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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016

 

EM PAUTA

 

O eclipse do objeto originário concreto1

 

The eclipse of the concrete original object

 

El eclipse del objeto originario concreto

 

 

Armando FerrariI(in memoriam); Giuliana MilaniII; Luisa TirelliIII; Tradução Marisa Pelella Mélega

IAntropólogo, psicólogo e sociólogo pela Universidade de São Paulo, membro efetivo e analista com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro ordinário da Società Psicoanalista Italiana
IIPsicoterapeuta infantil, Training Tavistock
IIIFoi psicoterapeuta infantil, Training Tavistock

 

 


RESUMO

Para os autores deste trabalho, a função mental se inicia com o primeiro registro de uma percepção sensorial. Atribuem, às operações de perceber e de registrar, significados diversos. Existe um sujeito, o aparato que registra, e existe um objeto registrado. O objeto do registro (a ser registrado) é denominado de objeto originário concreto, que compreende o corpo no sentido físico e o conjunto de sensações esparsas que provém deste corpo. Sob a pressão das sensações físicas violentas e marasmáticas, perigosas também para um funcionamento físico harmônico, e na presença da rêverie materna, o aparelho mental inicia a sua função que é tanto de registro como de contenção. Alguns conceitos são formulados para dar conta desse processo: eclipse seria a redução progressiva do espaço ocupado inicialmente pelas sensações de marasmo, que vão cedendo lugar a modos mais funcionais para a sobrevivência do indivíduo no ambiente; por objeto originário, evoca-se a diversidade originária e original que cada indivíduo apresenta ao nascer, originalidade que vai acompanhá-lo durante toda a sua vida; por objeto concreto, atesta-se que é a partir desta "concretude" do objeto (qualidade de ser concreto), ou seja, das características físicas do bebê, que se desenvolve a mente. Para que o eclipse do objeto originário concreto possa ter lugar é necessário que exista uma mãe para atender o bebê, que com suas qualidades perceptivas e sua atenção alimente nele uma confiança que lhe consinta permanecer em relação com o mundo externo. É a permanência desta confiança primária que, reforçando o vínculo objetal, permite a estruturação dentro da criança de um sistema binário físico-psíquico. O início do eclipse dá vida ao funcionamento mental e ao processo de diferenciação entre o bebê e a mãe. Um ponto de particular interesse para os autores é o do aparecimento das emoções, zona intermediária entre ser somente sensações e ser pensante. Consideram que o caminho do desenvolvimento psíquico parte da percepção sensorial, passa pelas emoções, para então se tornar cada vez mais abstrato, até alcançar a simbolização e o pensamento. Com o objetivo de mostrar a utilização deste modelo, apresentam três situações clínicas.

Palavras-chave: relação corpo-mente; percepção sensorial; rêverie; ser pensante; relação analítica.


ABSTRACT

According to the authors of this paper, the mental function begins when a sensory perception is first registered. The authors attribute several meanings to the operations of perceiving and registering. There is a subject, the apparatus who registers, and there is a registered object. The object of the register (to be registered) is called concrete original object, which embraces both the physical body and the set of sparse sensations that emerge from that body. Under the pressure of violent and apathetic physical sensations, which can also put a harmonious physical functioning at risk, and in the presence of maternal rêverie, the mental apparatus starts its function which is both registering and restraining. Some concepts are developed in order to manage this process: eclipse would be the progressive reduction of the space that was initially occupied by apathetic sensations, which are replaced by more functional ways for the individual’s survival process in the environment. The primitive and original diversity each person shows at birth is evoked through the original object. This originality will follow the person throughout his (or her) life. Through the concrete object, it is tested that the development of mind starts from that "concreteness" of the object, i.e., from the baby’s physical features. Before the eclipse of the concrete original object may happen, there must be a mother who takes care of the baby; a mother who uses her perceptive qualities and her attention in order to feed a baby’s confidence - a confidence that lets him (or her) maintain a relation with the external world. The maintenance of that primary confidence strengthens the object-bond, and enables structuring a psychic-physical binary system within the child. The beginning of the eclipse starts the mental functioning and the differentiation process between the infant and the mother. The authors are specially interested in the emergence of emotions, which is an intermediate zone between being only sensations and a thinking being. They consider the psychic development path starts from the sensory perception, goes through emotions, and then becomes more and more abstract until it achieves the symbolization and thinking. The authors write three clinical vignettes in order to demonstrate the use of this model.

Keywords: mind-body connection; sensory perception; rêverie (daydream); thinking being; psychoanalytic relationship.


RESUMEN

Para los autores de este trabajo, la función mental se inicia con el primer registro de una percepción sensorial. Atribuyen, a las operaciones de percibir y de registrar, diversos significados. Existe un sujeto, el aparato que registra, y existe un objeto registrado. El objeto del registro (a ser registrado) se denomina objeto originario concreto, que comprende el cuerpo en el sentido físico y el conjunto de sensaciones dispersas que provienen de dicho cuerpo. Bajo la presión de las sensaciones físicas violentas y marasmáticas, peligrosas también para un funcionamiento físico harmonioso, y en la presencia de la rêverie materna, el aparato mental inicia su función que es tanto de registro como de contención. Algunos conceptos son formulados para viabilizar este proceso: eclipse sería la reducción progresiva del espacio ocupado inicialmente por las sensaciones de marasmo, que van cediendo lugar a modos más funcionales para la sobrevivencia del individuo en el ambiente; por objeto originario, se evoca la diversidad originaria y original que cada individuo presenta al nacer, originalidad que lo acompañará durante toda su vida; por objeto concreto, se confirma que es a partir de esta "concreción" del objeto (cualidad de ser concreto), es decir, de las características físicas del bebé, que se desarrolla la mente. Para que el eclipse del objeto originario concreto pueda ocurrir, es necesario que exista una madre para atender al bebé, que con sus cualidades perceptivas y su atención alimente en él una confianza que le consienta permanecer en relación con el mundo externo. Es la permanencia de esta confianza primaria la que, reforzando el vínculo de objeto, permite que se estructure dentro del niño un sistema binario físico-psíquico. El inicio del eclipse da vida al funcionamiento mental y al proceso de diferenciación entre el bebé y la madre. Un punto particularmente interesante para los autores es el del surgimiento de las emociones, zona intermedia entre ser solamente sensaciones y ser pensante. Consideran que el camino del desarrollo psíquico parte de la percepción sensorial, pasa por las emociones, para entonces tornarse cada vez más abstracto, hasta alcanzar la simbolización y el pensamiento. Con el objetivo de mostrar la utilización de este modelo, presentan tres situaciones clínicas.

Palabras clave: relación cuerpo-mente; percepción sensorial; rêverie; ser pensante; relación analítica.


 

 

Freud em 1910 (1969c) afirma: "Os psicanalistas nunca se esquecem de que o psíquico se baseia no orgânico." Em 1938 (1969a), dá outra equiparação do psíquico com o consciente, tendo como resultado deplorável que os processos psíquicos foram arrancados do contexto do que acontece universalmente e contrapostos a tudo o mais como algo estranho. Isto não podia ser sustentado, não sendo lícito negligenciar por muito tempo o fato de que os fenômenos psíquicos dependem, em grande medida, de influxos corpóreos, incidindo por sua vez fortemente sobre os processos somáticos.

A relação corpo-mente, que em psicanálise foi e é considerada central, se ressente ainda hoje de uma força centrífuga que resulta numa divergência, a mesma que na cultura ocidental tende a distanciar o corpo da alma, privilegiando esta última.

A valorização dos aspectos mentais é então uma constante, e muito frequentemente quem se ocupa da dimensão do psíquico faz cair no esquecimento o físico.

A pesquisa que estamos conduzindo não se propõe a trazer novos conhecimentos, mas a pôr em movimento um saber já adquirido.

As hipóteses que apresentamos emergem unicamente das observações clínicas realizadas durante a relação analítica.

Um esboço deste modelo foi apresentado pelo professor A. Ferrari em Brasília, em 1982. Desde então, constitui objeto de estudo e de aprofundamento de uma investigação que continua sendo realizada.

Tentaremos expor as hipóteses que já surgiram. Como este modelo utiliza uma série de contribuições fundamentais de S. Freud, M. Klein e W. R. Bion, a tarefa de síntese que este tipo de apresentação exige mostra-se particularmente delicada. Podemos dizer que a função mental se inicia com o primeiro registro de uma percepção sensorial. Atribuímos, às operações de perceber e de registrar, significados diversos. Esta última corresponde ao sistema de notação de que fala Freud em "Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental" (1911/19690). Existe um sujeito, o aparato que registra, e existe um objeto registrado. Chamamos o objeto do registro (a ser registrado) de objeto originário concreto(ooc), que compreende o corpo no sentido físico e o conjunto de sensações esparsas que provém deste corpo.

Junto ao OOC está uma mãe, uma presença etologicamente esperada (precon-cepção de Bion).

Sob a pressão das sensações físicas violentas e marasmáticas, perigosas também para um funcionamento físico harmônico (coordenação entre sistema nervoso, endócrino, vascular etc.), e na presença da mente materna (função do rêverie), o aparelho mental inicia a sua função que é tanto de registro como de contenção. O registro acontece presumivelmente por uma exigência em distanciar a percepção sensorial, que de outro modo seria completamente invasiva. Inicia-se, assim, o eclipse do objeto originário e, concomitantemente, começa a ganhar espaço a "área do mental" - ou, usando o modelo, a sombra do mental passa a projetar-se sobre o OOC.

Chamamos eclipse à redução progressiva do espaço ocupado inicialmente pelas sensações de marasmo, que vão cedendo lugar a modos mais funcionais para a sobrevivência do indivíduo no ambiente.

Ao dizermos objeto originário, queremos evocar a diversidade originária e original que cada indivíduo apresenta ao nascer, originalidade que vai acompanhá-lo durante toda a sua vida.

Ao dizermos objeto concreto, queremos atestar que é desta "concretude" do objeto (qualidade de ser concreto), ou seja, das características físicas do bebê, que se desenvolve a mente.

Para que o eclipse do OOC possa ter lugar é necessário que exista uma mãe para atender o bebê, que com suas qualidades perceptivas e sua atenção alimente nele uma confiança que lhe consinta permanecer em relação com o mundo externo. É a permanência desta confiança primária que, reforçando o vínculo objetal, permite a estruturação dentro da criança de um sistema binário físico-psíquico.

O início do eclipse, ou seja, o início das modificações dos estímulos etológicos, dá vida ao funcionamento mental e ao processo de diferenciação entre o bebê e a mãe. Um ponto de particular interesse em nossa pesquisa é o do aparecimento das emoções, zona intermediária entre ser somente sensações e ser pensante.

Sabemos que para tornar possível este processo é necessária a presença da mãe, mas a condição que o desencadeia parece ser aquela da carência, tanto interna como externa. Os momentos de carência e de perda poderiam ser os elementos constitutivos das matrizes arcaicas das emoções, que podemos ver se manifestarem sumariamente no bebê através de agitação motora, cianose, vômito, descarga de fezes e de urina.

As violentas sensações que têm que ser contidas na mente do bebê e a presença de rêverie materna nos levam a pensar que o eclipse do OOC se realiza através de uma dupla relação dual: uma externa - a mãe e a criança; e uma intrapsíquica - a mente e o OOC. Portanto, o indivíduo realiza desde o início uma relação binária: físico-psíquica, dentro de si mesmo, e externa, com o objeto etologicamente esperado.

Estas duas relações estão correlacionadas entre si. De fato, será o tipo de rêverie materna, que constitui a relação dual externa, que irá propiciar a atitude que a mente da criança assumirá para consigo mesma, ou seja, a relação dual interna. Estamos considerando o caminho do desenvolvimento psíquico partindo da percepção sensorial, passando em primeiro lugar pelas emoções, para daí se tornar cada vez mais abstrato, até alcançar a simbolização e o pensamento.

Este modo de ver o progressivo avançar em direção ao mental provém de nossa experiência clínica e do ponto de referência teórico traçado por M. Klein e W. R. Bion.

Este vértice de observação nos parece permitir uma articulação interna mais fina e dinâmica de alguns conceitos básicos, como os de onipotência, narcisismo, invejaetc. Além disso, o modelo do OOC sugere e indica alguns aspectos da relação analítica que consideramos focais. São eles:

■ A relação que a mente do paciente entre-tém com o próprio corpo, com o próprio sentir sensual, com as próprias emoções e, enfim, com os próprios pensamentos;

■ A relação que o paciente entretém conosco, objeto mãe dentro da relação analítica;

■ As interações existentes entre estes dois tipos de relação.

É justamente a correlação das relações indicadas que permite uma visão tridimensional da situação mental do paciente e nos permite algo ainda mais importante a ser experimentado e, portanto, a ser mostrado em sessão: as "aderências" e os profundos vínculos que unem o modo pelo qual o paciente trata a si mesmo, seu corpo e as sensações que deste provêm, com suas modalidades de relacionar-se com o objeto externo e com suas modalidades de pensamento.

De fato, podemos observar pessoas que mantêm relações complexas com seu próprio corpo, suas percepções sensoriais, emoções e pensamentos, analogamente ao que acontece nas relações interpessoais. As sensações e emoções podem ser registradas ou ignoradas; estas emoções, junto com os pensamentos, podem ser amadas, desprezadas, exaltadas etc., já que tal dualidade interna está em estreita correlação com a relação externa. Nós temos a oportunidade e a possibilidade, através da relação analítica, de experimentar e conhecer as formas e os modos de tal dupla relação.

Com a finalidade não tanto de mostrar o modelo, mas o uso que pode ser feito dele na observação do material clínico, apresentaremos três situações. Nelas procuraremos evidenciar e traçar um paralelo entre alguns aspectos da relação com o analista e alguns aspectos da relação de cada um dos três indivíduos em seu aspecto físico-psíquico; estas correlações nos levaram a formular hipóteses a respeito de alguns aspectos do funcionamento mental. A primeira situação, na realidade, não foi tirada de um contexto terapêutico, mas da observação constante (um encontro semanal por dois anos) da interação mãe-bebê realizada durante um Training Tavistock em psicoterapia infantil.

O bebê observado tinha nascido prematuramente, antes do início do sétimo mês de gravidez da mãe, e por este motivo permaneceu numa incubadora por cerca de três meses. No início da vida, parece faltar ainda a este bebê o reflexo de sucção; não sabemos por quanto tempo ele foi alimentado por via endovenosa ou por sonda gástrica.

A observação se inicia quando o bebê volta para casa, alguns dias após sair da incubadora, que coincidem com os primeiros dias de vida de um recém-nascido a termo.

A notação que nos interessa é o seu modo de tomar a mamadeira: um objeto nunca recusado, nunca acolhido com qualquer conotação emotiva, nunca esperado; o olhar desta criança não se deteve nunca sobre a mamadeira nem sobre a mãe que lhe segurava a mamadeira; o olhar vagava pela sala, nunca atraído por algo em particular; esta modalidade continua quando, mais tarde, lhe é oferecida a sopinha.

O que este bebê comunicava durante a tomada da mamadeira pode ser resumido em: "Alimentar-me não é assunto meu."

A segunda observação diz respeito a um rapaz que procurou análise por um súbito bloqueio nos estudos, uma recusa motivada por argumentos de caráter paranoide, às vezes chegando ao delírio. Um dia, este rapaz diz ao analista:

Quando eu era menino, era muito preguiçoso para comer. Não que eu fosse inapetente, mas apenas preguiçoso, desinteressado. Minha mãe me dava comida na boca e eu, durante toda a refeição, ficava mergulhado na contemplação de um quadro que estava na sala de jantar, de tal maneira que nunca sabia o que havia comido.

A terceira situação se refere a uma adolescente anoréxica. É uma sessão de um período adiantado da análise, quando o sintoma da anorexia mental está superado e muitas experiências novas já estão acontecendo com a paciente. Moça extraordinariamente inteligente, atenta e aguda na observação de si mesma, conta que, no dia anterior, durante uma excursão escolar, tinha parado num bar para tomar uma Coca-Cola; enquanto a tomava num gole só, sentiu uma forte sensação de frio ao longo do esôfago, que se difundia às paredes do estômago. De um golpe só, ela percebe que nunca havia notado, nunca havia dado atenção, até aquele momento, às sensações que os alimentos gelados ou quentes lhe provocavam dentro; havia sempre tratado seu canal alimentar como se fosse um tubo plástico. Agora, ela podia dizer que os dolorosos espasmos que às vezes a acometiam quando começava a comer estavam certamente conectados a este "incrível e surdo engolir", palavras da paciente.

Fizemos primeiramente a hipótese de um desenvolvimento que vai da percepção sensorial, passando pelo nível das emoções, até o pensamento. Vamos tentar fazer uma hipótese a respeito de qual "incidente de percurso" pode ter acontecido presumivelmente no recém-nascido e nos dois jovens em análise.

No caso dos dois jovens "distraídos" ao comer, poderiamos dizer que o dado sensorial foi excluído do registro mental, e junto com o dado sensorial foi também suprimida a presença do outro, da mãe que alimenta.

A presença do outro, sabemos, pode ser negada de muitos modos; aqui fica negada a tramitação sensual que põe em contato o indivíduo com o mundo que está fora dele. Nestes casos, o ter sido nutrido não foi negado, mas foi desencarnado, desconectado de sua fonte.

Quanto ao pensamento, este é desligado de sua matriz - a percepção sensorial. Desta maneira, o pensamento perde seu ponto fundamental de origem para todas as ulteriores elaborações.

O fato pertencente à realidade externa foi tratado por estes dois pacientes como se fosse um conceito, uma ideia ou uma fantasia. Em outras palavras, o dado de realidade foi para eles matéria legitimamente opinável. Este defeito de origem também comprometeu de certo modo o processo sucessivo de simbolização. Isto é muito evidente no caso do rapaz. Com efeito, no processo de simbolização é necessário que os dois elementos (o simbolizante e o simbolizado) estejam suficientemente separados e individuados para serem razoavelmente reconhecíveis como tais (H. Segall). Aqui, no entanto, é justamente o processo de distinção que foi atingido, tornado confuso, e foram excluídas a fonte da nutrição (do alimento) e as sensações que fazem advertir a entrada do alimento do externo para o interno.

Na relação com o analista, este, ao estar presente como elemento real e físico, se tornava por isto mesmo um elemento de perturbação. A adolescente anoréxica afirmava ter um ótimo entendimento com a analista e dialogar intensamente com ela... quando esta não estava; cada vez que esta aparecia no vão da porta no início da sessão, ela tinha um sobressalto, como quem se encontra diante de algo imprevisto, desconhecido e desorientador. O rapaz, muito mais comprometido na sua relação com o real, tinha mantido, por um bom tempo da terapia, uma fantasia na qual o analista fazia parte do seu mundo privado, silencioso e perfeito, imóvel e bonito como um quadro em cuja contemplação mergulhava, enquanto a mãe lhe dava o alimento: "Vir para a análise era um voo", disse ele numa segunda fase, quando a separação tinha sido por fim registrada - uma fase muito dramática, marcada por actings out,violentos para a sua integridade física.

No que diz respeito ao OOC, ou seja, o corpo e as sensações a este ligadas, a tentativa dos dois pacientes foi de negá-lo, no caso da moça, e de transcendê-lo, no caso do rapaz; mas já que em ambos o corpo continuava a existir, fazendo-se obstinadamente sentir, isto suscitou nos dois jovens um desprezo e um ódio atuados; num dos casos, o corpo estava esfomeado; no outro, era atacado por violentos e perigosos acidentes e desatendido nas suas necessidades mais elementares.

O pequeno recém-nascido certamente não teve à sua disposição a rêverie materna; nos outros dois casos, a mãe da adolescente anoréxica, mesmo sendo uma mulher atenta e sensível, tinha tido uma depressão com o nascimento da filha, e a mãe do rapaz era, ela mesma, uma pessoa muito perturbada que tinha provavelmente transmitido, através da rêverie, as suas distorções de contato com a realidade.

Temos, portanto, três situações de rêveriematerna: ausente, carente e perturbada. Faltou ou foi carente o elemento organizador e unificante, o que parece ter produzido nestes casos uma tentativa de recusa do físico, enquanto nos outros pudemos assistir a um processo oposto. Freud (1911/1969b) nos diz que, quando existe uma carência - por exemplo, o leite materno -, o bebê põe em funcionamento o cumprimento mágico-alucinatório.

Klein observa que, sob a pressão de determinadas frustrações, como no momento do desmame, o bebê é empurrado para uma maturação precoce e distorcida (deformada); Bion afirma que, quando uma preconcepção não encontra a realização, a mente pode desenvolver ou o pensamento, ou a onipotência e onisciência.

Dissemos no início que o registro é posto em ação pela necessidade de conter a sensação física, que, de outro modo, tenderia a se tornar marasmática. Já que esta contenção se inicia na presença da mente materna, trata-se de um conter e um sentir maternos. Quando tal função da mãe é carente ou deformada, o bebê é obrigado a supri-la de alguma forma com uma das primeiras capacidades que, naquele momento, tem à disposição: o cumprimento mágico-alucinatório. Através desta operação, podemos levantar a hipótese de que os dois pacientes apresentados tenham sido obrigados a desligar a percepção sensorial, talvez impossível de conter, para utilizar os esparsos e desorganizados traços mnêmicos dos quais podiam dispor.

Eles interromperam o contato entre a mente e as sensações relacionadas à alimentação, ficando, assim, cortado o canal sensual que os ligava ao mundo. Podemos ver, deste modo, na fantasia mágico-alucinatória evocada na ausência da mente materna organizadora da própria experiência, uma das matrizes da onipotência. O resultado é um modo precoce e deformado de alcançar uma autonomia impossível; estamos, então, diante de uma integração falsa.

No momento em que fica eliminado um dos lados da relação (a mãe, neste caso), parece que a consequência pode ser a perda de um dos lados do relacionamento interno: o físico, nos exemplos dados. Esta dinâmica entre a mente e o OOC movimenta uma história interna feita de acontecimentos alternados. Todavia, está presente uma tendência à integração, uma tensão contínua em direção à unidade - unidade nunca alcançada completamente, mas de qualquer modo ponto fixo de referência também nos casos acenados, dos dois pacientes, ou a "unidade", por assim dizer, é alcançada com a eliminação de um dos dois lados da relação.

O que dissemos até agora nos reconduz ao conceito de narcisismo de fato: quando o momento mental unificante não nasce na sua sede natural, que é dentro de uma relação, não há integração entre rêverie materna e primeiras percepções sensoriais do bebê, mas somente se dá a fantasia onipotente de poder dispensar a relação. Do ângulo interno, não há integração entre psíquico e físico, mas supremacia de um sobre o outro. Seguindo estas hipóteses, vemos o narcisismo não tanto como o amor a si mesmo,mas como tentativa de alcançar uma unidade sobre si mesmo, e não consigo mesmo.

Estamos, além disso, interessados em enfatizar que o OOC, com sua espera etológica de uma mãe que alimenta, já é didático em sua constituição originária. Propomos considerar esta sua característica o ponto de apoio que dá início à dinâmica objetal interna, como descrita por M. Klein. Portanto, no início não haveria apenas a introjeção de uma experiência externa, mas do primeiro impacto entre o objeto externo e OOC.

A relação entre o OOC e a mente, ou seja, a interação dos dois níveis de funcionamento que observamos na primeiríssima fase da existência, é de fundamental importância no decurso de toda a vida do indivíduo. De fato, mesmo se pensarmos que com o lento eclipse do OOC irão progressivamente se instalando aspectos pertencentes cada vez mais à área mental, que irão então englobando a estimulação etológica, conjecturamos ser impossível um eclipse total do OOC, e isto se deve ao fato de que as emoções não perdem nunca as próprias características de violência, intensidade, imprevisibilidade e de difícil contenção e transformação. Se tal hipótese é real, a mente é uma tela como o corpo pode ser uma tela para a mente, sem predominância de uma sobre a outra, como habitualmente se pensa.

 

Nota

1 Trabalho original publicado em 1985: Revista Brasileira de Psicanálise, 19(2),281-290.

 

Referências

Freud, S. (1969a). Esboço de psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 23, pp. 153-221). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1940[1938]         [ Links ])

Freud, S. (1969b). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de SigmundFreud (J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 273-286). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

Freud, S. (1969c). A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 11, pp. 197-203). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1910)        [ Links ]

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