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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

RESENHAS

 

Estados não representados e a construção de significado: contribuições clínicas e teóricas

 

 

Vera L. C. Lamanno-Adamo

Membro efetivo e analista didata do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Campinas (GEP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

Autores: Howard B. Levine, Gail S. Reed, Dominique Scarfone, Marilia Aisenstein, Jacques André, Christine Anzieu-Premmereur, César Botella, Sára Botella, Roosevelt M. S. Cassorla, Giuseppe Civitarese, Laurence Kahn e Marion M. Oliner
Editores: Howard B. Levine, Gail S. Reed e Dominique Scarfone Editora: Karnac, Reino Unido, 2015, 283 p.
Resenhado por: Vera L. C. Lamanno-Adamo

 

 

Este livro, o primeiro em sua versão brasileira, dá continuidade à série Ideias e aplicações psicanalíticas, do Comitê de Publicações da Associação Psicanalítica Internacional, em parceria com a editora Karnac.

O objetivo deste livro é abordar o complexo campo dos estados não representados da mente, apresentando aos leitores o desenvolvimento deste conceito no pensamento psicanalítico. Concomitantemente ao empenho dos autores em abordar aspectos teóricos sobre o não representado, discute-se também detalhado material clínico, dando destaque às expansões necessárias em nossa escuta e intervenção clínica, que possibilitam o trabalho com pacientes que apresentam falhas no processo de representação ou incapacidade de representar.

Após a morte de Freud, segundo Levine, Reed e Scarfone, os analistas se confrontaram com pacientes que apresentavam falta de uma capacidade de representação e a necessidade de criar estruturas em seus pacientes. Em 1975, no congresso da Associação Psicanalítica Internacional realizado em Londres, André Green, um dos principais participantes, em resposta ao tema do evento, Mudanças na prática e experiência clínica, defendeu uma mudança significativa, alertando para o aumento na quantidade de pacientes que não poderiam ser ajudados caso a psicanálise limitasse o tratamento a uma teoria baseada no conceito das neuroses.

Anna Freud rejeitou o que denominou de ambição terapêutica de Green: "ela insistiu que a psicanálise deveria ficar com objetivos modestos e intensificação de insight" (p. 14).

Green não aceitou a recomendação de Anna Freud e levou suas pesquisas teórica e clínica para além do tratamento psicanalítico clássico das neuroses, abrindo caminho para uma noção da psique com áreas que apresentam uma ausência de representação, hoje definidas como áreas ainda não representadas, não representadas ou pouco representadas.

Vários psicanalistas vêm se debruçando sobre este universo mental que tanto intrigou Green: "um universo desprovido de presenças, mas onde é impossível constituir ausências" (p. 13).

Na segunda parte do livro, Presença e ausência: estudos teóricos, encontramos textos que tentam dar conta deste complexo universo destituído de presença e ausência.

Bastante esclarecedor é o texto de Scarfone: "De traços a signos: apresentação e representação". Nele, Scarfone traz um interessante modelo de mente fundamentado na diferenciação entre soma, mente primordial e campo psíquico, articulando estes conceitos com o estudo de Charles Pierce sobre signos. Discute estas diferentes modalidades de funcionamento mental apoiado também em conceitos elaborados por Bion, Aulagnier, Pierre Marty e Michel de M'Uzan. Insiste na noção de um conceito de transferência fundamentado em um modelo mais geral de funcionamento: "se a transferência funciona na análise, ela deve se basear num modelo mais geral de funcionamento - um que estivesse funcionando no momento de diferenciação entre a mente primordial e o campo psíquico" (p. 86). Através de um circuito maior pela presença do outro, a transferência é vista pelo autor como uma forma de ação por meio da qual é possível transportar e transformar uma quantidade de excitação da região primordial para a região psíquica da mente.

César e Sára Botella contribuem para o entendimento deste tipo de transformação, descrevendo e discutindo os conceitos e o trabalho de figurabilidade. Em seu texto, esclarecem como estes conceitos apresentaram-se a eles progressivamente durante a experiência com estados mentais insuficientemente representados ou irrepresentáveis, a partir do tratamento de crianças que, na França, eram consideradas pré-psicóticas. Argumentam sobre o termo figurabilidade com base no uso que Freud fez dele, principalmente em A interpretação dos sonhos, e oferecem os desdobramentos teóricos e clínicos deste conceito que vêm desenvolvendo desde 1983.

Logo em seguida, temos o texto de Laurence Khan, "Se apenas soubéssemos o que existe!". De forma instigante e provocativa, o autor aborda a problemática entre figurabilidade e apresentabilidade e adensa questões sobre as vicissitudes do trabalho de representação.

Dando continuidade aos estudos teóricos sobre presença e ausência, Marion M. Oliner lança a seguinte pergunta: "Como falar sobre estados mentais não representados?" (p. 149). O seu interesse por estes estados mentais, a partir do estudo sobre os efeitos do trauma, levou-a a questionar sobre o contraste entre a suposta falta de representação do trauma e a incrível precisão dos enactments e atualizações de eventos catastróficos que, de outro modo, não estão disponíveis à consciência. Marion, fundamentada em diversos autores, explora a natureza dos traços mnêmicos deixados pelo trauma e traz uma interessante articulação entre traços mnêmicos e sua ligação emocional com os sentidos.

Na terceira parte do livro, Explorações clínicas, cinco textos descrevem em detalhes experiências clínicas que salientam a natureza singular e específica do trabalho com pacientes incapazes de representar o objeto na sua ausência. Estes textos enriquecem a reflexão de uma questão levantada por Levine, Reed e Scarfone na introdução: "Em nossa ambição terapêutica, ou mesmo esforços em direção à onipotência, chegamos longe demais? Ou aprendemos a ver e compreender coisas que não sabíamos como ver antes?" (pp. 14-15).

Marilia Aisenstein traz a história de Makiko, uma jovem japonesa de 28 anos que não se podia ouvir e que tinha câncer de cólon. Aisenstein relata de forma detalhada "como a doença desta paciente, vivenciada como um golpe opaco do destino, se torna objeto de elaboração psíquica graças ao trabalho analítico" (p. 175). Explicita, ao longo do texto, a participação intersubjetiva do analista no processo terapêutico.

Jacques André traz uma reflexão sobre seu trabalho com Lise, a mulher que se cobria com uma membrana muito fina e paradoxal de palavras: "a carne de uma palavra era o suficiente para fazê-la estremecer, com os cabelos em pé" (p. 192).

Roosevelt Cassorla conceitua áreas mentais constituídas de sonhos e áreas mentais constituídas de não sonhos, explicitando articulações entre elas e com o conceito de enactment. Fragmentos da experiência clínica com Paulo e Ana são destacados para esclarecer como estas áreas se apresentavam nas sessões e como o analista realizava o trabalho de sonho em busca de simbolização.

Giuseppe Civitarese esmiúça, a partir do trabalho com A., uma menina quieta e melancólica que apresentava defesas autistas, como a rêverie do analista pode gradualmente levar à figurabilidade no paciente.

Christine Anzieu-Premmereur compartilha conosco o seu pensamento sobre o processo de representação na primeira infância e discute seu trabalho terapêutico com bebês e crianças pequenas com seus pais.

Deixei por último os textos que compõem a primeira parte do livro: Aspectos clínicos e teóricos da representação: uma introdução.

Os très textos, elaborados por Levine, Reed e Scarfone, são muito mais que introdutórios: demonstram uma compreensão profunda e expandida dos conceitos inicialmente elaborados por Green, Bion e Winnicott sobre estados mentais não representados e da demanda imposta ao analista no tratamento psicanalítico com pacientes não neuróticos.

Estados não representados e a construção de significado realiza, com mérito, os objetivos do Comitê de Publicações da IPA: contribui de forma notável para o campo psicanalítico, aprofunda ideias sobre o tema a partir das perspectivas da teoria, prática clínica, técnica e pesquisa, de modo a manter sua validade para a psicanálise contemporânea.

 

 

Correspondência:
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Rua João Mendes Júnior, 180/17, Cambuí
13024-030 Campinas, SP
Tel: 19 3254-0824
vlamannoadamo@gmail.com

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