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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

EM PAUTA

 

Corpo como obra de arte: tatuagem, clínica e crítica

 

The body as an artwork: tattooing, clinical practice, and philosophy

 

El cuerpo como obra de arte: tatuaje, clínica y crítica

 

 

João Frayze-Pereira

Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Professor livre docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo

Correspondência

 

 


RESUMO

Há relação entre tatuagem e simbolização? Para refletir sobre essa questão, considera-se: (1) a tatuagem no campo da cultura; (2) uma situação clínica em que o ato de tatuar se fez presente; (3) a aproximação entre corpo e obra de arte, tendo em vista o conjunto das características que os definem; e (4) a relação entre tatuagem e ordem simbólica a partir da perspectiva do corpo reflexivo.

Palavras-chave: corpo reflexivo; tatuagem; símbolo; arte; psicanálise implicada.


ABSTRACT

Is there a relationship between tattoo and symbolization? In order to study this issue, the author has taken into account the following topics: (1) tattooing in the cultural field; (2) in the clinical practice, a situation in which the act of tattooing took place; (3) the closeness between body and artwork, in terms of their defining (set of) features; and (4) the relation between tattooing and symbolic order from the perspective of the reflective body.

Keywords: reflective body; tattoo; tattooing; symbol; art; involved psychoanalysis.


RESUMEN

xiste una relación entre el tatuaje y la simbolización? Para reflexionar sobre esta cuestión se considera: (1) el tatuaje en el campo de la cultura; (2) una situación clínica en la que el acto de tatuarse estaba presente; (3) el acercamiento entre el cuerpo y la obra de arte, teniendo en cuenta el conjunto de características que los define; y (4) la relación entre el tatuaje y el orden simbólico a partir de la perspectiva del cuerpo reflexivo.

Palabras clave: cuerpo reflexivo; tatuaje; símbolo; arte; psicoanálisis implicado.


 

 

Para contextualizar este escrito, lembro que nos dois últimos congressos da Fepal, em São Paulo e em Buenos Aires, apresentei trabalhos cujo propósito era analisar a questão da tatuagem como fenômeno que pode aparecer na clínica com diversos significados (Frayze-Pereira, 2012, 2014). Além disso, como orientador de um aluno na USP, com o apoio da Fapesp, realizamos, em 2013, uma pesquisa de campo com tatuadores urbanos - indivíduos que são ao mesmo tempo tatuadores/tatuados, sujeitos/objetos -, com o objetivo de examinar a sua percepção e elaboração do próprio trabalho (Oliveira & Frayze-Pereira, 2014). No sentido de uma ampliação temática da linha de pesquisa que desenvolvo na usp, reconheço a importância desse conjunto de estudos, assim como os trabalhos teórico-clínicos que recentemente apresentei em reuniões científicas da SBPSP, um dos quais foi publicado pela rbp (Frayze-Pereira, 2015). A reflexão condensada neste artigo também pode ser considerada como mais um passo nesse percurso, cujo propósito é pesquisar não apenas a tatuagem, mas o corpo humano e suas formas de expressão.

* * *

Inicialmente, relembramos o que todos sabem: desde os primórdios da história da arte, os seres humanos se interessaram por representar o corpo humano (Frayze-Pereira, 2015). Em várias partes do mundo - por exemplo, nas cavernas de Altamira, Lascaux e Chauvet -, já se encontram registros antiquíssimos dessas representações. Ao longo da história da arte, tais formas se multiplicaram de modos diversos. No entanto, cabe lembrar que, na arte contemporânea, o corpo deixa de ser sistematicamente representado e passa a ser apresentado como um objeto que pode ser tela, pincel, moldura e matéria viva dos trabalhos. Trata-se de uma tendência que já se manifesta nas décadas de 1940 e 1950, com as invenções de Jackson Pollock e de Yves Klein. Porém, sobretudo na Europa, ela é radicalizada por artistas que farão um trabalho de crítica violenta à sociedade pós-Segunda Guerra Mundial, usando os próprios corpos de modo transgressivo, engendrando uma poética conhecida como body art (Jones, 1998). Para esses artistas, o pensamento plástico sobre as relações de dominação-subordinação entre classes sociais, grupos e indivíduos deve se exercitar num campo cujo núcleo é o corpo, antecipando imaginariamente algumas ideias de Michel Foucault (Geay, 1998, p. 44). Também, recusando a mercantilização da arte e rearticulando a arte e a vida, assim como a relação entre indivíduo e corpo próprio, ainda que seja necessário coagir o corpo a manifestar sentidos através da dor - física ou psíquica -, tais artistas mostram de maneira cruel a fragilidade da existência e engendram a forte associação entre poética e luta micropolítica. Ou seja, mais do que instaurar a desesperança entre os artistas, as duas guerras mundiais mostraram aquilo que a racionalidade humana foi capaz de fazer - entre outras consequências traumáticas, condenar os artistas ao silêncio. Nesse sentido, a pergunta subjacente às propostas de muitos desses artistas é a seguinte: que tipo de arte é possível fazer depois da brutalidade das guerras? A resposta é - uma arte crítica. E, ainda que seja efêmera, a esperança é que ela permaneça em nossa cultura sob a forma de indícios - fotografias, vídeos e narrativas - de uma ação transgressiva que aconteceu. Esse aspecto é fundamental, pois, como escreveu Freud (1916/2010),

superado o luto, perceberemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta da sua precariedade, reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes. (p. 252)

No entanto, não é em toda parte do mundo que a body art aconteceu. E, também, não basta a um artista trabalhar com o corpo para ser denominado body artist. No Brasil, por exemplo, Lygia Clark e Hélio Oiticica propõem ações corporais que não se filiam a essa poética. Mas Antonio Manuel, ao propor o próprio corpo como obra, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1970, questionando os critérios de seleção e julgamento das obras de arte, permite certa aproximação (Canejo, 2006). Ou seja, com o sentido de protesto contra o sistema político, artístico e social em vigor, após o AI-5 ter interditado grande parte das vias de comunicação artística, essa performance - O corpo é a obra - é consonante com a posição crítica, filosófica e política dos body artists. Claro está que tais artistas deliberadamente não propõem a representação de coisa alguma, mas apresentam, aos olhos de um público que só quer diversão, aquilo que se passa ao seu redor e que ele não quer ou não pode ver. Daí o caráter excessivo das propostas que interrogam a dor, a solidão, o absurdo, a violência, o vazio, o poder disciplinar presentes na vida coletiva. Mas, como todas as demais poéticas contemporâneas, a body art também deixa claro que, na arte, o que importa é mais o projeto que a norteia do que o resultado como bela forma. Então, sem o conhecimento do processo, não é possível apreender o significado do que é exposto. E, ao se examinarem os projetos body art, conclui-se que não são catárticos nem espontâneos, mas elaborados conceitualmente com recursos encontrados na filosofia e na história da arte, nas ciências e na tecnologia. O que chama a atenção, contudo, é a força atual dessa poética, que não só é legitimada nos espaços consagrados da arte, como museus e galerias, como conta com a participação de inúmeros artistas que refletem sobre o lugar do artista no mundo atual (Jones, 1998).

No entanto, ao serem confrontados com esse tipo de proposta, é comum que os espectadores se manifestem de um modo negativo, com comentários que a desqualificam (Frayze-Pereira, 2005/2010, p. 307). Entre tais espectadores, encontram-se alguns psicanalistas, como Alessandra Lemma (2010), que, se não chega a questionar o valor artístico do trabalho desses artistas (p. 23), entende um recurso plástico como a tatuagem como um fenômeno indicativo de algum tipo de perturbação psíquica (p. 149), como um modo de performar funções inconscientes relacionadas a dificuldades no processo de simbolização daqueles que aderem a ela (p. 170). Porém, esse modo de realizar a psicanálise, aplicando-a à tatuagem (assim como à escarificação, ao branding, ao body-piercing), é uma operação intelectual, recorrente entre os psicanalistas quando aplicam a psicanálise às manifestações culturais, reduzindo os fenômenos à condição de ilustração da teoria da qual o intérprete parte para interpretá-los. A reflexão contida neste artigo, entretanto, segue em outra direção. Ela tem como ponto de partida a seguinte pergunta - o que é a tatuagem?

 

Tatuagem na cultura

Como se sabe, a prática de tatuar é antiquíssima. Entre os primeiros documentos históricos, há escritos de Heródoto - o chamado pai da História - que se referem a uma antiga cultura do norte europeu denominada pictus. Nessa cultura, homens e mulheres não se tatuavam por vaidade, mas por acreditarem que as tatuagens ficavam impressas na alma, permitindo que, após a morte, pudessem ser identificados por seus antepassados. Mas, além dessa função simbólica, as linhas desenhadas, entrelaçadas e complicadíssimas, também expressavam a interconexão de todas as coisas sobre a terra e, no caso dos homens, serviam para distrair o inimigo, desviando o seu olhar. A tatuagem possuía, portanto, a função de proteção simbólica (Miranda, 2007).

Mais próximo de nós, historicamente, quando escreveu sobre a origem do homem, Darwin (1859/1968) observou que, desde o Polo Norte à Nova Zelândia, o uso da tatuagem era corrente, com maior ou menor variação de técnicas, resultados e significados. No entanto, se a prática de tatuar é antiga, a palavra tattoo é mais recente. De fato, o inventor da palavra foi o capitão inglês James Cook, explorador e cartógrafo que, no século XVIII, tendo navegado pelo Pacífico, escreveu em seu diário a palavra tattow, uma representação do som feito durante a execução da tatuagem pelos nativos com os quais entrou em contato, que utilizavam ossos finos como agulhas, nos quais batiam com uma espécie de martelinho de madeira, para introduzir a tinta na pele (Araujo, 2005). Só a partir desses registros, já é possível concluir que a tatuagem foi inventada várias vezes - em universos criativos diversos e com muitos propósitos, em diferentes momentos e partes do planeta.

No campo da arte rupestre, por exemplo, a pesquisa arqueológica encontrou vestígios dessa prática cultural. E levantou a hipótese de que, nos primórdios, marcas involuntárias adquiridas em guerras, lutas e caças geravam reconhecimento ao homem que as possuísse, pois eram expressões naturais de força e vitória. Então, colorir a pele tornou-se um recurso que os homens passaram a usar de modo voluntário, nas culturas primitivas e arcaicas, para conquistar a proteção divina e afirmar hierarquicamente a posição social dos indivíduos na comunidade. Nessa medida, abriu-se espaço para a criação de desenhos não apenas figurativos, mas também abstratos, com o uso de espinhos com os quais se introduziam tintas vegetais na pele. De fato, com a descoberta das múmias, os pesquisadores puderam verificar que a tatuagem acompanha o homem desde a Antiguidade. Considerando que "a múmia é o homem reduzido à sua eternidade" (Herrmann, 1999, p. 62), a tatuagem associada a ela tornou-se um vestígio plástico da humanidade que se eternizou. Com efeito, conservada congelada em um bloco de gelo, a múmia mais antiga do mundo data de 5300 a.C., apresentando tatuagens ao longo da coluna dorsal e desenhos tribais ao longo das pernas. Muitas outras foram encontradas, com tatuagens de conteúdo mágico ou médico, no vale do Nilo. Mas o achado arqueológico mais impressionante, dado o seu ótimo estado de conservação, aconteceu no Peru: a múmia de uma mulher da cultura mochica, século IV a.C.; seu corpo ainda se encontra ricamente recoberto por tatuagens, bastante visíveis, cujas formas, segundo os estudiosos, simbolizam a beleza e a fertilidade da terra, mas também dotes de maga e adivinha (Mujica et al., 2007). Porém, essa articulação entre estética e religião não é universal. Quer dizer, no contexto das sociedades tribais, além dos aspectos estético, mágico e ritual da tatuagem, também deve ser destacada a recorrência de dois outros significados: o político e o existencial.

O etnólogo Pierre Clastres (2003), por exemplo, que estudou os guayaki, nativos de certa região do Paraguai, afirma que, nas sociedades primitivas, avaliar a resistência pessoal e proclamar um pertencimento social "são as duas funções evidentes da iniciação como inscrição de marcas sobre o corpo. Mas estará realmente aí tudo o que a memória adquirida na dor deve guardar?" (p. 198). Mais amplamente, ao analisar a dolorosa prática de tatuar, associada aos ritos de passagem, Clastres conclui - a lei que os homens aprendem

na dor é a lei da sociedade primitiva, que diz a cada um: Tu não és menos importante nem mais importante do que ninguém [...] [isto é,] a lei primitiva, cruelmente ensinada, é uma proibição à desigualdade de que todos se lembrarão. (p. 199)

Na medida em que "toda lei é escrita", as cicatrizes desenhadas sobre o corpo constituem o texto inscrito da lei primitiva, uma "escrita sobre o corpo" que enuncia: "'Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso.' E essa lei não separada só pode ser inscrita num espaço não separado: o próprio corpo". Afinal, "a lei escrita sobre o corpo é uma lembrança inesquecível" (p. 200).

Mas, além desse sentido evidentemente político, há uma dimensão mais ampla, existencial, que também não pode ser esquecida. Lévi-Strauss (1955/1957), ao estudar os índios caduveo do Brasil central, evoca a cultura com a qual nossa sociedade tradicionalmente se diverte: o jogo de cartas, pois esses índios assemelhavam-se às figuras do baralho (tais como as sonhadas por Lewis Carroll), com rostos que estampavam desenhos em forma de espadas, copas, ouros e paus. Na cultura dos caduveo,

havia reis e rainhas como os do reino de Alice [...]. E os nobres mostravam sua posição por meio de pinturas corporais [...] ou por meio de tatuagens, que eram equivalentes a um brasão. Depilavam totalmente o rosto, os cilios e as sobrancelhas inclusive, e chamavam com repugnância de "irmãos da ema" os europeus de olhos peludos. (p. 188)

Uma característica desses indígenas é o horror que sentem de serem confundidos com os seres da natureza. Se atualmente os caduveo se pintam apenas por prazer, antes o costume possuía um significado mais profundo. Ou seja, "era necessário pintar-se para ser humano; quem se mantinha no estágio da natureza não se diferenciava do bruto" (p. 195). Lévi-Strauss analisa a complexa estrutura dessa sociedade hierarquizada para compreender o estilo caduveo. Porém, para essa análise, diz o autor, "não basta considerar seu desenho, também é preciso perguntar-se para que serve". Então, "para que serve a arte caduveo?" (p. 202). Em poucas palavras:

As pinturas do rosto, em primeiro lugar, conferem ao indivíduo a sua dignidade de ser humano; elas operam a passagem da natureza à cultura [...]. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à composição segundo as castas, expressam a hierarquia dos status numa sociedade complexa. Dessa maneira, possuem uma função sociopolítica (sociológica). (p. 202)

Além disso, possuem também uma função estética/existencial. Nesse sentido, como observa Lévi-Strauss, esse tipo de cirurgia plástica/pictórica opera uma espécie de enxerto de arte no corpo humano, como hieróglifos que descrevem uma inacessivel idade de ouro cujos mistérios são celebrados pelos nativos ao mesmo tempo que "desvendam a própria nudez" (p. 206 ).

No entanto, se nos voltamos para a civilização ocidental, constatamos que, no período medieval europeu, a tatuagem foi banida por ser considerada uma prática demoníaca e os portadores eram perseguidos, aprisionados e mortos pela Inquisição. Quer dizer, a Igreja católica condenou e excluiu a prática de tatuar. Foi apenas no século XVIII que ela foi reintroduzida pelo contato dos navegantes europeus com as culturas do Pacífico e do Extremo Oriente. Mais ainda: no final do século XIX, a prática se espalhou na Inglaterra, como em nenhum outro local, graças aos marinheiros que a difundiram entre os vários segmentos sociais. Mesmo que a realeza tenha aderido à tatuagem, reintroduzida a partir dos portos, o ato de tatuar permaneceu associado a uma propensão à marginalidade (Thévoz, 1984, p. 80). Entretanto, esse tipo de associação aconteceu não apenas no Ocidente moderno. No Japão, durante a Era Meiji (1868-1912), a vontade do governo de modernizar a vida instituiu a proibição oficial da ancestral prática de tatuar, repressão que durou até meados do século XX. Foi um banimento temporário que alocou a tatuagem no campo das práticas underground e criou uma forte associação com o crime organizado, articulação que dura até hoje. Ao mesmo tempo, acabou atraindo um número crescente de turistas para apreciar a tradicional tatuagem japonesa. Mas não só isso, pois os estrangeiros retornavam às suas casas com fotos e cartões-postais, e também com tatuagens no corpo, como souvenirs. O fato é que a tradição plástica japonesa, extremamente refinada, constituiu uma influência poderosa sobre a prática da tatuagem, conferindo-lhe uma aura de sofisticação e elegância. Os mesmos designs desenvolvidos por grandes artistas japoneses ainda hoje são gravados na pele de muitas pessoas, não apenas no Japão. Quer dizer, a tradição perdura na prática, apesar das tentativas de banimento e exclusão. O que pode surpreender é que os primeiros tatuadores orientais foram originariamente formados em refinados ateliês de gravura que ainda hoje são cultuados por certos tatuadores contemporâneos, inclusive no Brasil.

No entanto, no século XX, constata-se que gradualmente a tatuagem se tornou uma prática comercial, cada vez mais popular. A partir de 1920, nos Estados Unidos, ela se difundiu muito, associando-se às classes socioeconómicas menos favorecidas, aos marinheiros, às prostitutas e aos criminosos. Nos anos 1950 e 1960, sob influência da tradicional tatuagem japonesa, a prática virou mania entre militares e prisioneiros e ganhou o gosto de celebridades de Hollywood. Finalmente, nos anos 1970, uma grande popularização começou quando surgiram, e logo foram banalizadas, as imagens tatuadas de Marilyn Monroe, James Dean e Jimmy Hendrix. É nessa mesma época que a tatuagem entra na moda, lançada pelos surfistas. A partir daí, tornou-se tão popular que a chamada arte na pele, gradualmente, perdeu o estigma marginal que a caracterizava e se tornou presente nos corpos de pessoas de várias idades e classes sociais. De uma simples marca tribal até gigantescos dragões e tigres, elas deixaram a clandestinidade para ganhar as ruas (Araujo, 2005; Moura, 2011). Hoje, no campo da medicina estética, a tatuagem é bem recebida para a recomposição de manchas e cicatrizes; no campo das artes, por sua vez, ela voltou a ser reconhecida, não apenas graças às iniciativas dos tattoo clubs de todo o mundo, que promovem exposições e convenções para a atualização e modernização das técnicas, mas também graças aos próprios artistas contemporâneos que recorrem à linguagem da tatuagem para a realização de trabalhos que questionam padrões de beleza com os quais a cultura do espetáculo constrange os indivíduos, uniformizando as possibilidades da experiência sensível (Thévoz, 1984; Jeudy, 1998; Pires, 2008).

Quer dizer, a tatuagem se tornou linguagem artística exposta nos espaços cultos dos museus, em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, em São Paulo, onde foi inaugurado, em 2004, o primeiro Museu da Tatuagem da América Latina. Entre as mostras mais celebradas nessa última década, é preciso mencionar a exposição histórica Skin and ink (2013), em Los Angeles, no Craft and Folk Art Museum. Mais recentemente, as grandiosas exposições, em Paris, Signes du corps (2005), no Museu Dapper, e Tatoueurs, tatoués (2015), no Museu Branly. E ainda, em São Paulo, no último Carnaval, a Rosas de Ouro marcou o Anhembi com um desfile que tematizou a tatuagem como Arte à flor da pele (2016).

Entretanto, além da condição de linguagem plástica com lugar garantido no campo das artes, a tatuagem também pode ser entendida como mera mercadoria a ser consumida. Nesse caso, ela tem um sentido completamente diferente. Ou seja, na condição de mercadoria, quando o ato de tatuar é apropriado pela mídia, que transforma o corpo do indivíduo numa coisa-instrumento de consumo de massa, ela perde a sua singularidade: desenraizada da tradição e banalizada, entra no circuito do vazio e se torna uma coisa qualquer, como uma camiseta, um jeans, um par de tênis... O caso mais claro e extremo, nesse sentido, é o do top model canadense Rick Genest, que cobriu seu corpo com tatuagens, transformando-se num personagem com a aparência de um morto-vivo, vindo daí o apelido pelo qual é conhecido - Zombie Boy. Esse top model protagonizou o vídeo da linha de produtos Dermablend Professional, uma base corretiva utilizada, por exemplo, no cinema quando a tatuagem de algum ator ou atriz é muito aparente. Mas, ao ver o vídeo que apresenta o modelo tatuado e maquiado, pode-se levantar uma questão, a mesma formulada por muitos artistas contemporâneos que trabalham o tema do autorretrato, isto é: o que seria o original, o que seria a cópia? Considerando a sociedade contemporânea, cultura do espetáculo (Debord, 1967), que cultiva a supremacia da imagem sobre o fato, responder a essa pergunta sobre o real e o simulacro, o mesmo e o outro, com base apenas na aparência dos fenômenos e nas teorias psicanalíticas, não é tarefa simples.

 

Tatuagem na clínica

Sabemos que a clínica psicanalítica é um campo importante para a observação das funções psicológicas diversas que as tatuagens podem ter, correspondentes às fantasias inconscientes que subjazem à motivação do indivíduo para se tatuar. Também sabemos que se pode interpretar a tatuagem de muitas maneiras (Silva, 2012). Por exemplo: como ato que indica uma tendência auto-destrutiva, manifesta por ataques ao corpo; ou então que a relação tatuador-tatuado é de ordem sadomasoquista; ou ainda que a tatuagem seria a manifestação de certa dificuldade do indivíduo tatuado para mentalizar as suas experiências - a tatuagem seria a materialização no corpo de algo que não pôde ser simbolizado. Essas são interpretações possíveis. É fácil discordar delas, argumentando que qualquer expressão humana pode vir a ser sintoma - da tatuagem à moda, e desta à musculação, às quais um indivíduo pode aderir compulsivamente, para ficarmos apenas no plano da composição corporal. Também é fácil concordar com a proposição de que a clínica pode ser um campo privilegiado para a observação e análise da particularidade do fenômeno. Tal proposição, entretanto, não é demonstrável com a aplicação de alguma teoria que, como representação abstrata, seria lançada como uma rede ao objeto, resultando apenas na confirmação do próprio ponto de partida teórico, o que seria uma operação reducionista, típica de toda psicanálise aplicada, que sempre perde de vista a singularidade do outro a ser interpretado. Ao contrário, a singularidade pode ser preservada se considerarmos a perspectiva da psicanálise implicada (Frayze-Pereira, 2005/2010, p. 69), que sempre exige do psicanalista uma atitude receptiva/criativa em relação ao outro, para dele poder ter experiência e, então, propor interpretações.

Nesse sentido, a pesquisa de campo que realizamos com tatuadores residentes na cidade de São Paulo (Oliveira & Frayze-Pereira, 2014) mostrou que, tendo como suporte o corpo, mais especificamente a pele, a maioria dos tatuadores entrevistados assimila a tatuagem às artes plásticas no seu sentido mais ortodoxo, principalmente ao desenho e aos estudos de perspectiva que se aperfeiçoaram no Renascimento. Apenas para dar uma rápida ideia do que encontramos, vale destacar a concepção da tatuagem como arte, formulada por alguns tatuadores entrevistados, com valores ligados à expressão do singular e aos sentidos profundos do espírito humano que os meios técnico-artísticos devem dar forma. Na fala desses tatuadores, seria a perfectibilidade do fazer e a expressão da subjetividade que tornariam a tatuagem linguagem artística. Além disso, é a dupla tatuador-tatuado que confere à tatuagem o caráter de um processo ritual, no qual se explicita a oposição entre dois valores importantes: a autenticidade e a falsidade. O primeiro vincula-se à realização artística a partir de aspectos íntimos e subjetivos, mediados por certa reflexão tanto do tatuador quanto da pessoa tatuada. O segundo relaciona-se ao mercado e aos fins estéticos ditos superficiais. O primeiro aspecto estaria associado à estabilidade de certos valores e o segundo, a certa instabilidade própria do mercado. Ou seja, os tatuado-res marcam a diferença entre o mundo da tatuagem como arte e o mundo da tatuagem como objeto de consumo de massa. Enquanto arte, a tatuagem articularia, do ponto de vista estético, os três momentos intrínsecos ao processo artístico: conhecimento, execução e expressão (Pareyson, 1966). Essa visão dos tatuadores encontra correspondência em certas análises, como a realizada pela psicanalista argentina Silvia Ons (2012):

nada parece perdurar e há a demanda de reinventar-se a cada dia, deixando para trás antigas marcas; em tempos caracterizados como ávidos de novidades, a tatuagem aponta para algo não perecível. Tanto aqueles indivíduos flutuantes em sua vida amorosa [...] quanto aqueles que padecem no mundo atual as consequências de um andar sem bússola são os que apelam à tatuagem para que algo se fixe e não se apague.

Assim, em uma "época líquida de relações instáveis", o valor da prática de tatuar estaria em oferecer um ancoradouro subjetivo profundo, paradoxalmente, na superfície da pele.

Esse paradoxo remete-nos à ideia winnicottiana de fenômeno transicional, que diz respeito a uma dimensão do viver que não depende nem da realidade interna nem da externa, mas se refere ao espaço em que ambas, ao mesmo tempo, se encontram, diferenciando o interior e o exterior. Nesse sentido, com base em minha experiência clínica com alguns analisandos tatuados, fui levado a considerar que uma tatuagem pode expressar um processo de transicionalização. Como sabemos, Winnicott (1975, p. 13 ss.) emprega vários termos para se referir à transicionalidade - terceira área, área intermediária, espaço potencial, local da experiência cultural... E, como também sabemos, independentemente do termo usado, o fenômeno transicional associate à criatividade, e o objeto transicional não precisa encarnar um objeto real, ele pode ser "uma palavra, uma melodia, ou um maneirismo, que adquire uma importância vital para o uso do bebê [...] como uma defesa contra a ansiedade do tipo depressivo" (Abram, 2000, p. 256). Cabe aqui relatar brevemente a situação de uma analisanda cuja análise se estendeu por um período de doze anos, durante o qual, em momentos distintos, tomou a decisão de se tatuar. Sua demanda inicial era relativa a um estado de fraqueza física, sobretudo quando ficava tensa, contrariada, quando suas ações seguiam um curso distinto do que gostaria, gerando nela muita dificuldade para respirar. Acreditava que isso lhe acontecia por ser filha única, muito mimada, infantil. Seu sentimento, segundo ela mesma, era o de ser coagida a cumprir ordens impostas que a sufocavam e a tornavam impotente, sem voz. O seu sofrimento se expressava, justamente, na forma de intensa ansiedade, manifesta nas sessões com a respiração muito ofegante, a ponto de, em certas ocasiões, precisar se levantar do divã e sentar para poder se recuperar e, de fato, não sufocar. Não por acaso, as tatuagens aconteceram nos últimos anos de análise: inicialmente, quando para a paciente ocorreu a diferenciação de si como mulher em relação aos seus pais, bastante dominantes no tocante a ela e que a tratavam como um ser incapaz, sem qualquer autonomia, condenado ao silêncio; depois, quando se divorciou, por sua iniciativa, do marido, que repetia no relacionamento com ela a atitude dos pais; e, finalmente, quando houve o processo de separação do analista, no último mês da análise, dando andamento a um novo projeto profissional e de vida, com um companheiro com o qual constituiu uma nova família. Em cada momento, uma tatuagem foi realizada, sem qualquer conversa prévia com o analista. Mas, como ela mesma reconheceu, durante o processo, houve um fortalecimento de si para que, com formas simbólicas, inscritas em seu corpo, ela pudesse expressar a sua transição rumo à autonomia. De fato, Winnicott (1975) observa que há um momento na análise em que o paciente, havendo experimentado a confiança, necessita separar-se para obter autonomia, e que é apenas através dessa confiança que o espaço potencial começa a existir. Mas a experiência é paradoxal, pois o momento em que há separação é aquele em que o bebê/paciente preenche o espaço potencial com o brincar e a experiência cultural. No exemplo citado, pode-se dizer que, de uma vida unidimensional, vivida em silêncio na superfície das coisas, a paciente passou a uma vida profunda, cheia de possibilidades pessoais e também profissionais. Nesse movimento vertical da análise, se não da própria existência, pode-se dizer também que as tatuagens expressaram simbolicamente a passagem entre uma temporalidade pesada de obrigações a cumprir para outra, mais leve, em que a respiração pôde fluir mais à vontade, assim como a capacidade para pensar a si mesma e falar sobre o mundo. Sem entrar em maiores detalhes clínicos, é possível afirmar que as tatuagens simbolizaram o trânsito entre esses dois tempos. Elas funcionaram como emblemas de uma ruptura de campo (Herrmann, 1999, pp. 15-16), de um campo existencial psíquica e micropoliticamente desgastado. A paciente tornou-se uma mulher ativa e livre, no decorrer de um processo que contou com a participação do corpo - não do corpo material, conforme o entendimento médico-científico, mas do corpo reflexivo, segundo certa compreensão filosófico-crítica.

 

Tatuagem entre clínica, arte e filosofia

Sabemos que é com a descoberta do corpo reflexivo - corpo sensível, mas que simultaneamente é capaz de sentir, um visível-vidente, tocante-tangível, isto é, um ser essencialmente ambíguo, que dissolve e ultrapassa a dicotomia sujeito-objeto - que Maurice Merleau-Ponty, desde as suas primeiras investigações filosóficas até a última, propõe a superação do clássico problema do conhecimento. E também demonstra que é por intermédio do corpo reflexivo que se instaura ontologicamente a simbolização na percepção, na linguagem e no trabalho, portanto, na arte. A propósito, vale a pena citar o autor quando compara o corpo não ao objeto físico nem a uma representação desencarnada, mas antes à obra de arte (Merleau-Ponty, 1945, p. 176). Ele escreve:

A tradição cartesiana habituou-nos a desprender-nos do objeto: a atitude reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do corpo e a da alma, definindo o corpo como uma soma de partes sem interior, e a alma como um ser inteiramente presente a si mesmo, sem distância. Essas definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: transparência de um objeto sem dobras, transparência de um sujeito que é apenas aquilo que pensa ser. O objeto é objeto do começo ao fim, e a consciência é consciência do começo ao fim. Há dois sentidos e apenas dois sentidos da palavra existir:

existe-se como coisa ou existe-se como consciência. A experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um modo de existência ambíguo. Se tentar pensá-lo como um conjunto de processos em terceira pessoa -"visão", "motricidade", "sexualidade" -, percebo que essas "funções" não podem estar ligadas entre si e ao mundo exterior por relações de causalidade, todas elas estão confusamente retomadas e implicadas em um drama único. Portanto, o corpo não é um objeto. Pela mesma razão, a consciência que tenho dele não é um pensamento, quer dizer, não posso decompô-lo e recompô-lo para formar dele uma ideia clara. Sua unidade é sempre implícita e confusa. Ele é sempre outra coisa que aquilo que ele é, sempre sexualidade ao mesmo tempo que liberdade, enraizado na natureza no próprio momento em que se transforma pela cultura, nunca fechado em si mesmo e nunca ultrapassado. (p. 269)

Em suma, nessa dinâmica ambígua entre ser e não ser, o corpo é análogo à obra de arte.

Mas o que entendemos por obra de arte? Resumidamente, uma obra é ao mesmo tempo: (1) um corpo autorreferenciado, uma Gestalt, junção insubstituível de uma forma e de uma significação, composta segundo a vocação de cada artista, por exemplo, com pedras, cores ou gestos, com sonoridades musicais ou verbais; (2) uma organização sensível que tem um duplo aspecto: expressar-se a si mesma como corpo, com espaço e tempo próprios, em sua imanência, e conter, simultaneamente, um sentido transcendente, um mundo desconhecido, mais ou menos vasto de possibilidades de existência, historicamente determinadas, abstratas ou figurativas, sempre aberto às interpretações; (3) um campo ambíguo, ou paradoxal, que não põe em jogo apenas o artista, mas também o espectador que, mais cedo ou mais tarde, irá se deparar com questões (o que procura na obra e o que recebe dela), questões que, transferencialmente, o implicam como integrante do processo artístico (Haar, 1994; Pareyson, 1966; Merleau-Ponty, 1964). Nesse sentido, como uma organização reflexiva, o corpo da paciente antes mencionada abriu-se a uma experiência desconhecida para ela, que, por intermédio das tatuagens, pôde ser gravada no corpo. Esse é o paradoxo da tatuagem: o de ser uma impressão corporal expressiva, uma forma de linguagem simbólica primitiva, análoga à que se pode encontrar no princípio da história da arte quando imagens e letras mostraram-se parentes consanguíneos (Gombrich, 1979, p. 30). Nesse campo primordial, a pele tem um papel fundamental. Com efeito,

se em todos os seus atos expressivos, como a arte, o homem empresta seu corpo, é propriamente em sua pele, e na possibilidade de nela imprimir sentidos, que ele inicialmente expressa e propaga a inesgotável relação ambígua com sua imagem, isto é, com a sua identidade: "se o homem nasce prematuramente, com uma pele muito fina, muito frágil, muito pura e que, por isso, pede uma proteção artificial, esta não é apenas física, mas, sobretudo, simbólica. Quer dizer, ao nascer, o homem fica exposto num duplo sentido: aos perigos, mas também aos olhares. Ele é com toda certeza o único animal que nasce nu e que faz de sua pele uma superfície a pintar - superfície na qual gradualmente se inscreve uma identidade que a tela, epiderme ultrassensível, através da pintura e de toda arte, vai ampliar" [...]. A tatuagem, nesse sentido, pode ser considerada uma das formas mais arcaicas de arte, em uma situação cultural na qual o fazer artístico é inseparável de outras organizações simbólicas e expressivas, como a política e a religião. Pois, se a caverna ofereceu um dos primeiros suportes para a arte, outra tela primordial oferecida ao homem foi sua própria pele, que, talvez, tenha instigado a possibilidade de realizar formas expressivas, por um lado, para conferir eternidade simbólica à sua existência mortal e, por outro, para estabelecer certo contato com o outro [...]. Ora, se passarmos dessa visão inspirada na antropologia para o pensamento freudiano, encontraremos que a pele é ao mesmo tempo sede do movimento pulsional e objeto da pulsão, em especial a pulsão escópica. E de posse de uma dupla vinculação com o desejo próprio e com o desejo do outro, a pele pode ser considerada um órgão básico para tecer uma relação primordial, pois de todos os sentidos é o que mais primitivamente vincula o eu e outro. Nesse sentido, pode-se reforçar a complexidade de uma prática como a tatuagem, pois ela apresentaria articulações imbricadas ontologicamente (corpo-estrutura simbólica), psicologicamente (pele-imagem-identidade) e socialmente (eu-outro, história coletiva-história individual) entre o homem e a cultura [...]. Não é por acaso que, em situações adversas e opressivas, as pessoas vejam na tatuagem uma maneira de resistir ao apagamento de sua identidade, ao mesmo tempo que veem nela uma maneira de produzir uma relação expressiva, formativa, e, num sentido bastante profundo, uma relação estético-artística consigo mesmas, com seus pares e seus antagonistas. (Oliveira & Fray-ze-Pereira, 2014, p. 314)

Em suma, uma tatuagem é interpretável como acontece com o símbolo, isto é, como uma presença ausente que pede interpretação ou, melhor, como uma transcendência aberta ao conhecimento (Merleau-Ponty, 1945, p. 384). A propósito, Paul Ricoeur (1977, p. 83) esclarece que, ao dar o nome Traumdeutung à obra fundante da psicanálise, Freud é preciso: ele não diz ciência, de modo geral, mas interpretação, de modo específico. Isto é, sonho e interpretação são intrinsecamente ligados como todas as demais formações inconscientes - esquecimento, sintoma, fantasma, alucinação, lapso, composições imaginárias que demandam interpretação precisamente por possuírem uma raiz estrutural-simbólica (Pontalis, 1977, p. 19). Assim, se uma tatuagem, mesmo que projetada conscientemente pela dupla tatuador-tatuado, for considerada uma formação do inconsciente, com apoio em Ricoeur, pode-se dizer que ela "só é interpretável porque já é uma interpretação" (1977, p. 83). Ou seja, como afirma Pontalis, "um fantasma inconsciente não pode ser reconstruído senão porque já é uma construção, um agenciamento do inconsciente" (1977, p. 138). E isto acontece porque, como Merleau-Ponty (1942, pp. 174-195) demonstrou, antes de Ricoeur e de Pontalis, toda "ordem humana" é por excelência "ordem simbólica".

Nesse sentido, interpretar a tatuagem como uma manifestação desprovida de significação simbólica, o que seria indicativo de uma reduzida capacidade para simbolizar, no caso da paciente que apresentamos, teria pelo menos duas consequências relacionadas - uma clínica, outra filosófica: (1) seríamos levados a repetir na relação com a paciente a atitude de seus pais e de seu marido, que nela não admitiam qualquer autonomia para existir, portanto, simbolizar; (2) apenas expressaria aquilo que Merleau-Ponty (1964, p. 10) designou pensamento de sobrevoo do real, isto é, aquele tipo de pensamento conceitual, abstrato, desimplicado, próprio da ciência que "manipula as coisas e renuncia a habitá-las". Nesse caso, cada tatuagem seria tratada como uma manifestação superficial, sem qualquer interioridade, dada a representação do corpo pressuposta, isto é, como coisa material, separada da mente. Com efeito, essa possibilidade cartesiana é inadmissível na psicanálise se levarmos ao limite as proposições de que "psique e soma [são] uma unidade indissolúvel" (Aisenstein, 2006), que "a mente não existe como uma entidade" (Winnicott, 1993, p. 410), que "psique e soma vivem em perpétuo diálogo" (Khan, 1993, p. 7). Quer dizer, sendo inseparáveis a mente e o corpo e suas derivações - o interior e o exterior, o dentro e o fora -, pode-se dizer que a tatuagem é uma linguagem que se ancora num campo de sentidos. Porque os corpos do analista e do paciente, em presença, são reflexivos, a experiência psicanalítica pode ser vista relacionada à experiência estética, tal como esta ocorre na relação entre receptor e obra de arte, no sentido de que esta nos abre para o que não é nós, isto é, para o outro (o desconhecido), que, por sua vez, exige do psicanalista (receptor) uma atitude implicada (não reducionista) para que sobre o desconhecido possa pensar, ampliando o campo das experiências.

Em suma, esperamos ter deixado claro que o pensamento de sobrevoo, do nosso ponto de vista, é incompatível com a psicanálise ou, pelo menos, com uma psicanálise implicada, ou seja, uma psicanálise crítica que exige do analista, diante de qualquer paciente, não a mera aplicação de uma teoria psicanalítica adotada como modelo a formatar interpretações, mas a adoção de uma postura análoga a que se deve ter diante de uma obra de arte. Que atitude seria essa? Trata-se da postura, compartilhada por antropólogos e historiadores diante do outro, recomendada pelo crítico de arte Mário Pedrosa (1949/1996, p. 177) - diante de uma obra de arte, não devemos falar primeiro, mas esperar que ela nos interpele, caso contrário não ouviriamos senão a nós mesmos.

 

Referências

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Correspondência:
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Recebido em 04.05.2016
Aceito em 18.05.2016

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