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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

EM PAUTA

 

A metamorfose adolescente: uma nova relação corpo-mente

 

Teenage metamorphosis: a new body-mind relationship

 

La metamorfosis adolescente: una nueva relación cuerpo-mente

 

 

Myrna Pia Favilli

Analista didata e analista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Com base nas ideias de Armando Ferrari, este trabalho trata da problemática do adolescente e seu processo de construção de si, em que, a partir do surgimento de eventos corporais, inicia-se a percepção mental da existência de um corpo novo que entra em cena e que origina uma nova conversa interna corpo-mente, cuja dialética se estenderá para sempre.

Palavras-chave: adolescência; corpo; mente; psicanálise.


ABSTRACT

Starting from Armando Ferrari's ideas, this paper approaches teenage issues and the adolescent's process of self-construction. From the moment when body events occur, the mind's perception of a new body's existence takes place in that process. There is a new body which arises and causes an internal bodymind communication. This body-mind dialectic is going to last forever.

Keywords: teenage years; adolescence; body; mind; psychoanalysis.


RESUMEN

Con base en las ideas de Armando Ferrari, este trabajo aborda la temática del adolescente y su proceso de construcción de sí, donde, a partir del surgimiento de eventos corporales, se inicia la percepción mental de la existencia de un cuerpo nuevo que entra en escena y que da origen a una nueva conversación interna cuerpo-mente, cuya dialéctica se extenderá para siempre.

Palabras clave: adolescencia; cuerpo; mente; psicoanálisis.


 

 

Falar da adolescência sempre foi um debate com o efêmero, com o transitório, com o momento no qual a passagem da infância à idade adulta parece assumir o caráter do estranho (do Unheimlich), uma vez que a adolescência envolve a perda das identificações infantis sem que seja possível pressentir o caráter definitivo das transformações que irão ocorrer. Geralmente se descreve a adolescência pelas características observadas externamente: a entrada no mundo social mais amplo, a perda do corpo infantil, a recusa ao amparo familiar, os agrupamentos sociais, a iniciação sexual etc.

Do ponto de vista psicanalítico, busca-se adaptar a estruturação mental ocorrida na infância às novas exigências do viver: as angústias postas em relativo sossego na latência voltam à tona, e o adolescente se vê obrigado a resolver os novos problemas de identidade de gênero, de escolha sexual de objeto, de controle das violências internas, de busca da realidade e da vida social, contando com as formas antigas de funcionamento mental.

Desse modo, a adolescência pode ser vista como uma fase caótica, de comportamentos estranhos, quase beirando as patologias, mas que estariam fadados a desaparecer logo, ao despertar do "adulto". A adolescência é considerada como uma passagem, uma estranha vivência onírica que se desmancha ao longo do tempo.

Contudo, a prática clínica nos mostra que não é bem assim. Lidar com adolescentes em análise (ou em psicoterapias de base analítica) implica conter um momento turbulento, de características tão específicas que tentar interpretá-lo apenas como nova forma dos conflitos infantis forjados em seus objetos parentais (primários) parece não dar conta de toda a carga posta em movimento na época adolescente; parece não bastar, na clínica, apenas configurar as identificações projetivas na figura do analista, reviver antigos núcleos de fantasia infantis na transferência, tentar recompor a turbulência somente em termos de crescimento linear e dentro de um setting mais ou menos liberal (porque, como sabemos, o adolescente transgride a regra de todos os modos).

O adolescente parece implodir todo esse mundo infantil; não se pode reconhecer nele a criança antiga.

Algo vai se transformar e o desconhecido começa a acontecer.

É importante salientar o papel desse exato momento da puberdade, pois é nesse processo que ocorre o aparecimento dos eventos corporais que darão início à percepção mental da existência do corpo novo que entra em cena, com toda a sua carga de turbulência e emoções; é aí que se origina a nova conversa interna corpo-mente, cuja dialética se estenderá para sempre.

É, como sabemos, exatamente neste ponto que o adolescente pode falhar. Algo não ocorre; a passagem não pode ser vivida; a vida parece transformar-se na busca incessante de um sentido novo que, quando não encontrado, reverte-se em patologias graves, como anorexia, bulimia, depressão, suicídio, toxicodependências, esquizofrenias, pensamentos delirantes etc.

O adolescente, aprisionado num sistema inteiramente desconhecido de novas exigências vitais, internas e externas, torna-se quase inatingível. Como alcançá-lo? Como fazer viver, na clínica, essa tragédia interna específica? E como imaginar o adulto possível? Que relação é essa, o adolescente tendendo ao adulto, que pouco é estudada? Fala-se sempre muito mais da passagem da infância para a adolescência do que da adolescência para o resto da vida - como se ela se desfizesse no ar. E, no entanto, como podemos observar, se esta adolescência não for vivida dentro de sua especificidade, suas problemáticas irão continuar em ação, reaparecendo na análise de adultos. Parecem indicar, nesse âmbito, uma lacuna, uma ignorância, uma impossibilidade. Muitas das "queixas" adultas parecem ser indícios de uma história adolescente não experimentada.

Vou tentar resumir, dentro do possível, um modo de pensar e debater a adolescência, pois daí parece decorrer sua relação com a vida adulta. Trata-se de uma teoria não muito conhecida, atual, mas que introduz uma ideia inquietante e polêmica sobre o desenvolvimento mental, com visíveis consequências na prática clínica.

Refiro-me às formulações de A. Ferrari, em seu livro Adolescência: o segundo desafio (1996), que inauguram uma vertente, a meu ver original, no estudo da adolescência. É claro, como toda hipótese teórica psicanalítica, pode ser debatida e questionada; mas, quando uma ideia pode abrir novos horizontes, é interessante conhecê-la.

Partindo da análise de adolescentes (principalmente dos quadros mais graves), o autor nos propõe que a adolescência é um novo momento na história da estruturação mental. Para entender isso, é necessária uma rápida visão sobre sua teoria do objeto originário concreto (ooc) (Ferrari, 1995), em que postula que a mente é chamada a funcionar, no momento do nascimento, pelas emanações corpóreas: físicas, sensoriais e emocionais. É através das vivências desse corpo inaugural que a vida mental se inicia, para dar conta do caos recém-nascido, facilitada pela função catalisadora materna.

Aos poucos, o mental vai pondo o corpo em eclipse, sem que ele nunca desapareça.

Assim sendo, o primeiro objeto para a mente é o próprio corpo, que ele chama OOC. E é a mãe, por meio de seu próprio corpo (ooc) posto em ação novamente pela experiência corpórea da gravidez, que atribui e transmite, pelos cuidados físicos (maternagem), o conhecimento mental para as funções corpóreas, fonte das primitivas angústias. A mente se instala. É, pois, um conceito amplo de rêverie, em que o corpo materno (abrangendo sensações e emoções), assim como sua mente, entram em conjunção para a função catalisadora. Estabelece-se, então, um quadro mental em que este modelo corpo-mente cria uma relação intrapsíquica, vertical, em que se originam as indagações específicas daquele indivíduo, sua vertente de originalidade, porque emanam daquele corpo específico.

Ao lado dessa vertente vertical, o espaço mental se completa com a coordenada horizontal, que diz respeito às relações com os objetos e o mundo exterior, simbolizado nos primordios pela relação mãe-criança (boca-seio), em que a mãe inaugura o primeiro vínculo com esse mundo exterior. Neste nível, a figura materna é o primeiro objeto da criança, tal como a definem as teorias das relações objetais de Klein, Bion etc.

Desse modo, a teoria de Ferrari sugere uma vida mental não linear, um espaço em que as coordenadas inter e intrapsíquicas vão ordenar as relações com o mundo e consigo mesmo num determinado ponto. Do relativo equilíbrio das duas vertentes, teremos uma maior ou menor harmonia psíquica.1

Essa concepção da vida mental, ainda que possa significar uma nova hipotese teorica a ser pensada, me parece de grande utilidade clínica, pois pode modular as interpretações não só das angústias próprias da adolescência, mas também de outros momentos da vida, quando o corpo sai novamente do eclipse, isto é, torna-se outra vez o objeto fundamental para o mental, que vai ter que configurar uma nova relação corpo-mente. Trata-se de momentos existenciais tais como: doenças, a gravidez, o envelhecimento e o tempo terminal da vida.

Partindo dessa concepção, Ferrari postula, então, dentro da relação analítica, a necessidade de lidar, no fenômeno observado, com as duas vertentes do funcionamento mental, fazendo com que a função do analista seja privilegiar ora a vertente intrapsíquica, com interpretações que visam esclarecer o analisando quanto aos seus modos e formas de funcionamento mental, suas emoções, suas teorias específicas sobre si mesmo (função catalisadora do analista, em que ele não é o objeto do clima emocional), ora analisar a relação transferencial propriamente dita, em que o analista se configura como um objeto da vida mental do paciente, anunciando e interpretando o jogo das relações objetais. É claro que tudo isso ocorre simultaneamente, cabendo ao analista o timing para o tipo de interpretação adequado ao momento.

Abri este parêntese para poder tornar mais clara a ideia proposta para a adolescência como um novo momento estruturante da vida mental. Vale a pena assinalar que a concepção de adolescência que abordo neste trabalho vem enriquecer não só minhas leituras de estudos específicos sobre o tema como também conceitos valiosos que me acompanham em minha vivência clínica, especialmente na análise de adolescentes. Refiro-me, principalmente, aos conceitos de angústias esquizoparanoides e angústias depressivas de Klein (1957/1991a, 1946/1991b, 1935/1996), assim como aos conceitos de investimento, desinvestimento e reinvestimento (e sua teoria do vazio) de Green (1993).

Partindo da analogia com o nascimento, ocorre o "nascimento", na adolescência, de um novo corpo, e a mente, agora já existente, terá que rearranjar-se para lidar com as angústias emergentes ocasionadas pelas metamorfoses corporais a partir da puberdade. O adolescente, pois, terá de ir ao encontro de um outro corpo de si mesmo, ao qual, agora, sua própria mente deverá dar algum sentido.

É esta tarefa que, no entender de Ferrari, vai transformar a adolescência num segundo desafio, colocando a problemática do corpo nascente como causa de novas estruturações e defesas para fazer frente às novas angústias.

Assim sendo, a mente adolescente terá que dar novas respostas ao problema da aceitação do próprio corpo, da sexualidade, do conflito edipiano (que, para o autor, colocará, daqui para frente, o problema da identidade de gênero) e da virtualidade da força corporal, complicando o problema da violência. Pode-se ver, nestes elementos, todo o trabalho psíquico necessário para fazer frente às transformações específicas dessa primeira fase adolescente: criar um espaço mental que dê sentido a este corpo emergente. Este momento necessita um intenso investimento libidinal, capaz de ultrapassar a confusão e o terror que toda configuração biológica impõe ao crescimento. Por outro lado, será preciso suportar a crítica interna e externa que se estabelece segundo os padrões culturais de uma estética imaginária. Nos nossos dias, por exemplo, a aparência corporal tomou tal proporção que o corpo pode se tornar, para o adolescente, um estigma não metabolizável. Além disso, considerando-se o vértice horizontal, o adolescente vai ter que mergulhar e enfrentar o mundo extrafamiliar, as exigências que a realidade vai lhe cobrar, com as consequentes angústias quanto às suas possibilidades de viver e conviver, de realizações pessoais, de conseguir conquistar seu lugar de vida. Trata-se, portanto, de criar uma configuração egoica, uma identidade que deverá, necessariamente, desembocar num contrato com o social, substituindo, daí para frente, a família de origem como referente fundamental. Enfim, vir a ser homem ou mulher adultos.

Como a mente adolescente vai estar diante do fato de ter que elaborar estas vivências agudas, sem ter ainda uma função de pensamento capaz de resolver, simbolicamente, as equações vitais (passagem para o adulto), postula-se que, para o adolescente, o saber e o conhecer vão passar, necessariamente, pela experiência do fazer. O adolescente conhece enquanto faz e, desse modo, fica implícito que a "atuação" do adolescente não visa afastar do conhecimento, mas sim a busca real desse conhecimento, que de outro modo não poderia vir a ser incorporado como experiência mental.

A ausência deste fazer reverterá em grandes inibições na vida adulta, pois a mente não terá metabolizado as formas de enfrentar os desafios do viver. Contudo, este é justamente o aspecto mais assustador da adolescência, tanto para os jovens como para os adultos ao seu redor. O adolescente é escalado para um jogo do qual não conhece as regras, ou melhor, em que as regras deverão ser criadas após a longa batalha com o desconhecido, com suas doses, às vezes insuportáveis, de perigos internos e externos. É este agir criativo que vai moldar a luta incansável pela identidade possível.

Assim, podemos dizer que nada mais resta ao adolescente que enfrentar o desafio da adolescência. Caso ele se negue, ou ocorrerá a manutenção de formas infantis de funcionamento mental, ou uma imitação das formas adultas externas que ele apenas mimetiza.

Negar-se à experiência adolescente vai perturbar toda a vivência "adulta", uma vez que as formas eficientes e originais de resolução do viver não foram equacionadas pela dor da experiência. A vida adulta resultante dessa negação nada terá a ver com a qualidade criativa da experiência que se fez saber. É neste momento que os adultos se sentem totalmente desamparados, buscando na análise uma segunda chance de reviver as experiências.

O adolescente, pois, está fundamentalmente ocupado na tarefa de construir a si mesmo - e, poderiamos acrescentar, para o resto de sua vida. Ocupado com um corpo que se transforma, afastado do mundo mágico e protegido da infância, inundado pela chamada realidade, que o obriga a responder a novas perguntas, vai se debater, e é natural, com as angústias e inseguranças próprias. Sabemos, por exemplo, o quanto é problemática a aceitação do corpo sexuado quando da construção da identidade sexual. A confusão das fantasias homo e heterossexuais faz, muitas vezes, com que o adolescente se recuse a viver essas emoções, refugiando-se num corpo assexuado em que nenhuma escolha é possivel. Sabemos também que, nesse momento dramático, para poder começar a responder às novas exigências vitais, o adolescente precisa desinvestir seus objetos primários de sua aura edipica e reinvestir essa energia nos novos objetos que aparecem na cena social. Caso isso não aconteça, é o vazio que se estabelece, e a vida mental e emocional se vê coartada.

Ter que descobrir a realidade de seu corpo, do mundo relacional, dos projetos identificatórios sexuais, na sequência da problemática edipiana juvenil, é uma experiência que, muitas vezes, assume um caráter de confrontação, não apenas no sentido de oposição, mas como função de descoberta pessoal e original de si mesmo no projeto de crescimento. Podemos acrescentar que o que vai ser posto em jogo na adolescência, ao lado da equação fazer-conhecer, será a responsabilidade pessoal pelo destino da trajetória escolhida.

As formas mentais novas, produzidas na adolescência, são, conforme a teoria, movimentos originais de individualidades especificas não referidos apenas às angústias especificas infantis. É um modo de pensar útil para ser verificado na prática clinica.

É claro que, também deste ponto de vista, certas formas de funcionamento mental terão características desarmônicas (se não as quisermos chamar de psicóticas). Mas será preciso diferenciar, acuradamente, uma função própria da adolescência das verdadeiras disfunções patológicas.

Podemos rastrear, dentro da teoria, como próprios da adolescência, por exemplo, certo grau de angústias claustrofóbicas e agorafóbicas (corporalmente vividas), a protodepressão, a fuga da função do pensamento para a área da ilusão (ideias não destinadas a serem concretizadas) e suas respectivas defesas: bulimia, anorexia, isolamento, cisão e delírio. É o excesso desses fatores citados que irá constituir as graves patologias.

Vejamos alguns exemplos: pensemos numa jovem anoréxica, pensemos em alguém que se nega a viver a experiência corporal com suas especificidades femininas. Podemos imaginar sua profunda recusa em admitir um corpo feminino, algo que a aprisionaria dentro de um destino que não pode assumir a responsabilidade de ser mulher.

Pensemos numa relação corpo-mente claustrofóbica, em que a vivência mental é estar aprisionada dentro de um corpo que não é aceito e em que, portanto, o aparecimento do feminino só poderá ser impedido pela recusa a alimentá-lo. A anorexia seria uma defesa ao aparecimento da feminilidade. O corpo desaparece e parece transformar-se apenas em uma entidade mental sem necessidades fisiológicas. Vai ser manipulado enquanto esta mente não for capaz de aceitá-lo na sua contingência física. A jovem anoréxica, ocupada em deter a própria feminilidade, é o quadro desarmônico grave das preocupações normais dos temores femininos da adolescência, vivida com angústias de claustrofobia. Prisioneira em seu próprio corpo, ela leva ao máximo o poder de detê-lo, pondo entre parênteses as funções corporais. Consegue a anulação da menstruação, da sensação de fome etc. obrigando este corpo a desempenhar ora um papel unissexual, ora um corpo infantil, desenvolvendo mentalmente uma aceitação claustrofílica: satisfaz-se em ocupar o menor lugar no espaço.

É claro que, nestes casos extremos, estamos beirando a morte real, em que a mente aprisionada na ilusão de controle declara não só seu temor à sexualidade, mas também sua intensa destrutividade voltada contra o próprio corpo.

Como interferir neste processo?

Ou neste outro, em que um quadro normal de um jovem adolescente, a protodepressão (tédio adolescente), pode ser levado às raias da exacerbação? Sabemos que o adolescente está sempre às voltas com a angústia ocasionada pelo binômio potência-impotência nas suas atuações no mundo. Cada um terá que encontrar seus limites e capacidades potenciais lidando com as frustrações e adequações ao seu viver possível. Esta busca dos limites é a tarefa da experiência-conhecimento adolescente. Mas nos casos extremos, em que entra como coringa mortífero a ilusão de onipotência, os limites possíveis não poderão ser vividos como experiências adequadas e serão incorporados como impotência total. Diante de experiências radicais, a mente adolescente poderá não se satisfazer com os limites funcionais, qualificando então, como incapacidade total, os verdadeiros potenciais de realização. O isolamento, as toxicodependências ou o suicídio poderão ser a saída falsamente defensiva desse estado mortífero.

Outro exemplo destas formas adolescentes do viver está representado pela identificação sexual a ser assumida. Este destino sexual é pensado aqui como uma tarefa adolescente, portanto, não apenas referido ao destino de amor e ódio às figuras parentais vivido no Édipo infantil. Neste modelo, o conflito edipiano é visto como uma constante fonte de experiências e vivências no decorrer de toda a vida, com todas as figuras identificatórias que forem atraídas para o modelo afetivo do complexo, cabendo à fase adolescente o começo da responsabilidade pela assunção ou não da identidade sexual consoante ao próprio corpo. Este conflito, que às vezes assume dimensões extremas, deverá ser constantemente encarado a partir da adolescência e no decorrer de toda a vida.

Outro exemplo de desarmonias próprias da adolescência está ligado às dificuldades de assunção da realidade, levando a mente a frequentes cisões para não ter que lidar com os conflitos propostos pelo crescimento. Este repúdio da experiência leva também à criação de delírios para impedir a invasão dolorida da experiência real. Em quadro próprio da adolescência, esta área estaria envolvida apenas com a defesa, representada pela ilusão passageira capaz de manter em funcionamento o aparato mental enquanto a dor não for elaborada.

É o excesso e falha do mecanismo de ilusão que leva às defesas extremas de cisão e delírio (psicoses), impossibilitando a formação de pensamento ou aprisionando o sistema no binômio ilusão-desilusão. Em todos estes quadros agudos, mostram-se claramente as formas de funcionamento mental próprias da adolescência e suas patologias (não referidas às fantasias infantis).

Fica evidente, pois, que estas experiências, que irão conduzir ao futuro adulto, estão sempre beirando o perigo, o desvio, a exacerbação, mesmo na sua vivência normal. É a tarefa adolescente. A recusa em vivê-las decretará restrições à qualidade de vida adulta.

O adolescente, portanto, tem que "inventar", "construir" sua própria originalidade, sem refugiar-se na defesa mágica da infância, que lhe permitia o tempo lúdico para elaborar conflitos. O adolescente "age" como resultado de um impulso que, partindo do corpo, o impele a aventurar-se no perigo de viver.

Assim, será necessário, na clínica de adolescentes ou de adultos em que detectamos este vazio de sua experiência, interpretar como ponto de urgência as angústias do ponto de vista do vértice vertical, propondo ao paciente hipóteses sobre o conhecimento de si mesmo, de seu corpo, de seus modos e formas de funcionamento mental. Esta primazia dada à vertente intrapsíquica leva o adolescente a encontrar, rapidamente, a continência do analista, equivalente à função catalisadora materna, que permite tornar pensáveis as experiências internas extremamente aterrorizadoras.

Desse modo, ele (o analista) não se proporá, imediatamente, como objeto a ser confrontado. Quando as emoções trazidas à tona puderem ser metabolizadas, serão mais compreensíveis, para o adolescente, as vivências transferenciais aí envolvidas.

Constrói-se, assim, o espaço da transferência no timing justo para ser elaborado, com todo o jogo das identificações projetivas incluído.

Destacaríamos então, no primeiro caso, a necessidade de interpretar, com urgência, a dificuldade da mocinha anoréxica de encarar seu ódio ao corpo da mulher, à sua feminilidade e sexualidade, vivendo neste corpo as angústias claustro e agorafóbicas de crescimento, antes de interferir no sentido de uma interpretação horizontal, visando, por exemplo, ataques à figura materna ou a sua representação no analista.

Esta vertente horizontal, transferencial, existe, mas urge priorizar e colocar primeiro sobre eclipse o corpo-sede de sensações e emoções violentas. Acreditamos ser de maior utilidade a esta mente totalmente ocupada em dilacerar-se, numa relação corpo-mente mortífera, poder enfrentar, logo de início, sua relação com este objeto-corpo - em perigo, muitas vezes, de morte.

Em todos os outros casos em que se pode detectar a relação vertical - conflitos masculinidade-feminilidade na identidade de gênero, conflito potência-onipotência-impotência nos quadros depressivos, cisão e delírio nas áreas de distúrbios do pensamento -, acredito ser clinicamente mais operativo dialogar com o paciente do interior dele mesmo, tentando aos poucos tornar passível de pensamento a experiência própria de cada indivíduo. Neste aspecto terapêutico, o analista serve apenas de intérprete entre as emoções que invadem e as elaborações possíveis, fazendo com que possa ocorrer, em dado momento, a comunicação espontânea entre estas duas funções de si mesmo.

O processo envolve poder colocar em eclipse as áreas de intensa ebulição interna do paciente, facilitando o espaço para a emergência transferencial da figura do analista. É comum, nos relatos da clínica, ouvir dizer, por exemplo: "O paciente não me escuta; eu falo e parece que não adianta, que nada acontece". A hipótese é que o paciente não pode ouvir porque seu barulho interno é de tal monta que a cena psíquica não comporta, ainda, colocar sob os holofotes a figura do analista.

Este modo de viver a relação terapêutica analítica, urgente e necessária na fase adolescente, estende-se para a análise de adultos, principalmente quando detectamos estas áreas adolescentes invadindo a chamada vida adulta em termos de fantasias e ilusões não resolvidas. A experiência adolescente não pode ser pulada, driblada ou ignorada. A recusa da aventura adolescente, com suas áreas de insegurança, rebeldia, temores, vai tornar o adulto prisioneiro de um espaço limitado de vida, em que o vazio de experiência obrigaria ou a um excessivo funcionamento racional, ou a uma entrega claustrofílica ao modelo de vida que não se expande e se burocratiza.

É neste contexto de vidas falhadas ou quase totalmente destruídas que a psicanálise nos faz falar de conhecimentos que, além da elaboração de conflitos, vão implicar a assunção da própria individualidade e da própria originalidade na aventura chamada vida.

 

Nota

1 O autor vai aprofundar e desenvolver essas premissas fundamentais em seu livro A aurora do pensamento (Ferrari & Aldo, 2000), em que estabelece a convergência das duas vertentes como uma rede de contato, originada pela constante interação das sensações/emoções com as correspondentes potencialidades de pensamento. Define assim o espaço mental.

 

Referências

Ferrari, A. B. (1995). O eclipse do corpo: uma hipótese psicanalítica (M. Mortara, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Ferrari, A. B. (1996). Adolescência: o segundo desafio (M. Mortara, Trad.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Ferrari, A. B. & Aldo, S. (2000). A aurora do pensamento: do teatro edipiano aos registros de linguagem (M. Mortara, Trad.). São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Green, A. (1993). El adolescente en el adulto. Psicoanálisis, ApdeBa, 15(1),39-68.         [ Links ]

Klein, M. (1991a). Inveja e gratidão. In M. Klein, Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963) (E. M. da Rocha Barros & L. P. Chaves, Trads., pp. 205-267). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1957)        [ Links ]

Klein, M. (1991b). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In M. Klein, Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963) (E. M. da Rocha Barros & L. P. Chaves, Trads., pp. 17-43). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1946)        [ Links ]

Klein, M. (1996). Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos. In M. Klein, Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945) (A. Cardoso, Trad., pp. 301-329). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1935)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Myrna Pia Favilli
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Recebido em 29.02.2016
Aceito em 12.03.2016

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