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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

EM PAUTA

 

O corpo na psicossomática psicanalítica

 

The body (soma) in the psychoanalytic psychosomatics

 

El cuerpo en la psicosomática psicoanalítica

 

 

Admar Horn

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ)

Correspondência

 

 


RESUMO

Neste texto, o autor descreve o corpo na perspectiva de uma avaliação psicossomática psicanalítica, mostrando os avanços teórico-práticos obtidos nesses últimos anos com base nos conceitos da Escola Psicossomática de Paris.

Palavras-chave: corpo somático e libidinal; afeto; vida operatória; depressão essencial; trabalho de somatização.


ABSTRACT

In this paper, the author describes the body (soma) from the perspective of a psychoanalytic psychosomatic evaluation. The author demonstrates the theoretical-practical advances in the concepts of the Paris Psychosomatic School over the past few years.

Keywords: somatic and libidinal body; affection; operative life; essential depression; somatization work.


RESUMEN

En este texto el autor describe el cuerpo en la perspectiva de una evaluación psicosomática psicoanalítica, mostrando los avances teóricos y prácticos que se han obtenido en estos últimos años, con base en los conceptos de la Escuela Psicosomática de París.

Palabras clave: cuerpo somático y libidinal; afecto; vida operatoria; depresión esencial; trabajo de somatización.


 

 

O presente estudo trata do corpo na sua dimensão psicanalítica, evidenciando a manifestação do inconsciente nas situações psicossomáticas. Em que consiste o trabalho de análise com os pacientes denominados psicossomáticos? Existiria uma psicanálise própria das doenças psicossomáticas?

O corpo é o lugar primeiro de encontros construtivos e é por vezes esquecido, pois, frequentemente, tratamos apenas do mental (Jornadas de Abril, 2016). Entretanto, o estudo da psicossomática psicanalítica não implica necessariamente um controle sobre o corpo, visto que toda e qualquer pessoa pode adoecer e, paradoxalmente, nem todos os pacientes psicossomáticos adoecem.

A construção do corpo é um (co) movente processo grupal, uma vez que o corpo psíquico contém outros, isto é, significa as representações dos objetos com os quais o sujeito se ligou (Eiguer, 1997).

Um dos recursos terapêuticos que vêm sendo utilizados com esses pacientes psicossomáticos é o psicodrama psicanalítico individual. Dito de um modo psicodramático, trata-se de presenciar e repensar a dramaturgia do corpo na psicanálise.

A psicanálise aplicada aos pacientes psicossomáticos, apesar dos conflitos ideológicos existentes, encontra ancoragem teórica na Escola Psicossomática de Paris, criada por Pierre Marty, Michel de M'Uzan e Christian David (1963). Isto será demonstrado ao longo deste texto.

Desta forma, o modelo da conversão histérica, proposto por Freud, é substituído por esse outro modelo teórico, proposto pela Escola de Paris, o qual ao longo do tempo encontrou fortes resistências no seio da comunidade psicanalítica - como a grande cisão, nos anos 90, com um desacordo radical entre P. Marty e J. McDougall.

Joyce McDougall (1978, 1989) sustenta a tese de que a eclosão somática é o resultado do deficit de mentalização devido a falhas na paraexcitação, o que justificaria a falta de capacidade fantasmática constituída no momento da construção do pré-consciente. As manifestações somáticas são uma formação de compromisso utilizada pelo sujeito para manter a sua sobrevivência psíquica. Assim, diferenciando-se do modelo freudiano da conversão histérica, McDougall diz que essas soluções psíquicas não se referem apenas à dimensão edípica, como propõe Freud, mas a conflitos relacionados ao direito de existir mais primitivo do sujeito. Esse problema histérico arcaico somente seria resolvido através do recurso da instauração de um longo dispositivo analítico.

Esse trabalho com os pacientes psicossomáticos nos confronta com situações algumas vezes extremamente adversas à prática habitual da psicanálise, uma vez que, em geral, são pacientes portadores de uma baixa capacidade tanto de mentalização quanto de associar livremente.

A noção de mentalização se refere a duas dimensões do aparelho psíquico: à quantidade e à qualidade das representações psíquicas em um determinado sujeito. A partir de observações realizadas em entrevistas ditas de investigação, conduzidas com pacientes apresentando doenças somáticas, Marty estabelece diferentes delimitações a respeito da quantidade e da qualidade das representações segundo os indivíduos. Essas delimitações deram origem a um sistema de classificação hierárquica de indivíduos e de doenças. Assim, os indivíduos e as doenças a que estão sujeitos se diferenciam quantitativa e qualitativamente (Marty, 1990).

Segundo Marty, os conceitos de pensamento operatorio e depressão essencial são faces da mesma moeda; ele insiste no fato de que, ao nos depararmos com um paciente com depressão essencial, nunca mais nos esquecemos, certamente devido ao fato de que o quadro é particularmente grave.

Em função dos achados oriundos de seus trabalhos clínicos, Marty e M'Uzan (1963[1962]) apontam que, usualmente, pacientes somáticos apresentam pensamentos superficiais, desprovidos de valor libidinal, excessivamente orientados para a realidade externa e estreitamente vinculados à materialidade dos fatos. Desse modo, sugerem que os sujeitos em questão se caracterizam por um comprometimento da capacidade de simbolização. Ademais, propõem que esse comprometimento tende a se desdobrar em uma considerável restrição da atividade fantasmática, com importante apagamento de toda expressividade de ordem mental, o que denota a existência de uma carência funcional do psiquismo.

Uma veemente propensão à ação em detrimento da simbolização se destaca como outra característica dos pacientes somáticos. Condutas pouco elaboradas do ponto de vista psíquico são então adotadas para minimizar o impacto causado pelas excitações. Isso sugere que o inconsciente não consegue se comunicar mediante o emprego de representações e tende a encontrar no comportamento sua única possibilidade de expressão. Pode-se supor, diante do exposto, que a restrição fantasmática que os caracteriza faz do aparelho sensório-motor uma via privilegiada de exteriorização das demandas pulsionais (Marty, M'Uzan & David, 1963).

Tal hipótese adquire ainda mais consistência partindo-se do princípio de que, conforme Marty, M'Uzan e David (1963), é possível notar no discurso dos sujeitos em questão que suas palavras frequentemente se encontram desvinculadas de elementos simbólicos e são empregadas como um mero instrumento de descarga das tensões. Ou seja, suas verbalizações não são investidas e tampouco determinadas. Vale salientar, entretanto, que o psiquismo de pacientes somáticos não se encontra plenamente desligado do inconsciente. Contatos arcaicos são mantidos com os conteúdos situados para além da consciência, mas isto não subsidia o desenvolvimento de elaborações integradoras da vida pulsional.

No início da década de 60, esses autores cunharam o termo pensamento operatorio, como referência não apenas a uma modalidade de pensamento, mas também a um tipo de organização psíquica. Atualmente, as expressões funcionamento operatorio e vida operatoria são empregadas na literatura científica especializada como substitutas do conceito original.

Pacientes ditos somáticos comumente apresentam um funcionamento psíquico que se situa entre as neuroses e as psicoses. Modernamente, as pesquisas científicas consideram que a proximidade maior é com as psicoses.

Neste contexto, me parece fundamental, no manejo psicanalítico destes pacientes, que tentemos obter, no decorrer do processo analítico, uma maior espessura do pré-consciente. A partir daí podem surgir possibilidades de ligações, por exemplo, entre o corpo e o psiquismo. Esses pacientes que se mostram limitados na sua capacidade de pensar/representar não teriam alternativa senão recorrer à ação para enfrentar os eventos traumáticos que se lhes apresentam. Segundo Marty, a causa disso é um modo de desenvolvimento da paraexcitação na experiência precoce do sujeito que tem como consequência a insuficiência do desenvolvimento do pré-consciente, o que diferencia esse sujeito dos pacientes neuróticos, que estariam muito mais sob o efeito do recalcamento.

A paciência é uma ferramenta de trabalho essencial no decorrer do processo analítico com esses pacientes e é extremamente útil, pois as alterações psíquicas, quando acontecem, são sempre resultado de um longo trabalho de análise. Exemplificando, na maior parte dos casos, o surgimento de material onírico aparece somente após um grande avanço do percurso psicanalítico.

As ligações entre o corpo e o afeto estão presentes na origem da medicina, desde o corpus de Hipócrates e a teoria dos humores na formação do caráter e das doenças, até a medicina moderna e a psicanálise. Os afetos estão no centro das causalidades diferentes tanto dos problemas psíquicos quanto das afecções somáticas.

Freud inicialmente concebeu o afeto numa dimensão econômica, o quantum de afeto sendo algo que pode ser aumentado, deslocado, descarregado, e que se espalha sobre os traços mnésicos das representações um pouco como se fosse uma carga na superfície dos corpos. À medida que a primeira e sobretudo a segunda tópica foram sendo elaboradas, desenvolveu-se uma considerável complexidade, tanto no plano dinâmico quanto no quantitativo, pois o afeto tornou-se representante da pulsão assim como a representação, mas de maneira diferente.

Surgem, então, as questões da inconsciência do afeto, do estatuto do sentimento inconsciente de culpabilidade, dos estados de dessimbolização e da desqualificação nas patologias não neuróticas.

A clínica psicossomática nos faz repensar os destinos do afeto descritos por Freud: repressão, deslocamento, transformação em angústia - esses destinos estando na dependência da eficiência da ação do recalcamento sobre as representações, ação cujo verdadeiro alvo é domar, reprimir a carga energética do afeto.

A Escola Psicossomática de Paris destaca a dimensão econômica do afeto, entre processos psíquicos e somáticos. O tratamento do afeto é bem particular no paciente somatizante ou operatório, no qual "o drama não é legível", tanto na sua valência positiva quanto na negativa, seja por falta, seja por excesso.

Contrariamente à melancolia, em que os afetos são contextualizados num conflito narcísico ambivalente com o objeto perdido, na depressão essencial aparece uma supressão/eliminação drástica dos afetos, uma extinção da vida pulsional, baixa do tônus vital, sem contrapartida econômica, precursora da eclosão das doenças somáticas.

Marty também descreveu a importância da qualidade da angústia na mentalização. As angústias objetais, favorecendo as capacidades regressivas, numa visão defensiva, permanecem operantes nas somatizações benignas. Os afetos guardam, neste caso, uma tonalidade barulhenta subjacente à expressão dos conflitos psíquicos. Ao contrário, nas desorganizações progressivas, temos o selo da calma, os afetos estão apagados e surdos, dando livre curso às angústias difusas, automáticas. A angústia não é mais um sinal de alarme, ela é o alarme permanente. A função materna do analista, enquanto guardião da coesão narcísica e funcional do ego, torna-se então vital.

Nos últimos anos, o conceito de processo de somatização, originalmente desenvolvido por M. Aisenstein (1986/2013) e denominado elaboração de uma solução somática, foi retomado por C. Smadja. Assiste-se, assim, a uma ampliação da base metapsicológica da psicossomática, cujos estudos haviam se baseado, nos primeiros tempos, na neurose atual.

Smadja (2014) propõe um modelo teórico para a compreensão dos processos psicossomáticos calcado na segunda teoria freudiana das pulsões e que culmina com uma nova proposição de trabalho de somatização.

Acredito que não se trata de refazermos a pergunta do sentido simbólico da doença somática, mas sim do seu significado no seio da vida.

O surgimento de uma doença somática é despido de um sentido próprio, mas se inscreve num contexto particular descrito por Rosine Debray (2001) como sendo uma conjunção explosiva. Trata-se do reencontro de um terreno frágil com uma situação extremamente traumática, reenviando à noção de perda objetal, que se constitui na idade do conflito edípico ou na adolescência enquanto reativação desse conflito. A noção de perda de objeto, real ou suposta, vivida como um verdadeiro traumatismo precoce e muitas vezes duradouro, é uma constante nas desorganizações psicossomáticas. Podemos observar que, na clínica dos pacientes com doenças que se manifestam sob a forma de crises, o sofrimento nos seus corpos algumas vezes tem valor de proteção contra uma dor psíquica intolerável.

Vale lembrar que, num de seus célebres artigos, Marty (1952) singulariza o estudo da psicossomática na Escola de Paris como sendo um pensamento psicanalítico baseado na economia, cujo objeto e ferramenta é unicamente o funcionamento mental.

Atualmente, as publicações da chamada segunda geração dos psicanalistas psicos-somáticos da Escola de Paris - entre eles, eu citaria os colegas Gérard Szwec, Rosine Debray, Marilia Aisenstein e Claude Smadja -, embora conservem uma fidelidade ao pensamento de Pierre Marty, parecem ter renunciado ao monismo pulsional e à primeira tópica. Os conceitos de pulsão de morte, de intricação e de desintricação pulsional aparecem como centrais nos seus trabalhos teóricos.

As concepções atuais discutidas no texto estão aptas a dar uma outra significação à doença. Ela não tem um sentido simbólico, mas pode-se construí-lo graças ao trabalho do processo psicanalítico. A noção de solução lhe dá um significado no seio dos acontecimentos psíquicos que participam no prosseguimento da vida.

Exemplificando: recebi em análise dois pacientes que tinham um sofrimento psíquico importante, com manifestações somáticas bastante distintas em seus corpos e mais especificamente no órgão-alvo, o coração. Ambos apresentavam uma doença cardíaca em contextos psíquicos totalmente diferentes. A longa evolução de seu percurso analítico me fez acreditar que a doença cardíaca neles, respeitando obviamente as diferenças dos funcionamentos mentais de cada um, foi a solução encontrada diante da impossibilidade de se fazer um trabalho de luto relativo à morte do pai (Horn, 2015). A morte do pai é talvez o acontecimento mais importante e mais emocionante na vida de um homem, afirmou Freud (1967) no verão de 1908, no seu segundo prefácio a A interpretação dos sonhos.

Particularmente, com um desses dois pacientes, a psicoterapia me pareceu útil, e tenho o sentimento de ter iniciado com ele um "trabalho analítico de sobrevida", cujos resultados a longo termo são na maior parte das vezes satisfatórios, embora muito enigmáticos.

Concluindo, creio que todas essas diversas manifestações somáticas nos engajam em um percurso epistemológico de releitura do sintoma somático e do estatuto do corpo na psicanálise - o corpo somático e o libidinal, assim como o corpo doente e que somatiza. A posição freudiana é clara: o corpo não se reduz ao puramente orgânico.

 

Referências

Aisenstein, M. (2013). Solution psychosomatique: issue somatique. Notes cliniques: l'homme de Birmanie. Revue Française de Psychosomatique, 43,95-111. (Trabalho original publicado em 1986).         [ Links ]

Debray, R. (2001). Épître à ceux qui somatisent. Paris: PUF.         [ Links ]

Eiguer, A. (1997). Le générationnel: approche en thérapie familiale psychanalytique. Paris: Dunod.         [ Links ]

Freud, S. (1967). Deuxième préface. In S. Freud, L'interprétation des rêves (I. Meyerson, Trad.). Paris: PUF. (Trabalho original publicado em 1908)        [ Links ]

Horn, A. (2015). Le coeur n'est pas que métaphore. Revue Française de Psychosomatique, 48,93-101.         [ Links ]

Jornadas de Abril (2016). Das falas do corpo ao corpo do mito. Porto: Universidade Portucalense.         [ Links ]

Marty, P. (1952). Les difficultés narcissiques de l'observateur devant le problème psychosomatique. Revue Française de Psychanalyse, 16(3),339-362.         [ Links ]

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McDougall, J. (1989). Théâtres du corps. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Smadja, C. (2014). Le modèle pulsionnel de la psychosomatique. Revue Française de Psychosomatique, 45,11-30.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Admar Horn
Rua Carlos Góis, 375/310, Leblon
22440-040 Rio de Janeiro, RJ
Tel/Fax: 21 2259-8718
horn@osite.com.br

Recebido em 18.04.2016
Aceito em 01.05.2016

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