SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.50 issue2Sobre os fundamentos da Psicanálise: quatro cursos e um preâmbuloEstados não representados e a construção de significado: contribuições clínicas e teóricas author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

RESENHAS

 

Rupturas traumáticas: abandono e traição na relação analítica

 

 

Susana Muszkat

Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Organizadora: Robin A. Deutsch
Editora: Routledge, New York, 2014, 219 p.
Resenhado por: Susana Muszkat

 

 

Traumatic Ruptures: Abandonment and betrayal in the analytic relationship, lançado em 2014 pela Routledge e ainda sem tradução para o português, faz parte de uma série denominada The Relational Perspectives Book Series. Corrente teórica pouco difundida ou mesmo conhecida entre nós, latino-americanos, a psicanálise relacional tem, na América do Norte, forte presença.

O livro, como o título já anuncia, trata de situações de rupturas vividas como traumáticas na relação analítica. Tem, ainda, como mais um elemento original o fato de que todos os relatos aqui apresentados são experiências vividas pelos próprios analistas, e não, como habitualmente acontece nos livros de teoria psicanalítica, descrições de casos clínicos (ainda que se encontrem alguns exemplos clínicos entremeados nas histórias pessoais). Assim, é um livro de "testemunho", como diz uma das prefaciadoras, Muriel Dimen.

Em suas palavras: "O analista tende a falar pelo paciente. Os capítulos neste livro, contrariamente, empregam uma forma de discurso que atinge múltiplas camadas. Os autores não só relatam como também tratam diretamente de suas experiências de perda, fratura e desilusão" (p. XV).

Assim, num tom próximo ao confessional e de autorreflexão, os autores se expõem de forma surpreendente, não poupando nem a si mesmos nem às instituições psicanalíticas a que pertencem ou à comunidade psicanalítica como um todo.

A organizadora e também uma das autoras deste livro, Robin Deutsch, é uma analista californiana da corrente da psicanálise relacional, ex-presidente da ipso (organização internacional dos analistas em formação). Mais recentemente, encerrou seu mandato como presidente do San Francisco Center for Psychoanalysis, Sociedade filiada à IPA à qual pertence. Há alguns anos, conta-nos Robin, despede-se de sua analista para o que seriam dez dias de férias. Levanta-se do divã e diz: "Nos vemos na segunda-feira, daqui a dez dias". A analista lhe sorri, confirmando assim a data de seu retorno. No nono dia de férias, um dia antes de seu retorno, Robin recebe um telefonema de outro analista informando-lhe que sua analista havia morrido durante a noite (p. 32).

Esse é o disparador para o que posteriormente se concretizou na feitura deste livro, que, vale notar, recebeu indicação ao Gradiva Award, prêmio concedido a trabalhos que contribuem com o avanço da psicanálise.

Robin escreve a introdução e o terceiro capítulo deste livro - "A voice lost, a voice found: after the death of the analyst" -, em que, de forma muito tocante, narra seu processo de luto e elaboração da penosa ruptura em sua análise, por meio de seus inúmeros sonhos, todos aqui relatados. Tive o prazer de ser comentadora deste trabalho quando de sua primeira apresentação no Congresso da ipa em Chicago, em 2009, e agora tenho o prazer de apresentá-lo - e ao livro que este trabalho ensejou -aos nossos colegas brasileiros.

Cada autor descreve uma vivência pessoal de ruptura traumática, como perda do analista por morte, perda do analista por violação ética e/ou de cunho sexual, perda de paciente por suicídio, término da análise como ruptura prevista e trabalhada ou imprevista, perda de um ente próximo querido abalando o analista em sua condição de analista, violência institucional durante a formação, e a experiência de ser o "segundo analista" de um paciente que perdeu o analista anterior.

O livro é composto de cinco partes, cada uma delas agrupando capítulos com temáticas relacionadas entre si. A primeira parte, Subjetividade rompida: perda e reencontro, descreve a vivência de profundo abalo e sofrimento pessoal para o analista em decorrência da perda de alguém muito próximo e estruturante em sua vida. Aqui os analistas falam intimamente de si.

A segunda parte, Ruptura: o processo clínico, aborda a abrupta e inesperada ruptura do processo analítico, seja pela morte inesperada do analista, seja pelo suicídio do paciente. No primeiro caso, a vivência descrita pelas pacientes (que também são analistas) é equiparada àquela de uma criança que experimenta uma variedade de falhas parentais ou, mesmo, a morte destes (p. 49).

O suicídio de um paciente - ou de mais de um - é também descrito aqui com muita honestidade, discorrendo-se sobre os inúmeros efeitos possíveis sobre o analista cujo paciente recorre a este tipo de medida inesperada e traumática, desde o sofrimento pelo paciente, o sentimento de impotência e eventual depressão, a desconfiança dos colegas ou familiares quanto à sua competência profissional, as dúvidas sobre sua própria identidade e competência profissionais, os possíveis processos legais - tão comuns no hemisfério Norte e ainda raros entre nós na América do Sul -, enfrentados com perdas em vários níveis, até o abandono ou mudança no rumo da profissão, a fim de evitar ter que enfrentar algo semelhante novamente.

A longa sombra da ruptura é o título da terceira parte do livro, que igualmente aborda algo que recebe pouca atenção entre nós, latino-americanos: violações éticas, violações de cunho sexual e seus efeitos de maior ou menor duração sobre o paciente (aqui, os exemplos são sempre de analistas em formação nos Institutos), sobre o analista e sobre a instituição.

Nas palavras de Elizabeth Wallace, autora do capítulo 7:

O impacto desses eventos que ocorreram durante minha formação psicanalítica reverberou ao longo de minha análise didática, no meu trabalho e no meu relacionamento com a comunidade psicanalítica em muitos níveis. Infelizmente, minha experiência não é rara, embora seja muito raramente discutida. (p. 93)

O impacto das rupturas nas organizações é a próxima parte: segue tratando de diferentes tipos de violações e do impacto destas sobre as organizações, os Institutos e Sociedades. O caráter transgeracional de algumas destas violações é debatido, dando às organizações o estatuto de famílias. Aqui, os temas do segredo e da negação aparecem no que têm de central nas transmissões entre as gerações de analistas e na manutenção da doença institucional.

A quinta e última parte, Trabalho final [Endpaper], faz um apanhado geral das diversas modalidades de despedida, sempre dolorosas, já que o risco de se adentrar uma análise é o de ter que se deparar com a finitude, ainda que seja pelo final planejado de uma análise. Diz a autora Dianne Elise:

a perda do analista pode ser literal, por morte, ou simbólica, como consequência de uma violação ética do analista. [...] Tal ruptura tem profundas implicações para o analisando em sua experiência subjetiva do tempo e do término [termination] da análise. (p. 199)

Ressalto a palavra usada pela autora em inglês, tema muito caro na cultura psicanalítica norte-americana, sendo inclusive assunto de seminários da grade curricular na formação analítica. Uma ampla reflexão das aquisições e perdas vividas, inerentes à passagem do tempo, é o cerne deste último capítulo.

Este é, sem dúvida, um livro original. Ele nos convoca a pensar psicanaliticamente a partir de outro vértice, direcionando a luz da cena sobre o analista e sua humanidade, em tudo que isso abarca: falibilidade, temores, generosidade, aspectos infantis e/ou violentos, fragilidade, vulnerabilidade e mortalidade! "Somos seres vulneráveis e também adoecemos" (p. 79), lembra a autora do capítulo 6, a sueca Madeleine Bachner, ao falar de sua experiência e responsabilidade - inclusive em manter-se viva - de ser a analista subsequente à morte de outro analista. Mais adiante, declara: "como indivíduos e como grupo profissional, somos despreparados para lidar com a morte" (p. 79).

Esta é, portanto, uma obra que se arrisca em temas que nós, psicanalistas, habitualmente evitamos tanto na formação quanto nas discussões e produções científicas.

Mais especificamente no cardápio psicanalítico brasileiro e latino-americano, pouco ou nada se lê sobre temas como término da análise e violação ética. Vale saber como aparecem na literatura de culturas distintas da nossa.

 

 

Correspondência:
Susana Muszkat
Rua Jericó, 255/68
05435-040 São Paulo, SP
smuszkat@terra.com.br

Creative Commons License