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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

RESENHAS

 

Sobre os fundamentos da Psicanálise: quatro cursos e um preâmbulo

 

 

Fernanda Sofio

Psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente realiza pesquisa pós-doutoral sobre Arte e Psicanálise na USP e na Columbia University. É autora de Psicanálise na UTI: morte, vida e possíveis da interpretação (Escuta, 2014) e Literacura: Psicanálise como forma literária (Fap-Unifesp; Fapesp, 2015)

Correspondência

 

 

Autor: Fabio Herrmann
Editora: Karnak, São Paulo, 2015, 344 p.
Resenhado por: Fernanda Sofio

 

 

A Teoria dos Campos se transforma, Leda Herrmann participa

Foi oportuno o lançamento, em outubro de 2015, do livro Sobre os fundamentos da Psicanálise: quatro cursos e um preâmbulo, escrito por Fabio Herrmann, falecido em 2006. Uma década depois de sua morte, já apreciamos sua forma de escrita, os conceitos formulados e a Gestalt de sua obra de um lugar revigorado. Afastados da forte e envolvente personalidade do autor, estamos aptos a tomar seus escritos pelo que são: rigorosos estudos do método freudiano desvelado, primor da psicanálise brasileira e mundial. Encontramo-nos em situação análoga à do próprio autor, em 1991, quando falava de Lacan, profeticamente descritiva do nosso momento atual:

Completam-se dez anos da morte de Lacan, tempo redondo, convencionalmente adequado para homenagens. Blocos de tempo como este são nós cegos, sua redondez aparenta-se à completude de ciclos que se encerram, quando o fim de uma história engole seu começo, como as serpentes mordendo as caudas que ornam as maiúsculas de certos escritos medievais. O tempo fechado em nó é a concepção mais vulgar da morte: ter morrido há dez anos é ter morrido de fato. Vem daí a oportunidade de homenagens, que são como pedras tumulares:

tanto servem para assinalar o local onde repousam os ossos de alguém como, é de temer, servem para impedir que o morto saia da cova e nos assombre. (p. 88)

Fabio Herrmann morreu de fato. Seu pensamento continuará vivo, enquanto assim o mantivermos. Sabemos que Herrmann descreveu como a interpretação psicanalítica acontece, resolvendo o problema da relação da clínica com a teoria particularmente pelo desenvolvimento do conceito de ruptura de campo, como bem costuma apontar Marilsa Taffarel.1 O problema era este: como deixar de nos centrar em teorias psicanalíticas já criadas, repetindo-as e "aplicando-as"? E a ideia de Herrmann: as teorias psicanalíticas conhecidas devem ser estudadas, mas são secundárias. Mais importante é pensar como as teorias são criadas em Psicanálise2 e por que funcionam, inclusive independentemente da escola de quem as formula.

Ao produzir a teoria da teoria - o que ele chamou de alta teoria - sobre como funciona o método psicanalítico, Herrmann nos liberta da repetição e incentiva cada psicanalista a criar suas próprias prototeorias, como ele as designava. São hipóteses formuladas durante um atendimento, na relação com cada paciente, ou para a discussão psicanalítica sobre algum aspecto do mundo. Prototeorias e teorias estão sempre em risco de se perder, dizia Herrmann, pois o trabalho interpretativo é um processo fluido, jamais estático. Isto é, interpretação psicanalítica não é o resultado do trabalho do analista, mas é o próprio processo tomado como resultado. Assim, a escrita da clínica é a interpretação da interpretação, e a leitura de um caso é interpretação (do leitor) da interpretação (do escritor) da interpretação (a clínica).3

Podemos pensar no texto clínico, portanto, como uma fotografia: captura um momento que, para além de si mesmo, se transforma. O processo de escrita antecede a versão "final", oficial, assim como a discussão e as subsequentes releituras do texto abrem novamente para a multiplicidade do processo. Como uma fotografia, ou um caso clínico, Sobre os fundamentos da Psicanálise: quatro cursos e um preâmbulo é um apanhado da Teoria dos Campos, mas apenas um entre os muitos possíveis do percurso de Herrmann autor. Por sua vez, a Teoria dos Campos nada mais é que a psique de Herrmann desdobrada, como disse o seu narrador da obra freudiana (Herrmann, 2002, p. 17); é o pensamento do autor - quem ele era e como pensava -tornado obra. Por isso as prototeorias e as teorias estão sempre em risco de se perder: elas são particulares a cada indivíduo que as cria e ao momento em que foram criadas - embora outros psicanalistas possam aprender com elas, e mesmo quem as criou possa fazê-lo, agora de outra perspectiva.

Por este novo livro-compêndio de textos de Herrmann, verificamos ideias básicas da Teoria dos Campos: seus conceitos e a forma do pensamento. O livro é composto de um preâmbulo - seu texto de passagem a membro da sbpsp em 1976 - e quatro cursos introdutórios a este sistema de pensamento, escritos de 1999 em diante. À versão do livro preparada pelo autor (os cursos), foi anexado por Leda Herrmann o preâmbulo (o texto de 1976), que serve de referência para se perceber como avançou o pensamento.

Os cursos têm uma intenção clara de disseminar a Teoria dos Campos fora do Brasil. Neles, notamos que, na virada do século XXI, o próprio Herrmann considerava que seu trabalho teórico tinha avançado o suficiente para ser divulgado o quanto possível. De fato, em 2004, desculpa-se pela possibilidade de ser repetitivo e compara-se a Freud, que, "no fim de sua vida", diz ele, sempre voltava aos Estudos sobre a histeria (p. 93)4 Está se referindo ao Freud transmissor da própria obra, não tanto ao criador da virada do século xx.

Ao lermos em sequência seu primeiro texto psicanalítico tornado público e os cursos de Herrmann, deparamo-nos mais uma vez com a tese de Leda5 (2007[2004]) de que o pensamento de Herrmann nasceu "inteiro", estando presente em cada parte de sua obra, e que, embora se desenvolva, não altera o rumo inicial. Minha apreensão da concepção de Leda é de ser possível a entrada no pensamento de Herrmann por qualquer lugar da obra, considerando que cada "parte" se reporta ao todo, não é independente das outras. No texto de 1976, assim como em cada um de seus cursos, estão os mesmos fundamentos da Psicanálise discutidos por ele na obra como um todo.

Verificamos, isto sim, alterações de estilo entre 1976 e os anos 2000. Como a própria Leda destaca em seu cuidadoso prefácio, o texto de 1976 "abriga muitas notas de rodapé sobre textos referidos, o que desaparece na obra a partir dos textos de meados da década de 80, provocando certa desorientação do leitor" (p. 11). Explanando um pouco mais sobre esta afirmação, vale lembrar que, em 1976, Herrmann doutorou-se pela Unicamp, apresentou-se à Sociedade Brasileira de Psicanálise e que seus textos ainda não tinham vindo a público: apresentava suas ideias pela primeira vez e no contexto de uma avaliação. Com o texto de 76, ele poderia ou não ser aceito na Sociedade Brasileira de Psicanálise. O tom utilizado é condizente com estas condições. Herrmann inicia o texto agradecendo ao seu analista, o "doutor Armando Ferrari", aos supervisores, a "senhora Lygia Amaral" e o "doutor Isaias Melsohn", e à sua "primeira professora de Psicanálise", a "senhora Regina Chnaiderman". Procede a uma "apresentação formal-prólogo" de seu trabalho (e, sabemos, de seu pensamento) e explica que lhe pareceu mais adequado reduzir seu escrito original, que tinha mais de trezentas páginas, a menos de cem (pp. 13-14).

Já em meados dos anos 1980, a situação é completamente diferente: Herrmann assume a postura de escritor. Se o faz porque pode ou porque quer, teríamos que perguntar a ele. Mas, considerando que seu estilo de escrita é de um verdadeiro mise en abyme de toda sorte de referências psicanalíticas, históricas, filosóficas, literárias, artísticas, antropológicas, sociais, econômicas e políticas, entre outras, exigir dele que seus textos se mantivessem "mais didáticos", ou que ele "citasse mais", não seria apenas fútil, mas também uma incompreensão de seu projeto, e seria, inclusive, dar um passo atrás. Trocando em miúdos, seria como pedir a Joyce para fazer o mesmo. Nesse sentido, destaco o subcapítulo do livro "Quem? Hoje, Joyce" (pp. 183-193), que fala tanto de Joyce e da escrita psicanalítica como do estilo singular do autor Fabio Herrmann. Tomemos esta observação: "Num romance, de hábito, o autor insere delicadamente alguma referência às obras-mãe. Joyce também, só que todas ao mesmo tempo, toda a literatura" (p. 191). Ela refere-se a Joyce, mas cabe como uma luva para pensarmos os textos do próprio Herrmann.

Retomando a ideia discutida anteriormente, é isto que quero dizer com os escritos de Herrmann serem a sua "psique desdobrada". Ao falar de Psicanálise, ou de Joyce, ele inevitavelmente está falando de si mesmo. Assim como um psicanalista que conta um caso clínico fala de si, e como um paciente que fala do seu dia também o faz. Se em 1976 Herrmann mostra que sabe fazer um trabalho acadêmico, com referências e notas explicativas, é a partir de meados de 1980 que a trajetória do autor vai tomando corpo, e vai se produzindo a sua muito elaborada Teoria dos Campos - que por sua vez é nada mais nada menos que uma psicanálise possível criada por este autor. O convite está sempre aberto para a escrita de outras interpretações da Psicanálise.

Por fim, um comentário sobre como ler Herrmann. Sua escrita, como a de Freud, é a de um escritor literário, como tenho dito. E isto também nesse sentido: a experiência de leitura da obra ensina a fazer psicanálises. Os conceitos até poderiam ser destrinchados em algumas páginas e aprendidos, mas isso não "ensinaria" a trabalhar psicanaliticamente. Mesmo porque cada psicanalista terá que desvendar seu próprio estilo. Ler obras psicanalíticas está para o psicanalista como ler obras literárias para o escritor. Não se trata de buscar reproduzir ou meramente aprender técnicas, mas de ampliar um repertório e criar algo novo. Aprende-se Psicanálise ao usá-la e ao lê-la; não há qualquer atalho. Estudar os conceitos da Teoria dos Campos e não ler os textos do autor equivale a analisar a técnica de monólogo interior sem ler Joyce ou outros.

P.S.: Não saberia dizer se foi apenas por ser mais prático que Leda incluiu o texto de 1976 como preâmbulo ao livro. Afinal, ela explicita que o texto é "fundador do pensamento do Fabio" (p. 10), porém "muito extenso para um artigo, muito curto para um livro" (p. 9). Publicá-lo neste livro era, portanto, uma oportunidade tentadora, embora, como ela explica, na organização original de Herrmann o volume albergasse apenas os dois cursos intitulados "O que é a Teoria dos Campos", ministrados em New Orleans, em 2004, e em Oslo, em 1999, e as quatro meditações clínicas - textos discutidos nos cursos ministrados entre 2002 e 2006 na PUC-SP e na sbpsp. O fato é que, ao fazer esta inclusão, Leda acrescenta uma dimensão histórica importante a este livro, que convida ao estudo da forma narrativa e da evolução da escrita do autor. Temos aqui um testemunho do início de um percurso e de seu fim: o primeiro texto de Herrmann que veio a público (pois o único texto anterior, que era sobre o campo e a relação, estava datilografado e se perdeu) e alguns de seus últimos textos (embora haja textos posteriores aos do livro, estes foram escritos nos últimos seis anos de sua vida). O compêndio ganha esta nova dimensão e torna-se possível a observação: cada um dos textos escolhidos por Herrmann e por Leda para compor o livro, tomado individualmente e no conjunto, revela o tema central que está no título escolhido pelo autor: Sobre os fundamentos da Psicanálise. De 1976 aos últimos textos de Herrmann, estamos diante dos fundamentos de uma ciência em construção, de um sistema de pensamento e de uma obra cuja qualidade literária é inestimável.

 

Notas

1 Esta ideia de Marilsa Taffarel nasceu de sua tese de doutoramento defendida em 2005, ainda não publicada. Ela costuma utilizá-la em seus comentários orais e escritos sobre a Teoria dos Campos e a história da Psicanálise. A ideia é importante para a fortuna crítica do pensamento de Fabio Herrmann.

2 A Teoria dos Campos considera Psicanálise com inicial maiúscula a ciência ou disciplina da Psicanálise e, com inicial minúscula, os exemplos de clínica psicanalítica (como em psicanálise da vida contemporânea), ou seja, suas formas adjetivadas. Ao falar da obra de Herrmann, mantenho esta diferenciação.

3 Observamos aqui um traço foucaultiano na escrita de Fabio, mas não entrarei neste mérito, pois seria condizente entrar então nos traços merleau-pontyano, mel-sohniano, joyceano, kafkiano, borgiano, entre outros, da escrita desse autor.

4 Minha pesquisa tem sido discutir um segundo Fabio, que surge a partir do esgotamento da pesquisa da alta teoria psicanalítica. Trata-se de um deslocamento da perspectiva filosófica em direção às artes. Se na primeira metade de sua obra, que vai no mínimo até 2002, mas que continua depois com as meditações clínicas, Fabio descreve o método da Psicanálise, numa espécie de segunda metade de sua obra, ele adentra as artes - literária, fotográfica e poética - para explorar a forma de apresentação de suas ideias. A partir desse momento, sua inovação dá-se mais no âmbito da experimentação formal. Para descrever sua obra de 2002 em diante, adoto o termo que ele usou em seu livro publicado naquele ano: ficções freudianas.

5 Tenho optado por usar o primeiro nome da autora, mantendo o sobrenome, Herrmann, apenas nas referências a Fabio Herrmann.

 

Referências

Herrmann, F. (1991). Preâmbulo em homenagem a Jacques Lacan. Ide, 21,86-91.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Herrmann, L. (2007). Andaimes do real: a construção de um pensamento. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Taffarel, M. (2005). O método psicanalítico: sua identificação desde a história da Psicanálise e sua relação com o método nas ciências. Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Fernanda Sofio
Av. Eng. Luís Carlos Berrini, 1.748, conj. 1.608
04571-000 São Paulo, SP
fernanda.sofio@USP.br

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