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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.2 São Paulo Apr./June 2016

 

RESENHAS

 

Psicanálise da vida cotidiana

 

 

Cláudia Aparecida Carneiro

Psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBSB), psicóloga e jornalista

Correspondência

 

 

Autor: Carlos Vieira
Apresentação: Affonso Romano de Sant'Anna Editora: Technopolitik, Brasília, 2015, 176 p.
Resenhado por: Cláudia Aparecida Carneiro

 

 

Psicanálise da vida cotidiana é um livro que aborda as contradições e anseios da existência. O gênero escolhido pelo autor é preciso para tratar de temas pungentes, que marcam a experiência humana e chegam ao divã, colhidos dos fatos diários da vida das pessoas. A crônica tem esta qualidade: toca o complexo em linguagem coloquial e espontânea, de caráter utilitário. É como preparar um molho de sofisticado sabor na cozinha do dia a dia - o que faz a diferença é o tempero. Este livro é temperado com as paixões humanas.

Amor, ódio, inveja, medos, rivalidades, lutos, desamparo, solidão, gratidão e o que mais couber na condição humana dão o sabor às crônicas de Carlos Vieira, selecionadas de sua coluna semanal homônima, veiculada no blog de um jornal de grande circulação. O autor dirige-se ao público leigo, mas também a psicanalistas e profissionais afins, para discutir temas próximos ou íntimos à realidade interna e externa do leitor, sem formalismos ou pretensões teóricas.

Já na frase inicial da primeira crônica, "A capacidade de estar sozinho", Vieira expressa a ideia de como nosso cotidiano é tecido nas contradições do existir. "Somos seres que começam a vida numa extrema dependência física e emocional, condição imprescindível para o desenvolvimento de uma futura autonomia" (p. 15). No texto seguinte, resgata o tema do paradoxo da chegada ao mundo e a perda do paraíso uterino. A vida, ressalta, instaura-se com um ganho e simultaneamente com uma perda: além da proteção aos estímulos mais contundentes, perde-se o calor, a sonoridade e a sensação de estar contido. Uma mudança catastrófica, por meio da qual se inicia a longa jornada para a expansão do ser.

A leitura de Psicanálise da vida cotidiana pode começar em qualquer página de suas quarenta e quatro crônicas. Uma ordem se insinua, no entanto, ao me propor um olhar investigativo, e torna-se possível distinguir quatro eixos de reflexão nos temas escolhidos pelo autor: (1) ser no mundo; (2) ser no tempo; (3) das emoções e relações humanas; (4) ética, verdade e a função social da psicanálise. Num último agrupamento imaginário, uma porção de crônicas que homenageiam os poetas maiores e versam sobre a relação entre literatura e psicanálise - tema da mais alta prioridade para o autor em seus estudos e pesquisas atuais.

O primeiro eixo - ser no mundo -abrange reflexões do psicanalista sobre a condição humana, sua vulnerabilidade e sua ambivalência. Escreve Vieira ser a condição humana, a princípio, de extrema dependência, fenômeno este fundador de um modelo inaugural de relação - "o modelo da paixão, do entranhamento do Eu com o Outro" (p. 84), o qual, nesse início, ainda não é vivenciado como separado e indivíduo, mas como uma extensão do Eu ("Separados e juntos: uma forma sana de viver"). O autor conversa com os pais-leitores sobre a importância de respeitarem o que chama de espaços de separação e facilitarem à criança uma "solidão amparada" - para a qual muitos pais, geralmente, não estão preparados, pois não elaboraram suas próprias angústias de separação e tendem a uma relação fusional com os filhos.

A escrita coloquial permite que o autor aborde temas de complexidade teórica sem utilizar-se de qualquer termo científico e alcance o leitor com a leveza e a permeabilidade que caracterizam o gênero literário escolhido. Pode-se provar da sutileza textual em praticamente todas as crônicas. Como ocorre em "A importância do sonhar": "nos sonhos mostramos e entramos em contato com nossa loucura pessoal" (p. 92); ou em "Sombras e realidade", em que desenvolve a ideia de que o maior pavor é ficcional, proveniente dos enganos de percepção, do excesso de imaginação: "desde crianças criamos um mundo de mentiras, enganos e sombras, até que possamos exercitar a diferença entre imagem real e imagem fantasiada dos objetos e pessoas" (p. 95).

As crônicas de Carlos Vieira sugerem uma intencionalidade, uma disposição de levar ao leitor leigo uma contribuição do trabalho analítico. Para isso, o autor improvisa com poesia, literatura e filosofia, traduzindo conceitos e práticas da psicanálise e transmitindo conhecimento de forma não acadêmica. Em "Ser e não ser: eis a questão!", narra uma passagem de Sêneca em suas Cartas consolatorias, especificamente aquela dirigida a Marta, uma mulher que havia perdido o filho e caído em profunda depressão. No espírito do grupo criado pelo filósofo e seus colegas, denominado Consoladores de Almas, Sêneca escreve a Marta que a morte de seu filho já estava anunciada no dia em que ela o pariu. A mortalidade, a finitude - prossegue Vieira - são condições intrínsecas à natureza humana; "o aparecimento da vida denuncia a morte" (p. 124).

Na crônica citada, Vieira descreve com beleza a experiência de ser no mundo:

Iniciamos a vida num grito de socorro, numa ventania de angústia, em busca de alguém que nos proteja da precariedade da nossa condição humana. Necessitamos do Outro para sobreviver. São os nossos pais que nos dão um nome, um sobrenome, o que não quer dizer que dão uma personalidade, um Ser a nós. Ser é uma conquista, uma luta incessante para encontrar uma individualidade, uma marca, um estilo próprio. É uma experiência ousada, corajosa [...]. Ser é angústia, é dor de se fazer, mesmo que esse fazer não signifique que tenhamos de jogar fora os exemplos bons que nos deram. (p. 125)

O segundo eixo - ser no tempo - reúne textos em que o autor discorre sobre viver num mundo de urgência, contradições, pavor aos afetos, e sobre as vicissitudes do ser contemporâneo. Vieira convoca-nos ao questionamento de como vivemos, sentimos e nos relacionamos no mundo pós-moderno, e da função do psicanalista diante dos novos modos de subjetivação e interrelação. "Será que estamos vivendo a predominância da relação de posse para a satisfação puramente física, sexual, material, em detrimento da relação amorosa de parceria, complementação e tolerância às diferenças?" ("Medo e paixão", p. 146).

O autor provoca-nos a refletir sobre como estamos vivendo, subjetivamente, a questão do tempo, se mais ocupados com a memória do passado e a memória do futuro, em negligência ao prazer, à alegria, ao incômodo e à dor do presente ("A experiência do tempo presente", p. 22). Nesse debate, conclama os psicanalistas a refletir sobre a necessidade de exercitar, constantemente, a postura da atenção flutuante legada por Freud, hoje - adverte o autor -com novas roupagens a serem trabalhadas ("Culto à imagem e narcisismo", p. 28). Em outra crônica, discute a psicanálise e o psicanalista e propõe que sua função primordial é "pensar as experiências emocionais não pensadas de seus clientes, fazê-los conhecer melhor seus conflitos e minorar, desse modo, a angústia de viver" (p. 109).

Um terceiro eixo de pensamento - das emoções e relações humanas - traz escritos sobre a amorosidade, a generosidade, o sentimento de luto e da saudade, a destrutividade humana, a esperança, entre outros. Num texto cujo título pode provocar incômodo às mães leitoras, "Amor e ódio da mãe pelo bebê", Vieira explora o tema discorrendo sobre a verdade dos sentimentos experienciados pelas mães. Respaldado em Winnicott, expõe razões que as levam a sentir raiva e ódio de seus filhos. Ressalta que não se nasce mãe - aprende-se a ser mãe na experiência cotidiana de alegrias e tristezas com seus pequenos. E adverte que gratidão não se deve exigir, pois é sentimento complexo.

Com referências à Divina comédia, de Dante Alighieri, para tratar da "Trágica comédia da cpmf da saúde", ou recorrendo ao livro do Eclesiastes e ao rei Salomão (identificado como autor desse texto bíblico) para falar dos escândalos na política nacional, Vieira traça um quarto eixo em seu conjunto de crônicas - sobre ética, verdade e a função social da psicanálise. A seleção de textos é incrementada com ideias de por que a sociedade atual carece de pilares de sustentação da integridade física, emocional e ética das pessoas.

Se a juventude perdeu a fé na ética e o Estado reforça essa triste realidade com os escândalos políticos, a autor insiste em sua convicção sobre a função social da psicanálise. Enfatiza que a psicanálise contribui para resgatar os sentimentos recalcados de amor, generosidade e respeito pelos outros e o compromisso com a verdade e a ética.

Para dar mais sabor ao seu molho literário, Carlos Vieira dedica crônicas da Psicanálise da vida cotidiana a gigantes da literatura brasileira - Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Affonso Romano de Sant'anna (que faz a apresentação do livro) - e também ao arquiteto Oscar Niemeyer, "O gênio dissonante".

Sobre os poetas, o autor escreve que, como todos os artistas, cientistas e místicos, eles têm a capacidade de intuir fatos que se encontram no mundo, nunca pensados pelas pessoas comuns. Sua diferença é que "são capazes de sofrer angústias primitivas que ainda não podem ser nomeadas" (p. 120). É nesse campo da experiência onírica que poeta e psicanalista se encontram, ao apreenderem os fenômenos da psique - nas palavras do autor, "num estado onírico sobre o onírico do outro".

As crônicas de Vieira nos fazem recordar o que já nos ensinaram Drummond, Nelson Rodrigues e outros mestres da crônica literária: que não se pode falar de verdades impressas nos fatos corriqueiros sem tocar, ao fundo, as aflições humanas. Vieira, que extrai de sua larga experiência clínica a sensibilidade para perceber a verdade, vale-se do pensamento de outro gênio literário, James Joyce, que não se deixa confiar nas aparências: escreve Joyce, na obra De santos e sábios, que "não há nada tão enganador, e por isso mesmo tão atraente, quanto uma superfície calma" (p. 110). Atrevo-me aqui a seguir a ideia de Joyce: nada tão enganador quanto a trivialidade de um livro sobre o cotidiano. Psicanalistas e poetas não passeiam pela vida despercebidos.

 

 

Correspondência:
Cláudia Aparecida Carneiro
SHIS QI 09, bloco E-2, sala 309
71660-250 Brasília, DF
claudiacarneiro@hotmail.com

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