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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016

 

EM PAUTA

 

Feminilidade1,2

 

Femininity

 

Femineidad

 

 

Maria P. Manhães (in memoriam)

Presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ, 1969-1971), membro efetivo e analista com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro efetivo e analista com funções didáticas da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SBPRJ)

 

 


RESUMO

A autora cita seus trabalhos anteriores sobre o assunto, "Psicologia da mulher" e "Frustração oral e falicidade", estudando neste último o aparecimento de condutas ativas, vistas como "masculinas", consequentes a antigas e intensas fontes orais não resolvidas. No presente trabalho, tenta compreender a mulher levando em conta quatro elementos: castração, identificação, masoquismo e narcisismo. A castração não pode ser considerada o problema fundamental da mulher, porquanto seria apoiar o desenvolvimento de sua personalidade em um órgão que existe no outro. O masoquismo, depois que se admitiu a existência do masoquismo moral no homem, deixou de ser apanágio feminino. A identificação apresentaria na mulher uma intensidade muito grande, sobretudo se a estudarmos na mulher que está amando, e pode levá-la a graus maiores ou menores de perda da identidade. Finalmente, o narcisismo, que segundo H. Deutsch pode ser usado como guardião para protegê-la da perda de sua identidade, principalmente quando houver tendência a uma renúncia masoquista intensa. A autora pensa que Freud, a partir de Dora, teve dificuldades para entender a mulher por razões pessoais e por ter tido predominantemente pacientes histéricas, hábeis no uso da vingança.

Palavras-chave: conduta ativa; castração; identificação; masoquismo; narcisismo.


ABSTRACT

The author mentions her former works about the subject - "Women’s psychology" and "Oral frustration and phallicity". In this last work, she studies the emergence of active conducts, which are seen as "male", and consequent to old and intense oral sources that were unsolved. In this paper, the author attempts to understand women by taking into account four elements: castration, identification, masochism, and narcissism. Castration cannot be considered women’s main issue. Otherwise, the development of women’s personality would be based on an organ that exists in the other. Since moral masochism in men has been acknowledged, masochism is no longer a female attribute. Identification would be very intense in women, especially if we study identification in a woman who has been loving, what may lead her to lose her identity in higher or lower levels. Finally, narcissism, which, according to H. Deutsch, may be used as a guardian to protect her from losing her identity, mainly when there is a tendency to an intensive masochist renouncement. The author believes Freud, since Dora’s case, had a hard time understanding women for his personal reasons and for having had predominantly hysterical patients, who were skillful in their use of revenge.

Keywords: active conduct; castration; identification; masochism; narcissism.


RESUMEN

La autora menciona sus trabajos anteriores sobre el tema, "Psicología de la mujer" y "Frustración oral y falicidad", estudiando en este último el surgimiento de conductas activas, vistas como "masculinas", como consecuencia de antiguas e intensas fuentes orales no resueltas. En el presente trabajo, intenta comprender a la mujer teniendo en cuenta cuatro elementos: castración, identificación, masoquismo y narcisismo. La castración no puede ser considerada el problema fundamental de la mujer, puesto que sería apoyar el desarrollo de su personalidad en un órgano que existe en el otro. El masoquismo, después que se admitió la existencia del masoquismo moral en el hombre, dejó de ser un privilegio femenino. La identificación presentaría en la mujer una intensidad muy grande, principalmente si la estudiamos en la mujer que está amando, y puede llevarla a grados mayores o menores de pérdida de identidad. Finalmente, el narcicismo, que de acuerdo con H. Deutsch puede ser usado como guardián para protegerla de la pérdida de su identidad, principalmente cuando exista la tendencia a una renuncia masoquista intensa. La autora piensa que Freud, a partir de Dora, tuvo dificultades para entender a la mujer por razones personales y por haber tenido, predominantemente, pacientes histéricas, expertas en el uso de la venganza.

Palabras clave: conducta activa; castración; identificación; masoquismo; narcisismo.


 

 

Platao, um dia, em coloquio com seus alunos, disse que o homem era "um animal bípede implume". Diogenes não perdeu tempo. Depenou um galo, jogou-o no recinto em que o filósofo se encontrava e gritou: "Eis o homem de Platão."

Parafraseando em termos psicológicos (pelo menos os mais divulgados), é a partir da psicologia do homem que se tenta concluir sobre as características da mulher, seguindo o critério falocêntrico que apresenta, em último termo, a conclusão de que a mulher seria um homem castrado. Ora, um homem castrado é um eunuco... E, como diria Freud, continua uma interrogação: "Como passa a mulher de sua fase masculina para a fase feminina, para a qual biologicamente está determinada?"

Já mostramos, em trabalhos anteriores, como os mitos relacionados com a criação da mulher são tendenciosos, excetuando-se apenas, dos que eu conheço, a história de Deucalião e Pirra. A teoria psicanalítica também está cheia de contradições que nos levaram a pensar que, em relação à mulher, reconhecíamos que estávamos lidando com um material reprimido. Mostramos ainda que a psicanálise parecia seguir a linha adleriana que tem por base a inferioridade orgânica (castração), a inveja do pênis e o protesto viril.

A mulher aceita isso tudo em termos de uma cumplicidade, como bem o demonstrou Helene Deutsch, aprazendo-lhe ser considerada como um mistério - o sorriso de Gioconda, como eu a denominei.

Raramente ela tenta retificar essas distorções e, quando o faz explicitamente, é por meio de reivindicações sociais, econômicas, políticas e profissionais, de tal modo que, na maioria das vezes, elas não estão apresentando problemas especificamente femininos. Em tese, poderíamos aplicar o contexto a uma porção de casos e incluir neles a massa de trabalhadores homens mal pagos, com supercarga horária, insegurança do vínculo empregatício etc.

Michel Mercier escreveu recentemente um livro intitulado Le roman féminin (1976), em que afirma que as mulheres têm usado esse gênero de literatura para expor sua dupla verdade: "Uma nostalgia explícita e reivindicações disfarçadas" (verbalizadas pelos personagens masculinos).

Freud tentou estudar a mulher e não negou a imensa dificuldade que encontrou para isso. Conclui, de maneira sentida por ele como até certo ponto arbitrária, que a mulher é menos moral do que o homem, menos plástica, narcisista, tem mais pudor (cultural); é mais ciumenta, mais vaidosa (para compensar a inferioridade). Aceitando a bissexualidade, acha que ela pode sobressair à custa de seus elementos masculinos. É misteriosa e insincera, tem menos capacidade de sublimação (o que se vê na hostilidade contra a cultura); é ambivalente nas relações objetais e "o único amor livre de toda ambivalência que ela sente é como mãe de seu filho homem".

A maioria dos dados está colocada em termos de mais e menos, tendo como referência o homem e caracterizando a posição falocêntrica. Mais do que o homem... Menos do que o homem...

Após esta apresentação panorâmica e sucinta, vamos tocar em alguns pontos que penso ser interessantes e nos quais poderemos centralizar a discussão. São eles: castração, identificação, masoquismo e narcisismo, não perdendo de vista a interligação entre esses elementos e muitos outros mais, aqui não mencionados.

 

Castração

O problema da castração, mostrado como problema central da mulher, indica novamente uma contradição e até mesmo um contrassenso. Colocar na mulher, como o problema feminino mais importante, a castração é obviamente um deslocamento feito pelo homem, revelando assim sua grande ansiedade sobre suas fantasias de castração. Além disso, dentro da concepção falocêntrica, é intrigante e ameaçador estar-se vis-à-vis com um ser que não possui o atributo considerado de maior importância. Dizem, nas interpretações chistosas da Bíblia, que Adão chegou a gritar: "Que diabo de homem és tu?"

É difícil apoiar o desenvolvimento da personalidade da mulher em um órgão que existe no outro e não em si mesma. As zonas erógenas, com a consequente divisão da libido nas diferentes fases, têm por base, por ponto de referência, a anatomia: boca - fase oral; ânus - fase anal etc. Além de dar ao falo a máxima importância, alegam tratar-se de um órgão cuja evidência não pode ser negada. Claro que a inveja do pênis tem sua importância e representa um papel no desenvolvimento da personalidade feminina. O mesmo que tem para o menino a inveja do útero, ainda que se trate de um órgão que está oculto. Freud pensa que, na infância primitiva, a vagina é ignorada pelos dois sexos e que o interesse da menina pelo pênis só aparece quando ela sente no clitóris alguma estimulação. Essa linha "organicista", entretanto, não desenvolve amplamente os excelentes pensamentos de Paul Schilder a respeito do esquema corporal e sua representação no inconsciente. Isso elimina a conclusão da maioria dos autores masculinos e femininos, que ao negar a vagina admitem que a mulher só virá a ter conhecimento desta quando se casar e tiver filhos...

A fantasia, tão importante para a concepção psicanalítica, e realmente o é, nos permite, lidando com ela, concluir que:

■ a mulher capta a grande importância que o homem dá ao pênis. É tão óbvio que não é difícil, e até culturalmente induzida;

■ a mulher pode "decidir" ter um órgão análogo, fantasiado, para poder obter os resultados que julga ter o homem auferido pela posse dele. Para isso, poderá lançar mão de antigas frustrações orais.

Em termos de casuística, exemplifico:

■ Uma cliente no período de latência e início da puberdade e que apresentava as seguintes características: filha única entre quatro irmãos, convivendo só com os meninos; sua família era tradicionalmente paternalista e todos os seus representantes importantes eram homens. Naquele período em que "menina não conta", quando ela desejava fortemente alguma coisa (obter resultados nos jogos, escolher a brincadeira etc.) e se os meninos não queriam ceder, ela simplesmente levantava a saia e tirava as calças. Conseguia tudo. Ao final, nem precisava mais completar a cena toda. Bastava levantar a saia e os meninos aceitavam o "já ganhou";

■ Em um antigo trabalho, "Frustração oral e falicidade" (1977), relato como mulheres chegaram ao tratamento exauridas com a queixa: "Não aguentava mais ser o homem da casa." Inteligentes, ativas, com grandes frustrações orais e desenvolvendo um núcleo básico invejoso no self que se estereotipou na inveja do pênis, em competição com o sexo masculino, em fracasso matrimonial. Completaram suas tarefas sob a influência de um pênis alucinado, que, como tal, não pode manter-se.

Claro que isso pode ser visto de várias outras maneiras, como provocação e medo do incesto etc., o que não invalida o que foi mostrado pela cliente. Admitimos também estarem muito atuantes os instintos parciais ligados ao "voyeurismo" e ao exibicionismo. Não importa, a comunicação foi feita quando a castração era o ponto de urgência.

Concluímos que, pelo fato de a castração aparecer em todo trabalho clínico, quer lidando com homens, quer com mulheres, não serve esse fato para atribuir à castração a base de problemática feminina. Não excluímos, também, que podemos considerar a castração um fato geral de todo ser humano e que acontece desde o nascimento. Mas tudo isso nada tem de específico em relação ao que estamos tratando no momento.

 

Identificação

Para Freud, seria a forma original de vínculo afetivo com um objeto pelo que um "eu se converte em outro", ou, segundo Rycroft, fusiona ou confunde sua identidade com a de um outro.

A identificação pode ser mais bem estudada na mulher, como processo, analisando sua relação amorosa. Ao amar ela também se dá, repetindo a fase precoce de seu desenvolvimento, quando ao amar a mãe ela se identificava com a própria figura materna, adquirindo com isso qualidades necessárias para o desenvolvimento posterior de suas funções sexuais. Ao se identificar ela se entrega: quanto mais intensa a perda da identidade, com tanto mais ódio poderá ocorrer o desvinculamento; é o que acontece em relação à mãe e tende a repetir-se quando a dependência da relação, posteriormente mantida, for muito grande. Haverá ambivalência e possível formação de um círculo vicioso.

Andersen (1978), em seus contos infantis, narra a história da Pequena Sereia - símbolo da cidade de Copenhague. Ela desejava ter alma humana e mortal. Recorre à bruxa do mar, que lhe diz:

Nada poderá fazer! A não ser que um homem viesse a querer-lhe tanto bem que fosse para você mais do que pai e mãe. [...] Então, sim, a alma dele passaria para seu corpo, e também você compartilharia da aventura humana. Ele lhe daria alma, mas ficaria com ela, como se fosse dele.

Parece-me a chave que decifraria o simbolismo bíblico: Adão criando Eva.

Importante, do ponto de vista feminino, é que a identificação pode levar à perda da identidade e que, na relação amorosa, durante uma temporada, é isso que a mulher deseja ou não pode evitar. Emily Brontë, no romance O morro dos ventos uivantes (1971), assinala esse fato quando, em determinado momento, Catherine, a heroína, se refere a Heathcliff, o herói, dizendo: "Eu sou Heathcliff!"

A capacidade identificatória, embora em graus tão intensos, é aceita como normal na mulher. Poderá, contudo, adquirir também, somada ao masoquismo patológico, nuances ou mesmo traços nítidos de anormalidade, com aspectos bem regressivos, passando do homem amado para o filho amado, com consequências desagradáveis para a mãe e o filho.

A identificação, tal como vem sendo apresentada, não é vivida como experiência que signifique pobreza; ao contrário, é riqueza, aumento da possibilidade de empatia para com seus familiares próximos: marido e filhos. Penso, entretanto, que ela dá à mulher menor convicção e firmeza, daí Freud achá-la hipócrita e com tendência a mentir. Se ela é o outro, por perda de identidade, estará pensando e sentindo como o outro; para não se perder, terá que lançar mão do que houver de mais genuíno dentro de si que a ajude a se descobrir ou a se redescobrir; se tal não se der, ela poderá utilizar o ódio como força para a separação e o narcisismo como proteção.

 

Masoquismo

No início dos estudos psicanalíticos, o masoquismo foi visto como inerente à mulher, e o conceito só se modificou quando se viu que o homem também poderia sofrer de algo análogo, que, quando intenso, passou a se denominar de masoquismo moral.

Se considerarmos o masoquismo como derivado do superego, a exigir restrição e punição, isso contradiz o que foi dito: ter a mulher um superego menos rígido, portanto, pouco interessado em sofrimento.

A situação se complica porque várias funções normais da posição feminina são descritas como necessariamente dolorosas. Quero referir-me à menstruação, defloramento e parto, principalmente. Há todo um folclore sobre isso, análogo ao que se diz do traumatismo de parto e do sofrimento fetal (nos partos normais). Claro que não vamos negar que podem ser situações incômodas, mas toda mulher refere tratar-se de dores que rapidamente são esquecidas.

A referência que se faz a mulheres que gostam de antecipar o prazer das operações - as multimutiladas e castradas -, quero crer que diz mais respeito a personalidades doentes. Apontando, também, que há todo um contexto social apoiando isso. Mesmo a própria medicina está envolvida nessa temática, a ponto de ser importante o estudo da personalidade de muitos especialistas em doenças de senhoras, tal a pressa com que decidem sobre fatos da vida de sua cliente, tais como: abortamento, esterilização, cesariana etc. É mais uma comprovação do difícil capítulo do estudo da personalidade feminina: ela não só pensa, como já vimos, como o outro, mas também permite que se digam a seu próprio respeito coisas sobre as quais ela mesma está confusa.

Penso que a mulher tem que desenvolver - então não é inata - certa disposição para poder tolerar dores, se for o caso, decorrentes da sua feminilidade, mas não vejo nisso uma necessidade decorrente do masoquismo, que me parece ser uma coisa bem mais séria. Por que apelar para o patológico, dentro das vicissitudes femininas normais, em vez de simplesmente pensar que a mulher está apta para isso?

No que se refere às fantasias de defloramento sádico, traumático, ouvi pouco, mesmo trabalhando com adolescentes. Os raros casos que conheço referem-se a adolescentes ou a mulheres bem doentes, mulheres casadas numa relação sadomasoquista intensa e cruel. Uma delas, sobretudo, padecera quando jovem os horrores da guerra, durante a qual fantasiava muito ser apanhada pelos russos e sofrer toda sorte de torturas, com submissão sexual. As raízes infantis estavam muito reprimidas, mas viu-se que a mãe era pessoa de comportamento aparente suave e passivo, com raptus de uma violência incrível; além disso, era do tipo mártir. Foram precisos muitos anos de tratamento e o surgir de situações muito cruéis para que o laço matrimonial fosse desfeito.

 

Narcisismo

Inicialmente descrito por Freud como um fenômeno que se passaria no eu, ele foi mais tarde generalizado com os estudos sobre o self, principalmente feitos por Hartmann e Jacobson. Com essa modificação, os trabalhos de Kohut sobre o narcisismo tornaram-se muito importantes, sobretudo na valorização dos aspectos positivos do narcisismo, evidenciados no que ele chama de autoestima. Helene Deutsch, estudando a mulher, já emitira as mesmas ideias.

Denominou o narcisismo na mulher de guardião que impediría que o ser feminino se entregasse ao masoquismo patológico ou à perda de identidade, tal a intensidade que podem adquirir seus processos identificatórios. O guardião narcísico ocuparia duas posições que determinariam dois tipos de mulher:

■ O guardião narcísico estaria situado na porta de entrada, o que fica compreensível quando é descritivamente exemplificado com o comportamento da mulher difícil de ser conquistada - só quando tiver segurança de que não perderá a identidade é que se entrega;

■ O guardião estaria atrás da porta e a mulher se deixaria conquistar facilmente; quando se desse conta do ponto a que havia chegado, ela se protegeria usando o narcisismo.

Essa função protetora do narcisismo, intuída pela grande psicanalista, é vista como normal na mulher e tem como objetivo a preservação de sua identidade. O narcisismo também protege a mulher da renúncia masoquista, em termos patológicos.

A função protetora poderá exacerbar-se quando a ferida for feita na sua própria pele - narcisismo ferido -, resultando disso atitudes muito hostis. Esse é um ponto ao qual dou muita importância.

Voltemos a Freud e a seu artigo no qual fala da feminilidade. Ele diz sentir-se "perplexo" ante certas artimanhas e subterfúgios usados inteligentemente por suas pacientes histéricas. Uma, entretanto, o impressionou sobremaneira, e ele a relaciona ao período em que estudava os sonhos infantis. Acreditamos tratar-se de Dora.

A transferência, como ele posteriormente reconheceu, não foi o único ponto que lhe escapou nesse caso. A partir da análise do segundo sonho, ele viu que a vingança era a temática dessa jovem, mas não pôde se dar conta de ser ele, na transferência, o alvo desse ódio.

Freud achava-a interessada, cooperante e respondendo com docilidade às suas perguntas, não percebendo que ele, principalmente na época e com o tipo de história pregressa da moça, não só a estava ferindo demais como também seduzindo-a e frustrando-a, como o pai e o senhor K. A sedução é criada pela própria situação analítica e o objetivo especial do observador, naquele momento, expondo a adolescente novamente a um clima sentido por ela como erótico, ao qual foi levada pelo pai, que também a pusera em contato com a família K.

Dora vingou-se ao constatar, na repetição compulsiva subjacente, que estava sendo novamente seduzida por um homem que não a amava, iludindo a sua vigilância narcísica.

Eu mesma já me havia perguntado o que teria impedido que Dora, naquela época, tivesse recusado o interesse que lhe mostrava um homem importante, atendendo-a todos os dias e tentando ajudá-la. Muito mais tarde, compreendi o que estou transmitindo aqui.

Freud era muito ingênuo com as mulheres e não teve, nem poderia ter tido, êxito tentando compreendê-las usando a vasta casuística que possuía de mulheres histéricas. Aparentemente, elas são as mais femininas, mas não há dúvida de que são também as mais hábeis e vivas quando se sentem em perigo, usando o narcisismo e também a vingança como arma ao pensar que foram traídas, que ficaram vulneráveis. São muito frágeis e suscetíveis de grande regressão.

Vale a sua sinceridade de pesquisador quando termina seu artigo dizendo: "Se quereis saber mais sobre a feminilidade, podeis consultar a vossa própria experiência de vida, ou perguntar aos poetas, ou esperar que a ciência possa procurar-nos informações mais profundas e mais coerentes."

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 1979: Revista Brasileira de Psicanálise, 13(4),421-430.

2 Trabalho apresentado no vii Congresso Brasileiro de Psicanálise, 1-5 de novembro de 1978.

 

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