Mendes de Almeida

Membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), psicóloga e psicoterapeuta com mestrado pela Tavistock Clinic e University of East London, coordenadora do Núcleo de Atendimento a Pais e Bebês (Setor de Saúde Mental, Pediatria, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP)

Correspondência

 

 

Autoras: Nara Amália Caron e Rita de Cássia Sobreira Lopes
Editora: Dublinense, Porto Alegre, 2014, 252p.

 

 

 

 

Neste livro, em generoso e cuidadosamente detalhado material colhido ao longo de muitos anos de trabalho, as autoras Nara Amália Caron, médica, analista didata e psicanalista de crianças e adolescentes em Porto Alegre, e Rita Sobreira Lopes, doutora em psicologia pela Universidade de Londres e professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, documentam com expressiva sensibilidade o percurso de observação de bebês e seus pais desde as primeiras imagens ultrassonográficas, passando pelo parto, até os três primeiros anos de vida.

Fica claro durante a leitura o imenso investimento clínico, investigativo, em grupos de trabalho, supervisão, reflexão integrando teoria e prática psicanalítica, exercício de função de continência realizado em vários níveis, desde a atividade observacional até a elaboração do conteúdo para a transmissão escrita. A importância do trabalho em equipe e da articulação das várias partes do "bebê nascido a termo", com a publicação do livro após várias fases de "trabalho de gestação", já salta aos olhos como um relevante aprendizado para clínicos e pesquisadores em nosso campo.

Há uma semelhança inevitável e feliz entre o apresentado no livro e os três tempos da própria observação de bebês, segundo o proposto por Esther Bick: a experiência do observador, o registro detalhado e o compartilhamento. Todos estes momentos são também transmitidos ao leitor, que faz parte deste processo. O leitor também é levado a "observar" psicanaliticamente, ao "ler" com seus próprios sentidos os muitos relatos cotidianos de relações iniciais pais-bebês desde a gestação, a partir dos quais vai construindo compreensões, em diálogo com a reflexiva costura das autoras e interessantes "observações" relatadas pelas observadoras, compartilhadas no processo de supervisão, que chegam com frescor ao leitor. A elaboração conceitual possível advém então do encontro destas vivências e destas histórias entrelaçadas, que incluem também a narrativa interna da apreensão do leitor-observador. Assim aprendemos psicanálise com a observação de bebês: vivenciando estados primitivos e impactos emocionais, tentando significá-los em nosso repertório constantemente convocado à plasticidade e ampliação. Como apontam as autoras ao falar do estado mental da mãe em trabalho de parto, neste aprendizado, transitamos em diferentes níveis de estruturação psíquica. Dirigimos nosso olhar e escuta (Mélega & Sonzogno, 2008) aos fenômenos relacionais dos quais ao mesmo tempo somos tão íntimos e tão separados, sustentados por nossa identidade, função e setting de interna observação.

A observação de bebês, modelo Esther Bick, como forma privilegiada de acesso a aspectos das relações humanas em seus movimentos iniciais, por meio da própria experiência emocional do observador, tem sido, desde sua concepção no Reino Unido em 1948, muito útil à formação de psicanalistas e terapeutas e tem também sido plataforma de voo para muitas aplicações e desdobramentos ao redor do mundo. Profissionais treinados inicialmente na atividade-padrão, visitando a família semanalmente, registrando sua experiência e discutindo-a em pequeno grupo de supervisão, como formação, têm introduzido esta prática como possibilidade de oferecimento de continência em contextos clínicos e não clínicos em saúde e educação (Mélega & Sonzogno, 2008). A postura do observador e a possibilidade de refletir a partir da própria experiência de receptividade das dinâmicas emocionais sem pré-conceitos e pré-julgamentos podem ser muito úteis em trabalhos realizados em creches, pré-escolas, atenção primária, programas de saúde da familia, dispositivos e projetos terapêuticos hospitalares e em saúde mental, em neonatologia (em que se insere este dedicado trabalho de Nara Caron e Rita Sobreira Lopes em Porto Alegre, com projeção e visibilidade nacional e internacional) e instituições de cuidado em geral, além da possível utilização em projetos de pesquisa, como é também aqui ilustrado neste livro.

O trabalho de Nara e Rita permite ao leitor a convivência com ambas as facetas desta modalidade de contato com a experiência emocional de forma integrada: observação standard (como elas se referem à proposição clássica de E. Bick) e possíveis aplicações do método. As autoras esclarecem e demonstram sabiamente como

o fio condutor, através do qual se dá a passagem da observação clássica para as aplicações, está no treinamento da função do observador e nas transformações que ele sofre no decorrer da experiência continuada de dois anos, específicamente na forma de uma escuta refinada dos fenômenos psíquicos primitivos. (p. 242)

Fica aqui enfatizada a noção de um "setting interno aprimorado", "ferramenta que se adapta ao setting externo", sendo este, no caso da ampla equipe de pesquisa de Nara e Rita, a sala de ultrassonografia obstétrica ou o centro obstétrico.

Acompanhamos assim, ao longo dos detalhados capítulos, as experiências de observadores junto a quatro famílias e seus bebês (duas delas com gêmeos), desde a gravidez e contatos ultrassonográficos, passando pelo parto, até o terceiro ano de vida dos bebês. O ciclo se inicia de maneira convidativa ao leitor, com uma cuidadosa contextualização do tema da relação mãe-bebê, a partir de bem articulada revisitação da psicanálise em suas origens, destacando interessantes elementos precursores em Freud dos desenvolvimentos futuros viabilizados por Winnicott e Bick. Caracteriza-se também neste início da obra, de maneira clara, a atividade de observação pelo método Bick, seus momentos constitutivos e a proposta da pesquisa desenvolvida pelas autoras e sua equipe, dividida em grupo de observação de ultrassonografias e grupo de observação standard.

Como em uma expedição por entre "cavernas", imagem evocada constantemente pelas autoras e pelos relatos observacionais, o leitor é levado então, munido de seu próprio zoom em atenção flutuante e caleidoscópio emocional (também sugestivas imagens ligadas ao olhar analítico referidas no texto), a percorrer a trajetória de pais e bebês e a visitar a intimidade das relações nos três primeiros anos de vida. Neste percurso, conta com as autoras como experientes guias, familiarizadas com estes universos, desde as primeiras imagens e marcas de volume no imaginário, no corpo e na sensorialidade dos pais, originalmente presentificadas pelas experiências visuais, táteis, sonoras, proprio-ceptivas amplificadas ou tornadas possíveis pelas ultrassonografias que acompanham o desenvolvimento dos bebês apresentados. Contornos, densidades, impressões, contrastes, limiares figura/fundo, claro/escuro, dentro/fora, sombras, "imagens de silêncio e escuridão", aparecimento de detalhes e dimensionalidades, movimentos e balés de corpos gemelares, com verdadeiros ensaios de sintonia e manifestações em turnos, transformam-se em presenças psíquicas integradas ao histórico emocional de cada família, compartilhadas com a sensibilidade dos profissionais presentes na sala de exame e com a constância da presença continente da observadora psicanalítica. A possibilidade de ver através de paredes de "caverna", "de olhar para dentro" como reitera o texto do livro, persiste ao longo dos contatos com a intimidade das relações iniciais em sala de parto e nas observações posteriores em casa, onde interessantes modalidades relacionais podem reaparecer ou se transformar.

Compreendendo a dimensão do aprofundamento primitivo presente nas relações iniciais primárias, permito-me aqui, pela riqueza do material trazido pelas autoras, insistir em ampliar a referência a "mães e bebês" para "pais e bebês", já que a presença do casal e às vezes de outros membros da família, suas dinâmicas de contato, ressonantes na relação com as observadoras, as riquíssimas trocas de experiências, comentários e reflexões são material fartamente disponível no delicado e consistente relato e compreensão de cada caso.

É comum, em experiências relatadas por observadores psicanalíticos, a forma como estes passam a integrar intimamente a rede de continência, representando o olhar para o bebê e para as relações emocionais, mesmo sendo nossa função prioritária "apenas" desenvolver uma condição interna de tolerar, conter e aprender com a experiência emocional. Na obra de Nara e Rita, a integração do observador e a receptividade das famílias para "usar o objeto" (Winnicott, 1967/1971) são ilustradas de maneira surpreendente ao acompanharmos a presença do observador desde os primeiros ultrassons, na sala de parto, "cavernas" tão íntimas das diversas subjetividades envolvidas. As autoras destacam e demonstram na narrativa como o setting proposto para a observação/pesquisa, considerando a presença do observador e do ultrassonografista, exerce uma função continente ao acolher ansiedades, juntar partes, sugerir a presença de aspectos emocionais, identificar-se com os pais, sem críticas morais ou respostas rápidas, desintoxicando o espaço das relações internas em desenvolvimento, tanto fora - nas relações e interações do casal - quanto dentro das "cavernas" - útero e mundos mentais em conexão. Acredito, pessoalmente, que mesmo não sendo este o objetivo principal da pesquisa, não estamos longe de poder refletir e até indicar em situações de lutos pregressos e más-formações em curso o potencial preventivo e terapêutico para as relações deste cuidadoso acompanhamento ao longo da gestação (como ocorreu na história da observação de bebês, com os desdobramentos em observação participativa ou indicação terapêutica da observação).

No relato dos casos apresentados no livro, a singularidade de cada observador também é considerada, sugerida na narrativa, da mesma forma como fica clara a sustentação oferecida pela compreensão em grupo de supervisão ou elaboração posterior das vivências em estado bruto.

A trajetória de aprendizado com as mães, pais, seus observadores e grupos de trabalho prossegue ao longo da obra e se completa no penúltimo capítulo, com o sensível relato da história real da irlandesa Philomena, acessível a partir de um filme, e aqui associada em vários paralelos com as intensas vivências e gestações narradas no livro. Emblematicamente, em Philomena, a gestação e o desenvolvimento, também psíquicos, de mãe e bebê, mesmo sem a garantia da proximidade física - o que enfatiza a persistência da presença interna -, clamam por narrativas que historicizem e confiram significado compartilhado a essa relação. Da mesma forma, quantas cavernas e espaços internos são iluminados a partir do olhar oferecido pelo observador psicanalítico, e quantos de nós continuamos aprendendo a partir destas aberturas que trabalhos como o de Rita e Nara ajudam a criar.

Os processos vivenciados em seminário de observação de bebês fazem parte de um circuito de continências a partir do mundo interno do bebê, contido pelos dispositivos de continência parental, por sua vez acolhidos pelos recursos de continência do observador, que se encontra também acolhido por seu grupo de referência e supervisão. Uma imagem sugestiva pode ser visualizada: uma pequena pedra que produz múltiplos e vibrantes círculos, delicadas ondas de reverberação, que se expandem na água de forma rítmica e contínua (Mendes de Almeida, Finkelstein & Campana, 2009). Na linha de ressonâncias evocadas pelos percursos relatados neste livro, a partir do registro vivencial fílmico em Philomena, compareceu também em minha rede associativa um outro filme, desta vez em registro metafórico ficcional: The forgotten [Os esquecidos] (produção americana de 2004, direção de Joseph Ruben), em que a atriz Julianne Moore personifica uma mãe que também não se deixa esquecer da marca constitutiva do humano impressa pela vivência da maternidade. Como generoso material de observação de bebês, a riqueza dos relatos de Rita e Nara permite e favorece inúmeras reverberações.

Nara Caron e Rita Sobreira Lopes são profissionais ativamente envolvidas com a propagação da prática e do potencial de contribuição oferecido pela observação de bebês na comunidade psicanalítica e no campo mais amplo junto aos profissionais da saúde. Há muito tempo divulgam suas práticas de observação, de clínica e pesquisa, de interesse para o campo da neonatologia e da atenção inicial em saúde, em encontros científicos ao redor do mundo, sendo elos importantes entre o Brasil e outros países latino-americanos junto a este tema. Recentemente, elaboraram um abrangente levantamento acerca da prática de grupos de observação de bebês, modelo Esther Bick, nas várias regiões de nosso país, e protagonizaram uma apresentação e discussão em rede unindo várias cidades da América Latina na Primeira Videoconferência da ALOBB (Associação Latino-Americana de Observação de Bebês). Foi abordado o caso da bebê Julie, um dos capítulos deste livro, nascida prematura no dia em que o bebê anterior de seus pais, morto ainda feto, nasceria. Pudemos acompanhar ao vivo e em rede virtual múltipla (metodologia bebê em início de vida, que também tem merecido nosso investimento) o intenso interesse e os olhares curiosos seguindo o relato de Nara na tela de videoconferência, trazendo a experiência das vivências e observações de outras "telas", a da ultrassonografia e a dos impactos na observadora do desenrolar da história e nascimento psíquico desta bebê junto a seus pais, cuja primeira observação em casa aconteceu no dia em que ela estaria nascendo, após várias vivências divididas com a observadora anterior de precisar nascer antes e apressadamente. Presenciamos e compartilhamos a admiração e reconhecimento da potência emocional evocada pelo trabalho do grupo gaúcho, tanto para profissionais já iniciados na prática da observação de bebês, psicanalistas, psicoterapeutas quanto para trabalhadores de saúde e educação que buscam instrumentos para aprofundar seu olhar para os aspectos constitutivos da natureza humana e das relações de cuidado.

Nossos precursores, principalmente Freud, Winnicott e Bick - com os quais a obra dialoga o tempo todo, trazendo contemporaneidade, ressonância e eco às suas contribuições na área das origens da vida psíquica, relações pais-bebês e proposta da observação de bebês -, se sentiriam muito bem representados pela empreitada deste livro. As autoras ressaltam, desde o início, as interessantes percepções freudianas acerca da observação como um dos melhores instrumentos para a investigação do inconsciente, e do olhar as mesmas coisas até que elas possam falar por si mesmas, e as confirmam e demonstram ao longo de todo o livro. Com certeza, sua leitura e utilização para reflexão, tanto em espaços clínicos psicanalíticos quanto em espaços relacionados a saúde e educação, contribuirão muito para expandir e divulgar o olhar voltado ao desenvolvimento emocional e ao cuidado e continência dos aspectos primitivos em todos nós.

Estamos aqui diante de uma obra delicada e intensa. Ao iluminar fascinantes "cavernas" e galerias, o livro enfrenta o desafio, pelas autoras indicado, de aliar a intimidade das histórias de cada um aos aspectos essenciais e universais da natureza humana, compartilhando conosco a possibilidade destas expedições. Aos leitores, um bom passeio!

 

Referências

Caron, N. A. & Lopes, R. S. (2015). Método Esther Bick: aprendiendo con las madres y los bebés sobre la naturaleza humana. Primer Encuentro Latinoamericano de Observadores de Bebé. Videoconferência e debate organizado pela ALOBB, em várias sedes brasileiras, em 13 de junho de 2015 (em São Paulo, na SBPSP).         [ Links ]

Mélega, M. & Sonzogno, M. C. (Orgs.) (2008). O olhar e a escuta para compreeender a primeira infância. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Mendes de Almeida, M., Finkelstein, L. & Campana, N. T. C. (2009). News from Brazil: psychoanalytic observation and its seminar group as a space for the integration of splitting aspects in the parent-infant relationship. The International Journal of Infant Observation and Its Applications, 12(3),352-357.         [ Links ]

Ruben, J. (Dir.) (2004). The forgotten [DVD]. Sony Pictures.         [ Links ]

Winnicott, D. W. (1971). O uso de um objeto. In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (J. A. de A. Abreu & V. Nobre, Trads., pp. 121-132). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Mariângela Mendes de Almeida
Rua Escobar Ortiz, 628
04512-051 São Paulo, SP
Tel: 11 3842-2699, 11 3842-8839
mamendesa@hotmail.com

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