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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

PONTO DE VISTA

 

Corporalidades heterotópicas: montagens e desmontagens do humano nos mundos ameríndios e além

 

Heterotopic corporealities: human assemblies and disassemblies in the Amerindian worlds and beyond

 

Corporalidades heterotópicas: montajes y desmontajes del humano en los mundos amerindios y más allá

 

 

Pedro de Niemeyer Cesarino

Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto trata de configurações corporais que desafiam a autonomia do indivíduo característica do Ocidente moderno. À estabilização do indivíduo e seus decorrentes pressupostos metafísicos, tais como a distinção entre natureza e cultura, serão contrapostos modos de hibridização, de composição e de recomposição de corpos que apontam para distintos estatutos ontológicos do humano. O artigo explora sobretudo os regimes corporais ameríndios, potencialmente conectáveis com outros que produzem linhas de fuga e complexidades alternativas à moderna.

Palavras-chave: corporalidade; montagem; sacrifício; limite; indivíduo.


ABSTRACT

This paper approaches the bodily configurations that challenge the individual autonomy, which is typical of the modern West. Ways of hybridization, composition, and re-composition of bodies that point to distinct human ontological statuses are going to be a counterpoint to the individual stabilization and its consequent metaphysical assumptions, such as the nature-culture dichotomy. This paper particularly examines the Amerindian bodily regimes, which may be connected to others that produce vanishing lines and alternative complexities to the modern (complexity).

Keywords: corporeality; assembly; sacrifice; limit; individual.


RESUMEN

El presente texto aborda las configuraciones corporales que desafían la autonomía del individuo característica del Occidente moderno. A la estabilización del individuo y sus resultantes hipótesis metafísicas, tales como la distinción naturaleza y cultura, serán contrapuestos métodos de hibridación, de composición y de recomposición de cuerpos que señalan hacia distintos estatutos ontológicos del humano. El artículo explora principalmente los regímenes corporales amerindios, potencialmente conectables con otros que producen líneas de escape y complejidades alternativas a la moderna.

Palabras clave: corporalidad; montaje; sacrificio; límite; individuo.


 

 

I

A figura humana, reproduzida como um corpo masculino forte, frequentemente de feições arianas, servia na Estética de Hegel (1975) como revelação máxima do Espírito em uma expressão sensível completa, não contraditória e livre. O ideal do belo artístico daí derivado se exprimia de maneira mais acabada na tradição figurativa helenística, ainda que seu paroxismo fosse atingido apenas pela figuração cristã - esta, de acordo com a Estética, seria a única capaz de levar às últimas consequências a individualidade do humano como manifestação da liberdade absoluta do Espírito. Para Hegel, figurações asiáticas como a indiana teriam conquistado um estágio inferior de evolução ao separar o espiritual do natural, unificados em contrapartida pelo ideal clássico. Testemunha de tal separação é o hibridismo com aspectos monstruosos e animalescos que degradavam o humano e impediam a manifestação da liberdade do Espírito. Na mitologia indiana, este seria o caso de Ganesha, o filho de Parvati que tem a cabeça decepada por Shiva e, depois, substituída pela de um elefante, para então se tornar um principal entre os deuses. Anúbis, a divindade egípcia responsável por conduzir os mortos na vida póstuma, é por sua vez aquela constantemente reproduzida com uma cabeça de cachorro. Mais um sinal, diria Hegel, de separação do natural e do espiritual, o que colocava em risco a autonomia do indivíduo conquistada pela civilização ocidental, herdeira do milagre grego.

A relação de tensão figurativa entre humano e animal não foi objeto de reflexão apenas para Hegel. Na passagem do século XIX para o XX, Aby Warburg, psicólogo das imagens mais do que historiador da arte, também se debruçou sobre o assunto ao formular o conceito de Nachleben, a "sobrevivência" das imagens (Didi-Huberman, 2002), passível de ser detectada pela força de determinadas fórmulas visuais persistentes não apenas nas artes de origem europeia. É atrás de tal força que Warburg (2003[1923]) vai, por exemplo, se interessar pelo ritual das serpentes conduzido pelos hopi, uma sociedade indígena norte-americana que manipulava tais mediadores simbólicos vivos para propiciar a tempestade. A persistência da serpente em diversas outras iconografias e cosmologias - das figurações do Asclépio grego e renascentista, passando por Tiamat, a serpente original babilónica, e também pela pintura moderna - atestava o seu poder de sobrevivência, o seu papel como "elemento de comparação e de recalque [Verdrangung]" (p. 117). Sua tenacidade, garantida pela tensão constitutiva com a figura humana, surgia de maneira eloquente no grupo do Laocoonte, que exercia uma função importante no pensamento de Warburg. É o que demonstra a seguinte reflexão de Didi-Huberman, um dos melhores estudiosos recentes do autor:

Mas a questão antropológica se coloca também para Warburg nos termos de uma primitividade natural: a dor trágica de Laocoonte não manifestaria - ao se "sublimar", como diria a exemplo de Freud o historiador do Pathosformel - um vínculo ainda mais primordial? Esse vínculo, infrassimbólico e infranarrativo, não seria aquele do corpo humano atravessado pelo sofrimento físico e pela violência da luta animal? Vemos assim que a proximidade do humano e do animal constitui um motivo essencial do Laocoonte, mas também do ritual indígena estudado por Warburg: nos dois casos, o homem se confronta com o animal enquanto perigo mortal por excelência. Nos dois casos, igualmente, o homem incorpora ou se reveste do animal, fazendo de sua própria morte - ou melhor, do instrumento dela - algo como uma segunda pele: na estátua helenística, as serpentes se mostram como uma espécie de "sobremusculatura" dos três personagens, ou talvez suas vísceras é que se tornem visíveis por uma espécie de reversão fantasmática do interior no exterior. No ritual da serpente, o animal é apresentado como uma coisa da qual o homem se adorna e se torna capaz -de maneira fictícia - de absorver a substância. (2002, pp. 225-226)

Na narrativa de Didi-Huberman, historiador da arte contemporâneo, persistem determinados pressupostos comuns não apenas a Warburg, mas também ao Hegel da Estética e a tantos outros modernos. Vemos, por exemplo, como o animal é sempre algo que se contrapõe ao homem, como se fossem dois entes apartados por suas distintas províncias ontológicas - natureza e cultura. Vemos, também, como é sempre a imagem de um homem, do risco e da violência impostos a um corpo masculino adulto, que se privilegia. Constatamos, ainda, como a tensão homem-animal é posta sempre nos termos de uma anterioridade, de um apelo primitivo que o homem moderno reconhece e analisa através de sua razão emancipadora. Notamos, por fim, que as aproximações entre humanos e animais não poderiam ser concebidas senão nos termos de uma ficção, de uma espécie de sono da razão que, em Didi-Huberman ou em Hegel, se mostraria especificamente nas artes e rituais da Antiguidade e de sociedades não ocidentais.

Ganesha, Shiva, o ritual das serpentes entre os hopi e o grupo do Laocoonte são apenas alguns exemplos possíveis aqui levantados não exatamente para explorar a fundo as ideias de Hegel ou de Warburg, mas sim para encaminhar o exercício de pensamento das próximas páginas: uma reflexão sobre corpos heterotópicos, termo que utilizo aqui para tratar de variações ontológicas em torno do problema da montagem e desmontagem de corpos, realocados em configurações imprevistas; reflexão apenas indiretamente relacionada à noção de heterotopia outrora elaborada por Foucault (2013[1967]). As imagens artísticas e divinas antes mencionadas são, efetivamente, modos de figuração do corpo que colocam em risco a unidade do ser humano, que comprometem a sua autonomia e individualidade. Falaremos aqui desse desafio ou, em outras palavras, de configurações do corpo que oferecem um contraponto à estabilização do indivíduo humano característica do Ocidente. Trataremos, mais especificamente, de modos de hibridização, de composição e de recomposição do corpo que indicam um estatuto ontológico do humano diferente daquele marcado pela distinção entre natureza e cultura e suas derivações. Alguns desses modos, mesmo que forjados no interior do que se costuma chamar de civilização ocidental, se colocam diretamente contra a imagem corporal masculina da autonomia humana moderna; outros, porém, constituem um horizonte de agência e de especulação em torno do corpo inteiramente original.

 

II

Estrangeiro, inconstante, subversivo, efeminado, ébrio: tais são alguns dos predicados que se atribuem a Dionísio, divindade originária da Ásia, nascida de um dos muitos casos extraconjugais de Zeus. Aceito apenas tardiamente no Panteão, Dionísio é repudiado por Penteu, o rei conservador e apolíneo de Tebas, que desdenha os conselhos do velho rei Cadmo sobre a necessidade de se respeitar a chegada do nume forasteiro em seu reino. A terrível consequência, ápice de As bacantes de Eurípedes, é o estraçalhamento e a devoração do arrogante Penteu por sua própria mãe, Agave, transtornada pela manía dionisíaca e convertida ela mesma em uma mênade. Agave toma o filho por uma presa e o devora quando, disfarçado, ele vai sob uma pele de cervo verificar a orgia conduzida pelo deus em uma montanha próxima da cidade. Um corpo humano recoberto por uma pele animal confrontava outros tantos corpos humanos transmudados em feras, pois Dionísio, o deus da metamorfose, é também uma divindade dos animais selvagens. O grande mestre da omofagia (omophagos charis, "o regozijo em devorar a carne crua" [Segal, 1997, p. 12]) não apenas desencadeia o sparagmós (estraçalhamento divino) de Penteu como é ele mesmo estraçalhado em uma das narrativas dedicadas ao seu surgimento (Detienne, 1977; Segal, 1997): a mando de Hera, Dionísio é enganado e despedaçado ainda bebê, fervido e posto em um espeto pelos Titãs, para depois ser refeito a partir de seus despojos e de suas cinzas.

A omofagia, a devoração da carne crua, seria para Carlo Ginzburg (2001, p. 230 ss.) um provável vestígio de práticas sacrificiais de tribos citas da Ásia Central - práticas que, uma vez reconfiguradas na Grécia, poderiam remontar a uma trajetória iniciática (teletai) referente não apenas à narrativa, mas também aos cultos órficos que se compunham pela sequência: morte - despedaçamento - devoração - recomposição - renascimento. De acordo com a interpretação de Plutarco, a sequência havia sido concebida como uma forma de renovação interior desencadeada pela identificação dos seguidores de Dionísio com sua divindade (p. 233). A hipótese da influência asiática sobre a Grécia trataria, então, da provável contaminação de práticas xamanísticas sobre os rituais e modos de conhecimento associados a Dionisio, a mais heterodoxa das divindades da Hélade e o contraponto do milagre grego reivindicado pelas narrativas de fundação da modernidade.

Mas em que consiste, entretanto, essa categoria genérica, o xamanismo, que de pronto desperta imagens de exotismo, de uma propensão primitiva pela devoração, pela decomposição do corpo e pela identificação com a animalidade? Seria ela referente a uma espécie de pulsão primitiva capaz de projetar a sua força, diria Warburg, até mesmo na sobrevivência de fórmulas visuais em figurações cristãs? Não era, pois, a mesma potência característica da manía dionisíaca que se manifestava no movimento do drapeado das saias das mênades (Didi-Huberman, 2002, p. 290), que se fazia presente também nas saias igualmente revoltas da Madalena de Bertoldo di Giovanni (1485) ou, ainda, na composição visual da Vênus de Botticelli (1483) (Didi-Huberman, 2002, p. 266)? Uma resposta positiva a tais indagações só poderia ser parcial, se vale considerar o papel que tais imagens do primitivo possuem para a constituição de narrativas modernas tais como as de Warburg. Quando analisada com mais cuidado, a noção de xamanismo revela, porém, uma outra formação de sentido.

Herdeiras de tal rótulo originalmente asiático, as sociedades ameríndias tinham e ainda têm as suas próprias categorias de pensamento, suas próprias narrativas e reflexões sobre o que, afinal de contas, se pode pensar e fazer com corpos inteiros, recobertos, mortos, despedaçados, renascidos e recompostos. Estas práticas do pensamento não deveriam servir para retroalimentar o círculo vicioso das imagens modernas do primitivo, mas sim para produzir outras derivas, conexões e linhas de fuga. Exploremo-las aos poucos, a partir de algumas incursões aos corpos heterotópicos ameríndios, postos e repostos fora do lugar, fora do seu centro em um corpo coeso, marcado pelos contornos e limites do indivíduo; corpos, a rigor, capazes de apontar para outros centros, lugares e deslocamentos. Tal alternativa por certo também se fazia presente naquela cena de As bacantes, na qual corpos se cobriam de peles de animais não exatamente para produzir reversões fantasmáticas, como imaginava Didi-Huberman, mas sim para pressupor outras significações e estados de coisas.

 

III

A cena clássica do esquartejamento da vítima ritual entre os tupinambá do século XVI, estudada por Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha (1985/2009), não produzia um sentido similar ao do sparagmós e da omofagia dionisíaca. Viveiros de Castro (1986) dizia que "a antropofagia de Cunhambebe, assim, não era uma alelofagia (devoração do semelhante), como pensava Staden, nem uma omofagia (comer cru), para usarmos o vocabulário do canibalismo grego. Era um devir-fera, mas policiado pela cozinha" (p. 625). Ao ser interpelado por seu cativo alemão aterrorizado, Hans Staden, o cacique Cunhambebe - que portava em suas mãos um cesto com pedaços humanos moqueados - não reagia na mesma chave que o estrangeiro cristão. "Um animal irracional não come outro parceiro, e um homem deve devorar outro homem?", indagava Staden, ao que Cunhambebe replicava: "Jauára ichê - sou um jaguar, está gostoso" (Staden, citado por Viveiros de Castro, 1986, p. 621). Ainda assim, Viveiros de Castro observa que a presença do verbo ser nesta língua tupi-guarani não implica cópula proposicional, em identificação metafórica do sujeito com o predicado, tal como na máxima ritual cristã ("Este é o sangue e o corpo de Cristo..."). Se tal fosse o caso, as posições animal/homem permaneceriam distintas, a despeito de uma comparação momentânea, provavelmente fictícia para os olhos modernos. Jaguar eu (jauára ichê) seria, em contrapartida, uma retradução mais fiel ao sentido ontológico do original, pois Cunhambebe ocupa uma espécie de posição-jaguar, uma passagem ao corpo-jaguar, em vez de ser apenas uma confusão metafórica entre humano e fera.

A assunção do ponto de vista de outrem, característica da antropofagia dos tupinambá quinhentistas - e também de outros falantes de tupi-guarani que, há até poucas décadas, ainda realizavam práticas similares -, se espalhava pelas diversas etapas do ritual. Após a execução do cativo, esquartejamento e preparo culinário do corpo, o matador, único a não devorar a vítima, deveria se recolher em um lugar especial e passar por determinados procedimentos que visavam dotá-lo de um novo nome (entre os vários já acumulados de outras execuções) e ter o duplo de sua vítima anexado à sua pessoa complexa. Enquanto isso, todos os outros segmentos do coletivo ingeriam ritualmente as partes tratadas do corpo - crianças inclusive, às quais se ofereciam as vísceras, e também bebês, que mamavam nos seios untados com o sangue da vítima. Trata-se, porém, de dieta ritual, e não de mera alimentação para saciar a fome; a cerimônia era composta pela incorporação da posição de um inimigo humano, capaz de se pronunciar com firmeza e honra durante o combate verbal que antecedia a sua morte. O ritual visava uma aniquilação total do outro que não consistia senão em sua replicação: "a guerra de vingança tupinambá era a manifestação de uma heteronomia primeira, o reconhecimento de que a heteronomia era a condição da autonomia" (Viveiros de Castro, 2002, p. 241). Era essa anexação completa da vítima ao matador que garantiria um futuro póstumo favorável na Terra Sem Males, assim fazendo com que o corpo do guerreiro escapasse da indesejada putrefação na terra.

Os referidos estudos sobre a antropofagia tupinambá são alguns dos mais significativos entre uma extensa produção dedicada à centralidade do corpo para as sociedades ameríndias, em especial nas terras baixas da América do Sul (Da Matta, Seeger & Viveiros de Castro, 1979). A noção de perspectivismo (Viveiros de Castro, 2002), tema clássico da filosofia ocidental reelaborado por Viveiros de Castro para a compreensão das cosmologías ameríndias, também colocava o corpo em posição focal. Em muito devedor da assunção da posição do inimigo pelo matador tupinambá, o perspectivismo se dedicava, sobretudo, a explicar o singular problema da transformação nos xamanismos ameríndios. Através de diversas técnicas corporais, que variam em complexidade entre cada sociedade indígena, os xamãs conseguem ocupar corpos outros e introduzir outros em seus corpos, a fim de circular por uma miríade personificada que constitui mundos irredutíveis à cisão estanque entre natureza e cultura. Humano, nos mundos ameríndios, é então tudo aquilo que se torna capaz de ocupar um ponto de vista, de se transformar em um potencial enunciador, de estabelecer relações sociais que extravasam o visível (Viveiros de Castro, 2002, p. 345 ss.; cf. Barcelos Neto, 2008; Cesarino, 2011; Lima, 2005; Vilaça, 1992, entre outras etnografias). Não por acaso, as indumentárias assumem aí um sentido fundamental:

Vestir uma roupa-máscara é menos ocultar uma essência humana sob uma aparência animal do que ativar os poderes de um corpo-outro. As roupas animais que os xamãs utilizam para se deslocar pelo cosmos não são fantasias, mas instrumentos: elas se aparentam aos equipamentos de mergulho ou aos trajes espaciais, não às máscaras de carnaval. O que se pretende ao vestir um escafandro é poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se esconder sob uma forma estranha. Do mesmo modo, as roupas que, nos animais, recobrem uma "essência" interna de tipo humano não são meros disfarces, mas seu equipamento distintivo, dotado das afecções e capacidades que definem cada animal. (Viveiros de Castro, 2002, pp. 393-394)

Voltaremos a falar mais adiante de tais capacidades, fundamentais para a compreensão dos corpos heterotópicos. Notemos, porém, como o pressuposto de um corpo intacto, anterior a um ato de transformação, não faz aqui exatamente sentido. Nos xamanismos amazônicos, corpos são paramentados sobretudo para que se tornem capazes de se conectar a outros tantos corpos (eles também xamãs ou espíritos) que compõem a multiplicidade personificada do cosmos e com a qual estabelecem relações propriamente intensivas, ou seja, distintas daquelas relações mensuráveis características de indivíduos concebidos como totalidades extensas. Aliás, é em torno disso que se estruturam os relatos de iniciação xamanística, frequentemente marcados pela morte e renascimento do corpo outrora vivo e agora envolvido em outra configuração relacional (Kopenawa & Albert, 2010, p. 117 ss.; Cesarino, 2011, 2014).

 

IV

A mitologia ameríndia, dizia Claude Lévi-Strauss a Didier Eribon, é um conjunto de histórias sobre "o tempo em que os homens e os animais ainda não se distinguiam" (citado por Viveiros de Castro, 2002, p. 354). Esse tempo primeiro não desapareceu por completo, muito embora tenha se estabilizado por conta das divisões entre os espaços do cosmos e, principalmente, pela estabilização dos corpos que, outrora, estavam imersos no fluxo transformacional que caracterizava a multiplicidade molecular primeira (Viveiros de Castro, 2006). Agora, os corpos determinam posições e distinções variáveis entre visível e invisível, passíveis de serem perturbadas em momentos liminares. É nesses momentos que uma pessoa ordinária, e sobretudo um xamã, especialista em tais trânsitos, poderá mais uma vez estabelecer contato com outras tantas entidades que, para si mesmas, se concebem como gente. As narrativas costumam tratar desse momento inaugural do mundo, permeado por agentes e processos que não desapareceram exatamente, mas migraram para uma espécie de fundo virtual. É aqui que reencontramos novamente o problema dos corpos desmontáveis.

Contam os xamãs narradores marubo (Cesarino, 2013, p. 257 ss.) que, nos tempos antigos, o antepassado Temin Txoki casou-se com Peko, uma mulher juriti. Por ser capaz de realizar todas as tarefas domésticas de maneira extraordinária, Peko provocava ciúmes nas parentes de Temin Txoki. Constrangida com a competição que sofria na casa de sua sogra, ela decide partir de volta para casa com o filho do casal. O protagonista vai então atrás de sua esposa, que vive em uma outra posição do rio, acessível apenas àqueles que pingam em seus olhos o sumo de uma determinada folha. Uma vez na casa dos pais da esposa, Temin Txoki a observa realizar um estranho jogo com os seus parentes, as pessoas jacamim: os homens jacamim esquartejam o corpo de Peko com lanças afiadas e, em seguida, recompõem a mulher com o pó das mesmas lanças. Temendo pela esposa, Temin Txoki decide interferir, malgrado a advertência de Peko, que dizia para ele permanecer longe e apenas observar, pois ela já estava acostumada a tal prática.

Mas eis que os homens jacamim terminam por esquartejar o corpo do protagonista incauto. Em seguida, arremessam suas coxas em um lago, as quais então se transformam nas sucuris. Desolado, o tronco de Txoki vai se arrastando até o rio e ali se joga, descendo pelas águas e pescando peixes com pedaços de seu fígado, que o protagonista usa como isca. Durante a viagem aquática, um de seus duplos se destaca de seu corpo, dando origem à Lua da dimensão subaquática. Txoki chega então à casa de sua mãe, trazendo consigo os peixes que pescou como presente. Ali fica o coitado, já distante da terra de sua esposa. Durante a noite, ele bolina as suas irmãs, que, como forma de revelar o safado, sujam as mãos de jenipapo e lambuzam o seu rosto, que então aparecerá marcado durante o dia. Em outras versões de povos da família pano (Lévi-Strauss, 1968, p. 75 ss.), este é o motivo pelo qual o protagonista será decapitado pelos seus irmãos, como forma de punição pelo comportamento incestuoso. A versão marubo não nos dá uma cabeça rolante, pois o tronco permanece inteiro. Reduzido à condição infantil, lamenta-se com a mãe sobre a situação desoladora, até que, após descartar diversas possibilidades - transformar-se em buraco, em tronco, em barranco... -, decide escalar árvores e cipós até passar ao céu, onde se transforma em Lua.

Nas Mitológicas, Lévi-Strauss (1971) comenta uma versão norte-americana dos wintu, na qual o tema da cabeça rolante aparece sob uma figura feminina:

Ao procurar com seu irmão mais velho uma casca de árvore para fazer um tapa-sexo, a irmã incestuosa se corta acidentalmente e lambe seu sangue, cujo sabor lhe inspira tal voracidade que ela se devora a si mesma e se transforma em uma cabeça rolante que, em seguida, ataca e devora também toda a população. Sua família, aterrorizada, sobe até o céu. Um velho monte de excrementos orienta a cabeça; ela segue os fugitivos e, tomada de desejo, consegue agarrar o irmão e o prender com suas coxas (sic). Como ele se recusa a satisfazê-la, ela o devora, poupando apenas o coração, que é, então, enfiado em seu colar. Ela se dirige então para os rios do norte, e se estabelece em um grande lago do qual não sai senão à noite para se refrescar na margem sul. (p. 122)

As relações de transformação com a narrativa de Temin Txoki são diversas: inversão de gêneros da posição do protagonista incestuoso e insaciável (a cabeça rolante, nas outras versões pano, não consegue reter o alimento que lhe é ofertado pela mãe); inversão dos fluidos, pois o sangue passa a ser atributo derivado da própria protagonista, em vez de ser provocado pela figura masculina de Lua (ele volta nas noites de Lua cheia para bolinar suas irmãs, o que provoca a menstruação); inversão da relação entre coletivo e indivíduo no deslocamento vertical, pois, no caso wintu, é a família que sobe aos céus enquanto a cabeça permanece na Terra; inversão, também, da própria dinâmica alimentar, porque, se a cabeça-tronco dos pano recebe passiva e infinitamente o alimento de sua mãe, na versão wintu a cabeça é ativa em sua devoração canibal; vemos ainda, por fim, uma transformação da própria figura de Lua, que não deixa de se revelar sub-repticiamente nesse destino final da protagonista em um lago do norte, no qual se esconde para se mostrar apenas durante a noite.

Esta última narrativa contém ainda um detalhe fundamental: poderiamos pensar que o mito é mera expressão de uma incoerência fictícia, ao postular uma cabeça canibal que, em seguida, possui pernas para prender o seu irmão-amante. Na realidade, se vale seguir as lições de Lévi-Strauss, o aparente absurdo parece antes indicar que o pensamento narrativo, como de costume, está muito mais direcionado para a cabeça como função reflexiva do que como construção de enredo verossímil. O que importa é que ela faça pensar sobre os resultados etiológicos derivados de proximidades excessivas (o incesto), que implicam uma inviabilização das relações de alimentação e parentesco, tendo como resultado uma separação definitiva (a distância entre Lua, Sol e Terra).

A narrativa marubo segue ainda uma estrutura comum a outros tantos casos ameríndios: a imprudência do protagonista termina por desencadear determinados efeitos, muito frequentemente de ordem etiológica. Temin Txoki, também conhecido como Oshe, o Lua, ou ainda como Tore Nawa (Estrangeiro-Podridão), é exatamente esse personagem incauto, que se comporta mal durante sua estada em outros domínios e acaba por ser mutilado. Função ontológica dos corpos montados e desmontados: dar origem a um estado de coisas, acarretar transformações no mundo. Tudo se passa, assim, como se a aparente violência fosse uma forma de fabricação; como se da potencial violação dos corpos dependesse a própria existência do que concebemos como visível. Corpos desmontáveis são, aliás, aquilo de que o próprio cosmos é feito; são a matéria-prima utilizada, de maneira intencional ou não, para a composição do mundo. Um conjunto específico de narrativas marubo (Cesarino, 2011, 2015) trata das cenas de montagem do mundo pelos espíritos demiurgos através de pedaços de animais. Foi assim, por exemplo, que nos tempos primeiros eles fizeram o firmamento celeste e outros aspectos do cosmos, composto por pedaços de pele e de carne de antas esquartejadas. A narrativa de Lua possui, porém, um aspecto singular: ela lança mão de um corpo propriamente humano, martirizado e dividido, que assim servirá como alterador da paisagem celeste (seja ela a subaquática, pois também lá existe um céu com sua Lua, seja a do firmamento a que temos acesso).1

Na Historia general de las cosas de Nueva España, uma das principais fontes do século XVI para o conhecimento do mundo asteca, Bernardino de Sahagún relata a história de Coatlicue, mãe de um conjunto de homens conhecidos como Centzonhuitznahua e de uma moça, Coyolxauhqui. Coatlicue encontra ao acaso uma pena, que coloca então em seu ventre. A pena misteriosamente a engravida daquele que será o principal deus dos astecas: Huitzilopochtli. A irmã e os irmãos decidem então matar a própria mãe, que os desonrava com tal gravidez. Vão então ao seu encalço, mas não sem que Huitzilopochtli tenha antes nascido e se transformado em um guerreiro poderoso. Protegendo a mãe, ele elimina os irmãos e, em seguida, decapita e esquarteja a irmã: sua cabeça permanece em cima de uma montanha chamada Coa-tepec, enquanto os pedaços do corpo caem morro abaixo (Sahagún, 2006, pp. 185-186). Outras versões dizem que a cabeça se transforma em Lua, todos os dias assassinada por seu irmão, o Sol, que é Huitzilopochtli. Lua será ainda considerada como um homem na anônima Leyenda de los soles, do século XVI, assim mais uma vez aproximando tal figura das versões das terras baixas sul-americanas.

O percurso do corpo desmembrado de Coyolxauhqui, por sua vez, era repetido pelas vítimas dos sacrifícios, martirizadas no topo das pirâmides e arremessadas escada abaixo para que fossem então divididas pelas testemunhas do ritual, que preparavam e comiam as partes em suas casas. Uma das mais conhecidas representações da divindade, a escultura em relevo de pedra encontrada em 1978 durante a construção do metrô da Cidade do México, mostra seu corpo desmembrado contido em uma forma circular que parece indicar a sua metamorfose celeste. O disco de pedra da divindade-lua integrava a base da pirâmide dedicada a seu irmão, Huitzilopochtli, a quem milhares de sacrifícios haviam de ser ofertados ao longo da história da grande cidade de Tenochtitlán. A narrativa apresenta diversas transformações estruturais em relação às versões anteriores, todas elas referentes a conflitos entre irmãos que terminam por produzir desmembramentos corporais e, em seguida, os corpos celestes. O conjunto dessas narrativas indica, mais especialmente, o sentido adquirido pelos corpos violentados: um sentido cosmológico, uma mobilização do corpo desmembrado como ferramenta de pensamento - seja através das relações narrativas, seja através de suas conexões invertidas com as dinâmicas rituais.

 

V

O caso tupinambá mostrou como o problema da montagem e desmontagem de corpos não é referente apenas às narrativas, que, no entanto, servem de fundamento para a atividade especulativa das sociedades ameríndias. Uma forma de pensamento envolve também uma correlação prática, notável sobretudo em dinâmicas rituais nas quais as manipulações do corpo humano ocupam um lugar central. É o caso da categoria nahua/asteca ixiptla. O termo costuma ser traduzido pelos estudiosos por imagem, substituto, envelope e, até mesmo, filho (um filho era considerado como o ixiptla de seu pai; a vítima sacrificada era filha, ixiptla, de seu deus) (Graulich, 1999). Ixiptla poderia ser, assim, a imagem viva de um deus, solicitada por determinadas pessoas em determinada circunstância ritual; ixiptlas humanos viviam permanentemente dentro dos templos de divindades e, desse modo, serviam como personificadores ou delegados dos deuses (Clendinnen, 1991, p. 249); podiam ainda ser imagens figurativas, sem que com isso fossem meras representações fictícias, mas sim "a própria coisa representada" (Graulich, 2001, p. 73).

Um dos casos mais emblemáticos referentes a tal categoria era o de Xipe Totec, a divindade associada à colheita do milho e à fertilidade. Xipe, ou o Deus Esfolado, era também considerado como uma das divindades vermelhas. Um de seus rituais consistia em retirar a pele de um cativo de guerra e vesti-la do avesso em um homem, assim deixando exposta a parte ensanguentada. Nas imagens de Xipe, a pele costuma sobrar no corpo que lhe serve de suporte, o que se nota especificamente nas mãos e no próprio rosto, ocultando, como uma espécie de máscara, o rosto interior (Clendinnen, 1991, p. 233). Para alguns autores, o ritual tinha o sentido de representar a própria fertilização do solo via a associação com a pele sobreposta à pele do corpo interno (Krickerberg, 1961, p. 148), muito embora fosse necessário questionar justamente o estatuto de tal "representação", que parece manter separados os termos em vez de compreender o sentido potencial desta configuração complexa. Clendinnen, por sua vez, observa que a divindade estava não exatamente na pessoa viva, mas sim na cobertura externa que, ademais, remetia à cor vermelha das divindades do milho. Assim recoberto com a pele esfolada do cativo, o ixiptla de Xipe era em seguida paramentado com os mais ricos e detalhados adornos nasais e auriculares, além de portar sandálias, capa, saias, cocares e escudo, todos ornamentados com ricas plumagens e detalhes em ouro (Clendinnen, 1991, p. 257). "Ce qu'il y a de plus profonde dans l'homme, c'est la peau", diria Paul Valéry...

Ocupando papel central na renovação do mundo, envolvidos no que poderia ser chamado de uma humanidade distribuída e necessariamente múltipla, os corpos heterotópicos se desdobram em modos de conexão incompatíveis com a invenção moderna do humano autônomo. Como vimos, não se trata, através do paramento, de realçar o estilo ou a personalidade de um sujeito, como se ele estivesse coberto por uma fantasia, como se assim algo representasse mediante a constituição de uma persona. Não se trata, tampouco, de submeter determinado sujeito a um processo de violência ou tortura que, em última instância, implicaria o seu aniquilamento total. O processo antes mencionado é bem outro: mais do que indicar a fusão de dois corpos separados em um novo corpo individual, ele parece implicar outro estado de coisas, tornado acessível aos viventes por meio dessa manifestação súbita de Xipe Totec. Trata-se, assim, de uma complexidade capaz de forçar os limites do humano ao fazer da violência um modo de ativação cosmológica.

Vale notar, ainda, que os ixiptlas são operadores essenciais à intermediação entre humanos e divinos, próprios de universos marcados por uma disjunção entre esses dois planos, mediados pelas operações sacrificiais. Tais são as sociedades de Estado (como a asteca, maia, inca e outras), da centralização política e da designação de cargos específicos (os sacerdotes) capazes de controlar e realizar a mediação ritual. Em contrapartida, nos universos em que as esferas humanas e divinas não se encontram tão separadas pelo advento da hierarquização política e ritual, não será a vítima sacrificial a responsável por realizar as passagens, e sim o xamã (Viveiros de Castro, 2002).2 Mas não deixa de ser notável a concomitância, no caso de Xipe, da vítima e da divindade, como se a mediação fosse realizada precisamente por esse transporte de aspectos corporais (a pele da vítima e o seu receptor) para uma configuração corporal complexa, capaz de ativar transformações no mundo.

 

VI

Seria um tanto limitado sustentar que a inviolabilidade do indivíduo moderno é colocada em xeque apenas por práticas e narrativas alheias ao seu estabelecimento. Afinal, Bruno Latour (1993) nos fez entender que jamais fomos modernos, que jamais deixamos de replicar monstros, híbridos e redes. O discurso e as práticas modernas, de acordo com o argumento do autor, começam quando essas dicotomias são purificadas ou, em outros termos, quando se pretende manter, mesmo que de maneira sub-reptícia, o seu funcionamento narrativo e uma certa ordem do mundo a ele correspondente. Assim, se as montagens e desmontagens de corpos características de mundos tais como os ameríndios realmente implicam uma reavaliação da noção de limite/contorno - e, por aí, de polaridades como animal/humano, natureza/cultura, identidade/alteridade, interior/exterior -, nem por isso elas deixam de possuir contrapartidas internas à própria cultura ocidentalizada contemporânea, também irredutível a tais polaridades. Mas as razões de fundo que levam à produção de complexidades em um e outro caso - por exemplo, nos rituais astecas e nos agenciamentos corporais contemporâneos, marcados pela superação das relações natureza/cultura - são profundamente distintas. Como então considerá-las como contrapartidas umas das outras e, ainda mais, compará-las e conectá-las?

Foi através da negação da comparação por meio de um ponto de vista privilegiado (o tradicional ponto de vista de Sirius dos modernos) que as heterodoxias corporais se tornaram fundamentais para a teoria antropológica contemporânea. A questão está na influência que o pensamento de Donna Haraway exerce sobre Marilyn Strathern, especialmente em seu livro Partial connections (1991/2004). Ali, a antropóloga resgata a influente teoria do ciborgue de Haraway (2000[1983]) a fim de compreender em nova chave o problema das conexões. Através da imagem do ciborgue, Haraway criticava as teorias feministas marcadas por uma reificação identitária e nostálgica da mulher. Tecnologias de reprodução assistida, literatura de ficção científica, novos acoplamentos eróticos, técnicos e informacionais são alguns dentre outros fenômenos que levariam, gradualmente, ao afastamento de uma imagem do feminino marcado por algum enraizamento biológico. A imagem do ciborgue desempenha aí um papel fundamental. Meio humano, meio máquina, ele é uma realidade marcada por extensões, próteses e acoplamentos de distintas capacidades, mais do que por uma relação entre parte e todo, natural e artificial: "As extensões engendram distintas capacidades. Nessa perspectiva, não há relação sujeito-objeto entre uma pessoa e sua ferramenta, mas apenas uma capacidade expandida e efetivada" (Strathern, 1991/2004, p. 38).

A reflexão de Strathern encaminha dois pontos fundamentais: em primeiro lugar, ela oferece perspectivas para reavaliar as conexões e comparações entre casos derivados de matrizes ontológicas distintas; em segundo lugar, permite conceber os agenciamentos corporais heterotópicos para além da noção de indivíduo e das relações entre interior e exterior, natureza e cultura. A metáfora do ciborgue torna possível vislumbrar uma complexidade híbrida formada a partir do agenciamento de distintas capacidades, em vez de pressupor uma articulação entre partes de um todo que poderia ser concebido como uma unidade orgânica invadida por dispositivos tecnológicos. No "Manifesto ciborgue", Donna Haraway tratava de refletir sobre os aspectos distópicos dos dispositivos-ciborgue, que encaminham uma virada importante com relação ao que Foucault chamava de bio-política: a passagem dos encarceramentos para as redes de contaminações, de formações somatopolíticas e de monstros híbridos (Preciado, 2007, p. 386). Ainda assim, Haraway também encontrava na imagem do ciborgue um espaço de liberdade, na medida mesma de sua capacidade de ultrapassar as nostalgias orgânicas que confinam o problema do gênero nas estruturas do poder patriarcal. Foi deste modo que novas formas de acoplamento se tornaram pensáveis a partir dos anos 1980, indicando possibilidades de ação política para um tempo pós-orgânico (Preciado, 2007, p. 387).

Em Partial connections, Strathern aproxima de maneira interessante o problema do ciborgue da noção de pessoa na Melanésia. Também ali a pessoa se estende para um campo relacional do qual são índices elementos diversos tais como adornos corporais, postes de bambu, porcos e inhames; ela pode ser, assim, decomposta e recomposta pelas suas extensões (diriam os modernos, materiais). Strathern pretende se utilizar da noção de ciborgue para pensar uma aproximação possível com os procedimentos de fundo que dão sentido à pessoa e suas respectivas dinâmicas de sociabilidade, em vez de realizar uma comparação de superfície, como no caso das imagens modernas do primitivo. É o que podemos verificar na seguinte passagem, na qual a antropóloga se refere aos circuitos de troca de bens cerimoniais compostos por conchas (valores) e aos rituais nos quais são movimentadas figurações de espíritos:

O valor que traz consigo mesmo o movimento (carregando as identidades do doador e do recipiente) ou o espírito que se move para cima e para baixo em um mastro são os ciborgues melanésios: um circuito de distintos componentes ou figuras. Os componentes nunca são iguais àquilo que os faz funcionar, que é o seu centramento na pessoa. Esse centramento poderia ser imaginado como uma metáfora para a percepção. É a faculdade perceptiva do sujeito [people's perceptual faculty] que assenta o "significado" e, assim, forma o circuito de comunicação entre os componentes disparatados. As figuras crescem e diminuem a despeito de seu pano de fundo, do que se distinguem por serem, por assim dizer, iguais a si mesmas. A distinção entre o ciborgue melanésio e a engenhoca meio humana, meio mecânica de Haraway é que os componentes do primeiro são conceitualmente "recortados" do mesmo material. Não há diferença entre uma sequência de conchas e outra matrilinear, entre um homem e um poste de bambu, entre um inhame e um espírito. Um "é" o outro, na medida em que evocam percepções de relações. Os distintos componentes ou figuras são assim partes de pessoas ou de relações fixadas umas nas outras. Uma pessoa ou relação existe recortada ou como uma extensão da outra, assim como, ao contrário, essas relações são partes integrais da pessoa. Elas são os circuitos da pessoa. (1991/2004, p. 118)

Strathern tenta aí aproximar as dinâmicas de troca e reciprocidade na Melané-sia do problema do ciborgue e das teorias da recursividade, para as quais as relações entre distintos componentes não são de parte/todo, mas sim de diferentes níveis escalares. A noção de indivíduo (e suas dicotomías derivadas) se mostra problemática não apenas para o caso melanésio, mas também para os próprios corpos contemporâneos pós-orgânicos. Há, porém, uma diferença entre o ciborgue de Haraway e o da Melanésia: este último é formado por componentes "conceitualmente recortados do mesmo material", já que irredutíveis à divisão natureza/cultura. Seus circuitos não implicam passagens do orgânico ao artificial, mas extensões ou replicações, por níveis distintos, de estados similares - um inhame como resultado de feixes de relações de produção e de parentesco, assim como uma criança e uma troca de porcos ou valores -, que poderiam ser compostos ou decompostos (cortados, no léxico da autora). Uma direção similar poderia ser tomada para a compreensão dos demais casos ameríndios tratados anteriormente. Eles não colocam em relação dois termos, que assim se transformariam por um evento ritual capaz de produzir uma saída ou explosão do sujeito. O corpo esquartejado do inimigo tupinambá é mais o índice de um circuito formado pela memória pretérita da vendetta e pela antecipação de estados relacionais futuros, implicados na pessoa complexa do matador e em seu destino póstumo privilegiado. Outros tantos corpos desmembrados pelo pensamento narrativo supõem um devir-corpo do mundo ou o reverso, pois os procedimentos rituais terminam por fazer com que se trate do "mesmo material" conceitualmente recortado, montado e remontado. A divindade Xipe Totec, quando visualizada através de seu ixiptla, não se compreende como uma composição dual, mas como um complexo extra-humano também coextensivo ao mundo, que deve ser alterado ou beneficiado pelo seu aparecimento.

 

VII

Em seus estudos sobre gênero, Beatriz Preciado (atualmente Paul B. Preciado) pretendia ultrapassar uma concepção da diferença enquanto performance identitária, defendida por autores como Judith Butler e Homi Bhabha, para definir os contornos de um ativismo político por ela denominado de gênero-copyleft, ou seja, "uma micropolítica das células que vá além das políticas de representação e busque pontos de fuga frente ao controle estatal de fluxos (hormônio, esperma, sangue, órgãos) e códigos (imagens, nomes, instituições)" (Preciado, 2007, p. 385). Com isso, Preciado supera a tensão entre essencialismo e construtivismo nas teorias do gênero para tratar dos estados corporais produzidos pelas transformações, anexações e acoplamentos de órgãos, assim lançando um novo referencial teórico referente às "máquinas sexuais", por ela consideradas como "estruturalmente vizinhas ao dildo" e existentes em "uma zona intermediária entre os órgãos e os objetos", assentadas "de maneira instável sobre a própria articulação natureza-tecnologia" (2015, p. 96). Longe de ser apenas um consolo, o dildo se transforma em um dispositivo emblemático para Preciado, tal como o ciborgue o fora para Haraway:

Utilizado como um prolongamento vibrante do corpo, afasta-se do modelo normativo do pênis e se aproxima de uma terceira mão dotada de precisão vibratória. Longe de se limitar a um efeito psicológico ou fantasmagórico, ou a uma única prática, esse órgão sexual sintético abre possibilidades inéditas de incorporação e descontextualização. (p. 120)

O dildo se converte assim em linha de fuga com relação ao falocentrismo, apontando então para um outro estado corporal possível, no qual partes destacadas e anexadas indicam configurações alternativas de desejo e de gênero. Em Testo Junkie (2013), Preciado supera de maneira ainda mais contundente a noção foucaultiana de biopolítica e aprofunda a sua reflexão ao tratar das complexidades farmacopornográ-ficas, um conceito por ele cunhado para se referir às características do regime global pós-industrial e midiático (p. 33). Neste regime, argumenta o autor, a força orgástica e a identidade sexual não se compreendem mais por uma interioridade (e muito menos por divisões assentadas em ideologias da natureza), e sim por um "design sexual" (p. 35) voltado não mais para a produção de objetos, mas para a invenção de sujeitos através da confluência de diversas capacidades, tais como as cibernéticas, artísticas, cirúrgicas e químicas. Não se trata mais, portanto, de refletir sobre as estratégias de poder impostas à vida, mas sim sobre um "todo tecnovivo conectado" (p. 44). Mais uma vez, é a noção de limite que se altera, deixando para trás os pilares monistas da narrativa moderna e suas compulsões dicotômicas:

Essa nova condição do corpo borra a distinção moderna tradicional entre arte, performance, mídia, design e arquitetura. As novas técnicas cirúrgicas e farmacológicas colocam em movimento processos tectônicos de construção que combinam representações figurativas derivadas do cinema e da arquitetura (edição, modelação, impressão em 3D etc.), a partir dos quais os órgãos, as vísceras, os fluidos (o tecnossangue, o tecnoesperma etc.) e as moléculas se convertem na matéria-prima por meio da qual nossa corporalidade farmacopornográfica é manufaturada. Os tecnocorpos não são nem ainda-não-vivos e nem já-mortos: somos meio fetos, meio zumbis. Assim, toda a política de resistência é uma política do monstro. (p. 44)

Em sua etimologia, a palavra monstro carrega uma conotação indicativa, a capacidade de demonstrar ou de apontar para um determinado estado de coisas - na passagem em questão, para a irreversibilidade dos processos de invenção baseados em tecnologias de decomposição e recomposição de corpos em uma escala intensiva, capaz de alterar dinâmicas de força e modos de existência. A espacialização dos corpos transformados em pontos de redes transindividuais já se mostrava presente nos casos não modernos anteriormente estudados, nos quais eles são concebidos como matéria-prima para a formação e alteração do mundo. Seria possível e desejável seguir mostrando como outras tantas tecnologias ainda são e sempre foram empregadas - mas a partir de dilemas ontológicos distintos, vale frisar - para produzir alterações propriamente intensivas (químicas e virtuais, se quisermos chamá-las assim) por sujeitos da multiplicidade e dos agenciamentos moleculares (Deleuze & Guattari, 1980). É a isso, afinal de contas, que se dedica toda uma sorte de práticas envolvidas nos regimes xamanísticos.

As convergências, contudo, devem ser produtivas sobretudo em sua capacidade de diferir, de proliferar variações que não se acomodam nas aproximações meramente superficiais, como se estivéssemos todos imersos em um mesmo caldo pós-moderno genérico e impreciso. Trata-se, bem ao contrário, de mostrar como distintos regimes produzem distintos dilemas e invenções de complexidades corporais, a fim de que sejam capazes de lançar perspectivas uns sobre os outros e, eventualmente, de se hibridizar na invenção de estados inusitados. Afinal, o problema do desmembramento e recomposição de corpos entre os mexica e os tupinambá não está relacionado com os dilemas derivados dos fluxos de capital que, de acordo com Preciado, atravessam (mas não mais a partir de um ponto exterior) as forças orgásticas tecnovivas. São outros os fluxos em questão, que se colocam em função de complexidades igualmente outras, desafiantes na medida mesma de sua diferença e contemporaneidade.

 

Notas

1 Para outras narrativas que associam a origem de Lua à decapitação de um personagem mítico, ver Lévi-Strauss (1973/2013, p. 239 ss.).

2 A separação categórica entre sociedades do sacrifício e do xamanismo a partir da presença ou ausência de concentração de poder tem sido questionada por alguns especialistas, em especial os que se dedicam a revisar os estudos da sociedade mexica/asteca à luz da etnologia contemporânea (Navarrete Linares, 2016).

 

Referências

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Correspondência:
Pedro de Niemeyer Cesarino
pncesarino@usp.br

Recebido em 11.04.2016
Aceito em 25.04.2016

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