SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.50 número1AdolescênciaReflexões sobre a psicanálise quando sujeita à regressão índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016

 

EM PAUTA

 

A regressão na contratransferência1,2

 

Regression in countertransference

 

La regresión en la contratransferencia

 

 

Durval Marcondes (in memoriam)

Médico formado pela Faculdade de Medicina de São Paulo, membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise, diretor presidente do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Psicanálise de 1928 até 1968

 

 


RESUMO

O processo analítico é uma retificação do passado. Uma de suas condições básicas é a revivência dos acontecimentos patogênicos, a qual envolve tanto o paciente quanto o analista. Ao voltar, através da regressão, ao ponto crítico da gênese de seus conflitos, o paciente tem a possibilidade de retomar a linha de desenvolvimento que ficou anteriormente prejudicada. Isto se dá na medida em que as particularidades de seu relacionamento com o analista o permitam. Além de uma tendência regressiva, a transferência contém uma tendência progressiva que cabe ao analista favorecer, guiado pela acuidade e pela flexibilidade de sua aptidão contratransferencial. O meio pelo qual essa aptidão se manifesta é a interpretação. Afora seu significado puramente intelectual, a interpretação encerra outras mensagens ligadas à atitude psíquica do analista. Disso resulta existir um sentido transferencial na interpretação dita não transferenciai. Ela é transferencial através das comunicações adicionais que nela existem, ao lado de seu conteúdo intelectual específico. É o estímulo dessas comunicações implícitas na interpretação que lhe confere sua função mutativa. Ao analista é atribuída pelo paciente a qualidade de objeto propício ou eufrenogênico, que, em contraposição ao objeto não propícioou disfrenogênico de sua infância, teria sido, na situação histórica que está sendo revivida na análise, o objeto apropriado para a solução de seus problemas psíquicos. A intervenção interpretativa do analista é inspirada na contratransferência. É pela participação empática nos problemas do paciente e suas causas que o analista pode captar sua motivação profunda. O elemento fundamental desse processo está na identificação. O autor examina os diferentes tipos de identificação regressiva que têm lugar no analista (identificação com o ego infantil do paciente, identificação com o objeto infantil não propício ou disfrenogênico, identificação com o objeto infantil propício ou eufrenogênico etc.), identificações essas que permitem ao analista enquadrar-se na situação conflitiva do paciente e produzir a interpretação. São mencionadas as qualidades restritivas próprias a esses tipos de identificação. A seguir, são postos em foco os perigos que essa identificação pode acarretar, os quais resultam em certos tipos de resistência contratransferencial. A base mais profunda dessa contratransferência está naquilo que o autor chamou ameaça regressiva existencial. Há o temor inconsciente de ser absorvido de modo irreversível na situação do analisando e perder a posição psíquica de autonomia e segurança. O analista não suporta acompanhar o paciente no processo regressivo, receando ser atingido na integridade de seu próprio ego. As angústias que, no analista, traduzem tais perigos assumem aspectos paranoides (medo diante das fantasias do paciente) ou depressivos (pessimismo, sentimento de culpa). As defesas habitualmente postas em jogo são, por um lado, de caráter inibitório (imobilidade do analista) e, por outro lado, de feição onipotente (atitude de superioridade). A onipotência do analista assume, muitas vezes, a qualidade de defesa maníaca, que se manifesta por um impulso à atuação sob a forma, por exemplo, de uma forte tendência ao asseguramento ou de uma produção excessiva de interpretações. A dissecção e a melhor compreensão do sistema de identificações regressivas do analista e do papel desse sistema no trabalho analítico são, como se vê, elementos básicos na elucidação da essência e do mecanismo íntimo de nossos recursos técnicos.

Palavras-chave: processo analítico; regressão; transferência; interpretação; identificação.


ABSTRACT

Psychoanalytic process is a rectification of the past. One of its basic conditions is reviving pathogenic events. This revival involves both the patient and the psychoanalyst. When the patient returns to the critical point of the genesis of his conflicts through regression, he may retake the developmental line which was previously damaged. This happens according to the circumstances of the patient-psychoanalyst relationship. Besides a regressive tendency, transference has also a progressive tendency which should be favored by the psychoanalyst, who is guided by the sharpness and the flexibility of his countertransferential skill. Interpretation is the way this skill comes up. Besides its purely intellectual meaning, interpretation includes other messages which are related to the psychoanalyst’s psychic attitude. The result is a transferential meaning in the so-called not transferential interpretation. It is transferential through the additional communications it contains, besides its specific intellectual content. Stimulating these implicit communications is what gives it its mutative function. The patient endows the analyst with the quality of propitious object (or euphrenogenic), which, as opposed to the unpropitious object (or dysphrenogenic) from his childhood, would have been the appropriate object to solve the patient’s psychic issues in the historical situation that has been revived in analysis. Psychoanalyst’s interpretative intervention is inspired by countertransference. Using an empathic participation in the patient’s issues and their reasons, the analyst becomes able to capture their deep motivation. The crucial element of this process is the identification. The author examines different types of regressive identification found in the analyst (patient’s infantile ego identification, unpropitious [or dysphrenogenic] infantile object identification, propitious [or euphrenogenic] infantile object identification etc.). These identifications let the analyst being conformed to the patient’s conflictive situation and interpretating it. The author mentions restrictive characteristics that are specific to these types of identification. His next focus is that identification may cause jeopardies, which result in certain kinds of countertransferential resistance. The deepest basis of this countertransference lies on what the author called regressive existential threat. There is an unconscious fear of being irreversibly absorbed in the analysand’s situation, and losing the psychic position of autonomy and safety. The psychoanalyst cannot stand following the patient in his regressive process; he is afraid of having the integrity of his own ego hurt. Angsts, which represent those jeopardies for the analyst, take on paranoid aspects (fear, facing patient’s fantasies) or depressive aspects (pessimism, guilt). Defenses, which are often used, have, on the one hand, an inhibitory characteristic (analyst’s immobility) and, on the other hand, an omnipotent feature (attitude of superiority). Several times, analyst’s omnipotence assumes the maniac defensive feature, which is expressed by an impulse to acting, for instance, in a strong tendency towards assurance, or a strong tendency towards an excessive production of interpretations. As we see, dissecting and better understanding the system of analyst’s regressive identifications and its role in the psychoanalytic practice are basic elements to explain the essence and the intimate mechanism of our technical resources.

Keywords: psychoanalytic process; regression; transference; interpretation; identification.


RESUMEN

El proceso analítico es una rectificación del pasado. Una de sus condiciones básicas es la de revivir los sucesos patogénicos, la cual involucra tanto al paciente como al analista. Al volver, a través de la regresión, al punto crítico de la génesis de sus conflictos, el paciente tiene la posibilidad de retomar la línea de desarrollo que había sido perjudicada anteriormente. Esto se produce en la medida en que las particularidades de su relación con el analista lo permitan. Además de una tendencia regresiva, la transferencia posee una tendencia progresiva que le corresponde al analista favorecer, guiado por la acuidad y por la flexibilidad de su aptitud contratransferencial. El medio a través del cual se manifiesta esta aptitud es la interpretación. Además de su significado puramente intelectual, la interpretación contiene otros mensajes relacionados con la actitud psíquica del analista. De esto resulta la existencia de un sentido transferencial en la interpretación llamada no transferencial. Es transferencial a través de las comunicaciones adicionales que existen en ella, junto a su contenido intelectual específico. Es el estímulo de esas comunicaciones implícitas en la interpretación lo que le confiere su función mutativa. El paciente atribuye al analista la calidad de objeto propicio o eufrenogénico, que, como contraposición del objeto no propicio o disfrenogénico de su infancia, habría sido, en la situación histórica que está siendo revivida en el análisis, el objeto apropiado para la solución de sus problemas psíquicos. La intervención interpretativa del analista está inspirada en la contratransferencia. El analista puede captar su motivación profunda a través de la participación empática en los problemas del paciente y sus causas. El elemento fundamental de este proceso está en la identificación. El autor examina los diferentes tipos de identificación regresiva que tienen lugar en el analista (identificación con el ego infantil del paciente, identificación con el objeto infantil no propicio o disfrenogénico, identificación con el objeto infantil propicio o eufrenogénico etc.), identificaciones que le permiten ubicarse en la situación de conflicto del paciente y producir la interpretación. Se mencionan las cualidades restrictivas propias de estos tipos de identificación. A continuación, se analizan detalladamente los peligros que esa identificación puede traer consigo, de los cuales resultan ciertos tipos de resistencia contratransferencial. La base más profunda de esta contratransferencia está en aquello que el autor llamó amenaza regresiva existencial. Existe el temor inconsciente de ser absorbido de manera irreversible en la situación del analizado y perder la posición psíquica de autonomía y seguridad. El analista no soporta acompañar al paciente en el proceso regresivo, temiendo ser afectado en la integridad de su propio ego. Las angustias que, en el analista, traducen tales peligros asumen aspectos paranoides (miedo ante las fantasías del paciente) o depresivos (pesimismo, sentimiento de culpa). Las defensas habitualmente puestas en juego son, por un lado, de carácter inhibidor (inmovilidad del analista) y, por otro lado, de característica omnipotente (actitud de superioridad). La omnipotencia del analista asume, muchas veces, la calidad de defensa maníaca, que se manifiesta por un impulso a la actuación bajo la forma, por ejemplo, de una fuerte tendencia al aseguramiento o de una producción excesiva de interpretaciones. La disección y mejor comprensión del sistema de identificaciones regresivas del analista y del papel de ese sistema en el trabajo analítico son, como se ve, elementos básicos en el esclarecimiento de la esencia y del mecanismo íntimo de nuestros recursos técnicos.

Palabras clave: proceso analítico; regresión; transferencia; interpretación; identificación.


 

 

O processo analítico é um processo de retificação do passado. Uma de suas condições básicas é a revivência regressiva dos acontecimentos patogênicos, a qual, embora com propósitos e características diferentes, envolve tanto o paciente quanto o analista. Ao iniciar o tratamento, o analista se dispõe a participar de uma excursão a fatos anteriores da vida psíquica do paciente, o que se dá não apenas no nível racional, mas também e necessariamente no nível emocional. Isso significa a mobilização das disposições regressivas latentes no analista.

O enquadramento do analisando no processo analítico inclui sempre a possibilidade potencial de retomar a linha de desenvolvimento que, em alguma época, ficou prejudicada. Quando, em cada passo do tratamento, o paciente volta, através da regressão, ao ponto crítico da gênese de seus conflitos, ele se coloca na situação de reconsiderar, no plano analítico, os elementos que os determinam e adotar outra e mais adequada solução. Isto acontece na medida em que as particularidades de seu relacionamento com o analista o permitem. A transferência, que é o cenário no qual o processo analítico se desenvolve, encerra, pois, além de uma tendência regressiva, uma tendência progressiva latente, que cabe ao analista favorecer com sua intervenção. Nisto, o analista é guiado pela acuidade e pela flexibilidade de sua aptidão contratransferencial.

O meio pelo qual essa aptidão se manifesta na psicanálise é constituído pela interpretação. O mecanismo corretivo da interpretação não se limita a seu significado intelectual, mas abrange outras mensagens que ela contém. Quando uma interpretação é "certa", isto é, quando pode mostrar o sentido oculto do material apresentado, ela age não só pelo esclarecimento que desse modo proporciona, mas também e sobretudo pelo impacto produzido no paciente pela circunstância de haver encontrado, de parte do analista, "compreensão". Desse modo, uma interpretação que não vise diretamente material da transferência vem a ter, não obstante isso e na medida em que ela seja verdadeiramente "certa", um efeito nitidamente transferencial. Esse efeito decorre da posição em que, na mente do analisando, é colocada automaticamente a figura do analista.

Há, pois, uma natureza transferencial na interpretação dita não transferencialou extratransferencial. Ela é transferencial através das comunicações adicionais que nela existem ao lado de seu conteúdo intelectual específico. Isto se torna possível pelos "defeitos incidentais da interpretação" de que fala H. Hartmann (1951/1964). Para explicá-los, ele se refere ao que propõe chamar princípio de apelo múltiplo. C. Rycroft (195),1958) se ocupou do assunto de maneira mais precisa quando disse que, em acréscimo a uma declaração explícita sobre as fantasias ou defesas do paciente, a interpretação contém "uma declaração acerca do analista em si mesmo e sua atitude para com o paciente".

É sobretudo o estímulo dessa comunicação implícita que, a meu ver, proporciona a possibilidade do confronto que está na essência do papel mutativo da interpretação. Neste assunto, devo discordar de J. Strachey (1934/1963) no que diz respeito à descrição dos objetos que, na interpretação, são postos em cotejo. Essa discordância tem, aliás, o intuito de completar e aperfeiçoar o esquema de Strachey. Segundo esse autor, a interpretação dá ao paciente a oportunidade de sentir a diferença e, consequentemente, estabelecer a distinção entre os objetos infantis de sua fantasia inconsciente e o objeto real com que, na situação da transferência, ele se defronta na época presente, isto é, o analista. Conforme fiz ver em trabalhos anteriores (Marcondes, 1958),1961), há, de fato, uma comparação entre dois objetos que ocupam a fantasia do paciente, quando este acolhe e elabora a interpretação. Mas a distinção que aí tem lugar não se dá propriamente entre o objeto infantil e o objeto real (analista), mas entre aquele mesmo objeto infantil e outro objeto infantil que, representado presentemente pelo analista, teria sido, no momento da vida pretérita que está sendo reproduzido na análise, o objeto apropriado à solução dos problemas psíquicos do paciente e, por consequência, ao seu amadurecimento mental. A este objeto dei o nome de objeto propício ou objeto eufrenogênico, em contraposição ao objeto do passado (mãe, pai etc.) no relacionamento com o qual o paciente não encontrou as condições favoráveis para o vencimento de suas dificuldades emocionais e para o qual propus a denominação de objeto não propício ou objeto disfrenogênico.

A presença do analista no mecanismo da interpretação não se dá somente através da formulação verbal, isto é, da interpretação em seu sentido estrito. A mensagem de efeito corretivo pode estar presente nas mais diversas reações do analista aos estímulos produzidos pelo analisando. Conforme acentuei noutra oportunidade (Marcondes, 1958b), seria lícito ampliar o conceito de interpretação de modo a nele incluir toda atitude do analista que tenha como resultado a modificação da maneira pela qual o paciente vem encarando seus próprios fatos psíquicos. Com esse critério, poder-seda então falar de atitude interpretativa, ou atitude compreensiva, ou atitude propíciapor parte do analista. Entendo como atitude interpretativa a interpretação propriamente dita (interpretação verbal) e mais tudo aquilo, de parte do analista, que, além da interpretação, proporcione ao paciente qualquer mudança no sentido do progresso. Cabe estabelecer aqui a distinção entre a atitude interpretativa e a atuação do analista, para a qual aquela pode resvalar. Na verdade, essa distinção nem sempre é fácil. De qualquer modo, a reação do analista é de atuação quando não confere a ele a qualidade de objeto propício ao crescimento emocional do paciente.

A intervenção interpretativa do analista é inspirada na contratransferência. É através da participação empática nos problemas do paciente e nas suas causas determinantes que o analista pode captar sua motivação profunda e conduzir-se de modo apropriado diante deles. O elemento fundamental desse processo está na identificação. Já me referi de outras vezes (Marcondes, 1958),1961) aos diversos tipos de identificação regressiva que têm lugar no trabalho contratransferencial rotineiro do analista. É interessante reexaminá-los de modo sucinto.

Primeiramente, temos de considerar a identificação regressiva com o paciente (com partes do ego infantil do paciente) na situação que está sendo transferencialmente repetida no plano analítico. Essa identificação, que H. Racker (1957/1960) chamou identificação concordante ou homóloga, coloca o analista na mesma situação conflitiva do paciente, o que lhe permite sentir e experimentar, a título de amostra, os mesmos impulsos e desejos do paciente nessa situação. Isto é possível porque, como fez ver Helene Deutsch (1926/1953), "a estrutura psíquica do analista é um produto de processos de desenvolvimento semelhantes àqueles que o próprio paciente também experimentou".

Outra modalidade de identificação regressiva é aquela que se dá com o objeto infantil do paciente, isto é, o objeto com que ele se defrontou na referida situação (partes do superego do paciente). Helene Deutsch (1926/1953) a denominou atitude complementar. Racker (1957/1960) usou, para designá-la, esse mesmo adjetivo, chamando-a identificação complementar. Através dela, o analista pode sentir sua posição na fantasia inconsciente do analisando e compreender as dificuldades deste. Se quiséssemos adotar também aqui o critério de nomenclatura que Racker empregou para o tipo anterior, poderíamos usar, por analogia, a expressão identificação discordanteou ainda identificação heteróloga.

A propósito desta identificação com o objeto, cabe estabelecer uma distinção que tem como base as duas qualidades do objeto infantil (disfrenogênico e eufrenogênico) a que me referi antes, ao falar do cotejo que o paciente tem de fazer para alcançar o efeito mutativo da interpretação. Assim, a identificação complementar por parte do analista desdobra-se em duas outras: uma é a identificação com aquele objeto que, no episódio patogênico revivido na análise, não correspondeu às necessidades de maturação psíquica do paciente; a outra é a identificação com aquele objeto que, no mesmo momento histórico, oferecería as condições convenientes à referida maturação. Na primeira, o analista se integra na fonte de angústia do paciente, sentindo desse modo a exata natureza do obstáculo a transpor (analista = objeto disfrenogênico); na segunda, coloca-se no alvo das expectativas do paciente, sentindo a essência de suas necessidades (analista = objeto eufrenogênico). Com ambas, pode enquadrar-se na situação conflitiva e produzir a interpretação.

Deve-se ter, naturalmente, em conta que o objeto eufrenogênico (ou propício) a que se faz aqui referência e que constitui o objeto que atenderia realmente aos interesses do crescimento emocional do paciente não se confunde com o objeto por este falsamente idealizado. Isto significa que a identificação contratransferencial do analista tem de multiplicar-se adequadamente para abranger e distinguir todas as variedades e contradições da fantasia infantil do paciente.

Ao conjunto das identificações complementares (ou heterólogas), que inclui em sua totalidade a identificação com o objeto do paciente na situação original (objeto disfrenogênico) e, ao mesmo tempo, a identificação com o objeto que teria sido verdadeiramente necessário nessa mesma situação (objeto eufrenogênico), poder-se-ia dar o nome de identificação complementar integral.

Para corresponder à sua finalidade prática no tratamento, a identificação regressiva contratransferencial tem de se ater a certas condições restritivas especiais que lhe conferem o caráter de instrumento de trabalho. Trata-se de um processo voluntário e controlado, no qual uma parte do ego do analista assume, conforme a expressão de R. Fliess (1942), a função de ego de trabalho. Essa função se limita às finalidades da cura analítica e se torna possível pelo fato de que o superego do analista, erigido, segundo outro modo de dizer de Fliess, em consciência terapêutica, adota uma posição crítica de certa benevolência. A identificação que assim tem lugar (identificação de prova, de acordo ainda com as palavras de Fliess) é de natureza parcial e transitória e, em seu aspecto regressivo, corresponde àquilo que, tendo em vista mais propriamente o sentimento estético, E. Kris (1936/1952) denominou regressão a serviço do ego. Em outra ocasião (Marcondes, 1958b), assim descrevi as qualidades restritivas da identificação contratransferencial adequada ao trabalho analítico: (1) só uma pequena parte do ego é envolvida; (2) as forças mobilizadas o são em caráter meramente transitório; (3) o investimento afetivo se reduz às necessidades da cura.

Essas qualidades restritivas dão ao analista a possibilidade de, a cada momento, destacar-se de sua participação na vida emocional do paciente e estabelecer a necessária correção lógica. Tem aí lugar a "constante oscilação entre o livre jogo da fantasia e o escrutínio crítico", como já em 1919 havia sido expresso de modo tão claro por Ferenczi (1926). Essa dupla posição permite ao analista incursionar na profundeza da vida psíquica do paciente e, ao mesmo tempo, preservar sua situação de observador imparcial. T. Reik (1949) descreveu muito bem essa combinação de atitudes do analista ao afirmar que o essencial no processo psíquico que nele se desenvolve é o fato de que

ele pode vibrar inconscientemente no ritmo do impulso de outra pessoa e, apesar disso, ser capaz de tomá-lo como alguma coisa que se passa fora de si mesmo e compreendê-lo psicologicamente, participando da experiência alheia e, não obstante, permanecendo acima da contenda, au-dessus de la mêlée.(p. 468)

Da identificação regressiva contratransferencial podem decorrer perigos que põem em xeque a evolução e a eficiência do tratamento analítico. A falta da necessária elasticidade psíquica do analista tira-lhe a capacidade de colocar-se na exata posição exigida para a compreensão e o manejo do processo em andamento. Neste caso, a identificação deixa de ter as qualidades restritivas há pouco mencionadas e perde suas condições de identificação de prova. Surgem, então, as manifestações de contrarresistência que inibem ou deformam a conduta do analista. A base mais profunda dessa contrarresistência está naquilo que chamei ameaça regressiva existencial (Marcondes, 1963). Há o temor inconsciente de ser absorvido de modo irreversível na situação do analisando e perder a posição psíquica de autonomia e segurança. O analista não suporta acompanhar o paciente em seu processo regressivo, receando ser atingido na integridade de seu próprio ego. Nos níveis psicóticos da personalidade do paciente, o analista se perde nas tramas de contradição e ambiguidade aí dominantes e cria barreiras intransponíveis para a indispensável identificação.

As angústias que, no analista, traduzem tais perigos podem assumir aspectos paranoides (medo diante das fantasias do paciente) ou depressivos (pessimismo, sentimento de culpa). As defesas postas habitualmente em jogo são, por um lado, de caráter inibitório (imobilidade do analista) ou, por outro lado, de feição onipotente (atitude de superioridade). Ocorre, neste último caso, aquilo que chamei posição autoritária (Marcondes, 1958b). Ferenczi (1955a) propôs a denominação de hipocrisia profissional a certo feitio da atitude do analista que me parece corresponder a uma das modalidades desse autoritarismo defensivo. A onipotência do analista assume muitas vezes a qualidade de defesa maníaca que se manifesta por um impulso à atuação sob a forma, por exemplo, de uma acentuada tendência ao asseguramento ou de uma produção excessiva de interpretações.

A dissecção e a melhor apreciação do sistema de identificação regressiva do analista e do papel desse sistema no trabalho analítico são, como se vê, elementos básicos na elucidação da essência do mecanismo íntimo de nossos recursos técnicos. Na medida em que possamos progredir nesse terreno, ampliaremos cada vez mais o alcance de nossas possibilidades terapêuticas. Sem dúvida, a psicanálise será sempre uma profissão na qual os dotes e as qualidades pessoais de cada indivíduo serão elemento decisivo, por mais completas que sejam as normas e diretrizes de ordem geral que a codificação da experiência venha a nos oferecer. Isso, porém, não significa que não procuremos, dentro do que nos for possível, determinar o modo pelo qual essa virtuosidade é posta em função.

No diálogo sobre técnica entre Freud e Ferenczi, cuja divergência representa o momento crítico na história inicial da apreciação da contratransferência como fator no processo analítico, é posta em foco a necessidade de despojar o "tato" psicológico de seu "caráter místico" (1955b). Esta é, de fato, uma tarefa indispensável, e a descrição cada vez mais minuciosa dos múltiplos aspectos da movimentação con-tratransferencial do analista nos irá encaminhando nessa direção.

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 1968: Revista Brasileira de Psicanálise, 2(1),11-21.

2 Trabalho apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em 5 de março de 1968, e na II Jornada Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro, 1ª a 4 de maio do mesmo ano.

 

Referências

Deutsch, H. (1953). Occult processes occurring during psychoanalysis. In G. Devereux (Ed.), Psychoanalysis and the occult (133-146). New York: International Universities Press. (Trabalho original publicado em 1926)        [ Links ]

Ferenczi, S. (1926). On the technique of psychoanalysis. In S. Ferenczi, Further contributions to the theory and technique of psychoanalysis. London: The Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Ferenczi, S. (1955a). Confusion of tongues between the adult and the child. In S. Ferenczi, Final contributions to the problems and methods of psychoanalysis. New York: Basic Books.         [ Links ]

Ferenczi, S. (1955b). The elasticity of psychoanalytic technique. In S. Ferenczi, Final contributions to the problems and methods of psychoanalysis. New York: Basic Books.         [ Links ]

Fliess, R. (1942). The metapsychology of the analyst. The Psychoanalytic Quarterly, 11,211-227.         [ Links ]

Hartmann, H. (1964). Technical implications of ego psychology. In H. Hartmann, Essays on ego psychology.New York: International Universities Press. (Trabalho original publicado em 1951)        [ Links ]

Kris, E. (1952). The psychology of caricature. In E. Kris, Psychoanalytic explorations in art. New York: International Universities Press. (Trabalho original publicado em 1936)        [ Links ]

Marcondes, D. (1958a). The concept of interpretation in psychoanalysis. The Journal of Nervous and Mental Diseases, 127,443-447.         [ Links ]

Marcondes, D. (1958b). The psychodynamism of the analytic process. The Psychoanalytic Review, 43,261-271.         [ Links ]

Marcondes, D. (1961). Bases dinâmicas da psicoterapia. Revista Paulista de Medicina, 58,395-401.         [ Links ]

Marcondes, D. (1963). Aspectos psicanalíticos da esquizofrenia e de suas relações com a epilepsia. Trabalho apresentado à Sociedade Brasileira de Psicanálise (Rio de Janeiro), em 9 de dezembro.         [ Links ]

Racker, H. (1960). The meanings and uses of countertransference. In H. Racker, Estudios sobre técnica psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós. (Trabalho original publicado em 1957).         [ Links ]

Reik, T. (1949). The inner experience of a psychoanalyst.London: George Allen & Unwin.         [ Links ]

Rycroft, C. (1956). The nature and function of the analyst’s communication to the patient. The International Journal of Psychoanalysis, 37,469-472.

Rycroft, C. (1958). An inquiry into the function of words in the psychoanalytical situation. The International Journal of Psychoanalysis, 39,408-415.         [ Links ]

Strachey, J. (1963). The nature of the therapeutic action of psychoanalysis. In L. Paul (Ed.), Psychoanalytic clinical interpretation. New York: The Free Press of Glencoe. (Trabalho original publicado em 1934)        [ Links ]

Creative Commons License