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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016

 

EM PAUTA

 

O homem, a psicanálise e o novo século1,2

 

Men, psychoanalysis, and the new century

 

El hombre, el psicoanálisis y el nuevo siglo

 

 

Isaias Hessel Melsohn (in memoriam)

Médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, membro efetivo e analista com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 


RESUMO

Neste artigo, o autor propõe ser impossível falar do futuro sem que se esteja imerso no destino humano, que tem um passado, um presente e um futuro. Ressalta a importância de retomar o passado para incorporá-lo à reflexão psicanalítica e faz um alerta para que a teoria não se transforme em doutrina. Também destaca o valor da intersubjetividade, da troca afetiva que aproxima e permite ao analista estar junto de seu paciente.

Palavras-chave: psicanálise; futuro; passado; teoria; intersubjetividade.


ABSTRACT

In this paper, the author proposes that it is impossible to talk about future without being immerse in human destiny, which has a past, a present, and a future. He highlights the importance of retaking the past, which should be incorporated into the psychoanalytic thinking, and he warns for theory not to be turned into doctrine. The author also emphasizes the value of intersubjectivity - the affection exchange which brings people closer and lets the psychoanalyst and his (or her) patient be together.

Keywords: psychoanalysis; future; past; theory; intersubjectivity.


RESUMEN

En este artículo, el autor propone que es imposible hablar del futuro sin estar inmerso en el destino humano, que tiene un pasado, un presente y un futuro. Resalta la importancia de retomar el pasado para incorporarlo a la reflexión psicoanalítica y alerta para que la teoría no se transforme en doctrina. También destaca el valor de la intersubjetividad, del intercambio afectivo que aproxima y permite al analista estar junto a su paciente.

Palabras clave: psicoanálisis; futuro; pasado; teoría; intersubjetividad.


 

 

Eu agradeço o convite para falar a vocês no encerramento do nosso congresso. Uma vez que os conferencistas que me precederam falaram da Grécia antiga, eu também vou me permitir voltar a ela.

Conta a lenda que Demócrito de Abdera, o grande filósofo atomista do século V a.C., tinha o costume de entregar-se a várias pesquisas, durante as quais seu estado de ânimo exaltava-se até a excitação. Certa vez, os familiares, preocupados com sua integridade mental, apelaram para os serviços de um médico de uma ilha próxima, que outro não era senão Hipócrates de Cós. Explicaram que o pai, o esposo, o sogro, estava "lelé". Como não havia psicanalistas naquele tempo, o próprio Hipócrates foi atendê-lo. Encantado com o "paciente", ficaram ambos conversando por três dias e três noites. Já nós, simples mortais, esgotamos nosso saber em tempo mais breve, em uma palestra de meia hora, por exemplo.

Vou recorrer, ainda, a outra fábula clássica, contada em aula pelo meu professor de latim, no quinto ano do ginásio. Em meio a uma viagem de barco, por mar, anuncia-se uma tempestade. Correm os viajantes, mercadores em sua maioria, em febricitante azáfama, a cuidar dos seus haveres. Surpresos ante um homem tranquilamente sentado, interrogam-no: "Você não vai cuidar das suas coisas?" Ao que ele responde: "Omnia mea mecum porto" [Tudo o que eu tenho, trago comigo]. E eu pergunto: o que o homem, realmente, traz consigo?

Esta pergunta diz respeito a todos nós, seres humanos, e em particular a nós psicanalistas.

A discussão do tema hoje proposto - O homem, a psicanálise e o novo século - busca respostas a essa magna questão.

O novo século aponta para o futuro. O futuro implica, necessariamente, sua sombra, o passado e o presente. O que foi o presente do nosso século, o século mais negro da história da humanidade, como afirmou Isaiah Berlin? Podemos confiar no seu discernimento, mas eu não vou falar desta negrura. Eu não vou falar da Primeira Guerra, nem da Segunda, da ascensão do nazismo e do fascismo, do Holocausto, da Guerra da Coreia. Eu não vou falar nada disto. Eu não vou falar da Guerra do Vietnã, do apartheid na África do Sul, de Ruanda, da Bósnia-Herzegovina, de Kosovo e da Iugoslávia, da tortura no Brasil, na Argentina e no Chile. Eu não vou falar nada disto. E, não falando, eu só aponto.

Como é possível falar do futuro sem, ao mesmo tempo, estar imerso no destino humano, que tem um passado, um presente e um futuro?

Vamos, então, voltar à nossa viagem é àquilo que guardamos no mais profundo de nossa alma, para além dos valores e das riquezas materiais. Como preservar o legado que deve ser guardado em cada um de nós?

O que aconteceu, na minha experiência, neste congresso? Inúmeros jovens vinham falar de sua confusão, perdidos, ansiando por um futuro com maior esperança. Vivem eles a grave crise com que se defronta a psicanálise, muito grave. Temos magníficas teorias. Algumas delas transformando-se em doutrinas. Fabio Herrmann mostra bem, em sua contribuição para o último número da Revista Brasileira de Psicanálise, a transmutação de teorias em dogmas doutrinários. É o que, aliás, aconteceu no nazismo, no comunismo, nos fundamentalismos religiosos. Eu próprio, no contato direto em supervisões e relatos de colegas, sou testemunha de uma robotização que invade o trabalho analítico. Um grande antropologista, André Leroi-Gourhan - que foi diretor do Museu do Homem em Paris -, conhecedor profundo da antropologia histórica e do desenvolvimento genético do homem, prevê um estágio no qual o ser humano, deitado numa cama, manipula computadores e máquinas. Certos tipos de psicanálise são computação. E, no entanto, a intersubjetividade que tanto se apregoa acentua a importância do humanismo e do convívio. O que é intersubjetividade? Que tipo de intersubjetividade é essa quando o analista diz para o paciente que ele observa tais ou quais fenômenos psíquicos?

Observador é o astrônomo, o físico, não o psicanalista. Imaginem vocês eu dizer a um filho meu que rompe em prantos, aos gritos: "Eu observo que você está muito bravo." Eu não posso repetir aqui o palavrão que ele, com toda a razão, me dirigiria. Ao contrário, quando meu filho pequeno chega da escola e me diz que a professora, danada, passou uma lição de castigo, a primeira coisa que eu faço é xingar a professora. E assim, ao estabelecer uma fusão afetiva e permitir que um outro, mais forte, suporte e divida com ele a agressão, crio as condições para discutir e refletir sobre os acontecimentos penosos que ocorreram na escola. Na psicanálise isso também é necessário. Contava-me um dia uma colega, muito dedicada a seus pacientes, que havia atendido uma pessoa que tentara seriamente o suicídio. Em poucos meses, o calor humano a aqueceu. A seguir, imediatamente antes das férias da analista, o paciente apresentava-se extremamente triste. A colega mostrou a ele que sua tristeza era devida à separação. Eu entendo, porém, que não basta dizer isso a ele; é preciso que você se ponha junto a ele. Como dizer a um paciente algo que o ajude nesta situação? Por exemplo: "Talvez seja importante nós nos darmos conta de que você imagina que eu não pensarei em você e na sua tristeza enquanto estivermos separados." Acho que assim eu mostro para ele que ele está presente em mim durante a ausência, e sua presença viva em mim pode ajudá-lo na separação. Enfim, quando se fala humanamente, exprimindo o acolhimento, ainda que amparado por toda a profundidade e requinte da técnica, esta é subserviente à expressividade afetiva. Temos muitas teorias, mas nem todas estão devidamente amparadas por todas as contribuições que, dentro e fora da psicanálise, permitiriam que nossas teorias se redimissem das restrições que elas têm.

Voltemos à tempestade. Eu já falei de duas. Uma que está prestes a ferir o barco da nossa viagem; outra que deixei para trás, aquela que se abateu sobre este século.

Neste século, realmente, os elementos atenderam ao clamor do poeta:

Astros! noites! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!

Não é o que disse Castro Alves em "O navio negreiro"?

Como, então, preservar nosso legado? Quando começou este legado a ser objeto de reflexão?

Eu retorno à Grécia clássica. Num dos diálogos mais belos de Platão, após magnífica descrição da natureza, nas passagens de abertura do Fedro, ele nos mostra Sócrates e Fedro passeando nas imediações de Atenas, às margens do Ilissus. Uma relva maravilhosa convida ao repouso. Sob a fronde de um grande plátano, Fedro pergunta a Sócrates: "Não seria este o lugar onde a fada Orítia foi raptada por Bóreas, o Vento do Norte?" Responde Sócrates que, a crer nesta lenda, nesta mythologem, seria necessário também dar crédito à existência de centauros e da Quimera, assim como à de outros estranhos monstros. "Mas eu não posso entregar-me a tais passatempos, pois eu não conheço a mim mesmo." É desta maneira que Platão rejeita esta agroicos sofia, este saber rústico. E é também desta maneira que a indignação sobre o que é o ser interno que cada um carrega consigo começa a ser investigada. Mas a intenção de Platão era a de banir o mito como objeto de reflexão, porque se tratava de dar nascimento ao logos. O exílio do mito era indispensável para permitir a reflexão sobre o logos. Decorridos 25 séculos, é que o mito pôde ser novamente objeto do próprio logos como contribuição de dois pensadores importantes de nossa época - sem fazermos menção à interpretação do mito por Schelling no início do século passado. Esses dois pensadores foram Freud e Cassirer.

Em Freud, o mito está inserido num contexto mais amplo, que abarca a psicologia humana normal e patológica. Em Cassirer, faz parte de uma obra escrita entre 1923 e 1929, A filosofia das formas simbólicas,dando prosseguimento a uma longa reflexão que já vinha desde 1905, com a publicação de O problema do conhecimento. Todos conhecemos a importância do pensamento de Freud e do extraordinário saber que ele nos deixou. Mas Freud estava também imerso, por sua formação, na filosofia do século XIX. Ele nos permitiu compreender a significação do gesto humano. Foi essa a sua contribuição realmente genial. Porém, a construção do edifício teórico tinha o embasamento em estruturas do saber próprias do século anterior, que foram determinantes na elaboração de suas concepções sobre a imaginação, a percepção e a linguagem. Freud foi discípulo de Brentano e, a convite deste, traduziu um dos capítulos da Lógica de Stuart Mill, de onde extraiu suas ideias relativas à teoria da percepção. É o que nos mostra, aliás, Strachey, o tradutor das obras de Freud para o inglês. É assim que podemos ver claramente a influência do empirismo e da teoria das sensações, próprias do positivismo do século passado, no pensamento de Freud. Na introdução ao artigo sobre "O inconsciente" da Standard edition, Strachey mostra que o conceito de representação de coisa provém da monografia de Freud sobre as afasias, de 1891. Analogamente à percepção - concebida segundo o modelo de Stuart Mill -, a representação de coisa é entendida como uma associação de sensações.

Pois bem, estes são os aspectos que limitam o desenvolvimento teórico da psicanálise e repercutem na multiplicidade das teorias que vão desde a definição e a discussão eterna sobre o inconsciente e sua constituição à tentativa de Laplanche de substituir a representação de coisa por representação-coisa.

Também a noção de simbolização assim como a de linguagem deixam muito a desejar em Freud. Tudo isto não impede, todos nós, perpassados pelo humanismo que nos inspira a atividade analítica, de ajudar nossos pacientes. Mas a teorização resulta ser deficiente.

Entendo que um dos erros fundamentais da reflexão psicanalítica consiste em não retornar ao passado deste século para incorporá-lo. Se o futuro tem um passado, é a pesquisa deste que deve orientar-nos na redenção dos erros e omissões cometidos. Há que retomar as reflexões de Husserl, que escreveu, em1901, as Investigações lógicas, na mesma época em que vinha à luz uma das obras mais importantes da história da psicologia, A interpretação dos sonhos; há que retornar aos pensadores e pesquisadores influenciados por Husserl: Max Scheler, Kurt Goldstein, Sartre e Merleau-Ponty; há que estudar a magna contribuição de Cassirer. É indispensável que o pensamento psicanalítico se assenhoreie de ensinamentos que constituem momentos pregnantes e centrais na transformação de conceitos que conduziram a uma verdadeira revolução na psicologia em nosso século. Seus reflexos na psicanálise, ainda que pálidos, se fizeram sentir em algumas contribuições importantes. O trabalho de 1930, de Melanie Klein, "O papel do símbolo no desenvolvimento do ego", que muda radicalmente a noção de símbolo de Freud e de Ernest Jones, assim como a concepção da posição esquizoide são expressão direta das ideias de Cassirer sobre simbolização e sobre os estádios primitivos do desenvolvimento da consciência.

Aqui, no congresso, em várias sessões de discussão da clínica, ouvimos falar sobre simbolização. A respeito de um paciente, em pleno surto psicótico na segunda sessão de psicanálise na semana, que se põe a falar palavras desconexas - relógio, óculos -, comentam colegas que ele não simboliza. Pensam que simbolização é um ser supremo que comparece apenas na ciência e na linguagem constituída. Não. Não é certo emitir juízos tão simples a respeito de simbolização. Existem estudos sistemáticos. É preciso debruçar-se sobre o tema, estudar e refletir sobre as contribuições extraordinárias disponíveis e entender que há níveis diferentes de simbolização, que há formas diversas de articulação do pensamento. O símbolo é uma concepção. A experiência humana não parte de algo inefável, escondido e profundo, inatingível em sua qualidade afetiva. O processo afetivo é expressão. Ele começa com a imantação de todos os fios da subjetividade e se exprime numa concepção. Esta concepção é um símbolo. A linguagem humana constituída modela o desenvolvimento da vida afetiva e simbólica, determina a separação entre o eu e o tu, conduz à delimitação das qualidades e da permanência dos objetos, mas ela não é a única forma de simbolização.

A propósito do retorno aos autores há pouco citados, quero referir-me, ainda, para exemplificar, a uma outra noção, hoje moeda corrente nos meios psicanalíticos: a noção de rêverie. Ela foi descrita por Max Scheler, em 1923, no capítulo "A percepção do outro" de seu livro Natureza e formas da simpatia. Ele nos mostra, ali, que a apreensão da vida mental de outrem, nas relações intersubjetivas, realiza-se através de uma forma particular de percepção, a percepção expressiva. É esta sensibilidade às manifestações expressivas do bebê que permite que a mãe acorde de seu sono ao mais leve movimento da criança no berço e que, no entanto, permanece imperturbada ante o ruído da passagem de um trem; e é ainda esta sensibilidade que chega a determinar o ritmo da produção do leite materno segundo o ritmo das necessidades do infante. Não é raro, também, a mãe aperceber-se, seja da irrupção de uma doença, seja do início da convalescença de seu filho, muito antes que o próprio médico que o assiste.

Muito haveria a discutir sobre tais questões, mas aqui ficaríamos conversando por mais três dias e três noites.

Como tentar dar um norte, um caminho, para este legado que todos nós devemos carregar? Tratando de recolher, no passado-presente da cultura do nosso século, contribuições fundamentais que poderiam clarificar uma série de conceitos indispensáveis para a nossa reflexão. Não necessariamente para a nossa prática. Um colega que prezo muito, Pessanha, quando apresentou seu trabalho para tornar-se membro de nossa Sociedade, fez questão de frisar: "Eu não sou teórico, não gosto de teoria. Eu gosto de cuidar de pessoas." E eu disse a ele, nesse dia de jubileu: "Pois eu gosto de pensar teoricamente, mas se tiver de pensar num colega - e este é sempre um problema - para encaminhar um irmão, um filho, a mulher, eu pensaria em você." O mesmo ocorria em Londres. Eu queria mandar uma pessoa conhecida para uma análise. Eu não conhecia muitos psicanalistas. Mas, dentre os que conhecia, alguns brilhantes, outros extraordinários, eu tinha dificuldade em pensar quem realmente empunhava a taça com o néctar da intersubjetividade.

O nosso tempo do presente deve olhar o passado e o futuro. Os tempos não são três. Santo Agostinho, o primeiro a refletir sobre a temporalidade, escreveu: "Nec proprie dicitur 'tempora sunt tria: praeteritum, praesens, et futurum’" [Não é próprio dizer que "os tempos são três: passado, presente e futuro"]. Mas é certo pensar que os tempos são: presente do passado, presente do presente e presente do futuro. Ao primeiro chamamos memória; ao segundo, percepção; ao terceiro, expectatio, expectação, desejo. Eu vou terminar referindo-me a uma outra tempestade, desta vez um pouco mais distante e que, por isso, pode ser contemplada. São as palavras que Shakespeare põe na boca de Próspero em A tempestade:

We are such stuff

As dreams are made on, and our little life

Is rounded with a sleep...

Nós somos da matéria

De que são feitos os sonhos, e nossa insignificante vida

Está envolta em um sono...

Eu vou sonhar junto com vocês por um futuro com expectatio de uma vida mais profunda e melhor para o ser humano e para a psicanálise.

 

Notas

1 Trabalho original publicado em 1999: Revista Brasileira de Psicanálise, 33(1),151-156.

2 Palestra proferida na sessão de encerramento do XVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Rio de Janeiro, 21 a 24 de abril de 1999. Transcrição de Marina Melsohn Lisbona.

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