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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo mar. 2016

 

COM A PALAVRA, OS EX-EDITORES

 

Angelus Novus e a seleção de fatos, clínicos e outros

 

 

Plinio Montagna

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Editor da Revista Brasileira de Psicanálise de 1993 a 1997

Correspondência

 

 

Kairós

Certas imagens plásticas, por suas figuras indefinidas ou deformadas (anamorfose), requerem do observador um ponto de visão fixo e uma perspectiva específica para a apreensão de sua Gestalt.

Só então ele poderá dar sentido à sua vivência diante da obra, quando não alcançou distinção clara nem do conjunto nem das partes que o formam.

À arte que se constrói por esse conceito dá-se o nome de arte anamórfica.

A "gestaltização" não "fecha" a obra, toda obra de arte é aberta, ela apenas ilumina seus possíveis sentidos. O encontro da perspectiva vantajosa pode depender de ângulo, distância ou somente de uma maneira de olhar. Envolve elementos ópticos e/ou psicológicos.

Quando encontramos a perspectiva propícia, ganhamos condição de fazer trabalhar nossa imaginação e nosso fantasiar, reverberando a possível experiência estética. A relação com a obra se transforma, não é mais como antes, adquire novos sentidos que não se perderão, mesmo que novos sejam agregados.

É como o sentido do olfato. Ao sentir um determinado aroma, inusitado, pela primeira vez, nosso sistema olfativo se transforma a partir da incorporação deste novo, tornando-o parte de seu acervo, utilizando informações advindas dele num próximo inalar, no próximo cheirar. É assim também o insight.

Note-se que a Gestalt se constitui pela contextualização dos traços na tela. Antes esparsos, estes são agora ressignificados em seu contexto. Isto nos interessa de perto, já que são contextualizações o que o analista procura em seu fazer, é delas que ele se serve como base para desenvolver ideias. Afiguram-se como fatos selecionados, elementos fundamentais a nossas construções hipotéticas enquanto analistas, as quais auxiliam a unificação de fatos pelo paciente também.1

As contextualizações são bases para a apreensão de momentos, de agoras, os quais, ao se deixarem captar, ampliam nossa percepção, que logo se esvai, requerendo um novo movimento semelhante para novas apreensões.

A contextualização se vale do passado, mas mira uma ação no futuro.

Na década de 1990, a Revista Brasileira de Psicanálise se consolidou como a revista brasileira de psicanálise, paralela e concomitantemente à expansão e ao fortalecimento da ABP (hoje Febrapsi). Esta instituição, congregadora dos psicanalistas brasileiros vinculados à IPA, após importante reestruturação, virou o século como uma verdadeira federação brasileira de psicanálise.

A revista pôde materializar suas energias, derivadas das vozes plurais da psicanálise do país, representando-as, impulsionando seu desenvolvimento. Esforços de inúmeros colegas, desde a década de 1960 até então, convergiram originando um período fértil, com o desafio de firmar uma mirada nacional e colocá-la no circuito da psicanálise internacional.

Ao nos debruçarmos sobre períodos de transição, a perspectiva diacrônica usualmente nos auxilia. O paradigma de nosso olhar obtemos em Janus Bifronte, deus romano dos começos e dos fins, uma face voltada para o passado e outra para o futuro, que simboliza mudanças, passagens, e que representa o tempo, já que podia ver no passado.

Contemplar simultaneamente o que foi e o que virá, a partir do presente, enseja a possibilidade de contextualização dos elementos em pauta.2

Cada número da RBP,3 por seu turno, consigna o presente, assinala seu registro contextual e se torna um disparador e instalador do amanhã. Mutatis mutandis, este é também o cerne da ação psicanalítica.

Contextos se sustentam pela história que os envolve, individual e/ou coletiva. Ninguém melhor do que Walter Benjamin (1993) para nos mostrar isso. Num trabalho bem conhecido, ele utiliza como modelo o genial desenho a nanquim, giz pastel e aquarela de Paul Klee, Angelus Novus, de 1920. Diz ele:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (p. 226)

Para nós, com ou sem a violência vista pelo anjo de Benjamin, interessa a irresistível força que nos dirige para o futuro; afinal, é a serviço dele que contam o presente e passado. Ao publicarmos, ou interpretarmos, nos convertemos em arautos daquilo que está para vir. Trabalhamos para dar vida ao sopro do futuro, que contém em si o próprio vetor que nos arremessa a ele. A psicanálise precisa acreditar num mundo pessoal melhor, no presente e no futuro, ou seja, daqui para frente (Montagna, 2011).

É nessa perspectiva, intervindo nos "blocos de construção básicos da experiência" (Stern, 2004) que constituem o presente num "mundo micromomentâneo dos acontecimentos implícitos" (Stern, 2004/2007, p. 12), que aportamos nossas intervenções, seja nas sessões e nos momentos psicanalíticos, seja nas atividades do escrever e do trato com a escrita e as publicações psicanalíticas que tivemos em nosso período de editor da Revista Brasileira de Psicanálise.

Parece-nos, nessa linha, que esses movimentos descortinam o kairós, tempo subjetivo que se contrapõe a chronos, momento propício em que algo vem a ser.4 Tais momentos podem conter insight, encontro (Montagna, 2001), percepção pessoal com valor mutativo (Stern et al., 1998).

Momentos de insight, com sua vertente cognitiva, são princeps em psicanálise. Cada insight, assim como cada número da RBP, consigna o presente, assinala seu registro, fixando-se ainda como disparador e instalador do amanhã. Este é também, em essência, o cerne da ação psicanalítica. O presente estrito, "mundo micromomentâneo dos acontecimentos implícitos", é o do momento da experiência subjetiva quando ela ocorre - e não quando ela é remodelada a posteriori por palavras. Esse momento presente constitui uma unidade psicológica e subjetiva.

Isto transcende insights relacionados a interpretações, classicamente tidas como características do ofício do analista, e inclui a experiência com o paciente, o intercambio emocional presente, o estar junto, as diversas possibilidades de intervenção, que podem até incluir o inesperado enactment. Qualquer destas pode reconfigurar o mundo mental.

Roman Jakobson propõe o termo literariedade ao afirmar que "o objeto da ciência literária não é a literatura, mas a literariedade, isto é, o que faz uma determinada obra ser uma obra literária" (1921, citado por Moisés, s.d., p. 272).

Cabe aqui parafraseá-lo e dizer que a psicanalicidade precisa ser buscada não só no fazer psicanalítico propriamente dito, mas até mesmo onde ela parece não estar. Com outros termos, Fabio Herrmann mostra esse encontro em "A Rani de Chittor" (Herrmann, 1992/2001).

Quanto à RBP, esta sedimentou-se como ponta de lança científica da psicanálise brasileira, como caixa de ressonância da produção de qualidade e propulsora da qualidade de sua produção (Montagna, 1997).

 

Contexto

Participei com entusiasmo da Associação Brasileira de Psicanálise por dez anos, de 1991 a 2001, em várias instâncias, dentre as quais editor da RBP, de 1993 a 1997, e presidente da ABP/Febrapsi, de 1997 a 1999. A partir desse background, teço aqui algumas considerações sobre o binômio RBP-ABP, e especificamente sobre a RBP.

Suas histórias se imbricam indissoluvelmente, tendo a RBP, patrimônio precioso da associação, completa autonomia editorial. Na década de 1990, as necessidades editoriais específicas somavam-se algumas premências institucionais importantes para a sedimentação da RBP enquanto órgão de interlocução por excelência dos analistas brasileiros.

Era imperiosa a real absorção da revista pela ABP, para alcançar um âmbito nacional e ser vista como tal. Ela havia se originado de uma das federadas, a de São Paulo, e era difícil descolar desta a sua imagem.

O desafio foi vitorioso, incluindo em primeiro lugar uma participação natural da revista nas próprias reuniões de diretoria da ABP. Ela passou a ser orgânica e efetivamente atrelada à estrutura desta, sem jamais perder sua autonomia editorial. Por diversas ações e boa receptividade, passou a ser vista e se ver de fato como brasileira, abrangente, acolhendo as várias nuances da psicanálise nacional. Vitória de todos.

A editoria ativa, iniciada na administração anterior, foi impulsionada, ocupando os números temáticos um lugar de destaque, convidando colegas de diversas regiões e Sociedades a pesquisar assuntos específicos, ampliando o debate, pontuando a discussão, na psicanálise brasileira, de temas que nos parecessem de relevância no momento; eles foram naturalmente sendo privilegiados pelo corpo editorial.

O próprio costume de manusear a revista fisicamente foi incentivado, e para isso contribuiu a publicação prévia dos trabalhos dos congressos brasileiros. Os congressistas a portavam, a intimidade com a revista foi se consolidando.

Ponto administrativo culminante foi termos conseguido a compra da sede da revista no bairro de Higienópolis, São Paulo, em 1996. Seu espaço próprio, autônomo, ajudou ainda mais a consolidar sua independência e facilitou a sua administração. Concomitantemente, a ABP comprava sua sede própria em Copacabana.

A ABP se modificava. Sua diretoria, agora composta por membros das diversas Sociedades, passou a se deslocar pelos estados, aproximando-se efetivamente de seus membros. Assim também a RBP, que passou a organizar jornadas psicanalíticas em federadas diversas.

Relevante foi a celebração, também em 1996, dos 30 anos da RBP, marcada por sessão comemorativa com conferência de Isaias Melsohn e um cd com resumos de todos os artigos publicados pela revista até então. Tratou-se do início do uso da informática.

Se por um lado até agora batemos na tecla da contextualização, sem a qual não há um verdadeiro insight, há também que se dedicar, a contrapelo do Angelus Novus, aos fragmentos, qual fazemos nas análises, nas dissociações, e desses extrairmos também a "psicanalicidade".

Esta é uma de nossas funções, buscar a "psicanalicidade", talvez encontrá-la mesmo onde não parece haver psicanálise. Quem sabe possamos concordar com Ricoeur, quando ele aponta aquilo que podemos interpretar como a ubiquidade do universo freudiano (1965/1977, pp. 59-60).

 

Notas

1 Para Grotstein (2007/2010 ) eles representam a quintessência do pensamento de Bion.

2 Também nesse sentido é extremamente feliz a iniciativa da atual editoria da RBP, a qual parabenizo.

3 Assim, cada insight, ou cada momento significativamente transformador, na sessão psicanalítica.

4 O termo teria surgido de pastores observando estrelas: o momento em que uma estrela atinge o apogeu e parece mudar de direção de ascendente para descendente é o seu kairós.

 

Referências

Benjamin, W. (1993). Sobre o conceito da história. In W. Benjamin, Obras escolhidas (S. P. Rouanet, Trad., pp. 222-234). São Paulo: Brasiliense.         [ Links ]

Grotstein, J. (2009). "... But at the same time and on another level...". London: Karnac.         [ Links ]

Grotstein, J. (2007) - Um facho de intensa escuridão.- O legado de Wilfred Bion à Psicanálise. Porto Alegre, Artes Médicas, 2010.         [ Links ]

Herrmann, F. (2001). A Rani de Chittor. In F. Herrmann, O divã a passeio (pp. 77-112). São Paulo: Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1992)        [ Links ]

Moisés, M. (s.d.). Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Montagna, P. (1997). A nave e o ninho [editorial]. Revista Brasileira de Psicanálise, 31(3),561-562.         [ Links ]

Montagna, P. (2001). O encontro: além da transferência e da contratransferência. Revista Brasileira de Psicanálise, 35(3),531-542.         [ Links ]

Montagna, P. (2011, 22 de maio). Presente, futuro e psicanálise. Folha de São Paulo, São Paulo, Tendências/ Debates, p. 3.         [ Links ]

Ricoeur, P. (1977). Da interpretação: ensaio sobre Freud(H. Japiassu, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965)        [ Links ]

Stern, D. N., Sander, L. W., Nahum, J. P., Harrison, A. M., Lyons-Ruth, K., Morgan, A. C. et al. (1998). Noninterpretative mechanisms in psychoanalytic therapy: the "something more" than interpretation. The International Journal of Psychoanalysis, 79,903-921.         [ Links ]

Stern, D. (2007). O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana (C. O. Lima, Trad.). São Paulo: Record. (Trabalho original publicado em 2004)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Plinio Montagna
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