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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016

 

COM A PALAVRA, OS EX-EDITORES

 

Ser editor da RBP nos anos 90 no Brasil

 

 

Elias Mallet da Rocha Barros

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Editor da Revista Brasileira de Psicanálise de 1991 a 1992

Correspondência

 

 

São muitos os temas que poderíam interessar escrever a respeito diante do simpático e desafiante convite da editora Silvana Rea. O difícil é escolher aquilo que seria mais relevante no presente, quando tento refletir criticamente sobre a experiência vivida como editor naquele momento. A primeira coisa que me vem à mente quando me lembro dos tempos em que fui editor - a princípio como editor executivo do doutor Luiz Meyer, depois já como editor na função integral - é o clima de camaradagem, apesar de eventuais divergências, que existia entre as pessoas envolvidas: Luiz Meyer, Luiz Tenório de Lima, Plinio Montagna, Nelson Montag, Viviana Minerbo, Ana Maria Azevedo e Leopoldo Nosek. Este era o lado agradável; o resto era desafio puro.

Quando comecei a trabalhar para a Revista Brasileira de Psicanálise, esta era muito admirada por ter sido criada e por existir, mas pouco lida segundo as pesquisas que foram realizadas então. Neste quesito, acho que a situação mudou para melhor, mas não tanto quanto todos nós desejaríamos. A RBP merece ser mais lida do que é. Os psicanalistas brasileiros, na época em que assumi como editor, não tinham uma tradição de escrever trabalhos segundo normas editoriais e acadêmicas vigentes no mundo das revistas internacionais.

Esta falta de tradição na cultura acadêmica e psicanalítica, a meu ver, vinha de longe: resultava de um tipo de escola secundária e de uma universidade em que se exigia muito pouco trabalho escrito como parte da formação. Não tínhamos, e não temos, a tradição dos essays (ensaios) das universidades anglo-saxônicas, nem a cultura da dissertation vigente no mundo francófono. Neste contexto, existiam poucos debates de ideias, e a crítica a um texto era recebida como uma atitude hostil, e não como forma de colaboração para a construção de um patrimônio comum, base das tradições culturais.

A imagem do editor, quando assumi a revista, era ruim, e a ele se colavam muitos atributos negativos. Seu papel era visto como assemelhado ao de uma espécie de policial ideológico, cuja tarefa principal era rejeitar artigos baseado num pretenso rigor científico que, no fundo, esconderia um viés doutrinador. Neste contexto, busquei introduzir uma modalidade de avaliação por pares que propiciou um novo tipo de relação entre o autor e os avaliadores.

Um dos primeiros objetivos que busquei estabelecer através de práticas de avaliação por pares foi o de convencer os potenciais colaboradores da revista de que nossa função era facilitar a publicação, e não dificultá-la; ajudar o autor a construir seu argumento de uma forma clara e eficiente. É neste contexto que o processo de avaliação por pares ganha relevância e torna-se a expressão do que Ricardo Bernardi (2002) enfatiza ao afirmar:

Guiar-se pela lógica do melhor argumento é, definitivamente, mostrar interesse pelo novo que o outro pode me dizer e estar disposto, se for preciso, a mudar.

Demorou para que este novo enfoque fosse razoavelmente assimilado. Debate envolve avaliação da qualidade dos argumentos, e a cultura brasileira parece ter ojeriza a qualquer prática de avaliação qualitativa. Existe um viés ideológico contra qualquer tipo de seleção qualitativa, como se esta só existisse para criar desigualdades e injustiças e fosse uma prática antidemocrática. Não sei o quanto ainda é preciso enfatizar que este suposto "igualitarismo" é nocivo ao desenvolvimento de uma cultura nacional e lesivo à criatividade. Por mais absurdo que isso seja, estava presente na atmosfera cultural a ideia de que um artigo, desde que escrito, deveria ser publicado sem passar por qualquer avaliação.

Na falta de um clima propício ao confronto de ideias e ao embate entre as diferenças teóricas e clínicas, até mesmo a crítica construtiva é encarada como uma manifestação de hostilidade. Sem controvérsias, os conceitos de qualquer campo perdem em refinamento, definição e clareza. Mas não só: perde-se também a possibilidade de se avaliar o alcance de cada teoria embasada num determinado quadro conceitual.

André Green (1992) aponta um paradoxo que assombra a escrita psicanalítica (e o campo das ciências humanas em geral) e que também vale para a nossa postura diante de debates ao nos expormos às controvérsias: "O analista-escritor quando escreve pretende ao mesmo tempo comunicar e convencer, refletir e ter razão" (p. 155). Quando o desejo de ter razão é exercido de forma autoritária, esta atitude facilmente se perverte, redundando em perdas de potencial reflexivo, em manipulação, sedução, e com grande frequência contribui apenas para cristalizar uma postura sectária.

Vou repetir aqui algumas reflexões que me guiaram enquanto editor sobre os fatores que impedem um debate criativo em nosso meio cultural, incluindo o psicanalítico, pois me parece que uma das funções primordiais de um editor, como eu tentei ser desde que assumi esta posição na RBP, é a de incentivar, promover o bom debate, o aprofundamento das controvérsias, a clarificação das diferenças e, sobretudo, a valorização da crítica.

Inúmeras são as posturas que dificultam a realização de um debate frutífero - mencionarei apenas algumas.

1. Um diálogo só existe se as diferenças de ponto de vista, sua magnitude e alcance forem reconhecidos. Como afirma Guy Hall (2001), somente a partir do mapeamento das diferenças poderemos estabelecer possíveis campos comuns. Diz ele:

É difícil resistir à tentação de não atenuar as diferenças ou de promover falsas concordâncias. Ao invés disso o que necessitamos é a reformulação dos sistemas irredutíveis que cada um tem (p. 10).

2. Outra postura que impede a realização de um verdadeiro cotejamento de posições consiste em desqualificar, de forma sutil, aqueles que pensam diferente, sugerindo que o ponto de vista do outro provém de uma visão já ultrapassada, que se tornou "caduca". Neste contexto, o autor adota uma atitude de ignorância ativa, mas benevolente, do ponto de vista representado pelo outro polo do conflito de ideias. Essa atitude impede a exploração do valor heurístico das hipóteses em debate.

3. Mata-se também o diálogo e a riqueza do texto através do que, em certos ambientes acadêmicos, se convencionou chamar de argumento do espantalho, que consiste basicamente em atribuir ao adversário uma afirmação ou uma consequência de seu ponto de vista que jamais ele pretendeu arguir.

4. A utilização de conceitos amplos demais ou fechados em excesso impede um debate frutífero. Se por um lado é positivo que deixemos aberta a porta para uma construção progressiva dos conceitos, por outro, se neles cabe tudo, não é possível ampliá-los no contexto de uma controvérsia, pois a falta de precisão borra as diferenças.

É importante ressaltar que textos que introduzem ideias novas são na maior parte das vezes difíceis de conviver. Um texto novo gera estranheza, demanda que o leitor conviva com ele um certo tempo para poder assimilá-lo. Este processo contém algo que pode ser vivido como desagradável. Mas, ao evitarmos a estranheza gerada pela novidade, podemos nos arriscar a encontrar permanentemente o mesmo fantasiado de cores e figurinos diferentes.

Por fim, um ponto associado à atualidade que não poderia deixar de mencionar, por considerar que nós analistas estamos adotando um modelo de artigo aprisionado pela limitação do espaço de escrita - ou do tempo de exposição, no caso de congressos - que é profundamente deletério para o desenvolvimento de nosso campo, que necessita de controvérsias, discordancias, variedade de opiniões etc.

5. Em nome da democracia e do estímulo ao desenvolvimento da criatividade individual, nossas revistas, congressos e painéis,progressivamente, têm reduzido os espaços para nossas manifestações reflexivas. Sou integralmente favorável a que façamos tudo para prevenir a chatice, para combatermos aqueles que repetem sempre o mesmo assunto e nunca mudam de opinião. Ao reduzirmos o espaço, no caso das revistas (ou o tempo, nos painéis), para cerca de 10 mil palavras, diante das 16 mil vigentes dez anos atrás, criamos um ambiente muito mais convidativo para concordarmoscom um autor ou com ideias do que para criticar, discordar, montar um argumento para expor a inconsistência de uma teoria, algo impossível num intervalo restrito de tempo. Concordar exige menos espaço e menos tempo do que discordar de forma rigorosa. É mais fácil concordar em poucas páginas com a imbecilizante teoria criacionista, hoje disfarçada sob o convidativo nome de desenho inteligente, do que destruí-la com argumentos científicos a favor do evolucionismo em vinte minutos ou em dez páginas. Tenho a impressão de que estamos adotando - sem sabê-lo - um modelo conformista que nos convida a apagar as diferenças, que mata a controvérsia e cria espaço para a construção de um curioso paradoxo: a concordância se dá em torno da ideia de que somos pluralistas, de que isto é bom (e num certo nível não disputo esta opinião), e não, como deveria ser, em torno da natureza deste pluralismo.

Com o fito de delinear a natureza das problemáticas geradas pelas posturas em debate, necessitamos destrinchar a lógica interna dos conceitos-chave de cada uma das posições. É isto que esperamos que um bom artigo promova. Entretanto, para isso é preciso enfocar a matriz mais ampla, social e intelectual, da qual nasce uma obra. Conceitos como os de contratransferência e identificação projetiva, ou mesmo o de transferência, evoluíram, ganharam novos significados, perderam algumas conotações, adquirindo sentidos diferentes na obra de cada autor.

Hoje, quando sou convidado a refletir sobre esta minha experiência inicial como editor da RBP, tendo a encará-la como uma luta pela mudança de atitude em relação ao papel do editor, dos conselhos editoriais e dos avaliadores. Muitos destes preconceitos ainda subsistem, e não apenas em nosso país. No que tange ao Brasil especificamente, o que me entristece e preocupa é a existência de uma atitude ideológica quase onipresente de rejeição à avaliação qualitativa e de crítica a uma cultura que busca selecionar o melhor, aquilo que tem mais potencial de dar frutos. Esta atitude pode estar matando o pensamento científico e a criatividade no Brasil.

Segundo dados da Capes, apenas 1,02% da produção mundial de artigos científicos publicados nas revistas mundiais de alta respeitabilidade é de autoria de brasileiros. Isso quer dizer que é difícil entrar para o clube dos que produzem e são internacionalmente reconhecidos. Nossas universidades não cessam de cair nos rankings de qualidade mundiais. No entanto, também não posso deixar de mencionar que nossa psicanálise se tornou, nestes últimos vinte anos, mais conhecida e valorizada no mundo. Pessoalmente, acredito que a RBP teve um importante papel no bom sentido de educar e preparar nossos analistas para o debate crítico. Mas para que esta atitude em relação à nossa produção continue florescendo é necessário manter-nos vigilantes quanto à intromissão de ideologias pretensamente democráticas, mas que no fundo, ao negar as diferenças, silenciam a verdadeira criatividade, que tem como substância a diferença qualitativa.

 

Referências

Bernardi, R. (2002). Avaliação por pares: como funciona e por quê. Trabalho apresentado na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.         [ Links ]

Green, A. (1992). Transcrição da origem desconhecida, a escrita do psicanalista: crítica do testemunho. Revista Brasileira de Psicanálise, 26(1-2),151-192.         [ Links ]

Hall, G. (2001). Introdução. In B. Burgoyne & M. Sullivan (Eds.), Diálogos Klein-Lacan (E. Seincman, Trad., pp. 9-12). São Paulo: Via Letera.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Elias Mallet da Rocha Barros
Rua Dr. Homem de Mello, 644/42, Perdizes
05007-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3865-8675
erbarro@terra.com.br

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