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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016

 

EM PAUTA

 

O impasse analítico1

 

The psychoanalytic impasse

 

El estancamiento analítico

 

 

Laertes Moura Ferrão (in memoriam)

Médico, presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP; 1969-1972 e 1975-1976), diretor editorial da Revista Brasileira de Psicanálise (196/1968), membro efetivo e analista com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 


RESUMO

Trata-se de um trabalho apresentado pelo autor à mesa-redonda sobre o tema no X Congresso Latino-Americano de Psicanálise. A psicanálise, em sua origem, está intimamente relacionada à medicina, a uma visão médica, nem sempre mencionada mas reconhecida nas ideias de doença, patologia, prognóstico, resultados, tratamento, e também está impregnada de ideias de cura, fundamentadas no princípio do prazer e na experiência sensorial. Os analisandos alimentam fantasias onipotentes de livrar-se de sofrimentos psíquicos, anseiam um estado de bem-estar ou idealizam alcançar, através da psicanálise, qualidades que são mais próprias das divindades. Estes desejos podem ser entretidos pelos analisandos e pela parte onipotente não analisada dos analistas; desse modo, a psicanálise corresponderia a um verdadeiro processo de purificação religiosa. Os desejos de cura ou de um ideal moral, assim entretidos, impregnam a prática da psicanálise, a teoria e a teoria da técnica psicanalíticas, estabelecendo comportamentos característicos que podem ser conhecidos quando observamos mais livremente o nosso modo de ser na prática da psicanálise. O autor aborda como essas deformações da técnica e da teoria, segundo sua opinião, podem ser reconhecidas nas diversas etapas da história da psicanálise. Com respeito à transferência, diz o autor: "A concepção de compreender a relação analítica em termos da teoria da transferência, em termos da relação inconsciente com os objetivos primitivos, pode ser substituída pela concepção de tentar conhecer, através da observação psicanalítica, em statu nascendi,a origem, as características de formação da imagem interna, que o analisando vai fazendo do analista durante a experiência analítica pelo operar dos elementos não desenvolvidos de sua personalidade, e também conhecer o seu modo de relacionar-se, de pensar e de aprender desta experiência e deduzir os fatores que estão em jogo neste processo." Após comentários sobre trabalhos de Freud, K. Abraham, M. Klein e J. Riviere a respeito do tema em questão, afirma que o impasse analítico é um conceito inspirado pelos desejos de cura ou de um ideal moral, intimamente relacionados a uma visão médica ou religiosa da psicanálise. É um conceito estabelecido e aceito entre os psicanalistas que têm em comum este vértice. Por fim, refere-se à tentativa que, há algum tempo, vem fazendo de trabalhar com uma disciplina para afastar desejos, memórias e compreensão, e segundo o vértice psicanalítico, objetivando as suas ideias sobre o tema com material clínico.

Palavras-chave: cura; prazer; experiência sensorial; fantasia; transferência.


ABSTRACT

The author presented this paper to the panel discussion about the same subject at the 10th Latin American Congress of Psychoanalysis. Psychoanalysis, in its origin, is related to medicine - to a medical perspective which, even without always being mentioned, is recognized in the ideas of illness, pathology, prognostic, results, and treatment. That medical perspective is also imbued with ideas of healing (or cure), which are based on both the pleasure principle and the sensory experience. Analysands feed omnipotent fantasies of getting rid of psychic sufferings; they long for a state of wellness or they idealize to achieve qualities - which are more typical of deities - through psychoanalysis. These desires may be entertained by the analysands and by the analysts’ omnipotent part. Therefore, psychoanalysis would correspond to a true process of religious purification. The desires of healing or the desires of a moral ideal - which are entertained in this way - imbue the psychoanalytic practice, the psychoanalytic theory, and the theory of the psychoanalytic technique. These desires determine characteristic behaviors which may be known when we more freely watch our way of being in the psychoanalytic practice. This paper shows the author’s approach about how these distortions in technique and theory may be recognized in several stages of the history of psychoanalysis. Regarding transference, the author writes: "The conception of understanding the psychoanalytic relationship in terms of the theory of transference - or in terms of the unconscious relation to the primitive goals - may be substituted by the conception of attempting to know, through psychoanalytic observation and in statu nascendi, the origin, the characteristics of forming the internal picture of the analyst, which the analysand has built by operating the undeveloped elements of his personality in the course of the psychoanalytic experience, and also by the conception of attempting to know his way of relating or engaging with others, his way of thinking and learning from this experience, and his way of deducing the factors that are at stake in this process." After commenting on Freud’s, K. Abraham’s, M. Klein’s, and J. Riviere’s works about this subject, the author infers that psychoanalytic impasse is a concept which is inspired by desires of healing or moral ideal. These desires are closely related to a medical or religious perspective of psychoanalysis. Psychoanalytic impasse is a concept which has been established and accepted by the psychoanalysts who share this vertex. Finally, the author writes about his still current attempt of working with a specific discipline in order to put away desires, memories, and comprehension, and according to the psychoanalytic vertex. The author illustrates his ideas with clinical vignettes.

Keywords: cure; healing; pleasure; sensory experience; fantasy; transference.


RESUMEN

Se trata de un trabajo presentado por el autor a la mesa redonda sobre el tema en el X Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis. El psicoanálisis, en su origen, está íntimamente relacionado con la medicina, con una visión médica, no siempre mencionada, pero reconocida en las ideas de enfermedad, patología, pronóstico, resultados, tratamiento, y también está impregnada de ideas de cura, que se fundamentan en el principio del placer y en la experiencia sensorial. Los analizados alimentan fantasías omnipotentes de librarse de sufrimientos psíquicos, ansían un estado de bienestar o idealizan alcanzar, a través del psicoanálisis, cualidades que son más propias de las divinidades. Estos deseos pueden ser entrelazados por los analizados y la parte omnipotente no analizada de los analistas; de esta forma, el psicoanálisis corresponde a un verdadero proceso de purificación religiosa. Los deseos de cura o de un ideal moral, de esta forma entrelazados, impregnan la práctica del psicoanálisis, la teoría y la teoría de la técnica psicoanalítica, estableciendo comportamientos característicos que pueden conocerse cuando observamos más libremente nuestro modo de ser en la práctica del psicoanálisis. El autor aborda cómo esas deformaciones de la técnica y de la teoría, de acuerdo con su opinión, pueden ser reconocidas en las diversas etapas de la historia del psicoanálisis. En relación a la transferencia, el autor plantea: "La concepción de comprender la relación analítica en términos de la teoría de la transferencia, en términos de la relación inconsciente con los objetivos primitivos, puede ser sustituida por la concepción de intentar conocer, a través de la observación psicoanalítica, en statu nascendi, el origen, las características de formación de la imagen interna, que el analizado va haciendo del analista durante la experiencia analítica por el operar de los elementos no desarrollados de su personalidad, y también conocer su modo de relacionarse, de pensar y de aprender de esta experiencia y deducir los factores que están en juego en este proceso." Después de comentarios sobre trabajos de Freud, K. Abraham, M. Klein y J. Riviere en relación al tema en cuestión, afirma que el estancamiento analítico es un concepto inspirado por los deseos de cura o de un ideal moral, íntimamente relacionados a una visión médica o religiosa del psicoanálisis. Es un concepto establecido y aceptado entre los psicoanalistas que tienen este vértice en común. Finalmente, se refiere al intento que, hace algún tiempo, se está haciendo de trabajar con una disciplina para apartar deseos, memorias y comprensión, y de acuerdo con el vértice psicoanalítico, objetivando sus ideas sobre el tema con material clínico.

Palabras clave: cura; placer; experiencia sensorial; fantasía; transferencia.


 

 

A psicanálise em sua origem está intimamente relacionada à medicina, a uma visão médica nem sempre mencionada, mas reconhecida nas ideias de doença, patologia, prognóstico, resultados, tratamento e cura. Identificava-se a doença, procurava-se descobrir suas causas, tratá-las, eliminá-las, o quanto possível, com a finalidade de suprimir ou atenuar os sintomas. Todo o campo da nossa vida mental ou espiritual, e não só a psicanálise, está impregnado de ideias de cura, fundamentadas no princípio do prazer e na experiência sensorial. A abordagem religiosa da vida mental, vista através do exame dos Evangelhos, alimenta as esperanças de cura de emoções e experiências psíquicas dolorosas, segundo um modelo que seria apropriado à dor física e ao alívio físico. O desejo de cura de padecimentos mentais, na sua acepção idealizada, corresponderia a livrar-se de sofrimentos psíquicos, eliminar características mentais desagradáveis e adquirir outras agradáveis. O modelo seria este: há uma dor; deve ser eliminada e dar lugar a um estado agradável; alguém ou algum poder tem de eliminá-la de imediato, de preferência mediante magia, onipotência ou onisciência, ou, na falta disto tudo, através da ciência (da magia da ciência).

A tentação de desejar a cura é intensificada pelo fato de que toda pessoa que se submete à psicanálise e obtém bons resultados tem uma experiência que se assemelha à ideia popular de cura e acredita que ficou curada como resultado do "tratamento psicanalítico". Uma experiência de geração a geração com as doenças físicas e seu tratamento tem estabelecido um modelo, uma "memória", que age automaticamente como defesa frente ao desconhecido e como barreira a fatos e ideias novos e perturbadores. Assim sendo, analisando e analista encontrarão conforto e tranquilidade na aparente semelhança da psicanálise com o modelo da medicina física.

Muitos ainda acham, segundo seu vértice particular - e assim o fez Freud, não por ter sido médico -, que a psicanálise é um método de tratamento de uma enfermidade. A psicanálise teve seu ponto de partida no procedimento catártico, cuja descrição foi feita por Breuer e Freud em Estudos sobre a histeria (1895). A terapêutica catártica foi um descobrimento de Breuer, que dez anos antes havia conseguido a cura de uma histérica, em cujo tratamento chegou a perceber a patogênese dos sintomas que a paciente apresentava. Repousava na ampliação do campo de consciência durante a hipnose e tinha como objetivo a supressão dos sintomas, para isso levando o paciente ao estado psíquico no qual cada um deles havia surgido pela primeira vez.

No hipnotizado emergiam recordações, ideias e impulsos ausentes até então de sua consciência, e uma vez comunicados, entre intensas reações afetivas, desapareciam os sintomas e evitava-se desse modo o seu reaparecimento. O sintoma representava uma substituição dos processos psíquicos que não haviam podido chegar à consciência, uma transformação (conversão) daqueles processos. Freud renunciou à hipnose e preconizou o método da associação livre de ideias. As amnésias são, segundo ele, o resultado da repressão, e nas resistências que se opunham à reconstrução das memórias infantis descobriu as forças psíquicas que produziam as repressões. A finalidade que o método analítico procurava atingir poderia ser assim expressada: suprimir as amnésias ou resolver as repressões - o estado psíquico resultante seria o mesmo -, ou, usando a expressão tradicional, "tornar consciente o inconsciente", o que se consegue ao vencer as resistências.

Mais tarde, afastamo-nos da explicação dos sintomas e orientamo-nos para a descoberta dos "complexos" e das diversas "fases de fixação", que representavam as raízes das diversas enfermidades e dos tipos de caráter. A psicanálise, por outro lado, pode relacionar-se a uma visão moral ou religiosa da natureza humana. A meta idealizada a ser atingida, neste caso, reveste-se de valores morais ou normativos sociais: alcançar um estado caracterizado pela posse do bom, do justo, da generosidade, do bem, do conhecimento total, da superação da inveja, da gula, do ódio etc. - caracterizado pela posse dos valores morais positivos e a eliminação dos valores negativos. A fantasia idealizada corresponderia a alcançar qualidades mais próprias das divindades. É uma visão moral, entretida por fantasias onipotentes, que não leva em consideração as diferenças individuais e pressupõe que todo ser humano individual, toda pessoa em particular, teria potencialidades que poderiam ser desenvolvidas, potencialidades comuns aos homens, para se alcançar este "estado de graça". Segundo esta visão, a psicanálise corresponderia a um verdadeiro processo de purificação religiosa. A consequência natural disso seria a necessidade de alguém ou de uma instituição com poderes para estabelecer o que é certo ou errado, normal ou anormal, bem e mal para o homem - estabelecer os mandamentos através da onipotência e da onisciência. Assim sendo, o princípio científico cederia lugar ao predomínio do princípio moral. Esta posição é bastante fraca, pois basta recordarmos que, numa época passada, gênios foram queimados na fogueira pela acusação de serem loucos, enquanto homens com pouca capacidade para pensar foram consagrados como gênios humanos.

Os modelos religiosos serão úteis para nos aproximarmos do conhecimento destas experiências e dos desejos de uma "cura moral". Parece-nos uma tentativa -através da manipulação, e não da capacidade para pensar - de solucionar conflitos humanos morais ou, usando-se a teoria estrutural psicanalítica, conflitos com o superego. Digo modelos religiosos, pois, embora a configuração permaneça inalterada na forma, o conteúdo é variável. Há o desejo de atingir o status de um ser capaz de entrar em contato direto com a verdade, capaz de plena justiça. Certeza de um amor misericordioso, de tolerância absoluta, do perfeitamente "humano", como se os valores moralmente ditos negativos não fizessem parte da natureza humana.

Estes desejos de cura ou de cura moral, entretidos pelos homens e pela parte onipotente não analisada dos analistas, impregnam, como não poderia deixar de ser, a prática da psicanálise, as teorias e a teoria da técnica psicanalíticas, estabelecendo comportamentos característicos que podem ser conhecidos quando observamos mais livremente o nosso modo de ser na prática da psicanálise. As ideias ou as palavras orais ou impressas nem sempre traduzem a realidade da experiência que está acontecendo; estão mais dissociadas dela, numa tentativa de alcançar racionalmente o que não é alcançado no mundo interno e integrado ao comportamento.

O exame dos trabalhos científicos correspondentes aos primordios da psicanálise nos revelará a preocupação de descobrir os sentidos e as causas dos sintomas, a etiologia e as raízes inconscientes das neuroses, a correlação do tipo de caráter com as diversas fases da evolução da libido; de encontrar instrumentos técnicos de trabalho que nos levassem à decifração do inconsciente; de estudar as resistências e repressões, as forças dinâmicas que se opunham à nossa aproximação do inconsciente, e como enfrentá-las. A meta a ser atingida era a "cura". Mesmo a investigação foi dirigida para se conseguir esta finalidade. Desejos alimentados por ambos, analistas e analisandos, levavam a uma meta predeterminada em que deveria ser atingida a "cura", traduzida por diversos conceitos normativos e idealizados: a saúde, a normalidade, a integração social, o desenvolvimento normal etc. Havendo um fim predeterminado a ser alcançado, a observação naturalmente tornou-se deformada e dirigida. Por conseguinte, precisava-se encontrar um caminho para se chegar ao fim desejado, que foi o "tornar consciente o inconsciente", e também um meio, um instrumento técnico que nos facilitaria percorrer o caminho, que nos levaria à decifração do enigma, e que foram "o sonho é a estrada régia do inconsciente" e a associação livre.

Não que esses instrumentos técnicos não sejam auxiliares úteis para nossa tarefa de conhecer empiricamente a realidade humana do analisando e elaborarmos teorias abstratas sobre a natureza humana, mas são realmente ineficazes à tarefa à qual se propunha a psicanálise idealizada e pretensiosa - a cura.

É perfeitamente compreensível que o homem, com suas dificuldades de tolerar a dor e a frustração e na sua luta para conseguir gratificação, idealizasse os poderes curativos da psicanálise, seguindo o mesmo modelo do desesperado que recorre aos poderes divinos. Esta situação humana, fundamentada no princípio do prazer e da experiência sensorial, criou e continuará criando deformações no nosso comportamento no exercício da psicanálise e na elaboração das teorias analíticas. Uma das deformações, antes citada, é o tradicional "tornar consciente o inconsciente", admitindo-se que a conscientização levasse à desejada cura. Mesmo aqueles que pareciam aceitar a psicanálise prática como um processo empírico de investigação da pessoa humana faziam uma conta de chegada e acabavam aceitando que a conscientização do inconsciente levasse indiretamente à cura.

O conhecimento não é inócuo, mas muito consequente, embora vários analistas não deem a este fato a devida importância.

As teorias foram tomadas como verdade, evitando-se assim a ansiedade frente ao desconhecido e trazendo mais segurança ao investigador - ou melhor, ao terapeuta -, que assim julgava possuir um marco de referência e que sua tarefa era apenas encontrar meios para chegar ao já conhecido e revelá-lo ao paciente. Desde que as teorias se transformaram em verdade, aqueles que tinham acesso a elas passaram a ser possuidores de uma verdade comum e, consequentemente, de uma técnica comum para atingir a cura, também uma meta comum.

Estas direções de desenvolvimento tinham o mérito de facilitar a colocação da psicanálise dentro do conceito tradicional das ciências, e o fator subjetivo inerente à personalidade do observador, tão atacado e considerado não científico, deveria ser contornado pelas análises pessoais para se conseguir "a atitude de espelho", impessoal.

A tendência de encontrar uma melhor técnica ou teoria comum aos analistas não corresponde à realidade da experiência analítica. A experiência que constitui a prática da psicanálise passa-se entre duas pessoas que estão ali presentes, não apenas no aspecto descritivo, mas vívido, com todas as implicações que isto significa: duas pessoas com seus olhos, ouvidos, corpos, mentes, e com seus elementos inerentes individuais, que entretêm, em cada momento, seu vértice, teorias, modo de conceber o trabalho, capacidade para observar, pensar etc. Os resultados alcançados dependem de ambos os envolvidos no processo. O analista desenvolve seu próprio modelo, que suas condições pessoais permitem. Ele será, como analista, o que suas condições humanas permitirem, e o paciente será o que poderá ser, e o trabalho em comum dependerá da interação de ambos como pessoas humanas.

Freud, a nosso ver, foi um ser humano comum e um gênio. Os dois artigos de 1904 - "O método psicanalítico de Freud" (1943c) e "Sobre psicoterapia" (1943d) - estão dominados pela sua visão médica, reconhecida em ideias de cura, de indicações e contraindicações da psicanálise, relacionadas à eficácia terapêutica.

Além disso, parecia acreditar que progressos da técnica e da teoria facilitariam superar estas contraindicações e ampliar as possibilidades curativas da psicanálise. Em "As perspectivas futuras da terapia psicanalítica", de 1910, inspirado pela sua grande capacidade de observação, afirma: "Mas não devemos esquecer que tampouco é possível situarmo-nos ante a vida como fanáticos higienistas ou terapeutas"... E mais adiante: "Quem de vós não tem tido que reconhecer, alguma vez, que a neurose de um indivíduo era o desenlace menos prejudicial de seu conflito?" Muito significativo é seu trabalho "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise", de 1912 (1943b), no qual ressurge sua genialidade:

Na realidade esta técnica é muito simples. Rechaça todo meio auxiliar, inclusive, como veremos, a mera anotação, e consiste simplesmente em não tentar reter especialmente nada e colher tudo com igual atenção flutuante. Livramo-nos deste modo de um esforço de atenção impossível de ser sustentado por muitas horas ao dia e evitamos um perigo inseparável da retenção voluntária, pois, enquanto esforçamos voluntariamente a atenção com certa intensidade, começamos também, sem o querer, a selecionar o material que se nos oferece: fixamo-nos especialmente em um elemento determinado e eliminamos em troca outro, seguindo nesta seleção nossas esperanças ou nossas tendências. É isto precisamente o que mais devemos evitar. Se ao realizar esta seleção nos deixarmos guiar por nossas esperanças, correremos o perigo de não descobrir senão o que já sabemos, e se nos guiarmos por nossas tendências, falsearemos seguramente a percepção possível. Não devemos esquecer que na maioria das análises ouvimos dos pacientes coisas cuja significação só a posteriori descobrimos.

Em "Linhas de progresso na terapia psicanalítica", de 1918 (1943a), Freud já se encontrava sob o impacto da Primeira Grande Guerra. Estimulado pelos desejos de cura e idealização de resultados sociais, afirma:

Assim mesmo, na aplicação popular de nossos métodos, haveremos de mesclar o ouro puro da análise ao cobre da sugestão direta, e também a influência hipnótica poderia voltar a encontrar aqui um lugar, como no tratamento das neuroses de guerra. Mas quaisquer que sejam a estrutura e a composição desta psicoterapia para o povo, seus elementos mais importantes e eficazes continuarão sendo os tomados da psicanálise propriamente dita, rigorosa e livre de toda tendência.

Podemos observar como Freud oscilava do observador altamente capaz ao homem estimulado pelos desejos de cura, e que estas oscilações influenciaram seu comportamento prático e suas teorias - oscilações que continuam repetindo-se em todos nós analistas, sob as formas mais sutis, sem que nos apercebamos.

A técnica e a teoria analíticas evoluíram na tentativa de solucionar os problemas que emergiam da experiência clínica. Foi estabelecido o conceito de transferência, que trouxe problemas técnicos e metodológicos específicos. A compreensão da transferência transformou o método psicanalítico em um método que permite estudar as relações do paciente com o analista em termos de suas relações com os objetivos primários inconscientes, relações inconscientes que se formaram no passado e que correspondem aos resíduos de conflitos infantis não resolvidos, mas que existem e atuam no presente e que podem ser detectados no "aqui e agora" da sessão analítica. Isto significa que a psicanálise, desse modo, tornou-se um processo empírico de observação e estudo do psiquismo de uma pessoa, através da observação de sua relação com outra pessoa - o analista.

Com a colaboração da teoria da transferência, passamos em psicanálise da concepção genético-histórica para a concepção situacional. A transferência, do ponto de vista fenomenológico, é algo presente, situacional, mas segundo sua concepção teórica é algo passado, um fragmento da história do paciente que se repete. A teoria da transferência tornou-se o pilar-mestre da técnica psicanalítica. Freud saturou a investigação com sua descoberta e, consequentemente, os analistas passaram a estudar e compreender a relação analista-analisando segundo a teoria da transferência. A transferência permitia, por outro lado, resolver uma dificuldade técnica: a conscientização intelectualizada do inconsciente - conscientização da verbalização interpretativa do analista - foi substituída pela conscientização vivida, experimentada e vivenciada intensamente na relação analista-paciente. Um passo a mais e muito eficaz para se alcançar a "cura". Se esta era atingida pelo "tornar consciente o inconsciente", agora tínhamos um instrumento técnico que nos permitia in loco observar toda a fenomenologia das relações primitivas inconscientes com os objetos arcaicos e conhecer a dinâmica da personalidade do analisando. Já sabíamos que ali se repetia o passado, e isto nos traz tranquilidade para percorrer o caminho. O "aqui e agora" substitui o papel que anteriormente tivera o sonho e constitui a estrada régia, a linguagem do inconsciente na situação analítica, através da qual se pode atingir a fantasia inconsciente transferencial. Novamente: um objetivo comum - a cura; um caminho para se alcançar o objetivo comum - "tornar consciente o inconsciente"; um instrumento técnico - "o aqui e agora" - para se atingir a fantasia inconsciente transferencial; e a teoria tomada como verdade - a teoria da transferência.

São as deformações mais frequentes que pensamos observar nesta etapa da história da psicanálise, inspiradas nos desejos de cura e na ansiedade diante do desconhecido.

Freud partiu da observação clínica da relação analista-analisando e elaborou a teoria da transferência. Podemos voltar ao ponto de partida de Freud, à observação da experiência relacional analista-analisando, e pensar a transferência não como uma verdade, mas como uma teoria útil, um modelo, que serve para explicar grande número de fenômenos subjacentes a esta relação, embora não toda a fenomenologia que observamos nela, deixando, assim, o campo aberto para outras abordagens, outros vértices, o que não poderia acontecer se considerarmos a teoria da transferência como verdade.

A concepção de compreender a relação analítica em termos da teoria da transferência, em termos da relação inconsciente com os objetos primitivos, pode ser substituída pela concepção de tentar conhecer, através da observação psicanalítica, em statu nascendi, a origem, as características de formação da imagem interna, que o analisando vai fazendo do analista durante a experiência analítica pelo operar dos elementos não desenvolvidos de sua personalidade, e também conhecer o seu modo de relacionar-se, de pensar e de aprender desta experiência e deduzir os fatores que estão em jogo neste processo. Em outras palavras, não se trata de compreender o presente analítico apenas através das experiências passadas infantis, mas conhecer por meio da observação do presente analítico e fazer hipóteses sobre o passado. Não seria somente um repetir do passado na experiência analítica presente, mas um acontecer de novo, já transformado, na experiência nova e presente, porque ainda continuam operando certos fatores que também operaram no passado.

Uma nova direção, inspirada nos trabalhos de W. R. Bion, ganha cada vez mais adeptos e difunde as possibilidades de se ampliar a capacidade de "observar" do analista a partir da experiência analítica.

O paralelo com a medicina foi útil, mas com o desenvolvimento da psicanálise as diferenças entre ela e a medicina tornaram-se mais evidentes, de tal modo que a lacuna entre ambas chegou ao intransponível. Quanto mais se conhece de psicanálise, mais os modelos médicos vão se tornando inadequados para defini-la, relatá-la ou aplicá-la. O ponto que mostra mais nitidamente essa divergência, além do já mencionado "desejo de cura", é que o médico depende, no exercício de sua função, de "realização" da experiência sensorial, contrastando com o psicanalista, que depende da "realização" da experiência não sensorial. O médico pode ouvir, ver, tocar, provar, cheirar. As "realizações" com as quais o analista lida não são experiências sensoriais. Ansiedade, depressão, culpa, perseguição etc. não têm cor, forma, cheiro, gosto ou som. Por conveniência, Bion propôs, no domínio do psicanalista, o emprego do termo intuir como correspondente ao ver, tocar, cheirar e ouvir usados pelo médico. Esta abordagem postula ao analista impor-se uma disciplina no sentido de excluir memória, desejo e compreensão.

Pode-se querer saber qual estado mental é bem-vindo se desejos e memórias não o são. Um termo que corresponderia aproximadamente ao que necessito expressar é - fé na existência de uma realidade e verdade última - o desconhecido, o desconhecível, infinito informe. (Bion, 1970)

A falta na prática desta disciplina conduzirá a uma constante deterioração da faculdade de observar. O pensar segundo as teorias psicanalíticas, em substituição à observação, pode ser mais cômodo e trazer uma falsa segurança, mas seria apenas partir de um já conhecido e identificar o já conhecido no analisando. Tal prática conduz à estagnação, diversamente da prática da observação frente ao desconhecido, que nos conduzirá a um universo em expansão.

A psicanálise prática pode ser descrita como um suceder de experiências emocionais entre duas pessoas, analista e analisando, e um processo de aprendizagem a partir destas experiências. Esta concepção é muito frutífera e permite maiores aberturas para corroboração das teorias ou para formulações de novos enunciados.

Os desejos de cura, ou de onipotência moral, manifestam-se agora sob outros matizes: o desejo de alcançá-la através da aprendizagem na experiência analítica ou de ensinar o paciente a pensar a partir dos dados da experiência emocional, de atingir a verdade por outro esquema de referência. Novamente uma meta a ser conseguida - a cura, sob as cores mais diversas; um caminho para atingi-la - o aprender da experiência; um instrumento técnico que nos permita percorrer o caminho para chegar ao fim - uma técnica para se conhecer o suceder de experiências emocionais que constitui as sessões analíticas. Certos modelos podem ilustrar as situações que pretendemos configurar: o analista chega a uma versão de que o analisando não pode aprender da experiência porque a inveja ataca a percepção, em vez de observar e conhecer que o analisando entretém uma visão deformada da experiência ou comportamentos específicos (acting out) para que a inveja não opere e assim consiga evitar a emergência de uma experiência depressiva e muito dolorosa. Mas isto é um conhecimento que pode ser transmitido ao analisando. Quando a depressão ocorre, pode deduzir-se a inveja que está operando.

O analista tenta investigar e conhecer uma experiência dolorosa que o analisando vive na situação analítica, com desejos de resolvê-la. Ele deve tentar conhecer por que está acontecendo algo (por exemplo, a depressão), e não conhecer para que algo não aconteça (por exemplo, a depressão) e em seu lugar apareçam a não depressão ou o bem-estar, pois são duas experiências diferentes, e os fatores que estão em jogo também o são, e podem ser conhecidos só quando presentes. Usando-se o modelo kleiniano: a experiência depressiva se faz presente quando os bons objetos são atacados e destruídos, e o conhecimento disto não afasta a depressão, mas nos indica que, quando esta destruição se faz, a consequência é a depressão; por outro lado, a experiência de bem-estar e satisfação estará presente quando as relações com os bons objetos estiverem preservadas ou reconstruídas, o que não depende apenas do conhecimento, mas do desenvolvimento e de condições para ele.

Esta introdução foi necessária para facilitar a compreensão do nosso vértice sobre o tema em questão - o impasse analítico.

Impasse pode ser definido como "uma situação difícil em que parece impossível uma boa saída", "um beco sem saída". É uma configuração que, para ser conceituada, pressupõe a necessidade de uma saída (uma boa saída).

Dentro do campo da psicanálise, o impasse está intimamente relacionado a uma visão médica, impregnada de desejos de cura, fundamentados no princípio do prazer e na experiência sensorial. A saída, a meta a ser atingida, seria a cura caracterizada por conceitos normativos e idealizados.

Esta visão médica da psicanálise decididamente influenciou direções específicas de pesquisa, da técnica e da teoria psicanalíti-cas, e criou a necessidade de se estabelecer e conceituar normalidade e anormalidade, estabelecer critério de cura, indicações e contraindicações da psicanálise, teorias sobre o desenvolvimento normal e outras que explicassem o fracasso em se atingir a normalidade, técnicas que facilitassem chegar-se ao desenvolvimento normal e que afastassem os obstáculos para atingi-lo, e assim por diante, como se a psicanálise prática fosse um método para resolver problemas emocionais e curar doenças, e não um método para, através do conhecimento, alcançar o desenvolvimento individual possível.

Segundo esta ordem de ideias, podemos considerar que os trabalhos iniciais de Freud, que têm relação com o tema, estão impregnados de ideias de cura, de indicações e contraindicações relacionadas à eficácia terapêutica. Ressaltava que os pacientes deveriam reunir certas condições para o êxito do tratamento, tais como capacidade para um estado normal, inteligência e nível ético. As deformações graves de caráter e os degenerados constituíam contraindicações.

Também acreditava que progressos da técnica e da teoria facilitariam superar estas contraindicações e ampliariam as possibilidades curativas da psicanálise.

Em 1917, em seu trabalho "A teoria da libido e o narcisismo" (1943e), separa as neuroses narcisistas das neuroses de transferência; por esta época, acreditava que os neuróticos narcisistas careciam da faculdade de transferência ou só a possuíam em grau insignificante, razão pela qual não eram acessíveis à influência da psicanálise. Explicava que a cura não era possível nestes pacientes porque o processo de transferência pelo qual a conseguimos, e que consistia em reviver o conflito patogênico e vencer a resistência oposta pela repressão, não podia ter efeito neles. Nada podíamos, portanto, fazer a favor deles. O impasse surgido guarda estreita relação com a cura, e uma teoria para explicá-la foi elaborada.

O estudo de Freud sobre as neuroses narcisistas foi de particular importância para o entendimento do assim chamado impasse, pois acentuava uma das peculiaridades destes pacientes - tratava-se de uma forma particular de transferência, que ao primeiro exame aparecia como uma falta de transferência. Vários autores legaram-nos posteriormente contribuições ao estudo da transferência dos psicóticos. Estes estudos nos informaram bem sobre o modo de estes pacientes se relacionarem com o analista e sobre o seu comportamento na experiência analítica, em virtude do ódio à realidade, psíquica ou externa, atacando intensamente todos aqueles aspectos de sua personalidade que os levariam a aprender da experiência e alcançar uma consciência da realidade que tanto odeiam.

Consequentemente, a capacidade de observação do analista também é alvo destes ataques mutiladores. Os mecanismos usados pelo paciente são de splitting e de identificação projetiva excessiva. Estes estudos foram incorporados à teoria explicativa do impasse analítico e às do fracasso da cura.

No capítulo 5 de O ego e o id (1923/19431), Freud define a reação terapêutica negativa: "Há pessoas que se conduzem mui singularmente no tratamento psicanalítico. Quando lhes damos esperanças e mostramo-nos satisfeitos da marcha do tratamento, mostram-se descontentes e pioram acentuadamente." Descobrimos, com efeito, que tais pessoas reagem num sentido inverso aos progressos de cura. Cada uma das soluções parciais que haveria de trazer consigo um alívio ou um desaparecimento temporário dos sintomas provoca, ao contrário, uma intensificação momentânea da doença, e durante o tratamento pioram em lugar de melhorar. Mostram-nos, pois, a chamada reação terapêutica negativa.

É indubitável que, nestes doentes, há algo que se opõe à cura, considerada por eles como um perigo. Dizemos, pois, que predomina neles a necessidade da doença, e não a vontade de curar-se.

Novamente, a visão médica e os desejos de cura carregam em tintas fortes a conceituação acima.

A observação sobre o luto e a melancolia e a introdução dos instintos de morte na teoria psicanalítica possibilitaram a Freud dar uma contribuição à compreensão da reação terapêutica negativa. Fala-nos da participação da agressão que o ego sofre do superego, do sentimento de culpa inconsciente, e expressa que o limite que nos detém na análise destes doentes está no fato de que o ego, carregado de libido, seria vítima dos instintos de morte que haviam sido dissociados.

Com respeito ao trabalho analítico nestes casos, acrescenta Freud (1923/1943f):

Sucede aqui algo análogo ao que descobrimos no processo de melancolia. Se conseguirmos revelar esta pesada carga de objeto por detrás do sentimento inconsciente de culpa, conseguiremos muitas vezes um completo êxito terapêutico, que em caso contrário resulta pouco provável e depende, antes de tudo, da intensidade do sentimento de culpa e talvez de que a personalidade do analista permita que o doente faça dela o seu ideal do ego, circunstância que traz consigo, para o primeiro, a tentação de colocar-se, em respeito ao indivíduo, no papel de profeta ou redentor.

Freud nos parecia, aqui, preocupado em como resolver esta situação de impasse ao caminho da cura, como encontrar a técnica que nos ajudaria. Para o analista, por sua vez, a tentação de desempenhar o papel de profeta, salvador ou redentor pode ser intuída pelo paciente que desperta este desejo de cura no analista, que passa então a desempenhar uma função muito discutível, desde que sua função é a de psicanalisar. Por outro lado, esta situação pode estar a serviço da defesa através da identificação do paciente com o analista mágico-onipotente, que o melhora magicamente. Não há um progresso real, senão negação e dissociação dos aspectos destrutivos.

Quatro anos antes do aparecimento de O ego e o id, isto é, em 1919, K. Abraham, no trabalho clínico "Uma forma particular de resistência neurótica contra o método psicanalítico" (1959), mostrou-nos as características dominantes de certos pacientes que manifestam uma resistência crônica que pode impedir o progresso da análise. Encontrou os traços anais no caráter destes pacientes: a palavra como excremento, a hostilidade, o negativismo e a mesquinhez; também fez referência à "inconfundível presença de um elemento de inveja". Entretanto, preocupado com as teorias psicanalíticas estabelecidas da época, não desenvolveu o tema da inveja, o que foi feito mais tarde por M. Klein. Parece-nos que aqui está um exemplo de como o peso das teorias vigentes e estabelecidas pode abafar uma descoberta tão promissora.

Na mesma época em que Freud publicou suas observações sobre a reação terapêutica negativa, apareceu o primeiro trabalho de Melanie Klein, cuja obra posterior abriu caminho para um conhecimento maior do que sucede nesta reação e, em consequência, sobre o impasse analítico. Freud nos alertava que a possibilidade de progresso na compreensão das neuroses narcisistas estava no estudo do ego. A obra de M. Klein, com suas concepções sobre os objetos internos e sua relação com o ego, sobre o desenvolvimento precoce do ego e do superego, os seus estudos sobre as posições esquizoparanoide e depressiva, bem como a ênfase que deu aos mecanismos de projeção, introjeção e identificação projetiva, permitiu nos aproximarmos mais de processos que Freud até então havia enunciado, em especial o estudo dos processos íntimos do ego, e assim contribuiu para o recrudescimento das "esperanças de cura".

O trabalho de J. Riviere "Contribuição à análise da reação terapêutica negativa" (1936/1949) acrescenta, ao que já havia sido delineado por Freud, as contribuições de M. Klein e alcança uma visão mais completa do tema. Entre outras coisas, afirma que a reação terapêutica negativa é geralmente entendida como um estado que essencialmente atrapalha a análise e a torna impossível; a expressão é usada constantemente como equivalente a não analisável.Segundo Freud, a exacerbação era momentânea; embora referisse que o obstáculo era extremamente difícil de ser vencido, não era tão pessimista como comumente se supõe. O título que Freud nos deu para esta reação, entretanto, não é em realidade muito específico e pode descrever o caso de pacientes que não se beneficiam com o tratamento, como também o daqueles psicóticos ou narcisistas que considera como inacessíveis à psicanálise. J. Riviere parece-nos otimista e inspirada por desejos de cura ao afirmar que crê que esta reação não pode diferir muito em caráter daqueles casos mais gerais de fracassos terapêuticos e que a dificuldade pode ser devida, em certo grau, à falha do analista em compreender o material e interpretá-lo em profundidade. O núcleo do problema, segundo ela, está nas resistências narcisistas, e este narcisismo está relacionado com a inacessibilidade ao tratamento das neuroses narcisistas. O narcisismo pressupõe a retirada da libido objetai para o ego. Freud também nos falou do narcisismo secundário, derivado das "identificações do ego", que atualmente consideramos como incluído nos objetos internos do ego. O estudo das relações do ego com os objetos internos, dentro do reino do próprio narcisismo, nos ajudará com respeito às resistências narcisistas (Abraham) e às do superego (Freud) - novamente a ideia de que o conhecimento nos levaria a satisfazer nossos anseios de cura.

Quando as resistências narcisistas são muito pronunciadas e trazem como característica a falta de visão interna e a ausência de resultados terapêuticos, estas resistências são em realidade parte de um sistema de defesa, bem organizado, contra um estado depressivo. Defendem-se pela defesa maníaca, que tem como características essenciais a onipotência e a onipotente negação da realidade psíquica, ao lado da negação da dependência aos objetos, do desprezo e da desvalorização deles e do controle e domínio tirânico sobre eles. Resulta assim a importância da defesa maníaca, que não é difícil de observar nestes pacientes narcisistas. Nossa tendência é ver isto como uma transferência negativa ou como expressão de atitude agressiva, mas existe um medo oculto, sob esta forma, de obter segurança. A completa incapacidade de tolerar a depressão e a culpa é igualmente observável nestes pacientes.

Qual a relação específica entre a defesa maníaca e a reação terapêutica negativa? Provém do desejo de manter um statu quo,quer dizer, um estado de coisas que torne suportável a análise. Desejam manter as coisas como estão, não porque não desejam curar-se, mas porque não têm fé em sua melhora; o que esperam inconscientemente não é uma mudança para melhor, mas para pior, e que não só os afete, mas também ao analista. (Há a necessidade de se elaborar uma teoria para o fracasso da cura, e o conhecimento da experiência observada é usado para este fim, e não para se perceber que, devido à pouca tolerância à depressão intensa e aos seus "desejos de cura", o paciente procura entreter a defesa e as suas teorias para não chegar ao conhecimento de que suas possibilidades reais como pessoa humana estão longe dos ideais curativos e morais e que ele também se encontra em desvantagem em relação a outras pessoas humanas mais desenvolvidas.)

Qual a situação que tendem a evitar mediante suas defesas maníacas? É o perigo da posição depressiva. A verdade psíquica é que os piores desastres já têm tido lugar e é esta verdade que não quer que o analista ponha a descoberto.

O centro de todos os seus temores é o suicídio ou a loucura, resultado inevitável se sua ansiedade depressiva chegar a ser vivida. Estes pacientes resistem mais à análise porque sua depressão é mais intensa, ao lado de sua inabilidade para reparar e da pouca crença no melhor. De fato, o que buscam é negar sua própria realidade interna, as relações de objetos internos, que são parte integrante de seu narcisismo. O verdadeiro propósito destes pacientes é melhorar os objetos em primeiro lugar e, deste modo, melhorar a si mesmos, mas na realidade isto não é possível, tanto externa como internamente, por causa do seu sadismo. Por fim, terminava J. Riviere dizendo que a característica mais importante que tem de ressaltar nestes casos é a inconsciente falsidade e engano, e que uma transferência falsa e traiçoeira é um golpe tão grande para o nosso narcisismo que envenena e paralisa nossa compreensão da mente inconsciente do paciente e tende a despertar intensas ansiedades depressivas em nós. Deste modo, a falsidade do paciente com frequência permanece desconhecida e não analisada.

M. Klein, mais tarde, apontou o triunfo sobre os objetos como parte do aspecto destrutivo da defesa maníaca. Em 1957, ela define o elemento onipotente destrutivo na mania como inveja oral primária. Neste mesmo ano foi que apareceu o seu livro Inveja e gratidão (1960), em que faz numerosas contribuições ao estudo das dificuldades no curso da análise e, em especial, da reação terapêutica negativa.

As defesas que descreveu contra a inveja formam parte da reação terapêutica negativa, desde que são um poderoso obstáculo à capacidade de admitir o que o analista tem a dar. Para ela também a voracidade, o ódio e a inveja têm uma base inata constitucional e afirma que as variações na intensidade destes fatores constitucionais estão unidas à preponderância de um ou outro na fusão dos instintos de vida e de morte, postulados por Freud, e que além disso há uma relação entre esta preponderância de um ou outro instinto e a força ou debilidade do ego. As dificuldades para suportar dor, frustração, são expressão de um ego que, desde o começo da vida, é débil em proporção aos intensos impulsos destrutivos e sentimentos persecutórios que experimenta.

Esta contribuição teve o mérito de dar ênfase ao fator constitucional na explicação dos resultados terapêuticos negativos, fator constitucional que Freud já havia considerado na sua equação etiológica das neuroses, mas que não mereceu a atenção devida por se contrapor aos nossos desejos de cura.

Segundo estas concepções, os fracassos terapêuticos ou a ausência de cura não seriam apenas consequências de nossas dificuldades técnicas ou deficiências teóricas, mas de algo inerente aos nossos analisandos. A concepção do fator constitucional pode ser mais bem utilizada para explicar os diferentes resultados, em termos de desenvolvimento, dos nossos analisandos.

Em "Análise terminável e interminável", de 1937 (1946) - penúltimo trabalho publicado em vida, cujo motivo imediato da redação parece-nos ter sido o Simpósio de Mariembad, agosto de 1936, sobre a teoria dos resultados terapêuticos -, Freud dá-nos uma visão já amadurecida pela sua experiência de anos. Partindo da antiga teoria sobre a etiologia das neuroses, refere que comumente há uma interação de ambos os fatores: o constitucional dos instintos e a modificação desfavorável do ego no curso da luta defensiva, que são, segundo ele, os fatores que se opõem ao êxito da análise e que podem prolongá-la indefinidamente. As modificações do ego podem ser consideradas primordiais ou adquiridas, como também para ele o aparelho psíquico não tolera o desprazer e procura afastá-lo a todo preço, a ponto de, se a percepção da realidade for dolorosa, a verdade dever ser sacrificada. Mas não há fuga que nos salve do perigo interior, motivo pelo qual os mecanismos de defesa do ego estão condenados a falsear a percepção interior e permitir um conhecimento imperfeito e deformado do id.

O ego, nestas circunstâncias, em suas relações com o id ficará paralisado por suas limitações e cego por seus erros. Fala-nos das modalidades individuais do ego, primitivas e congênitas, de apreciável importância, e que as diferenças do ego talvez obedeçam a outros motivos mais profundos, ao comportamento dos instintos de vida e de morte, sua distribuição, sua fusão e difusão, fenômenos que não podem ser restringidos a uma só região do aparelho psíquico - seja o id, seja o ego, seja o superego - e que constituem fontes de resistência e obstáculos para o êxito terapêutico.

Passagem bastante significativa, que queremos destacar, é a seguinte:

Por decisivo que seja, desde um começo, o fator constitucional, é concebível que um reforço dos instintos, produzido no curso posterior da vida, possa ter efeitos idênticos. Em tal caso, a fórmula deveria modificar-se, substituindo-se a força constitucional dos instintos pela força atual. (Freud, 1937/1946)

Revela-nos este trabalho a grande capacidade de Freud de abstrair da experiência clínica e a visão médica que influenciou parte de sua obra.

As teorias elaboradas correspondem às realizações da prática analítica e são úteis para o conhecimento dos fatores que estão em jogo quando observamos que o desenvolvimento alcançado na análise de um analisando é diferente do desenvolvimento da análise de outro analisando.

O impasse analítico é um conceito inspirado pelos desejos de cura ou de onipotência moral, intimamente relacionados a uma visão médica ou religiosa da psicanálise. É um conceito estabelecido e aceito entre os psicanalistas que têm em comum este vértice. O grupo de analistas que tem este vértice, reconhecido por ideias de doença, patologia, prognóstico, tratamento, cura, normalidade etc., pode entre seus membros sustentar teorias psicanalíticas diferentes, que são usadas para a compreensão do trabalho clínico. Para exemplificar: podem os seus componentes usar teorias freudianas, kleinianas ou teorias que defendem o aprender da experiência analítica e o desenvolvimento da capacidade para pensar. Os freudianos vão caracterizar o impasse analítico como dificuldades na solução do complexo de Édipo e de conflitos com o superego, as defesas consequentes e a importância do instinto de morte; os kleinianos apontarão os obstáculos para a resolução da posição depressiva, a defesa maníaca e a importância da inveja oral primária, como a expressão do instinto de morte; os terceiros, a impossibilidade de aprender da experiência analítica, a transferência psicótica, as dissociações e identificações projetivas excessivas, a consequente destruição de todas as funções da personalidade que levariam ao conhecimento da realidade psíquica ou externa, intensamente odiada, e a importância do fator inveja.

Estas teorias nos levariam a conhecer por que a cura desejada não foi conseguida, como também outras teorias nos ensinariam quando ela pode ser atingida.

Freud já nos havia mostrado como o afã terapêutico, as memórias e o uso de teorias prévias, que podem trazer uma sensação de segurança ao analista, prejudicam a "intuição" e a descoberta do que se está passando na experiência analítica presente; ainda mais, que o paciente pode estimular desejos e memórias no analista, como meio de destruir o vínculo deste com a experiência presente, comprometendo a observação analítica. Estas ocorrências são comuns, em certa medida, a todas as análises, a serviço das resistências, e em algumas se apresentam com maior intensidade.

Os analistas que desejam a cura, e todos nós em certos momentos estamos sujeitos a estes desejos, carregam um peso difícil de ser carregado e reagem, contratransferencialmente, entretendo os desejos de cura de seus pacientes. A psicanálise, servindo a estes fins, é idealizada e pretensiosa e corre o risco de entreter a insanidade mental.

Preocupa-se com problemas que não pode alcançar e assim deixa de observar as experiências, das quais pode se aproximar. Muitas vezes, os desejos de cura são deslocados para o futuro, esperando-se consegui-los como consequência do progresso da técnica e da teoria psicanalíticas, e o futuro passa a ser o continente dos desejos onipotentes presentes e não satisfeitos. Os problemas humanos podem ser bem equacionados não apenas com o conhecimento deles, mas quando o conhecimento encontra condições individuais propícias para contê-lo, usá-lo e alcançar o desenvolvimento psíquico.

Queremos apenas lembrar que o impasse analítico ainda pode ser considerado segundo o vértice do analisando, do analista e da psicanálise institucionalizada.

Orientados por este vértice fundamentado em transformações que fizemos dos trabalhos de W. R. Bion, há algum tempo tentamos uma disciplina para afastar desejos, memórias e compreensão e vincular-mo-nos à experiência da sessão analítica, ou melhor, da sucessão de momentos que a constitui. Como consequência, sentíamo-nos mais desarmados e angustiados frente ao desconhecido da sessão analítica; após um período de aprendizado desta experiência, sentíamos certa angústia diante dos problemas existenciais humanos de que nos íamos aproximando e que apareciam como novos para nós. Mas é uma experiência enriquecedora e caracterizada por uma sucessão de etapas necessárias. Um modelo que pode representá-la é o desenvolvimento da psicanálise como um todo, partindo da visão médica ao vértice psicanalítico.

Chegamos, pensamos nós, após um período de sofrimento e insegurança, a um momento em que nos sentíamos mais livres para observar, mais leves porque não carregavamos o pesado fardo da cura, e fomos percebendo novas experiências, que não eram novas, pois já estavam ali presentes, mas que anteriormente não havíamos captado por causa de nossas deformações e deficiências. Tínhamos, por esta ocasião, análises que se prolongavam por muitos anos. Presos à visão médica, às vezes, ao refletir sobre estas análises, estivemos próximos de caracterizar o impasse analítico e decidir pela interrupção delas.

O exercício da disciplina de excluir desejos, memórias e compreensão e a tentativa de usar o vértice psicanalítico em substituição à visão médica trouxeram como consequência o aumento da nossa capacidade de nos vincular à sessão analítica, e esta experiência nos permitiu fazer algumas observações e elaborar ideias que estão contidas neste trabalho.

A sessão analítica e o material que a compõe não são meios para alcançarmos uma meta prefixada, a verdade da experiência analítica, "o que se passa na sessão analítica", mas para observar e, através de nossas transformações, conhecer algo, apenas alguma coisa da personalidade do analisando, que tivermos condições de captar naquele momento.

O paciente pode, em alguns momentos, aprender dos dados da experiência; em outros, não conseguir usar estes dados, por fatores inerentes à sua realidade e em situações conflitivas específicas, e até aprender por que não vai além na sua aquisição de conhecimento. Mas vai apercebendo-se, dentro de seus limites, em momentos fugazes, por que alimenta desejos de cura e atribui poderes onipotentes à psicanálise, percebe como é como pessoa e, em alguns momentos, consegue conviver consigo mesmo e, em outros, não. Às vezes, consegue usar o conhecimento para tentar uma adaptação a suas limitadas condições.

Como poderíamos caracterizar as dificuldades, intensas e pertinazes, que enfrentamos em nosso trabalho analítico, segundo este vértice, com determinados analisandos e que fatores inerentes deduzimos do comportamento específico deles na experiência analítica?

O nosso vértice foi o de observar psicanaliticamente, a partir da experiência da sessão analítica, o comportamento dos analisandos, que se caracterizava pela tentativa de impedir nossa abordagem específica ou de afastar-nos de nosso vértice. Observamos analisandos que habitualmente traziam à sessão relatos históricos de experiências vividas com outras pessoas, fazendo observações, às vezes, com muito bom senso; com base nesses relatos, elaboravam teorias sobre a sua personalidade e procuravam entretê-las e insinuá-las ao analista. Com frequência, as situações descritas eram o inverso da experiência que viviam na sessão analítica, que era negada e dissociada. Apresentavam também teorias já estabelecidas sobre a sua personalidade - "eu sou assim, assim" etc. -, como se fossem um doente descrevendo a um médico as características de sua doença, esperando o alívio e a cura. Naturalmente, estimulando os desejos de cura do analista, a onipotência e o uso das teorias como verdade. Certos analisandos entretêm teorias sobre si mesmos com muita pertinácia, e ainda quando aparentemente parecem "realizar" as interpretações do analista acabam fazendo transformações sutis e encaixam as interpretações em suas teorias estabelecidas, criando situações de difícil observação. Há também aqueles que procuram, com insistência, levar a investigação para o passado ou para o futuro, evitando a experiência presente e a possibilidade de se conhecer através dela. Outros apresentam especulações sobre questões que não podem ser conhecidas, com a evidência de que desejam mais levar o trabalho para o não conhecer. Alguns tomam as formulações do analista como resultado não de suas observações, mas da contratransferência, despojando-as de seu significado. Há os que transformam a sessão em verdadeira polêmica, como se a análise fosse um jogo de opiniões. Outro grupo de analisandos fabrica associações que têm a finalidade de atuar sobre o analista para que interprete aquilo que querem ouvir e evitar assim o conhecimento doloroso. Há aqueles que apresentam um material consciente como verdadeira carta enigmática, cujo texto já conhecem; falam por subentendidos, estimulando a curiosidade do analista para decifrá-la; elogiam a capacidade do analista quando enxerga o implícito ou discordam dele quando erra, funcionando como verdadeiros supervisores do analista, que deste modo está controlado. Outros tomam suas impressões ou sentimentos como verdades e frequentemente acusam o analista disso. E assim por diante, porque os comportamentos destes analisandos são inúmeros e multiformes. Ora são uma constante, ora aparecem como consequência de conflitos específicos que emergem da experiência analítica. O analista pode assim observar a mudança de comportamento do paciente, as alterações de humor, deduzir os elementos que estão em jogo e se ater a sua função, que é simplesmente a de analisar. O analisando, por sua vez, está livre para fazer o uso que deseja ou pode das interpretações, e o analista deve continuar analisando as transformações que aquele faz de suas interpretações.

Os mecanismos de defesa mais frequentes por trás destes comportamentos são o splitting, a identificação projetiva, a negação, a idealização e o controle onipotente dos objetos, e surgem nos momentos da situação analítica em que há emergência da inveja.

Analisando estes pacientes, observamos que se queixam de uma insatisfação crônica e, na sessão analítica, momentaneamente vivem experiências depressivas imensas que são substituídas, no desenrolar da mesma sessão, por estados de euforia, que correspondem aos comportamentos antes descritos. Em uma mesma sessão, observamos uma sucessão de estados depressivos e maníacos. Um modelo que usamos para a "realização" das experiências que se processavam ali, entre nós e o analisando, é o seguinte: um menino ganha uma bola do pai e vai brincar com ela; bate a bola no chão em um grupo de meninos, observa as bolas dos outros meninos e certifica-se de que a sua é a mais bonita; até é capaz de fazer apreciações elogiosas às outras, mas reconhece que a sua é a mais bonita; aproxima-se outro menino brincando com uma bola; o primeiro menino olha para a bola deste último e constata que é mais bonita que a sua; aborrecido, procura o pai e diz: "Olhe que porcaria, que merda de bola que você me deu!"

Não é necessária muita imaginação para deduzir que se trata de um menino invejoso. Mas como podemos "realizar" sua reação? Inicialmente, quando estava consciente de que possuía a bola mais bonita, podia até apreciar as bolas dos outros meninos, pois a situação não era propícia à emergência da inveja. Entretanto, não reagiu denegrindo ou desvalorizando o objeto, pois se encontrava em outra etapa de evolução; em vez disso, atacou e denegriu a sua bola, aquela que o pai lhe dera de presente; transformou-a em um monte de merda e entrou em depressão e autodesvalorização; ficou insatisfeito, voltou-se ao pai na tentativa de alcançar a cura, exigindo, pedindo uma bola tão ou mais bonita que a bola daquele menino. Como consequência da inveja, houve uma deformação de sua percepção, e não podia observar que sua bola era a segunda mais bonita, pois a havia transformado em um monte de merda. Sentia-se insatisfeito e triste e tentava explicar sua insatisfação: não tinha nada, nenhuma bola, mas um monte de merda, e assim surgiu uma teoria secundária para explicar sua depressão.

Outra variante desta história é a que segue: o menino que viu a bola mais bonita do outro não se perturba muito e diz: "Você está vendo aquela bola tão bonita lá no céu [a lua]? Aquela que é a bola mais bonita e você não a tem." Como consequência, agora, vai se esforçar para alcançar a "bola mais bonita" que está no céu e continuará sempre insatisfeito, mas esperando que, no futuro, algum dia consiga brincar com a "bola do céu".

Este foi o modelo que surgiu em nossa mente quando vivíamos a experiência analítica com os analisandos que estávamos observando: ao perceber qualquer qualidade do analista, como pessoa, e sentindo-se em desvantagem no confronto, caíam em depressão naquele momento específico da sessão; podiam valorizar o analista, mas em contraposição sentiam-se como um monte de merda e deprimidos, e muito sutilmente elaboravam uma teoria de que sua depressão e insatisfação eram motivadas pelas suas deficiências e carência de qualquer qualidade. Não eram capazes de observar que não eram tão deficientes, mas que sofriam da necessidade de ser o melhor. Em momentos em que o bom senso predominou, realizaram a experiência, tomaram consciência de que não eram tão deficientes e pobres coitados - eram até possuidores de qualidades, quando as possuíam, que também foram observadas e interpretadas pelo analista -, mas sim invejosos. Esta nova abertura permitiu que fossem convivendo mais consigo mesmos e contendo suas características humanas. Frequentemente, alcançavam percepção a posteriori,não podendo impedir toda a fenomenologia desencadeada pela inveja operante.

A variante do nosso modelo corresponde aos analisandos que idealizam o bom, o belo absolutos, ou o perfeitamente humano, justamente porque não existem e porque nenhum ser humano pode alcançá-los, mas que em consequência complicam a possibilidade de realizar-se como pessoas, vivem voltados para o futuro, na ânsia de satisfazer sua arrogância e de tornar-se o melhor. Estes pacientes estimulam os desejos de cura e de onipotência moral do analista e entretêm a psicanálise pretensiosa. Por vezes, idealizam o psicanalista, um continente da sua própria arrogância.

Para terminar, queremos apenas afirmar que a psicanálise não é um processo para conseguir as respostas, mas simplesmente para tentar "realizar" as perguntas.

 

Nota

1 Trabalho original publicado em 1974: Revista Brasileira de Psicanálise, 8(1),5-29

 

Referências

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