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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Silvana Rea

Editora

 

 

Em 1883, o jovem Freud escreve à sua então noiva Martha Bernays:

Um fracasso em uma investigação estimula a criatividade. Cria um livre fluxo de associações, faz surgir uma ideia atrás de outra, ao passo que, uma vez assumido o êxito, aparece com ele um estreitamento e torpor mental que obriga a retroceder ao estabelecido e impede uma nova combinação. (Caparrós, 1997, p. 309)

Poucos anos depois, ele se desconcerta com as ideias de Charcot, em Salpêtrière. No prefácio à tradução das Conferências sobre as doenças do sistema nervoso, ele afirma que só pôde se dedicar a esta tarefa "após superar minha perplexidade inicial diante das novas descobertas de Charcot, e depois que aprendi a avaliar a sua grande importância" (Freud, 1886/1969, p. 53).

Uma atitude adotada por Freud por toda a sua vida, e que o fez ultrapassar os limites do conhecimento do ser humano. Ao surpreender-se com aquilo que escapa ao estabelecido, como os lapsos de memória, as trocas de palavras, os sonhos, ele construiu a psicanálise. Foi dando atenção ao equívoco e ao inusitado que neles encontrou o indício de que existe, no homem, uma comunicação que se subordina a outra ordem.

A psicanálise provocou desconcertos na comunidade científica da época, ao abalar as convicções do século das luzes e sua defesa da racionalidade humana. Com ela, o homem racional e unitário deu lugar ao homem fendido do inconsciente.

Uma investigação que já fora empreendida por Franz Brentano, professor na Universidade de Viena, e que intrigara Freud com o pressuposto de uma "consciência inconsciente" atuando no psiquismo. Mas o espanto do discípulo o fez ir além de seu mestre. A partir dele, o inconsciente conquistou o estatuto de alteridade, com leis e lógica próprias - uma noção que, para certa surpresa nossa, ainda hoje desconcerta setores do conhecimento científico.

Exercemos a psicanálise cotidianamente nos consultórios. Em nossa prática clínica, confrontamos a alteridade do inconsciente em nós mesmos e na relação com o paciente, que chega com suas questões e com sua proposta transferencial. Como o encontro com o outro é traumático, em algum momento algo desconcertante quebra nossas certezas, ainda que ínfimas; destrói nossa sensação de êxito, ainda que momentânea; e estimula a nossa criatividade.

São situações imprevistas que deixam o analista desconcertado: um engano, uma provocação, uma quebra de setting; pode ser um sobressalto que excede a sua possibilidade de representação, ou o impacto da surpresa, do estranho que surge no familiar das sessões com determinado paciente; algo que o leve a agir - por vezes, um acting out; ou o analista age guiado por um pensamento não pensado, que só pode ser organizado a posteriori, muitas vezes depois da conversa com um colega, ou talvez de uma supervisão. Do que ele, realmente, lançou mão? Qual foi o recurso por ele utilizado?

Qualquer analista já viveu algumas situações desse tipo. São aquelas que não se aquietam; voltam à lembrança recorrentemente, pois o espanto que elas causam produz uma memória que permanece incômoda (um fracasso?), que exige alguma elaboração, que nos convida a ir além do estabelecido, criando novas combinações, como nas palavras de Freud. São oportunidades para a reflexão e a teorização psicanalítica sobre as quais vale a pena escrever.

De fato, na visão aristotélica, a origem e a evolução do pensamento (e, portanto, da filosofia) dão-se a partir do espanto, momento no qual aquilo que era evidente torna-se inédito e incompreensível. O sentido da perplexidade leva à suspensão de certezas, incita o querer conhecer, exige uma reorganização do saber. Aqui o analista é aparentado do filósofo, pois, como diz Kristeva (2000), é fundamental a qualquer psicanalista em seu exercício a experiência de uma surpresa desconhecida e a posterior compreensão desse choque.

Afinal, como afirma Roussillon (2006), a pragmática da intervenção do analista é de suma importância no curso de uma situação-limite. As condições de analisabilidade para qualquer análise dependem da dinâmica transferencial/contratransferencial, mas principalmente dependem das concepções técnicas do analista, ou de sua teoria da prática - que muitas vezes é posta em xeque.

Fica aqui nosso convite para essa reflexão, pelas palavras dos colaboradores deste número.

 

Referências

Caparros, N. (Ed.). (1997). Correspondencia de Sigmund Freud (N. Caparros, Trad., Vol. 1). Madrid: Biblioteca Nueva.         [ Links ]

Freud, S. (1969). Prefácio à tradução das Conferências sobre as doenças do sistema nervoso, de Charcot. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 1, pp. 51-56). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1886)        [ Links ]

Kristeva, J. (2000). Sentido e contrassenso da revolta (A. M. Scherer, Trad.). Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Roussillon, R. (2006). Paradoxos e situações limites em psicanálise (P. Neves, Trad.). São Leopoldo: Unisinos.         [ Links ]

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