SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.50 issue1Angelus Novus e a seleção de fatos, clínicos e outros author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.1 São Paulo Mar. 2016

 

COM A PALAVRA, OS EX-EDITORES

 

Memórias recentes de um editor

 

 

Bernardo Tanis

Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Editor da Revista Brasileira de Psicanálise de 2010 a 2014

Correspondência

 

 

Freud agradece o exemplar que lhe ofereci de uma primeira revista de psicanálise que então publiquei no Brasil, mas que teve apenas um número, pois a publicação, naquela época, não pôde prosseguir. Freud conta que gostou muito do aspecto da revista, a qual, como ele mesmo diz, o levou a exercitar-se na leitura do português.

(Durval Marcondes)

Parabenizo os editores pela iniciativa de comemorar o 50º aniversário de publicação ininterrupta da Revista Brasileira de Psicanálise. Atendo com entusiasmo o convite da equipe e me disponho, neste breve espaço, a compartilhar com os leitores algumas ideias que nortearam nossa política editorial e que refletem um modo de conceber a psicanálise, a clínica, o diálogo entre colegas e sua inserção no mundo em que vivemos.

Durante o XXIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Ribeirão Preto (2011), realizamos uma exposição histórico-temática da RBP.1 Tratava-se, naquele momento, de uma iniciativa que surgira no seio da diretoria da Febrapsi, então presidida por Leonardo Francischelli, de mostrar para o público o percurso editorial da nossa revista. Animados, contratamos uma equipe de pesquisa e curadoria para que, em parceria com uma parte da equipe editorial e contando com os excelentes recursos e apoio da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da SBPSP, pudesse se debruçar sobre todo o nosso acervo editorial e documental. Desse trabalho resultaram seis painéis que foram expostos no congresso. Recorto dois parágrafos deles que considero significativos, pois revelam de modo interessante o olhar do outro sobre nós. Aquele olhar do curador que, ao se debruçar sobre seu corpus de pesquisa, ouve e percebe novas vozes e configurações que muitas vezes nós, mergulhados no campo, não conseguimos discriminar. Deixemos que os curadores falem:

A Revista Brasileira de Psicanálise nasce, em 1928, com o germe da renovação. Idealizada e produzida por Durval Marcondes, considerado o pioneiro do projeto psicanalítico brasileiro, e pelo grupo que orbitava em torno de si (incluindo muitos modernistas), a publicação surge como um braço do movimento em favor da psicanálise como campo de conhecimento e prática terapêutica. Integrando o debate filosófico, estético e sociológico que se travava na época no Brasil, a defesa da psicanálise colidiu-se com o feroz conservadorismo político e científico, marcado pelo positivismo da Primeira República. [...] Se há, portanto, uma relação inextricável entre a criação da primeira sociedade psicanalítica brasileira e latino-americana - Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 1927 - e a Revista Brasileira de Psicanálise, o vértice deste laço sintetiza-se na ideia de vanguarda. E esta verve, apesar dos quase 40 anos de intermitência que a revista sofreu entre a primeira e sua segunda e definitiva fase, iniciada em 1967, manteve-se como lastro e impulso de suas atividades.2

Embora seu campo tenha se constituído a partir de determinados pilares que lhe são próprios, a psicanálise, inspirada por seu fundador, nunca se esquivou de rever suas proposições, buscando responder através de novos aportes às questões engendradas pela clínica e às mudanças das formas históricas da subjetividade. O movimento constante de virar outro e perscrutar as opacidades de seu tempo está, portanto, na base de sua engrenagem. Ainda que de diferentes maneiras, através dos inúmeros projetos gráficos adotados e das discussões e interlocutores que foram se interpondo, a Revista Brasileira de Psicanálise, em sua longeva existência, procurou estabelecer uma fina sintonia com as questões emergentes do seu campo. As diversas tendências teórico-clínicas em disputa, os diálogos cada vez mais recorrentes da psicanálise com outros campos de conhecimento, a interlocução do movimento brasileiro com o debate internacional; estas são algumas das muitas frentes de análise com as quais a revista permanece comprometida e que pautam sua atuação. O que não impede, em absoluto, que muitas novas questões, que hoje parecem inéditas, encontrem espaço em suas páginas, lembrando-se que seus 83 anos de história vêm sendo pontilhados pela marca da reinvenção.

Releio estes parágrafos, redigidos num estilo claro, muito elegante e preciso. Neles me reconheço como ex-editor e como sucessor de um legado em permanente atualização. Gostaria de compartilhar com os leitores da revista alguns dos fundamentos nos quais se ancorou nossa proposta editorial e nosso trabalho cotidiano de equipe.

■ Desde seus primórdios, o campo psicanalítico comportou a diversidade de olhares sobre o exercício clínico, enriquecendo e ampliando a compreensão dos processos inconscientes e, deste modo, sua contribuição na elaboração do mal-estar daqueles que nos procuram. A riqueza da psicanálise reside, entre outras propriedades, na sua permanente abertura para as singularidades. A tensão entre os sistemas teóricos mais consolidados e o específico de cada configuração psíquica, assim como aquela entre a técnica clássica e as particularidades de cada processo analítico, longe de apontar uma fragilidade epistemológica, é testemunho de um método original de abordar o sofrimento humano no contexto dos saberes sobre o psíquico. Variações e fundamentos é o nome que encontramos não apenas como título de um dos primeiros números que editamos, mas também para contemplar esse movimento. Nossa proposta editorial consistiu em transitar no que hoje posso sintetizar como um estado de tensão criativa entre a novidade e a tradição, algo que reflete o momento clínico-teórico atual da psicanálise e do mundo em que vivemos;

■ Acreditamos que uma revista científica em nosso campo, para se tornar um legítimo fórum de discussão, precisa estimular a reflexão em torno dos fundamentos que sustentam as transformações na clínica, principalmente em contextos nos quais muitas vezes as crenças ou adesões ideológicas impedem a reflexão e o livre exercício do diálogo e do pensamento;

A escuta em questão, título outorgado a outro dos nossos números, integrou a proposta editorial cujo mote articulador foi a atualidade da clínica psicanalítica,contemplando um vasto espectro temático que aponta na direção do diálogo entre a prática clínica e a reflexão que a sustenta e interroga. Embora o debate clínico tenha feito parte do intercâmbio entre colegas desde os primórdios da psicanálise, a realidade originada pelas diferentes culturas nas quais a psicanálise desenvolveu-se, somada ao correlato fenômeno das escolas psicanalíticas, tornou esse diálogo mais complexo. O dogmatismo e os mal-entendidos muitas vezes ocupam o lugar de uma aproximação aberta e sem preconceitos à diversidade que reina no exercício da clínica. Qual o lugar das teorias explícitas e implícitas na escuta analítica? Como ouvimos uma narrativa clínica? A partir de que pressupostos dialogamos com nossos colegas? Almejamos uma padronização da escuta, ou a escuta analítica só faz sentido no après-coup (nachtraglich)? Ainda mais, pressionados por outros campos de conhecimento e práticas clínicas, a psicanálise e os psicanalistas viram-se ameaçados. Isto não constitui uma novidade para nossos leitores; esses temas já foram longamente abordados em congressos e debates. Sabemos da nossa consistência e dos avanços teórico-clínicos que a fundamentam. O que se apresenta hoje como desafio são as modalidades que encontramos para aprimorar nossa escuta, dialogar com colegas psicanalistas e não psicanalistas em um campo no qual a alteridade é a marca distintiva em contraposição a qualquer homogeneização doutrinária;

■ Procuramos ainda promover uma transformação qualitativa da RBP - que só poderia vir a ser conquistada a partir de um projeto editorial que tivesse como garantia a autonomia -, um aprimoramento da avaliação anônima de trabalhos a serem publicados (duplo-cego) - ancorada na crítica construtiva aos autores -, uma representatividade da produção brasileira nas suas diferentes expressões, intensificando a troca com os editores regionais e o diálogo fecundo com a pluralidade do pensamento psicanalítico mundial, bem como um olhar atento ao momento cultural e social em que estamos inseridos. À comissão de avaliação coube, entre inúmeras tarefas, o papel de ser, acima de tudo, um elo construtivo entre autores e pareceristas, de modo a veicular as sugestões e comentários destes aos autores, visando sempre o enriquecimento do texto e o aprimoramento da escrita;

■ Pensamos que a transparência nos processos de avaliação, assim como o cuidado e extremo respeito pelos autores, resulta em um estímulo para que os analistas compartilhem suas experiências e reflexões através da escrita criativa e livre, o que de modo algum se contrapõe à qualidade. Acreditamos que o rigor do pensamento não se encontra na escrita burocraticamente correta, mas na qualidade do desenvolvimento das ideias, em sua ancoragem na experiência e no diálogo amplo com o campo do pensamento psicanalítico;

■ A concepção temática dos números obedeceu a um processo criativo grupal, através do qual a equipe mergulhava no vértice temático escolhido, gerando, desse modo, um crescimento e amadurecimento do grupo como um todo. Estimulamos a reflexão e o debate inserindo questões pertinentes à psicanálise no contexto científico, cultural, social e político contemporâneo. Tratava-se de uma publicação psicanalítica que também procurava dialogar com outros campos do conhecimento, pois consideramos que esse diálogo extramuros enriquece o arsenal teórico-clínico psicanalítico, assim como contribui para a elucidação de processos culturais;

■ Outro aspecto axial da proposta foi a integração da RBP no contexto psicanalítico brasileiro, colocando em prática sua condição de publicação oficial da Febrapsi. Dentre as várias atividades que reforçaram essa perspectiva, houve uma pela qual desenvolvemos especial interesse e carinho: a promoção de espaços reflexivos sobre a escrita psicanalítica em congressos e jornadas temáticas;

■ A especificidade da tarefa de editor da RBP tem sido um constante estímulo e fonte de reflexão sobre a escrita psicanalítica (Tanis, 2015),3 sobre o cuidado na avaliação e publicação dos trabalhos recebidos, concedendo uma especial atenção à ética na publicação de narrativas da clínica. As vertiginosas mudanças no cenário acadêmico, os critérios de indexação das publicações, as publicações online (e-books, revistas eletrônicas, blogs etc.), com a consequente divulgação massiva através dos sistemas de busca na internet, vêm suscitando interrogantes em torno do que e de como publicar em psicanálise, e indiretamente não deixam de ter influência no campo das pesquisas em psicanálise, sejam as promovidas nos consultórios e em instituições psicanalíticas, sejam as desenvolvidas nas universidades. As revistas voltadas para a psicanálise não estão fora desse processo de transformação.

Acreditamos que as iniciativas de intercâmbio entre editores são fundamentais para enfrentar os desafios para os quais as mudanças nesse cenário da atualidade estão nos convocando.

Deixamos a editoria satisfeitos com o trabalho realizado e muito gratos pelo inestimável apoio e retorno recebido dos nossos leitores e autores, mas com a compreensão de que ainda resta muito por fazer. No plano pessoal, posso dizer que o trabalho de editor, ao lado da excelente equipe e junto aos autores e pareceristas, foi muito gratificante, prazeroso e me proporcionou um crescimento incalculável. Agradeço mais uma vez a oportunidade e o espaço concedido pela RBP para compartilhar minha experiência com os leitores.

 

Notas

1 Comissão de organização da exposição: Alice Paes de Barros Arruda, Ana Maria Brias Silveira, Bernardo Tanis e Mônica Cintra Antonácio Povedano. Curadoria, pesquisa e produção: Daisy de Camargo e Daisy Perelmutter. Direção de arte: Maurício Cardoso. Design gráfico: Marly Calilo. Agradecimentos: Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Glaucia Lima, Luciana Nemes, Nubia Brito e Pedro Paulo Ortolan.

2 A Revista Brasileira de Psicanálise, originariamente vinculada à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 1971 foi doada e passou a ser um órgão oficial da Associação Brasileira de Psicanálise (ABP). Fundada em 1967, a ABP transformou-se, em 2008, em uma federação: Federação Brasileira de Psicanálise - Febrapsi.

3 Neste trabalho, desenvolvo um diálogo com vários analistas que se debruçaram sobre o tema da escrita em psicanálise e seus desafios, bem como com as novas realidades com as quais nos defrontamos no presente.

 

Referência

Tanis, B. (2015). A escrita, o relato clínico e suas implicações éticas na cultura informatizada. Revista Brasileira de Psicanálise, 49(1),179-192.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Bernardo Tanis
Rua Capote Valente, 432/142, Pinheiros
05409-001 São Paulo, SP
Tel: 11 3062-1855
tanis@uol.com.br

Creative Commons License