SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.50 issue1A Psychologia de FreudTeenage years author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016

 

EM PAUTA

 

Notas para a história da psicanálise em São Paulo1

 

Notes on the history of psychoanalysis in Sao Paulo

 

Notas para la historia del psicoanálisis en São Paulo

 

 

Luiz de Almeida Prado Galvão (in memoriam)

Membro efetivo e analista com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), um dos fundadores da Revista Brasileira de Psicanálise

 

 


RESUMO

O presente trabalho refere-se à introdução da psicanálise em São Paulo, a primeira cidade sul-americana a recebê-la. Seus introdutores entre nós foram o professor Franco da Rocha, precursor, e Durval Marcondes, realizador. O primeiro, professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1919 deu uma aula em que ressaltava a importância das ideias de Freud. Desta aula teve conhecimento Durval Marcondes, que iniciava seu curso médico e que, de imediato, se apaixonou pelas novas ideias apresentadas. Sua vida então se orientou no sentido de lutar para que germinasse o movimento psicanalítico em nosso país. Formado em 1924, Durval Marcondes começou a clinicar e viu confirmados, na prática, os primeiros achados da psicanálise da época. Em 1927, organizou o primeiro grupo de estudos de psicanálise. Neste mesmo ano, fundou-se a primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise, com a satisfação de Freud, que a ela se referiu em carta a Ferenczi, de 4 de janeiro de 1928. Em 1928, Durval Marcondes foi ao Rio de Janeiro para lá organizar a Sociedade Brasileira de Psicanálise. Deste primeiro grupo, o único a persistir em seu interesse pela psicanálise foi Durval Marcondes. A primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise foi reconhecida pela ipa em 1929. Esta Sociedade, que durou alguns anos e depois veio a desaparecer, chamou a atenção para a psicanálise em nosso meio, além de nos colocar em contato com o meio psicanalítico internacional. Paralelamente, Durval Marcondes trabalhava pela psicanálise, difundindo-a através de cursos, artigos para a imprensa e pela publicação, em português, de um trabalho de Freud, cuja tradução empreendeu juntamente com J. B. Correia. Acima de tudo, Durval Marcondes desejava que viessem analistas didatas para o Brasil, a fim de formarem devidamente nossos analistas, nos moldes exigidos pela ipa. Finalmente, em 1937, a doutora Adelheid Koch chegou a São Paulo e logo iniciou a preparação técnica de nossos candidatos para a análise. Fundou-se então a segunda Sociedade Brasileira de Psicanálise, graças aos esforços de Durval Marcondes e Adelheid Koch. Dessa forma, é São Paulo, historicamente, o centro pioneiro da formação sistemática de analistas na América Latina. Adelheid Koch, formada em Medicina pela Universidade de Berlim e membro da Sociedade Psicanalítica da mesma cidade, obtivera em 1936 o direito de trabalhar como analista didata no Brasil. Tal direito lhe fora conferido pelos doutores Jones e Fenichel. Durante anos foi ela a única analista professora, formando a geração de analistas que viria depois. Durval Marcondes foi um de seus primeiros candidatos. Em 1944, por intermédio da doutora Koch, a nova Sociedade Brasileira de Psicanálise foi reconhecida provisoriamente pela ipa. Seu reconhecimento em caráter definitivo deu-se em 1951, por ocasião do Congresso Psicanalítico Internacional realizado em Amsterdam. Hoje a psicanálise é estudada em várias de nossas escolas superiores, como na Escola de Sociologia e Política e em faculdades de medicina. Nessas notas, restringimo-nos apenas às figuras de Durval Marcondes e Adelheid Koch, pela sua obra pioneira e pelo muito que São Paulo lhes deve.

Palavras-chave: história da psicanálise; pioneiros; Franco da Rocha; Durval Marcondes; Adelheid Koch.


ABSTRACT

The author writes about the introduction of psychoanalysis in Sao Paulo, which was the first South American city to welcome it. We were introduced to psychoanalysis by Prof. Franco da Rocha (the precursor) and Durval Marcondes (the achiever). Franco da Rocha, who was a professor of psychiatry in the Medical School of Sao Paulo, in 1919 taught a class in which he emphasized the importance of Freud’s ideas. Durval Marcondes, who was a student in his first years of medical school, was informed about that class, and immediately became enchanted by those newly presented ideas. Since then, Marcondes’ life was devoted to fighting for a psychoanalytic movement to emerge in our country. Graduated from medical school in 1924, Durval Marcondes started his practice, which confirmed the first psychoanalytic findings at that time. In 1927, he organized the first psychoanalytic study group. In that same year, the first Brazilian Psychoanalytic Society was founded, with Freud’s satisfaction. Freud would have mentioned that foundation in a letter he wrote to Ferenczi on the 4th of January, 1928. In 1928, Durval Marcondes went to Rio de Janeiro in order to organize the Brazilian Psychoanalytic Society there. He was the only one (within that group) who kept his interest in psychoanalysis. The first Brazilian Psychoanalytic Society was recognized by IPA in 1929. That society, which lasted some years, drew attention to psychoanalysis in our environment, besides putting us in touch with the international psychoanalytic environment. Meanwhile, Durval Marcondes was working on behalf of psychoanalysis, by spreading those theories through classes, articles for newspapers and journals, and through publishing a Portuguese translation of a Freud’s work. Durval Marcondes and J. B. Correia worked together in that translation. First and foremost, Durval Marcondes wanted didact psychoanalysts to come to Brazil in order to duly train our psychoanalyst as required by IPA. Finally, in 1937, Adelheid Koch arrived in Sao Paulo, and soon started providing a technical training in psychoanalysis to our candidates. The second Brazilian Psychoanalytic Society was founded, therefore, because of Durval Marcondes’ and Adelheid Koch’s efforts. Sao Paulo has historically been the pioneer center of systematic psychoanalytic training in Latin America. Adelheid Koch, who had received her medical degree from the University of Berlin, and was a member of the Psychoanalytic Society of Berlin, had obtained, in 1936, from Jones and Fenichel, the right of working as a didact analyst in Brazil. She was the only professor analyst for years; she trained all the following generation of psychoanalysts. Durval Marcondes was one of her first candidates. In 1944, the new Brazilian Psychoanalytic Society was temporarily recognized by IPA through Koch’s work. The ne Brazilian Psychoanalytic Society was definitely recognized in 1951 at the International Psychoanalytic Congress in Amsterdam. Psychoanalysis today has been studied in different courses in colleges, such as politics and sociology schools and medical schools. In this paper, we kept focused on Durval Marcondes and Adelheid Koch because of their work and all their important legacy to Sao Paulo.

Keywords: history of psychoanalysis; pioneers; Franco da Rocha; Durval Marcondes; Adelheid Koch.


RESUMEN

El presente trabajo hace referencia a la introducción del psicoanálisis en São Paulo, la primera ciudad sudamericana que lo recibió. Quienes lo introdujeron fueron el profesor Franco da Rocha, precursor, y Durval Marcondes, realizador. El primero, profesor de psiquiatría de la Facultad de Medicina de São Paulo, en 1919 impartió una clase en la que resaltaba la importancia de las ideas de Freud. Durval Marcondes, quien iniciaba su curso médico, tuvo conocimiento de esta clase y de inmediato se apasionó por las nuevas ideas que fueron presentadas. A partir de entonces su vida se orientó en el sentido de luchar para que el movimiento psicoanalítico germinara en nuestro país. Graduado en 1924, Durval Marcondes comenzó a ejercer la medicina y pudo confirmar, en la práctica, los primeros hallazgos del psicoanálisis de la época. En 1927 organizó el primer grupo de estudios de psicoanálisis. En este mismo año se fundó la primera Sociedad Brasileña de Psicoanálisis, con la satisfacción de Freud, que se refirió a ella en una carta enviada a Ferenczi, el 4 de enero de 1928. En 1928, Durval Marcondes fue a Rio de Janeiro para organizar la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis. De este primer grupo, el único que persistió en su interés por el psicoanálisis fue Durval Marcondes. La primera Sociedad Brasileña de Psicoanálisis fue reconocida en 1929 por la IPA. Esta Sociedad, que estuvo activa durante algunos años y después desapareció, llamó la atención hacia el psicoanálisis en nuestro medio, además de ponernos en contacto con el medio psicoanalítico internacional. Paralelamente Durval Marcondes trabajaba por el psicoanálisis, difundiéndolo a través de cursos, artículos de prensa y con la publicación, en portugués, de un trabajo de Freud, cuya traducción llevó a cabo junto con J. B. Correia. Sobre todo, Durval Marcondes deseaba que analistas capacitados vinieran a Brasil, para preparar debidamente a nuestros analistas en los estándares exigidos por la IPA. Finalmente, en 1937, la doctora Adelheid Koch llegó a São Paulo y enseguida comenzó la preparación técnica de nuestros candidatos para el análisis. Se fundó entonces la segunda Sociedad Brasileña de Psicoanálisis, gracias al esfuerzo de Durval Marcondes y Adelheid Koch. De esta forma, São Paulo es, históricamente, el centro pionero de formación sistemática de analistas en América Latina. Adelheid Koch, graduada de medicina en la Universidad de Berlín y miembro de la Sociedad Psicoanalítica de la misma ciudad, obtuvo en 1936 el derecho de trabajar como analista didáctica en Brasil. Este derecho le fue concedido por los doctores Jones y Fenichel. Durante años ella fue la única analista profesora, formando a la generación de analistas que llegaría después. Durval Marcondes fue uno de sus primeros candidatos. En 1944, a través de la doctora Koch, la nueva Sociedad Brasileña de Psicoanálisis fue reconocida provisionalmente por la IPA. Su reconocimiento con carácter definitivo tuvo lugar en 1951, con motivo del Congreso Psicoanalítico Internacional realizado en Ámsterdam. Actualmente el psicoanálisis se estudia en varias de nuestras escuelas superiores, como en la Escuela de Sociología y Política y en facultades de medicina. En estas notas, nos restringimos solo a las figuras de Durval Marcondes y Adelheid Koch, por su obra pionera y por lo mucho que São Paulo les debe.

Palabras clave: historia del psicoanálisis; pioneros; Franco da Rocha; Durval Marcondes; Adelheid Koch.


 

 

Quando alguém se põe a meditar sobre as conquistas do espírito humano dentro de qualquer terreno, surpreende-se ao verificar que tais conquistas, que permaneceram como marcos na trajetória já longa do homem sobre a Terra, impuseram-se muita vez ao preço de ferro, de fogo e até de morte a seus autores. Nomes que hoje são reverenciados como de benfeitores da humanidade foram um dia vilipendiados, enlameados e proscritos.

Assim o entendeu um desses conquistadores, Freud (1917/1948), ao comparar o recebimento da ciência que descobriu para a humanidade, a psicanálise, com o de outros ramos de ciências, incompreendidos e rejeitados, como a psicanálise, quando pela primeira vez foram apresentados no decurso da história humana.

Quem quer que tenha lido Vida e obra de Sigmund Freud, escrita por E. Jones (1960), compreendeu, lance por lance, o quanto foi espinhosa e árdua a tarefa para a conquista de pessoas que dessem crédito às surpreendentes revelações que o genial pesquisador trazia a propósito da natureza psíquica do ser humano.

Creio que na história do movimento psicanalítico de cada país repetiu-se para seus pioneiros a mesma estrada áspera que Freud teve de palmilhar. Sofreram os pioneiros a mesma hostilidade e incompreensão que o próprio Freud teve que viver em Viena, quando, impelido pelo seu espírito inteligente e científico, manteve-se na linha de suas investigações, lançando os alicerces do novo mundo que desvendava para a humanidade e, o mais trágico e doloroso, para seu próprio bem. Repudiado, caluniado, injuriado, Freud, qual um gigante, a tudo suportou e foi levando avante suas pesquisas, sistematizando-as, estabelecendo princípios, leis gerais a respeito da vida mental; com espírito aberto, sem dogmatismos, corrigia-se, reformulava, redefinia, tendo a constante preocupação de investigar para esclarecer, investigar para modificar, investigar para construir. E como alguém que toma as peças de um quebra-cabeça, foi, sem desfalecimentos, armando o seu quebra-cabeça, a sua doutrina científica de estudo do homem, a sua psicanálise.

Freud colocou nas mãos do homem a possibilidade de lutar contra seu maior inimigo; e a estarrecedora revelação foi a de que o pior inimigo do homem encontrava abrigo dentro do próprio homem. Como machucou, como doeu, como abalou o homem o conhecimento deste inimigo terrível e incontrolável; como foi desnorteante saber que o "demônio" estava abrigado dentro de nós mesmos, controlando os nossos passos, os nossos sentimentos e agindo de forma invisível. Mas não se limitou Freud a apontar o demônio; apontou também o caminho para exorcizá-lo, estabelecendo os primeiros princípios da terapêutica psicanalítica.

Mas o Freud crucificado, que pagou o tributo por ter dado este passo decisivo, teve a felicidade de viver o suficiente para ver um regimento de homens, que captaram sua mensagem, tomar sua bandeira e levar a seus países, em seus próprios idiomas, aquilo que o mestre imortal começava a explicar à humanidade.

Pouco a pouco, foi se formando este batalhão internacional, este batalhão de pioneiros que tomaram a si próprios a tarefa de difundir a nova ciência que se gerou no espírito fecundo de seu criador. E este batalhão de pioneiros assumiu resolutamente o compromisso de lutar pelas novas ideias, revivendo quiçá o próprio calvário que Freud palmilhou; tinham estes pioneiros o mesmo compromisso com a verdade e as qualidades pessoais daqueles que podem sintonizar-se rapidamente e antes do que todos com o que se constitui numa inovação, cujas dimensões e alcance puderam detectar com prioridade. Foram homens de características especiais, certamente: inteligência aberta às novas conquistas, espírito progressista e inconformismo diante dos dogmas, segurança suficiente para admitir suas próprias insuficiências inerentes à condição humana e determinação de ajudar o homem no seu sofrimento e dor. Além destas características, enumeradas ao correr da pena, lembraria outra, muito importante: a de que não transacionaram com o sucesso fácil; não se traíram, não se venderam; tiveram por si mesmos o mais profundo respeito. Renunciaram conscientemente às glórias efêmeras e, desta forma, conquistaram o lugar de honra que lhes cabe por direito de se perpetuarem na História.

* * *

Considerando o início do movimento psicanalítico entre nós, dois nomes são imediatamente evocados, com papéis bem definidos: o primeiro deles representa o precursor, que, tomando contato com uma investigação científica nova, teve a sensibilidade especial de captar toda a sua força, o terreno fértil a ser explorado devidamente; o segundo deles é o realizador, aquele que tomou para si a tarefa pioneira de implantar a nova ciência em seu país. Ambos foram admiráveis: o velho professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo, Franco da Rocha, e o então jovem estudante Durval Marcondes. Com efeito, em 1919, o professor Franco da Rocha, na cátedra de Clínica Psiquiátrica, ensinada no sexto ano do curso de Medicina, fez uma preleção intitulada "Do delírio em geral", em que ressaltava a importância das ideias de Freud para a compreensão dos delírios, dos sonhos e da criação literária; a exposição feita nesta aula foi publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 20 de março de 1919, e desta maneira chegou ao conhecimento de Durval Marcondes, que por esta época estava no início de seu curso médico; o jovem estudante percebeu que uma compreensão revolucionária estava contida nas investigações freudianas; a corda de sua curiosidade científica, aliada a seu entusiasmo juvenil, foi vibrada; e assim de imediato tornou-se assinante do International Journal of Psychoanalysis.

Do professor Franco da Rocha, disse Virgínia Bicudo (1948):

O que houve de notável em Franco da Rocha foi seu espírito aberto à teoria em um período no qual era tão apoucada, entre nós, a literatura sobre o assunto. Franco da Rocha destacou-se por sua inteligência liberta em alto grau dos entraves das inibições emocionais que, frequentemente, se expressam na mentalidade refratária ao que é novo. (p. 70)2

O destino marcou encontro entre duas personalidades notáveis, o já maduro professor Franco da Rocha e o estudante Durval Marcondes. Ao primeiro, reservou a tarefa de chamar a atenção de seus estudantes para a obra revolucionária que Freud vinha realizando; ao segundo, reservou o mérito de lutar heroicamente para que germinasse o movimento psicanalítico em nossas fronteiras.

Nesta luta, Durval Marcondes usou o vigor de sua juventude, sua inteligência e sensibilidade, negando-se ao conforto de uma vida fácil, oriunda das acomodações sedutoras, porque, com sua envergadura de cientista e pesquisador, só tinha um compromisso: com a verdade científica.

De seu velho professor Franco da Rocha, Durval Marcondes recebeu as seguintes palavras proféticas, quando a ciência oficial se opunha ao desenvolvimento de suas primeiras atividades, na divulgação e tentativas de implantação do primeiro núcleo psicanalítico entre nós:

Há de chegar um dia em que a psicanálise será coisa assentada e sabida, aceita por todo mundo. Os próprios detratores dirão: não fui nunca contrário a ela; sempre a aceitei; era lá um ou outro tópico que provocava dúvida, mas sempre admirei Freud e sua doutrina etc. etc.3

* * *

Acompanhando os primeiros passos de Durval Marcondes, passos de um autêntico bandeirante, ao ampliar as fronteiras do conhecimento científico em nosso meio, verifica-se que, formado em 1924 pela Faculdade de Medicina de São Paulo, iniciou sua atividade clínica em 1925, aplicando a técnica psicanalítica em sua atividade profissional, guiado por sua intuição e sensibilidade pessoais; os primeiros frutos de seu trabalho clínico o entusiasmaram, pois via confirmados, na prática, os achados da psicanálise de então.

Em 1926, evidenciando o polimorfismo de sua personalidade rica e sensível, que fez dele um cultor de obras literárias, pintura e música, apresentou, como tese de concurso para a cátedra de literatura no Ginásio do Estado, uma monografia que se intitulava O simbolismo estético na literatura: ensaio de uma orientação para a crítica literária baseada nos conhecimentos fornecidos pela psicanálise. Prefaciada por Franco da Rocha, ela foi o marco inicial da aplicação da psicanálise aos estudos literários no Brasil e mereceu de Freud palavras de estímulo em carta que lhe enviou em 18 de novembro de 1926. Freud dizia que graças a seus conhecimentos do espanhol pôde entender o seu trabalho e lhe assegurava um sucesso compensador na sua dedicação ao assunto.4

Em fins de 1927, por iniciativa de Dur-val Marcondes, foi organizado o primeiro grupo de pessoas interessadas em debater e difundir os ensinamentos da psicanálise. Em 24 de outubro deste mesmo ano, realizou-se, convocada por seu idealizador, a sessão de fundação da primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise, sessão esta presidida por Franco da Rocha. Procedeu-se à eleição de sua diretoria, que teve como presidente Franco da Rocha e como secretário Durval Marcondes.

Dos membros desta primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise, que aglutinou um pequeno número de intelectuais, médicos ou não, somente Durval Marcondes prosseguiu nos estudos, transformando o que fora mera curiosidade intelectual, como era em relação aos demais, no objetivo principal de sua vida. A formação da Sociedade foi muito apreciada por Freud, que sobre ela fez uma referência especial em carta que enviou a Ferenczi, em 4 de janeiro de 1928 (Jones, 1960, vol. 2).

Este primeiro grupo atuou pela realização de sessões científicas, em que foram lidos e discutidos trabalhos de Franco da Rocha, Durval Marcondes e outros autores, bem como promovidos cursos e conferências de divulgação da psicanálise.

Por decisão tomada em sessão a 9 de março de 1928, Durval Marcondes foi incumbido de ir ao Rio de Janeiro para fundar um núcleo semelhante, na então capital da República, a fim de construir uma agremiação que abrangesse todo o país.

Em reunião que teve lugar a 17 de junho de 1928 no Hospital Nacional de Psicopatas, sob a presidência de Juliano Moreira, e com a presença de Durval Marcondes, organizou-se a seção do Rio de Janeiro da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Juliano Moreira foi aclamado seu presidente; Porto Carrero5 ficou sendo o secretáriogeral da entidade nacional (Grinberg, 1961).

Esta primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise foi reconhecida pela Comissão Executiva Central da Associação Psicanalítica Internacional, conforme comunicação no II Congresso Internacional de Oxford, na sessão de 30 de julho de 1929.6 Um relatório das atividades da Sociedade, como entidade filiada, consta do Boletim da Associação Internacional.7

Um marco de grande importância histórica das atividades científicas deste primeiro grupo psicanalítico foi a publicação da Revista Brasileira de Psicanálise, da qual foi editado apenas um número, em junho de 1928. A importância deste veículo de expressão científica foi apreendida por Durval Marcondes, seu principal inspirador, porém, circunstâncias alheias à sua vontade impediram que a revista continuasse a ser publicada de acordo com os planos estabelecidos previamente para a sua existência. A publicação desta revista trouxe muita satisfação a Freud, segundo carta que dirigiu a Durval Marcondes,8 datada de 27 de junho de 1928, na qual dizia que a revista o motivara a se iniciar no estudo da língua portuguesa.9

Ainda a respeito desta Sociedade Brasileira de Psicanálise, que durou alguns anos e veio a se extinguir, pode-se dizer que ela nasceu com uma missão na fase inicial do movimento psicanalítico brasileiro, que era a de chamar a atenção para a psicanálise em nosso meio, estimular seu estudo e tomar contato com o ambiente psicanalítico mundial.

Digno de registro histórico foi o curso de conferências sobre psicanálise desenvolvido por Durval Marcondes no primeiro trimestre de 1930, sob os auspícios da Sociedade de Educação, na época sob a presidência de Raul Briquet, e que atraiu centenas de pessoas. Por sua grande repercussão, foi de imenso alcance na divulgação das ideias de Freud em São Paulo. Este curso mereceu uma referência de Franco da Rocha em artigo para o jornal O Estado de São Paulo, de 27 de fevereiro de 1930: "Quem pôde acompanhar e compreender as conferências do doutor Durval Marcondes sobre este assunto deve ter visto que há na doutrina de Freud concepções de incomparável beleza."

Como um dos marcos também deste primeiro período da história da psicanálise em São Paulo, deve-se considerar ainda a publicação primeira de um trabalho de Freud em português: Cinco lições de psicanálise, traduzido em colaboração por Durval Marcondes e J. B. Correia, e que apareceu nas livrarias em 1931.

Ainda na década de 1920, na Segunda Enfermaria de Homens na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, teve lugar o primeiro curso sobre psicanálise para médicos. Ministrou-o Durval Marcondes, a pedido de Álvaro Lemos Torres; constou de uma exposição da teoria, ilustrada com a casuística da então incipiente atividade clínica do expositor.

A preocupação de Durval Marcondes de difundir no meio médico o alcance da psicanálise, no sentido de sua utilização geral, conta-se como um de seus muitos esforços. Numa antecipação daquilo que hoje se denomina medicina psicossomática,já se pronunciava, em entrevista concedida em 19 de agosto de 1929 à Folha da Noite,nos seguintes termos:

Não é só para especialistas em moléstias nervosas que os conhecimentos psicanalíticos têm valor, sendo de grande utilidade mesmo para a clínica geral, onde a terapêutica está intimamente relacionada com a situação afetiva do doente. A influência pessoal do médico, tão decisiva em certos casos, apoia-se em disposições afetivas do paciente, que o clínico consciencioso não pode desconhecer. Por outro lado, é preciso considerar que os sintomas corporais são, muitas vezes, determinados, ou pelo menos agravados, por fatores de ordem psíquica inacessíveis ao tratamento medicamentoso e que os meios psicoterápicos vulgares nem sempre podem combater.

Em 1934, a convite de seu diretor, o professor Geraldo de Paula Souza, desenvolveu algumas aulas sobre higiene mental no Curso de Educadores Sanitários, no Instituto de Higiene, hoje Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo. A orientação do curso, que Durval Marcondes regeu até 1947, foi eminentemente psicanalítica, e isto explica, até certo ponto, o volume da participação de profissionais não médicos no movimento psicanalítico de São Paulo.

É, entretanto, a preocupação com o ensino de psicanálise, nos moldes preconizados pela Associação Psicanalítica Internacional, que vai marcar de vez a obra pioneira de Durval Marcondes na implantação da psicanálise entre nós. Convencido, desde o início de sua atividade na clínica psicanalítica, da importância da análise pessoal do futuro terapeuta, Durval Marcondes passou a concentrar toda a sua preocupação na vinda de analistas didatas para São Paulo, que se incumbissem da formação de psicanalistas, segundo as exigências que se consolidavam na Associação Psicanalítica Internacional. O próprio Durval Marcondes aguardava a chegada de um analista que preenchesse estas condições para colocar-se na posição de aluno: prova eloquente de sua atitude científica e de seu espírito universitário.

O objetivo fundamental de Durval Marcondes passou a ser a constituição de uma nova Sociedade de Psicanálise que congregasse elementos que desejassem submeter-se à preparação adequada para se tornarem psicanalistas, o que deve ser visto como demonstração inequívoca de seu zelo e respeito pela atividade científica especializada e sua visão da necessidade de haver um núcleo de estudos que se convertesse numa verdadeira escola em nosso meio. Já podia prever os perigos de deixar o exercício da profissão nas mãos dos improvisadores, que de boa ou má fé surgiram, intitulando-se falsamente psicanalistas, aproveitando-se da brecha que a falta de legislação oficial oferecia; a constituição da nova Sociedade de Psicanálise seria a implantação de um reduto de formação de profissionais para a prática e investigação no campo da psicanálise, até o dia em que o problema viesse a ser convenientemente abordado pelas autoridades responsáveis do país, isto é, até o dia em que fosse compreendida a questão de que apenas o curso médico ou qualquer outro curso universitário não era suficiente para o exercício da terapia psicanalítica. Convicto de que a formação de psicanalistas exigia uma preparação especial, em que a análise terapêutica do aspirante às funções de psicanalista, chamada correntemente de análise didática, é de vital importância, não poupou esforços para ver concretizada esta aspiração, que naquele momento histórico encontrava nele o único porta-voz.

Nesta altura, Durval Marcondes compreendia que um instituto de ensino de psicanálise deveria ter suas portas abertas, não só aos interessados que procedessem das faculdades de medicina, mas igualmente àqueles outros que, com grau de ensino superior, fizessem o treinamento especializado; estava plenamente consciente de que não haveria de forma alguma a tentativa de pretender retirar das mãos dos médicos o exercício de uma atividade terapêutica para a qual, na verdade, não estavam preparados antes de se submeterem ao preparo básico a ser realizado numa instituição de ensino de psicanálise, estruturado segundo as condições regulamentadas pela Associação Internacional, que estabelece as normas de funcionamento dos Institutos a ela filiados. Além do mais, o psicanalista não médico limitar-se-ia, segundo estas normas, tão somente à prática da psicoterapia psicanalítica previamente indicada pelo médico, para quem está tacitamente reconhecido o direito de estabelecer o diagnóstico e indicar a terapêutica eficaz; por outro lado, o tratamento psicanalítico, limitando-se estritamente às fronteiras do psicológico (mesmo para o psicanalista médico), fato do qual o paciente é informado previamente, pode ser manejado pelo terapeuta não médico com toda segurança, pois tratamentos para acudir a intercorrências que surjam do decorrer da análise são atendidos por médicos (estes se encontram, na realidade, à retaguarda de todo e qualquer tratamento psicanalítico, no desempenho das funções para as quais estão aptos).

Eram estas, em linhas gerais, as explicações que Durval Marcondes oferecia, através de conferências, artigos para a imprensa, cursos etc., no afã de chamar a atenção para a importância de se ter uma instituição para o ensino de psicanálise em nosso meio.

Pode-se avaliar suas dificuldades nesta época, pois estava a clamar pela necessidade de um centro de ensino de uma ciência recebida com muitas suspeitas e resistências pelo ambiente científico em geral. Para muitos, a psicanálise ressumava charlatanismo, e Durval Marcondes, de cuja conduta moralmente íntegra não se podia duvidar, o adjetivo frequente, nas críticas que recebia, era o de se tratar de um excêntrico, um esquisito...

Mesmo combatido, algo marginalizado em sua luta, Durval Marcondes perseverou em seu intuito. Uma primeira oportunidade perdida, neste sentido, foi a possível vinda de René Spitz, que se dispunha a transferir-se para o Brasil; todavia, a revolução paulista de 1932, que isolou São Paulo do resto do mundo por meses, levou-o a mudar-se para os Estados Unidos.

Entretanto, o grande ensejo de introduzir a formação de psicanalistas em um instituto de ensino pertencente à Universidade, o que daria a São Paulo e ao nosso país a prioridade de realizar esta nova formação profissional de grau superior em uma organização universitária, meta que a meu ver representa a tendência natural do ensino da psicanálise (Galvão, 1966b), foi desperdiçado em 1934. Com efeito, com data de 10 de julho daquele mesmo ano, Durval Marcondes recebeu de A. A. Brill, então presidente da Sociedade Psicanalítica de Nova York, uma carta na qual eram solicitadas providências para que houvesse condições de trabalho para psicanalistas eminentes, emigrados da Europa em consequência do nazismo, que desejavam transferir-se para a América do Sul. A primeira ideia que ocorreu a Durval Marcondes foi a de colocá-los na Universidade de São Paulo, então em período de organização. Sua tentativa para tal não chegou a ser compreendida e deste modo perdeu-se a oportunidade de se criar na própria Universidade o núcleo central de nosso Instituto de Psicanálise, que veio a nascer mais tarde no consultório particular de Durval Marcondes.

Não esmorecendo em seu desejo de instalar um instituto de psicanálise entre nós, a única via para o desenvolvimento sistemático na formação de psicanalistas feita em nível de seriedade e objetividade científica, e avaliando devidamente a responsabilidade do exercício desta nova profissão para com a sociedade, Durval Marcondes concedeu entrevistas à imprensa na esperança de se fazer entender e sensibilizar as autoridades do nosso estado e nosso país. Assim, por exemplo, no jornal A Gazeta, de 5 de fevereiro de 1935, foi publicada uma destas suas entrevistas, com o sugestivo e ao mesmo tempo veemente título: "São Paulo precisa ter um instituto de psicanálise". Paralelamente, mantinha correspondência com destacados psicanalistas responsáveis pelo movimento psicanalítico internacional, com o intuito de trazer para o Brasil -no caso, para São Paulo - pelo menos um psicanalista que estivesse em condições de corresponder às exigências de ensino que já se constituíam em norma obrigatória nos centros psicanalíticos europeus. Seus esforços não foram em vão: a doutora Adelheid Koch, que se dispôs a emigrar para o Brasil em fins de 1936, foi informada por Ernest Jones do interesse que, em São Paulo, Durval Marcondes nutria pela vinda de um analista professor. Desta forma, em julho de 1937, inaugurou-se, em São Paulo, o primeiro centro de formação de psicanalistas. Por consequência, e com dados pesquisados, pode-se dizer que, historicamente, foi São Paulo que introduziu o ensino sistemático para a formação de analistas na América Latina (Grinberg, 1961).

Este embrionário centro de formação de psicanalistas teve sua sede inicial de trabalho no consultório privado de Durval Marcondes, e seus primeiros alunos foram, além de Durval Marcondes, Virgínia Bicudo, Flávio Dias e Darcy Uchôa; logo depois, integraram-se ao grupo, como candidatos, Frank Philips,10 Lygia Amaral, Henrique Mendes e outros.

* * *

Nos primeiros anos da década de 30, uma grande sombra formou-se sob os céus da Alemanha. Tão grande ela era que os toldou completamente e, baixando dos ares, desceu à terra, assumindo a forma de uma suástica gigantesca. Espraiou-se esta sombra por outros ares e outras terras, convulsionando o mundo, submergindo-o nos mares da guerra, fome e morte, até que de outros céus sopraram ventos benéficos que a dissolveram e relegaram sua existência a uma trágica lembrança.

Não nos cabe aqui discutir a instalação do nazismo no poder e nem as razões de sua acolhida entusiástica pelo povo germânico. Isto já foi feito por mim algures (Galvão, 1966a). Direi apenas que um dos mitos do nazismo era o da superioridade da raça ariana sobre as demais. Enlouquecido por este mito, perseguiu e aniquilou povos de outras raças que tiveram a desgraça de cair sob seu tacão. Encarniçou-se contra os judeus. E muitos deles foram varridos da face da Terra. Não puderam, talvez, escapar à loucura que se apoderara de todo um povo, ou quem sabe não acreditaram que aquela loucura fosse real.

Outros, porém, houve que tiveram a ventura de escapar ao orco nazista e puderam, voltando as costas ao solo em que haviam nascido, encontrar abrigo em novos solos que os acolhessem ou deles necessitassem.

Foi o que sucedeu em relação a Adelheid Lucy Koch, ou simplesmente doutora Koch, como é chamada comumente pelos psicanalistas do nosso meio. Formou-se em medicina na Universidade de Berlim, em 1924. Ingressou como candidata do Instituto da Sociedade Psicanalítica de Berlim em 1929, fazendo sua análise didática com o doutor Otto Fenichel, nome de projeção no cenário psicanalítico internacional pela maciça e erudita obra que compôs, apesar de ter falecido prematuramente aos 49 anos de idade. Durante quatro anos e meio, submeteu-se à análise didática a doutora Koch. Em seu preparo, fez o curso teórico desenvolvido no Instituto de Berlim e, na parte prática, fez análises sob a supervisão das doutoras Salomé Kempner e Tereza Benedek, nomes de destaque no panorama psicanalítico.

Em novembro de 1935, apresentou um trabalho na Sociedade alemã intitulado Análise de resistência numa neurose narcísica e foi eleita membro da Sociedade Psicanalítica de Berlim.

A pressão nazista sobre os judeus fazia-se cada vez mais intensa. Particularmente sobre a psicanálise abateu-se a sanha nazista, pois todo regime totalitário percebe intuitivamente que não se deve favorecer a preservação e o amadurecimento das faculdades críticas e criadoras do ser humano. Como expressou Jones: "O primeiro fato sintomático foi a queima em público, em Berlim, das obras psicanalíticas de Freud e de outros autores, em fins de maio de 1933, pouco depois da subida de Hitler ao poder" (Jones, 1960, vol. 3).

Nesta atmosfera, e antes que houvesse praticamente a liquidação total da psicanálise na Alemanha, como veio a ocorrer pouco depois, os analistas judeus da Sociedade Psicanalítica de Berlim renunciaram a seus títulos de membros para não pôr em perigo os cristãos - as autoridades do regime nazista não toleravam o contato de cristãos com judeus; a aproximação de um cristão e um judeu gerava desconfianças e aquele poderia cair em desgraça também.

Restava aos analistas judeus, de cujo grupo constava a doutora Koch e que prosseguiam em suas atividades científico-profissionais, reunirem-se segregados e em clandestinidade, uma vez por semana; nestas reuniões semanais, tinham a oportunidade de discutir problemas técnicos e teóricos e de colocar-se a par da literatura analítica moderna. Tal clima de perseguição e terror foi forçando a emigração, pouco a pouco, de analistas judeus da Alemanha.

No Congresso Psicanalítico Internacional de Marienbad, em 1936, Ernest Jones, que era então o presidente da Associação Psicanalítica Internacional, sabendo que a doutora Koch estava pretendendo emigrar para o Brasil, lembrou-se imediatamente que Durval Marcondes, em São Paulo, vinha demonstrando, há já alguns anos, intenso interesse pela vinda de um analista suficientemente treinado para atender às necessidades de implantação do ensino de psicanálise em nossa pátria. Assim sendo, entre outras indicações que fez à doutora Koch, Jones mencionou-lhe o nome de Durval Marcondes e seu interesse pelo desenvolvimento de um centro de ensino de psicanálise em São Paulo. Neste congresso, Jones e Fenichel conferiram à doutora Koch o direito de trabalhar como analista didata no Brasil.

Em outubro de 1936, acompanhada por seu marido e suas duas filhas, a doutora Koch emigrou para o Brasil, chegando a São Paulo em novembro.

Em julho de 1937, deu-se o encontro da doutora Koch com Durval Marcondes, no consultório deste; esta data marca, conforme foi assinalado, o início do primeiro centro de formação de analistas da América Latina. Recebendo todo o apoio de Durval Marcondes, a doutora Koch instalou-se no consultório particular dele, que se transformou assim na sede primária do Instituto de Psicanálise de São Paulo. Já em outubro deste mesmo ano, a doutora Koch começou a análise didática de seus primeiros candidatos alunos.

Sobre Adelheid Koch recaiu durante vários anos a pesada tarefa de seu pioneirismo no ensino de psicanálise. Foram certamente para ela anos e anos de trabalho estafante, no qual mobilizou todas as suas forças e atenção. A jovem médica psicanalista que fora forçada a sair de seu país, onde desfrutava de uma vida bem estabelecida e organizada, tendo à sua volta parentes, amigos e colegas de profissão, tinha que se haver com o problema da adaptação ao nosso meio. Mitigou-lhe as agruras o apoio que Durval Marcondes lhe deu para a sua integração no Brasil e a segurança de encontrar-se num país onde existe um povo de índole acolhedora e hospitaleira e amante da liberdade: certamente estas foram compensações para quem fora obrigada a abandonar uma nação embriagada por doentio nacionalismo e ódio racial.

Durante anos, foi a única analista professora, desenvolvendo análises didáticas, o ensino teórico e técnico e as supervisões. Tal situação absorvia praticamente todas as suas atividades. O exercício das funções do ensino constituía-se no traço mais significativo de sua obra entre nós. Encontra-se ela nesta atividade fundamental até hoje. Estudiosa, com profundo senso de responsabilidade pelo seu mister, manteve-se sempre atualizada com os progressos da teoria e da técnica psicanalíticas.

Paralelamente, ao lado de suas atividades didáticas dos primeiros anos, Adelheid Koch uniu-se a Durval Marcondes no trabalho de divulgação da psicanálise, através de artigos, palestras, conferências e entrevistas para a imprensa.

Da aliança com Durval Marcondes germinou o núcleo do desenvolvimento da formação de psicanalistas e, como decorrência natural, a organização da nova Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. A probidade e a seriedade no trato desta nova atividade científica, expressão de dois caracteres bem formados, constituíam-se nos alicerces da instituição científica que se concretizava entre nós.

No cenário internacional, a reputação de que gozava a doutora Koch veio a permitir o reconhecimento por parte da Associação Psicanalítica Internacional do pequeno grupo inicial, de sete membros ao todo, que havia terminado seu treinamento. Em 1944, a doutora Koch indagou a Jones se haveria possibilidade de a ipa reconhecer aquele reduzido grupo de seus ex-alunos como Sociedade filiada; Jones respondeu-lhe: "We know enough of you to grant a provisional recognition". A nova entidade psicanalítica, desta forma filiada ao organismo internacional, teve em Durval Marcondes o seu primeiro presidente. Em 1946, foi publicado no International Journal of Psychoanalysis11 um relatório sobre as atividades desenvolvidas pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo até aquele momento.

Um fato que não se pode deixar de assinalar é que as reuniões do novo grupo psicanalítico de São Paulo realizaram-se, por muitos anos, na própria casa de Durval Marcondes, em torno da mesa de sua sala de jantar. Seria grave lacuna, nestas notas, não se mencionar a senhora Durval Marcondes: dona Herminda Marcondes, a dedicada companheira que esteve junto de seu marido em todos os momentos de sua dinâmica e atribulada vida, para a concretização do movimento psicanalítico entre nós. Pessoa de extrema sensibilidade e fidalguia, soube receber como ninguém aqueles que para sua casa se dirigiam, a fim de ter um local para as discussões científicas. Até hoje, quando sua casa deixou de ser a sede da Sociedade, para lá convergem os jovens analistas de São Paulo, que encontram o sorriso acolhedor de dona Herminda e aquela mesma sala, cujos móveis, ornamentos e ambiente conservam a graça e a espiritualidade que um dia os alunos ingleses encontraram em casa de Mr. Chips.

O reconhecimento definitivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com seu quadro social mais ampliado, veio no Congresso Psicanalítico Internacional de Amsterdam, em 1951.

No que tange ainda a esta questão do ensino da psicanálise, em São Paulo, diga-se que em 1950 dois analistas estrangeiros foram contratados pela Sociedade: os doutores Theon Spanudis, de Viena, e Nils Haak, de Estocolmo. O doutor Haak regressou à Suécia três meses depois, porque não podia adaptar-se ao clima brasileiro. O doutor Spanudis trabalhou como analista professor, trocando depois esta profissão pelas atividades de crítico de arte e passando a dedicar-se ao campo artístico de uma forma geral. Durante estes anos, foram eleitos analistas professores a professora Virgínia Bicudo, a senhora Lygia Amaral, o professor Darcy Uchôa, a senhora Margaret Gill, o professor Henrique Schlomann12 e o doutor Isaias Melsohn.

* * *

Um momento histórico de decisiva importância no desenvolvimento do movimento psicanalítico paulista foi a fundação, em 1938, por Durval Marcondes, da Seção de Higiene Mental do Serviço de Saúde Escolar de São Paulo. Este serviço foi organizado por seu fundador, que se tornou seu primeiro diretor. Em vista das diretrizes que lhe foram dadas, ele veio a ser uma extensão dos benefícios da psicanálise à comunidade em geral, pelo seu emprego dos conhecimentos psicanalíticos na solução de problemas psíquicos das crianças de nossas escolas públicas. A Higiene Mental Escolar constitui-se ainda num celeiro de vocações para a psicanálise. Ali se firmou a orientação científica de vários dos atuais membros da Sociedade Brasileira de Psicanálise, como os analistas professores Virgínia Bicudo, Lygia Amaral e Henrique Mendes.13

Em 1940, na Escola de Sociologia e Política, instituição complementar da Universidade de São Paulo, foi criada a primeira cadeira de psicanálise em escola de nível universitário do país, cuja finalidade foi a de proporcionar conhecimentos psicanalíticos a seus estudantes - isto tendo-se em conta que a psicanálise trouxe novo ângulo para a discussão e compreensão dos aspectos socioculturais. Obviamente o alcance deste curso limitou-se unicamente a oferecer aos alunos tais conhecimentos, não se constituindo num curso de formação para se alcançar o grau de psicanalista. Durval Marcondes inaugurou esta cadeira, sendo seu professor até 1941; desta data até a presente, o ensino de psicanálise nesta escola passou para as mãos da professora Virgínia Bicudo.

Mais recentemente, a psicanálise veio a ter sua presença mais decisiva na Universidade de São Paulo através do curso de Psicologia Clínica, iniciado por Durval Marcondes em 1954 e fundamentado nos princípios psicanalíticos. Este curso mantém até hoje à sua frente seu primeiro professor e dele participam, ou participaram, como assistentes de Durval Marcondes, vários membros da nossa Sociedade.

* * *

À guisa de finalização, quero acentuar que em meu trabalho me limitei a coligir notas sobre um tema que certamente será um dia lembrado por alguém, que, desenvolvendo-o, possa transformá-lo na história da psicanálise em São Paulo. De minha parte, não visei chegar a tanto, mas tão somente a divulgar dados e informações que, de outra forma, lamentavelmente, talvez caíssem no olvido ou na confusão.

Neste esboço que tracei em grandes linhas, coloquei em primeiro plano as figuras dos pioneiros da psicanálise no Brasil: Durval Marcondes e Adelheid Koch. Ambos terão seus nomes indelevelmente gravados na história da psicanálise brasileira: o primeiro como pioneiro no movimento psicanalítico do país; a segunda como pioneira do ensino da psicanálise entre nós e na América Latina. Suas vidas foram cheias de lutas, dissabores e frustrações, mas, como nas histórias encantadas, tudo ficou bem, e se a psicanálise ainda tem muito a caminhar, pelo menos é reconhecida como ciência e cada vez mais respeitada como tal. Começou a interpolar-se com outras ciências; é ensinada ou mencionada em cátedras de nossas escolas superiores; é lida e apaixonadamente discutida; aplicam-na junto às artes, e seu campo de ação é cada vez mais vasto.

Durval Marcondes e Adelheid Koch deram-lhe o impulso inicial para que chegasse a tanto. E, verdadeiramente, a contemplação deste quadro seria a melhor recompensa que poderiam almejar.

Reconhecidos e respeitados como os pioneiros da psicanálise no Brasil, foram ambos publicamente homenageados, Durval Marcondes em 1959, quando completou 60 anos de idade, e a doutora Koch quando chegou aos 25 anos de atividade no ensino da psicanálise. Além disto, Durval Marcondes, em justíssima homenagem, foi distinguido, também em 1959, com a condecoração da Ordem Nacional do Mérito Médico.

Por expressivo que seja o reconhecimento do que fizeram, este só terá maior amplitude com o correr do tempo, quando a psicanálise for ensinada em um instituto universitário e quando, como tal, for reconhecida como guia e método de pesquisa para outras ciências. As figuras de Durval Marcondes e Adelheid Koch crescerão junto com a psicanálise.

Por ora podemos apenas, e o fazemos, tributar-lhes o nosso muito obrigado e desejar que prossigam ainda na obra fecunda que com tanto amor e em tão boa hora encetaram.

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 1967: Revista Brasileira de Psicanálise, 1(1),46-66. Republicado em 2012: Revista Brasileira de Psicanálise, 46(2), 65-76.

2 Em 1920, o professor Franco da Rocha publicou um livro de divulgação, O pansexualismo na doutrina de Freud. Dez anos mais tarde, por insistência de Durval Marcondes, publicou uma segunda edição de seu livro com o título corrigido para A doutrina de Freud.

3 Carta (arquivo particular de Durval Marcondes).

4 Carta (arquivo particular de Durval Marcondes).

5 No Rio de Janeiro, na década de 20, Porto Carrero não só divulgava a psicanálise em aulas e conferências como também procurava utilizá-la na clínica. Carneiro Airosa e Murilo de Campos instalaram um Gabinete de Psicanálise no Hospital Nacional de Psicopatas.

6 The International Journal ofPsychoanalysis, 10, pt. 4 (1929).

7 The International Journal ofPsychoanalysis, 12, pt. 4 (1931).

8 Durval Marcondes passou a manter correspondência com Freud desde 1926.

9 Carta (arquivo particular de Durval Marcondes).

10 Frank Philips exerce há muitos anos a atividade psicanalítica em Londres, tendo atualizado sua formação analítica com Melanie Klein.

11 The International Journal of Psychoanalysis, 27 (1946).

12 Henrique Júlio Schlomann faleceu prematuramente a 9 de maio de 1965, no início de seu mandato na presidência da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, cargo que ocupava por reeleição.

13 Henrique Mendes encontra-se radicado no Rio de Janeiro há alguns anos.

 

Referências

Bicudo, V. L. (1948). Contribuição para a história do desenvolvimento da psicanálise em São Paulo. Arquivos de Neuropsiquiatria, 6(1),69-72.         [ Links ]

Freud, S. (1948). Una dificultad del psicoanálisis. In S. Freud, Obras completas (L. López-Ballesteros y de Torres, Trad., Vol. 2). Madrid: Biblioteca Nueva. (Trabalho original publicado em 1917)        [ Links ]

Galvão, L. de A. P. (1966a). Contribuição ao estudo psicanalítico de ideologia: bases emocionais para a escolha do totalitarismo como ideal político. Trabalho apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

Galvão, L. de A. P. (1966b). Sobre o exercício da psicanálise: uma nova profissão. Jornal de Psicanálise, 2.         [ Links ]

Grinberg, L. (1961). Reseña histórica de la Asociación Psicoanalítica Argentina. Revista de Psicoanálisis, 18(3).         [ Links ]

Jones, E. (1960). Vida y obra de Sigmund Freud (M. Carlisky, Trad.). Buenos Aires: Nova.         [ Links ]

Creative Commons License