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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo July/Sept. 2016

 

EM PAUTA

 

O analista desconcertado e suas lembranças: se arrependimento matasse...

 

The disconcerted psychoanalyst and his memories: if regrets could kill...

 

El analista desconcertado y sus recuerdos: si el arrepentimiento matara...

 

 

Paulo Marchon

Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), da Sociedade Psicanalitica do Recife (SPRPE) e da Sociedade Psicanalítica de Fortaleza (SPFOR)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor conta suas aventuras e desventuras com pacientes desde as primicias de sua atividade como candidato e na continuação de sua formação até hoje. Imaginou como titulo maior da série de casos apresentados: "Se arrependimento matasse..." Reserva especial consideração para dois pacientes: o caso do rapaz de vida "largada" e o da mocinha injustamente acusada de seduzir o pai - paciente que adota, então, uma imagem aparentemente masculinizada, que vai se desfazendo na análise, inclusive somaticamente, lembrando um filme de Fellini. No filme, as escavações no subsolo de Roma deixam apenas entrever imagens cujos pigmentos se tornam descorados ao entrar em contato com o ar atmosférico. Assim seriam as imagens masculinizadas construidas pela paciente sob o impacto edipiano e que, com o oxigênio da análise, se desfariam, dando lugar a imagens mais autênticas, femininas. Na parte final, o autor acrescenta uma revisão do caso, na qual considera que se tivesse uma fé real na psicanálise poderia ter ajudado a paciente a confiar nas modificações extraordinárias que havia mostrado na análise, com o desenvolvimento dos seios, e tentar, com a psicanálise, dispensar a cirurgia plástica.

Palavras-chave: não abandonar o paciente; charitas; fé na psicanálise; prioridade para a interpretação; constrangimento; revisão.


ABSTRACT

The author writes about the adventures and misadventures he has lived with patients throughout his job activities in psychoanalysis, since the early years as a candidate, and during his continued training. He chooses the expression "If regrets could kill..." as the main title for the series of clinical vignettes that are presented. However, the author gives special consideration to two patients. He emphasizes the case of a half abandoned boy, and the case of a girl who was wrongly blamed for seducing her father by her own mother. Even since it happened, this female patient has adopted a masculinized appearance that will end up being undone (even somatically) by psychoanalysis, which reminds us a Fellini's movie. In that movie, the underground excavations of Rome only have allowed a slight view of images in which pigments have faded by being exposed to the atmospheric air. In that same way, the author explains what would happen with those images the patient built under the Oedipal impact: they would be undone by being exposed to "the oxygen of psychoanalysis", and they would be replaced by more authentic, feminine images. In the end of this paper, the author adds a review of that case. In the review, the author makes a consideration: if he really believed in psychoanalysis by that time, he could have encouraged the patient to trust the extraordinary changes she had achieved in her psychoanalytic treatment, such as her breast development. Therefore, she might have given up of plastic surgery due to psychoanalysis.

Keywords: not giving up of the patient; charitas; faith in psychoanalysis; priority for interpretation; embarrassment; review.


RESUMEN

El autor cuenta sus aventuras y desventuras con los pacientes a partir de los primeros tiempos de su actividad como candidato y muestra que su formación continúa hasta hoy. Imaginó como título principal de la serie de casos presentados: "Si el arrepentimiento matara..." Pero reserva una consideración especial para dos pacientes: el caso del muchacho de vida descuidada y el de la muchacha acusada injustamente de seducir a su padre. La paciente adopta, desde entonces, una imagen aparentemente masculina, que fue posible deshacer en el análisis, inclusive somáticamente, recordando una película de Fellini. En la película, las excavaciones en el subsuelo de Roma muestran imágenes cuyos pigmentos se tornan descoloridos al entrar en contacto con el aire atmosférico. Así serían las imágenes masculinas construidas por la paciente bajo el impacto de Edipo y que con el oxígeno del análisis se desintegrarían, dando paso a imágenes más auténticas, femeninas. En la parte final el autor adiciona una revisión del caso, en la cual considera que si tuviera una fe real en el psicoanálisis podría haber ayudado más a la paciente a confiar en los cambios extraordinarios mostrados en el análisis, con el desarrollo de los senos, e intentar, con el psicoanálisis, descartar la cirugía plástica.

Palabras clave: no abandonar al paciente; charitas; fe en el psicoanálisis; prioridad para la interpretación; constreñimiento; revisión.


 

 

O rapaz "largado" na vida1

Trata-se da história de um rapaz de 21 anos, de vida "largada", que perdera a mãe aos 3 anos em virtude de um tumor cerebral e o pai aos 6. Mentia para os tios, que de forma sofrível cuidavam dele, dizendo que ia às aulas, mas o que procurava, na verdade, era divertir-se. Usava meios fraudulentos para conseguir aprovações. Não estudava e não trabalhava. O rapaz "largado" apegou-se à análise de maneira muito vívida e fluente. Conseguiu estudar, namorou e tornou-se estudante de medicina. A interrupção da análise se deveu ao fato de ele haver se atrasado no pagamento por sete meses, após três anos de tratamento. A venda do último bem paterno proporcionou condições de me pagar, mas ele perdeu ou lhe roubaram o dinheiro. Era-lhe impossível, no segundo ano do curso médico, refazer as condições para pagar a dívida e continuar a análise. Nessas circunstâncias, eu a interrompi. Se eu desse a mesma importância que, pouco tempo depois, passei a dar a fatores essenciais, como os relacionados à reparação e à charitas, o amor para com o outro, eu não teria interrompido a análise. A diminuição do número de sessões, ou do preço, a protelação do pagamento da dívida para depois que ele se formasse em medicina teriam sido soluções diferentes da "morte" do analista aos três anos de análise por um "tumor cerebral", como ele perdera a mãe.

Trinta anos depois, ele me procurou novamente. Estava casado com a namorada de então, vivendo modestamente do salário de médico, esforçando-se para que seus três filhos e suas irmãs não ficassem "largados" na vida. Era uma ótima pessoa, interessado, sensível e trabalhador. Não obstante tudo isso, expunha-se a dois perigos: um deles, o excesso de peso - 140 quilos; o outro, o excesso de velocidade, que já lhe causara um acidente quase mortal. Parece-me que, de alguma forma, havia assaltantes, no mundo interior dele, que desejavam roubar-lhe o que havia conquistado na vida. Ele "se esquecera" do motivo da interrupção da análise tantos anos atrás. Quando eu revelei o motivo, ele deu um suspiro imenso de alívio e me disse: "Eu pensei que tivesse sido um motivo muito pior." Penso que eu e ele fomos roubados juntos.

 

Minhas pernas não se movem

Certa vez, fui a um laboratório fabricante de medicamentos para pedir amostras. A recepcionista, ao saber que eu era psiquiatra, propôs marcar consulta. Marcamos. Ela veio. Era jovem, bonita. Deitou-se no divã do principiante e desfiou sua história, da qual nada me lembro. No meio da história, ela me disse espantada: "Minhas pernas estão paralisadas!" Eu já tratara de inúmeros casos semelhantes de paralisias histéricas em diversos hospitais e prontos-socorros, mas logo a minha primeira paciente de consultório, em pleno divã, foi demais. Fiquei meio desconcertado. Esperei algum tempo. Fui lhe dizendo, aos poucos, que ela poderia mover as pernas. Pediu água. Dei água. Ela, com esforço, gradualmente, devagarinho, conseguiu se levantar e foi-se embora para sempre. Compreende-se que ela desejava ficar ali para sempre e que eu me envolvesse com ela e fizesse suas pernas se movimentarem adequadamente. De certa maneira, foi feito...

 

Quero ficar

O penúltimo paciente era atendido às i8h de sábado. Encerrei a sessão e ele disse que não iria sair. Queria ficar ali comigo. E agora? O que eu interpretei não resolveu nada. O paciente se virou, com o corpo e o rosto, para a parede, deitado no divã, chorando convulsivamente, dizendo que não iria sair. Lá pelas tantas, apelei para dizer que havia um paciente na sala de espera (na realidade, era um rapaz que eu orientava como cuidar da mãe hemiplégica). Foi a trabalhosa solução: mostrar que o rapaz estava, realmente, na sala de espera. O rapaz, instruído por mim, pediu ao paciente que precisava falar comigo e assim o convenceu, sob protestos e sofrido pranto. Na segunda-feira, ele voltou e continuou a análise...

 

Sem palavras

Primeira entrevista de um rico empresário, dono inclusive de um avião. Terminou a entrevista deixando para depois a definição de se iria ou não se analisar. Despedimo-nos. Cinco minutos depois, ele e o porteiro batem na porta. O porteiro me informa que tinha ocorrido um roubo no prédio e que só deixariam o empresário sair se eu o liberasse lá na portaria. Os três juntos descemos, sem palavras, os seis andares de elevador. Na portaria, eu o liberei. Não tive mais contato com ele. Um comentariozinho na frente do porteiro sobre o fato de um empresário, dono de avião, ser confundido com um larápio não faria mal a ninguém. A esquizoidia do analista se aproveita da ideia de sigilo e. Meses depois, num aeroporto, um senhor se aproximou de mim trazendo um envelope com documentos. Disse que me viu no balcão da companhia aérea, que percebeu que eu ia viajar e que ele tinha documentos importantes que precisavam ser entregues a uma pessoa para onde eu ia. Ele abriu o envelope e me mostrou todos os documentos. Tudo certo, honesto. Isso foi há vinte anos. Para o meu espanto diante da coincidência, todos os papéis eram timbrados com o nome do paciente dono do avião. Um funcionário deles me aguardava no aeroporto. Também não deixei uma mensagem para o paciente dono do avião. A esquizoidia venceu de novo.

 

A Vila Pinheiros

Nos idos de 1970, Walderedo Ismael de Oliveira, prestigiado psicanalista da SBPRJ, Roberto Martins, Maria Luiza Pinto, Ney Marinho e outros se uniram e fundaram a Vila Pinheiros, uma clínica de dezessete leitos, numa tentativa de tratar os pacientes apenas com psicoterapia e psicanálise. A Vila merecia uma história especial, focalizando o idealismo dos colegas. Sob a orientação de Walderedo, fazíamos a psicoterapia analítica de grupo dos pacientes internados ou em tratamento ambulatorial na clínica. Todos nós nos baseávamos nos ensinamentos de Bion, com os toques criativos dos colegas brasileiros. Com seus dezessete leitos e ótimos tratamentos, a Vila Pinheiros não podia durar muito, mas movimentou o Rio. Iniciei lá o atendimento de um grupo de oito pacientes. A paciente que estava em melhores condições no meu grupo, quando soube pelos funcionários da Vila Pinheiros que eu faltara uma semana por ter ido ao enterro de minha mãe, no interior, reservou para mim, no meu retorno, uma bronca terrível, não aceitando a minha falta de compromisso com o grupo.

Vivíamos a época do general Médici, com uma pressão terrível sobre os médicos permissivos com o uso da maconha. Um dos pacientes do meu grupo, em plena sessão, acendeu um cigarrão da erva, frontalmente, para diversão e alegria de todos. Tive que interromper a sessão. Foi o jeito de demonstrar que havia coisas que não seriam aceitas. Naquela época, eu já defendia a proposta de que o governo produzisse a maconha e a vendesse aos dependentes, para lutar contra o tráfico e a repressão, o que levou um grande amigo a me dizer que eu queria fundar a "Maconhabras". E queria mesmo, pois teríamos evitado essa guerra que vivemos até hoje. Defendi a ideia então e, muitos anos depois, apresentei um trabalho com os mesmos ideais em um congresso brasileiro de psiquiatria, em que eu detalhava o plano, especificando os cuidados com os dependentes, as responsabilidades deles, as obrigações para que tivessem o direito de comprar droga fora do tráfico, mas defendendo a luta contra o tráfico através da venda da maconha, pelo governo, em postos de saúde. Terminei minhas palavras no congresso de psiquiatria sob um gélido silêncio. O primeiro psiquiatra a se levantar e comentar minhas palavras, sob palmas de um auditório lotado, disse que nunca havia ouvido alguém falar tanta besteira na vida dele. Ao final da mesa-redonda, discretamente, um colega da mesa disse que eu deveria tomar cuidado com possíveis agressões físicas se eu defendesse aquelas ideias. Tudo isso foi bem antes do presidente uruguaio...

Mas voltando ao grupo de psicóticos: um dos pacientes, Jota-Jota, esquizofrênico muito conhecido pelos psiquiatras do Rio, se internava e ele mesmo concedia suas altas do Sanatório Botafogo ou do sanatório onde desejava se internar. A mãe pagava depois. Era maluco o suficiente para ninguém fazer frente a ele. Era único herdeiro, junto com a mãe, viúva de uma grande fortuna. Telefonava-me, às vezes, de madrugada para dizer que no outro dia iria à sessão. Outro paciente ficava me dizendo que iria atender aos pedidos dos vizinhos, que o aconselhavam a se intrometer na torcida do Flamengo com a camisa do Vasco e torcer pelo time rival. Eu temia que ele fizesse mesmo tal insensatez. Por vezes, durante a sessão, ele me apresentava uma artista famosa na época por ficar nua nos filmes, zangando com ela por não ter a consideração de se levantar ao me saudar na apresentação, dizendo: "Levante-se, fulana! Você está diante do doutor Paulo!" Quando a Vila Pinheiros fechou as portas, durante alguns dias, um dos pacientes ficava horas e horas parado em frente ao local.

 

A Vila Pinheiros dentro do consultório

Diante do fechamento da Vila Pinheiros eu resolvi levar o grupo inteiro para o meu consultório. Coloquei umas barras de madeira na janela da minha sala e lá fomos nós. Um dos pacientes, Fernando, de quando em vez plantava bananeiras, em plena sessão, equilibrando-se, mostrando-me que eu via as coisas de pernas para o ar, enquanto ele via tudo direito. Depois, fui saber que ele, morando em andar alto, fazia o mesmo na janela do quarto dele, escondido dos pais. Outro paciente, Jota-Jota, o que se internava e se desinternava à vontade, durante uma sessão, revirou as cadeiras, retirando-nos de onde nos sentávamos. Estava com um olhar ameaçador, sem dizer palavra. Todos nós nos levantamos atemorizados. Veio em minha direção, a mão fechada, pronto para me agredir; aproximou a mão tensa, encostou-a em meu ombro, devagarinho, docemente, enquanto Fernando, dessa vez de pés no chão, envolvia-o com o braço e lhe dizia, com carinho: "Não faz isso, não, Jota-Jota. Vamos nos sentar. Doutor Paulo é amigo" Tudo se acalmou. Todos arrumamos as cadeiras. Sentamo-nos. E a sessão continuou. Como? Não sei. Não me lembro de haver sentido que Jota-Jota iria me atacar.

O grupo era assim, mas era muito agradável estar com eles durante uma hora e meia, uma vez por semana, conversando sobre loucuras e não loucuras. A mãe de um deles enviou-me um cartão de Natal com as palavras mais bonitas de agradecimento que eu jamais recebi. Mas nem tudo são flores, pois o mesmo paciente passou a faltar às sessões, mostrando-se zangado comigo, o que levou a mãe a interromper, só por isso, um tratamento de anos. Os elogios do cartão de Natal quase foram por água abaixo. Os elogios podem ser como os diamantes e ser eternos à la Bond, James Bond. Hoje estão vindo à tona...

Quanto ao paciente hebefreno-catatônico que ficou estatelado diante da Vila Pinheiros fechada e que imaginava que seu olhar tivesse poder de penetração especial, mantinha-se muito reservado. Se não conseguia abrir as portas do hospital com a força do seu olhar, tinha que ter imenso cuidado ao passar diante de uma banca de revistas, pois, se ele visse uma figura de mulher em uma revista, ele a penetraria com o seu poderoso olhar. Usava as mãos como antolhos a fim de proteger as pobres moças das capas de revistas. Quanto às moças vivas, ele não mencionava qualquer problema. Tal convicção penetrante, por certo, tivera suas primicias em priscas épocas com a amada imortal. O cineasta Dino Risi transformou em comédia tal problema no filme Vedo nudo (1969). Hoje, os fios dentais das praias e as modelos dos desfiles transformam em quase realidade a ficção. As revistas da época eram Senhor, Realidade, Manchete, em que o máximo que aparecia eram os dois centímetros de Martha Rocha no maiô completo. Já pensou o nosso paciente no mundo das bancas de revistas de hoje? Em Vedo nudo, quando o personagem se cura e não mais vê apenas mulheres nuas e homens vestidos, passa a ver somente... homens nus e mulheres vestidas!

 

A paciente catatônica

Sob o mesmo prisma do olhar, outro caso aconteceu, por essa época, com uma paciente bela, esguia e que tinha uns olhos um tanto ou quanto projetados para fora, o que lhe dava um estilo especial. Ela foi à consulta com a mãe. Seu quadro era catatônico - não pronunciou uma só palavra na entrevista. Eu disse que ela precisava de quatro sessões semanais e que, sendo assim, eu não teria hora. Meses depois ela me telefonou, e novamente eu disse que não tinha hora livre. Tempos mais tarde, recebo a ligação de uma moça perguntando se eu tenho hora; digo que sim e informo preço e horários. Quem me surge no consultório, sem catatonia nenhuma, triunfante? Ela!

Começou a análise. Ora deitava, ora sentava. Usava sempre umas pantalonas frouxas, de tal maneira que suas posturas e modificações de postura eram sempre protegidas. Por vezes, deitava-se de barriga para baixo e ficava com o rosto bem perto dos meus joelhos e da minha cadeira. As interpretações eram as corriqueiras de um analista, e as reações e respostas, adequadas para uma paciente sem grandes perturbações. De certo momento em diante, ela começou a me olhar fixamente, olho no olho. Eu dizia que parecia que ela desejava comer-me com os olhos. Isso às vezes afastava um pouco o problema. Porém, com o passar do tempo, aumentava a intensidade da situação e o tempo de fixação no olho. Parecia não ser no olhar, mas sim no olho. Olho no olho. Eu dizia que ela desejava e realizava, na fantasia dela, ver o meu interior, ver-se a si mesma no meu olhar, penetrar em mim, estar numa relação sexual comigo, constranger-me. Outras interpretações possíveis e impossíveis foram utilizadas, não sei se adequadamente. Mas eu tentava. Eu tirava o olho e quando voltava lá estava a bela, quase exoftálmica, com os olhos presos nos meus olhos por muito, muito tempo. Eu me aguentava. Por vezes, ela saía da cadeira defronte de mim e vinha deitar-se e o olhar então era de mais perto. O analista era dominado pelo olhar e já não tinha o que falar. E assim se passaram os tempos.

Em certos períodos, ela dava a chance de eu mostrar alguma coisa de outros aspectos de sua vida. E assim íamos. Um dia, ela deitou de barriga para baixo, com a cabeça levantada, olhando para mim. Dessa vez, não era para o meu olho, e ficamos ali algum tempo, provavelmente ambos em silêncio. E a sessão continuava. Eu sentado em minha cadeira, as pernas entreabertas, como se faz comumente, enquanto ela estava em silêncio. Eu não estava acompanhando o seu olhar, nem ela o meu. Mas eu, sem nenhum motivo especial, fiz um gesto natural: cruzei as pernas até então entreabertas. Para que fui fazer isso? De imediato, ela fechou a boca aberta, moveu o rosto, zangada, frustrada, mostrando franco dissabor, e virou o corpo, ficando de barriga para cima. Só então percebi tudo e não sei mais como terminei a sessão. Por certo, voltamos ao assunto, talvez na outra sessão. Eu fiquei perplexo. Ela ainda permaneceu bastante tempo em tratamento comigo, indo morar depois em outro estado. Bion, quando percebia que seus pacientes estavam alucinando, procurava às vezes dizer o que eles estavam fazendo. Deveria ser o caso, pois as coisas não podem ficar escondidas. E não ficaram.

 

O paciente que não cabia no divã

Um empresário, grandalhão e forte, tinha dificuldades em deitar-se no divã. Em face das dimensões de seu corpanzil, meu divã era realmente incômodo para ele. Passou então a sentar-se numa cadeira comum de palhinha, com as costas livres voltadas para mim, uns dois metros à minha frente, e com os braços enganchados no espaldar da cadeira. Assim ele se acomodava bem, numa posição razoável. Casado, mantinha relações frequentes com prostitutas. Não se considerava um "bom de cama". Era um voyeur contumaz. Às vezes, praticamente pagava as mulheres para vê-las nuas. Mas o que ele apreciava mesmo era que elas enfiassem a língua em seu ânus. Ele não pedia nem propunha; o que ele fazia lentamente era insinuar a região adequada no rosto das mulheres e esperar e torcer. Nem sempre obtinha êxito, mas isso não era objeto de queixas ou comentários. Pagava e ia embora, conseguindo ou não o prazer máximo. As interpretações ligadas à minha língua, à psicanálise, as referências à satisfação de fantasias homossexuais, ao desejo de que eu recebesse e valorizasse as fezes dele, ao fato de que eu sabia e a prostituta não que o prazer dele era de satisfação anal e eu, mesmo assim, não o atendia eram abordadas. Os seus interesses eram amplos, e a análise prosseguia de maneira muito viva e interessante. Estávamos no meio de uma sessão - o paciente sentado na posição de sempre, de costas para mim; eu, junto ao divã. Ele inclinou o corpo mais para frente do que o comum e, de repente, contrastando com o silêncio da sala, em tom altíssimo, grave, sonoro, tonitruante, um monumental pum, desferido pelo seu canhão intestinal, reboou na sala. Tudo estremeceu! O sorriso de gozo inundava seu rosto. Estava selada a vitória dele: havia conseguido que eu, afinal, lhe desse o prazer sexual máximo, pois minha língua, nariz, boca, tudo havia penetrado no ânus dele. Mostrei a vitória dele sobre mim. Nunca reclamei do fato de que ele pagava às prostitutas três vezes o que eu recebia por sessão; mesmo assim, fica consignado hoje esse fato.

James Joyce, em Cartas a Nora, exultava de prazer quando a esposa o presenteava com os tratos e fatos semelhantes. Conta-se que Hitler exigia da sobrinha, Angela (Geli) Raubal, serviço mais completo; de Eva Braun, ele se contentava com o fato de tirar fotos do posterior dela nude (Eduardo, 2011, p. 252). Xuxa alardeou intimidade máxima quando conseguiu dar um presente mais consistente ao marido agraciado, feliz e perfumado. Freud, há mais de um século, realmente tinha razão: o presente de produção própria aos pais é tentador para todos e, em alguns casos, para sempre. É dando que se recebe...

 

A beijadora

Vamos para outro caso: o da beijadora. Era bonita e cheia de corpo. Ela se analisara durante longos anos com uma colega. No primeiro dia, tascou-me um beijo em cada face ao chegar. Não era um simples encontro de faces superficial, não: era um beijo mesmo. Estava vestida como sempre depois, com uma saia larga. Tirou os sapatos, sentou-se na minha frente no divã, pegou o travesseiro, colocou-o entre as pernas cruzadas, apoiou os cotovelos sobre o travesseiro e começou a contar sua história. E assim fomos por alguns anos. Discreta. Jamais mostrou um milímetro acima do joelho. Jamais veio de calça comprida. Sempre beijoqueira. Nunca me deixou desconcertado, mas sim respeitoso à maneira dela de me cumprimentar e ao seu jeito próprio de se analisar. Eu também não interpreto se o paciente se deita no divã e me cumprimenta ou não dando a mão.

 

A funcionária pública

Era uma cliente funcionária de um ministério. Combinamos o preço da sessão em moeda brasileira de quarenta anos atrás, vamos dizer 100 cruzados. Dei o recibo mensal para ressarcimento. O seguro do ministério era em dólar. Ela recebeu 100 dólares do seguro por cada sessão. O câmbio extraoficial era 30% a mais. Considerei que eu não podia receber em dólar, como ela queria pagar-me, e sim em moeda brasileira da época, conforme havíamos tratado. A paciente passou a trocar os dólares por cruzados para me pagar e ganhar, constrangida, 30 cruzados por cada sessão. O Brasil paga para os altos funcionários se tratarem. Viva o Brasil!

 

O engano

Na portaria do edifício do consultório, uma senhora pergunta por mim. O porteiro me aponta. Dramaticamente, em alto e bom som, ela me diz diante de todos os presentes: "Doutor! Meu marido, Orlando Souza, está há nove anos em tratamento com o senhor e não tem melhora nenhuma! Venho pedir sua ajuda!" A resposta veio imediata e correta: "Minha senhora, nunca tive um paciente com esse nome em toda minha vida!" O camarada usava o meu nome falsamente. Espantada, desconcertada, a pobre senhora escafedeu-se...

 

A falta de fé do analista desfaz sonho que já era ato2

Em verdade vos digo: se tiverdes fé do tamanho de um grão de mostarda, direis a esta montanha: "Vai daqui para lá", e ela irá. Nada vos será impossível.

(Mateus 17:20)

Lembro que o conceito de é fundamentalmente de Bion (1970/2006) e não tem nenhuma conotação religiosa.

Pode-se perguntar qual seria o estado de mente bem-vindo, já que memória e desejos não o são. Um termo que expressaria de modo aproximado o que necessito expressar é "fé" - fé de que existe uma realidade última e verdade -o "infinito desprovido de forma", desconhecido, incognoscível. É necessário acreditar nisso com relação a todo e qualquer objeto do qual a personalidade possa estar consciente: a personalidade pode se dar conta de objetos que emanam da evolução da realidade última (simbolizada por O). [...] para mim "fé" é um estado de mente científico e deve ser reconhecido como tal. Mas é necessário que seja "fé" sem resquício de nenhum elemento de memória ou desejo. (p. 46)

Aqui, vou trazer de maneira mais detalhada a história de uma paciente. Era uma vez uma menina, não tão menina assim, pois já tinha 40 anos de idade, mas na aparência ainda era uma menina. Como epígrafe, escolhi a dedo, apalpando bem, indo sorver o leite da sabedoria do Cântico dos Cânticos (8:8), os seguintes versos:

Nossa irmã é pequenina

E ainda não tem seios.

Que faremos à nossa irmãzinha,

Quando vierem pedi-la?

A menina de 40 anos era de estatura baixa, magra, nem bonita nem feia, porém, muito agradável. Usava frequentemente minissaias adequadas e simples. Sem muitas dificuldades, passou a contar os percalços de sua vida, chorando sentida e profusamente.

Tenho medo da depressão. Eu chego a ficar quinze dias em casa, parada, sem fazer nada. Isso me dá muito medo. Nunca namorei na vida, nunca tive relações sexuais. Sempre tive desejos sexuais normais. Eu não permito homem se aproximar de mim porque eu entro em pânico. Homem nunca me tocou. Eu não tenho seios, não tenho nada. Compro o menor sutiã possível e ainda sobra. Passei há poucos dias nua diante do espelho e me achei horrível.

Era de família muito pobre, do interior, pais humildes. Lembra que, aos 4 anos de idade, se apaixonou por um vizinho vinte anos mais velho. No início da adolescência, cuidava, com carinho, dos sapatos do pai, lustrando-os. O primeiro dinheiro que ganhou com seu próprio trabalho destinou-o à compra de alguns objetos de uso pessoal para o pai, principalmente cuecas. Por essa época, sua mãe acusou-a, frontalmente, de tentar seduzir sexualmente o pai, sem nenhum motivo aparente. "Eu considerava meu pai simplesmente meu pai." Na adolescência, anos após essa acusação, começou a fazer um curso técnico em que havia pouquíssimas moças. Passou a cortar os cabelos como rapazinho, usar roupas de talhe flagrantemente masculino e trabalhar em uma oficina quase só de rapazes.

O purismo, que Sartre (1973, p. 120) propõe para a conceituação da imagem, talvez não nos seja possível concretizar. De forma singela, ele sugere que se olhe para uma folha de papel branca sobre a mesa e, numa demonstração de capacidade filosófica profunda, discorre sobre ela de maneira inebriante. Depois, orienta-nos a mover a cabeça, de tal sorte que não consigamos mais ver a folha de papel. Aí, nesse momento, podemos criar a imagem. Na linguagem sartriana, a folha branca e a sua imagem têm uma identidade de essência, mas que não se acompanha de uma identidade de existência. Em outros termos: a mesma essência se realiza em planos diferentes de existência.

Se virássemos o rosto, como propôs Sartre, voltando-o à nossa menina de 40 anos, ouvindo apenas sua história, diríamos tratar-se de um conto de bruxaria, em que uma menina havia se transformado em um rapazinho na adolescência, ou seja, estaríamos diante da imagem de um rapaz, que agora, adulto, virando o rosto novamente, tivesse se transformado em mulher. Coisas das alternâncias da vida! Coisas do Demo!

É bem verdade que Paul Ricoeur (1990) afirma ter sido Kant o primeiro filósofo a romper com a tradição que fazia da imagem a representante de uma coisa ausente. Tal perspectiva representaria uma função reprodutora, que é a mais pobre da riquíssima imagem. "Felizmente há uma outra, a imaginação verdadeiramente produtora, que é fonte de todas as sínteses novas" (p. 155). Bachelard irá dizer isso de maneira poética: "a imagem não é uma percepção agonizante, mas uma linguagem nascente" (citado por Ricoeur, 1990, p. 156). A imagem nasceu e está salva.

As fantasias edipianas expressas, desde a tenra infância, na paixão de nossa menina pelo vizinho vinte anos mais velho, o cuidado para com as partes íntimas do pai, expresso na compra das cuecas, talvez pudessem ter o destino comum dessas fantasias em filhos amorosos e ser superados sem maiores problemas. Nessas condições, quando os conflitos edipianos são superados, lustrar o sapato do pai é simplesmente lustrar o sapato do pai, um ato de cuidado e amor para com o genitor, e não um outro ato, não tão ilustre, sexual, realizado através da cueca que o genitor coloca em seu membro ou com o próprio membro do pai. Pela dificuldade de simbolizar do menino-menina configurare algo imaginado como se fosse um ato. Esse ato que não chega a ser um ato, nem tampouco símbolo, ficando a meio caminho, é o que Hanna Segal (1983) chamou de equação simbólica. Por ter características mais próximas às de um ato, a paciente vive como tendo realizado "realmente", com o pênis do pai, algo que é apenas fantasia. Os desejos, a culpa e a perseguição decorrentes dão força, vigor e atualidade à acusação da mãe. É possível que isso tenha a ver com o fato de ela centralizar toda a sua vida em torno da acusação materna. Nunca teve namorado, e tome depressão. Fantasiava, inconscientemente, que todo possível namorado seria o pai. Evidentemente que a acusação materna estimulou esse quadro todo. Por outro lado, mantendo a mãe a acusá-la, ela tenta colocar o conflito fora dela mesma, ou seja, ela se permite imaginar: "É a mãe, aquela velha ciumenta, quem me acusa. Eu não me acuso, porque só dei as cuecas a ele. Logo, não fiz nada demais." No entanto, torna-se um quase verdadeiro "rapazinho"...

Segundo a paciente, e não há nenhum motivo para duvidar dela, sua mãe acusou-a terrivelmente. É notável, porém, que ela não demonstre raiva em relação à mãe: praticamente ela não menciona o tema da acusação materna. Ela vive a acusação. Mantém a mãe, o tempo todo, dentro de si a fazer a terrível acusação: "Você está seduzindo seu pai!" A solução que tinha era não deixar nenhum homem se aproximar, quanto mais ter relação sexual ou, mais terrivelmente ainda, amar e ser amada por um homem.

Quando ela veio à consulta, o pai falecera há mais de dez anos, em um acidente. A mãe ainda exercia atualmente algum poder na família. Mas a ascensão no nível cultural, social, econômico e profissional da paciente permitia a esta viver as situações que desejasse e como desejasse. Voltemos à oficina, onde ela trabalhava como "rapazinho", apenas para retirá-la de lá, uma vez que passou a ser perseguida pelo chefe com trabalhos e exigências desmedidas. Pediu demissão e, depois de extraordinários esforços, formou-se em medicina.

Podemos tentar compreender que a paciente, ao ser ameaçada pelo chefe da oficina, um representante do pai, voltou-se para estudar com profundidade a mulher, transformando-se em ginecologista e obstetra. Mas isso não foi suficiente para que ela se tornasse mulher. De certa maneira, aumentou o seu desânimo. Via o sucesso alheio, a maternidade das outras mulheres, enquanto ela continuava a ser apenas uma menina. Durante sua vida, aos poucos, as crises depressivas foram surgindo e se tornando mais frequentes e duradouras. Contava com algumas amigas e amigos. Poucos. Com os homens, evitava qualquer menção de namoro. Ela morava em um apartamento muito bom e próprio. Mas sua vida nele havia se transformado em um inferno. Por esse motivo, em prantos, viera ao consultório dizendo que a solução a que chegara era de renunciar ao seu apartamento para as três pessoas que, com ela, lá moravam. Continuaria a mantê-los, no próprio apartamento, como já vinha fazendo e alugaria outro para si mesma, mais simples, pois ela vivia dentro dos limites dos ganhos auferidos através do seu trabalho como médica em cidade do interior. Preferia permanecer o tempo que lhe fosse possível fora do seu próprio apartamento. Nele moravam uma irmã, que era ex-mulher de alcoólatra, com um filho de 17 anos, um verdadeiro "capeta", além de uma amiga, que lá estava há sete anos. Todos aproveitadores inconvenientes e indomáveis. Ninguém colaborava com nada e em nada. Outros parentes vinham e lá se estabeleciam. Era a casa da mãe Joana. Ou seja, ela ocupava realmente o lugar da mãe, perfilhava a irmã, em franca competição com a mãe. Ao fazer isso, tentava impedir a irmã de crescer e desenvolver-se. Um mar de conflitos, culpas, rivalidade. A imagem de "boazinha" e sofredora era mantida a duras penas, com os sacrifícios adequados. O regime sadomasoquista estava instituído, e o mote "o que seria do tolo se não houvesse o sabido", instaurado.

Em relação à paciente, é indispensável o maior cuidado com a interpretação, para que não haja nenhum tom de orientação, crítica, matiz acusatório ou de conteúdo irônico. Os fenômenos essenciais se passam no reino da fantasia. Na realidade, ela é uma pobre moça que vive para estudar, trabalhar e servir aos outros. Ajudá-la a realizar a aspiração legítima de se tornar mulher adulta e participar desse novo mundo implica lidar com essas e todas as suas fantasias. Esse trabalho envolve uma plena aceitação, por parte do analista, das dificuldades emocionais dela.

Depois de algumas sessões em que a temática da renúncia a seus bens foi amplamente trabalhada, a paciente conseguiu, ao final, a duras penas, chamar às falas os três moradores de seu apartamento. Diante do seu "chega pra lá, minha gente, pois a farra acabou", claro que em termos muito educados, as reações dos moradores foram impressionantes: o sobrinho-capeta preferiu voltar para a casa do pai; a amiga tornou-se inimiga e foi embora; a irmã diminuiu a exploração. Com a irmã, porém, outros trancos, em épocas posteriores, tiveram que ser aplicados, a fim de que ela não voltasse a ver na nossa paciente o antigo e maravilhoso maná da mana-mãe vinda do céu para atendê-la, amém.

Esse impulso de entregar o apartamento para a irmã e companhia, modificado pela influência direta da análise, espero eu que com o mínimo de sugestão e de desejo de minha parte, que Deus me proteja, provocou problemas interessantes, principalmente porque essa questão do apartamento surgiu logo no princípio da análise de nossa menina de 40 anos de idade.

Ela estava com um rapaz que ela conhecia, apenas conhecia, na cidade, quando este a abordou intempestivamente querendo uma relação sexual. Ela rejeitou-o taxativamente, sem deixar chance nenhuma. Em seguida, ela mudou de assunto. Eu então comentei que ela estava querendo relações mais sérias, ao que me respondeu: "Não, Paulo, não é isso, não. Eu queria uma relação com ele. Eu fui uma histérica ao rejeitá-lo." Resposta totalmente inesperada para mim. Talvez estivesse no fim da hora e eu deixei a transferência de lado. No final, bem no final do tratamento, ela dará uma resposta a essa problemática questão dizendo que desejava "uma relação com alguém que a respeitasse".

Vejamos uma das consequências. Pouco depois, ela foi a um oftalmologista, seu conhecido, fazer exames de rotina. O oftalmologista tocou no ombro dela durante o exame. A reação a esse toque foi terrível:

Eu tive uma reação histérica, de pânico, como se ele quisesse algo sexual comigo. Eu sei que não era. Mas dei um vexame. Ele ficou espantadíssimo. Veja o que fiz! Agora tenho que voltar lá. Não sei com que cara. Mas tenho que voltar para completar o exame. Por isso, por reagir assim, eu não posso namorar nem ter relação sexual.

Convenhamos que os desejos sexuais dela eram muito intensos.

Parece-me que a correlação analista-oftalmologista é completa. A satisfação que ela sentira por não renunciar ao seu apartamento e haver afastado a irmã, a amiga aproveitadora e o "capeta" fora tocante. Ela mostrava que eu a havia tocado, na análise. Quem já trabalhou em maternidade sabe que o verbo tocar é o mais usado nesses ambientes. Com o toque, sabe-se a quanto de dilatação está o útero. Saber a dilatação através do toque é um dado essencial para a previsão e acompanhamento do parto. Ela era obstetra... O "toque" então fora lá. Isto é, ela estava vivendo nossa relação nesse nível, no nível da relação sexual. Os sentimentos e as fantasias dela comigo foram transportados e vividos lá, com o oftalmologista.

De alguma forma, ela estava lidando com o pânico, permitindo-se ser tocada por um analista e continuar o contato com esse mesmo homem, embora sem saber com que cara. E tinha que voltar lá para completar o exame. O namoro psicanalítico estava sendo possível e iria continuar.

Passam-se alguns meses e, em um momento em que ela comentava não ter nada para falar mas associando livremente ideias, ela me diz que tem um tênis igual ao meu. (Pouquíssimas vezes usei tênis no consultório.) Eu ouvi perfeitamente a palavra correta - tênis -, mas pensei em toda a história dessa moça, no fato de ela ter sido vítima do ciúme da mãe, tornando-se um "rapazinho" na puberdade, no pânico dela quando eu a "toquei", e lembrei-me que era uma mulher que, aos 40 anos, ainda não havia namorado uma só vez pelo pavor de estar namorando o pai. Diante disso e do evolver da análise já realizada, resolvi dizer-lhe taxativamente que, pelo que eu conhecia dela, ela era uma mulher e possuía uma vagina e não tinha um pênis igual ao meu.

Ela reagiu dizendo, com um sorriso, que eu havia entendido errado, que ela falara tênis de calçar, e não pênis. "Você tem cada ideia, Paulo." Eu lhe disse que havia ouvido tênis, mas que achava que ela estava dizendo, na realidade, que se imaginava tendo um pênis e, consequentemente, não sentia ser uma mulher.

Mais tarde, comentou sobre suas providências e desejos de realizar uma plástica nos seios, que faria com um cirurgião amigo, em um hospital em que todos a conheciam, pois era onde trabalhava. Iriam vê-la, na sala de cirurgia, usando apenas calcinha, quase sem seios, mas ela não se importava. A cirurgia ia ser boa para ela. Suas crises depressivas já diminuíam de intensidade e frequência por essa época. Manejava muito melhor sua vida nos momentos de defrontar-se com a família exploradora.

Cerca de um mês e tanto depois do tema do tênis, lá pela metade de uma sessão tranquila, ela disse que não tinha nada para falar, pois não lhe ocorria nada. Nesse momento, lembrou-se de algo que ela expressou da seguinte forma:

Eu não dou muita importância a isto, mas você disse que tudo tem importância, então vá lá: é que eu fiquei com minha menstruação atrasada três semanas. Isso nunca me aconteceu na vida, desde os 15 anos de idade até agora. Nunca! [E a paciente foi se entusiasmando enquanto falava.] Sempre fui extremamente regular quanto à menstruação. Nunca me aconteceu isso. Mas ainda houve mais. Meus seios cresceram e ficaram de tal tamanho que eu tive de arranjar um sutiã maior. Se fosse o dia da cirurgia plástica do seio, o cirurgião não teria o que operar. [O destaque é de agora, vinte anos depois.] Eu sabia que tudo era psicológico. Eu entendo de endocrinologia, trabalhei nessa área, e sei que toda a minha parte hormonal estava perfeita. É extraordinário o que me aconteceu.

Parece-me que as ideias de Freud e dos psicanalistas que o seguiram se integram aí para nos dar alguma ideia de que essa moça estava com a fantasia de haver se apossado do pênis do pai e que a interpretação realizara o efeito de lhe dizer: "Você pensa que tem um pênis, mas você é do sexo feminino e está se transformando em uma menina-moça, que às vezes usa tênis nos pés, mas que não tem pênis como eu, e à semelhança de uma menina-moça - entrefechado botão, entreaberta rosa - você já pode desenvolver seios e conseguir me mostrar o que é ser uma mulher, através da figuração da imagem da gravidez." Ela evidenciava que havia ocorrido uma relação psicanalítica criativa e que ela estava se transformando em uma mulher.

Eu não falei assim com a paciente: tudo foi mostrado a ela por meio de trabalhadas e humildes interpretações. Uma parte aqui, outra ali...

Essas modificações da imagem corporal da paciente levaram-me à recordação de um filme de Fellini, Roma (1972), em que ele aborda o tema das escavações realizadas nos subterrâneos da Cidade Eterna, ocasião em que os operários encontravam, por vezes, belíssimas, magníficas pinturas que iam se desfazendo, como antimiragens, no momento em que eram descobertas, porque a luz e o ar atmosférico, trazidos pelos escavadores, apagavam o colorido dos pigmentos e as imagens se desvaneciam.

Parece-me que a análise poderia entrar como essa luz, esse ar atmosférico, decompondo e fazendo desaparecer as belas mas sofredoras imagens de rapazinho e a fantasia da paciente de ser uma mãe extremosa da irmã, tomando o lugar da genitora - a imagem da mater dolorosa que a paciente mantinha nos subterrâneos de sua mente, perfilhando não apenas a irmã, mas também sobrinhos, amigas e quem mais aparecesse na casa da mãe Joana. A análise estava ajudando-a a apagar algumas imagens e despertando outra: a imagem e a realidade de mulher.

Seguimos a bela e famosa concepção de psicanálise expressa por Freud (1905/1953, p. 260), em que ele aproveita a conhecida distinção que Leonardo da Vinci fazia entre o escultor e o pintor. O primeiro faria o trabalho per via di levare, enquanto o segundo trabalharia per via di porre. A psicanálise seria uma atividade ligada à escultura, isto é, per via di levare - assim como o escultor, utilizando o cinzel, extrai, retira da pedra de mármore as formas que ali estão, o psicanalista, com o cinzel das interpretações, vai esculpindo, extraindo a realidade mais autêntica do ser humano que está ali, no divã. Freud contrastava esse ofício com o do pintor, cujo exercício fundamental de criação implicava, diante da tela branca, um trabalho de pôr, sobrepor, acrescentar cores, formas, contrastes, ou seja, per via di porre.

Não precisamos ser Michelangelos nem Freuds para que, com o cinzel do simples escultor ou do simples psicanalista, possamos fazer nossas esculturazinhas e ajudar a que nossas menininhas de 40 anos se aproximem da idade adulta e da feminilidade dela - Ecce mulier!

Pouco tempo depois, o organismo da paciente se aquieta, volta ao que era antes, após todo o trabalho realizado, e ela se submete à cirurgia. O cirurgião prometeu só operar os seios, mas, lá na hora, ele resolveu ampliar e fazer lipoaspiração no abdômen. Por causa disso, ela sentia muitas dores, que dificultavam seus movimentos. "Os médicos sempre descobrem mais coisas na gente."

Mas o que me preocupa mesmo [dizia ela nesse dia] é que eu pensei e refleti que meu problema não é só transar, mas é com quem vou transar. Não pode ser com qualquer um. Estou preocupada porque se for um tipo como o ex-marido de minha irmã, um alcoólatra, eu não quero. Teria que ser alguém que gostasse de mim e de quem eu gostasse, que me respeitasse...

Parece-me que, mais uma vez, o cirurgião exprimiria a imagem do psicanalista que descobria coisas novas na paciente - o cinzel do psicanalista continuava agindo e, ainda que provocasse dores, realizava uma cirurgia mental além do combinado, pois descobriu nela desejos de amar e ser amada. Tornou-se possível, então, pensar em outro estatuto emocional que não fosse o sadomasoquista, a rivalidade e o ódio consequente. Embora doesse, mitigando a rivalidade, poderia deixar o marido da irmã e, por extensão, o marido da mãe para elas mesmas - mãe e irmã - e aspirar a outro para si própria. Nessas condições, abre-se no mármore, a pulsar, o coração, à la recherche de l'amour e, consequentemente, de consideração real para com as outras pessoas e para consigo mesma: o desejo de amar e ser amada.

 

Dezoito anos depois: uma perspectiva atual

Paulo, se você tivesse lido melhor a Bíblia, tratado melhor dos seus pacientes, você não teria incorrido nessa falha. Lembro-lhe que basta ter uma fé do tamanho de um grão de mostarda para tirar uma montanha do lugar... Faltou-lhe fé na psicanálise. Como você deixou passar uma ocasião dessas?

Uma paciente vem a seu consultório, apresenta transformações desse nível - repetindo em itálico: apresenta transformações desse nível -, coloca os próprios seios na sua exuberante normalidade à mostra, recobertos castamente pelo porta-seios e blusa. Enquanto isso, você, Paulo, não faz nada para que ela tente dispensar o cirurgião-plástico e mantenha os seios que conseguiu ali na análise, sem hormônio nenhum, sem nenhum artificialismo, só com os meios naturais dela e com suas interpretações. Você não tinha que conseguir que ela pudesse dispensar a cirurgia plástica, mas você era obrigado a ajudá-la a procurar, com a psicanálise, segurar e manter os seios que conquistara com você. Homem de pouca fé! Fé menor do que um grão de mostarda.

 

Notas

1 Caso relatado em "História e genealogia das ideias psicanalíticas latino-americanas" (Marchon, 2004).

2 Trata-se da versão modificada de um artigo publicado na Revista Brasileira de Psicanálise (1999a), na revista Trieb (1999b) e num livro organizado por José Renato Avzradel, Linguagem e construção do pensamento, com o título "A imagem sob a perspectiva de algumas teorias psicanalíticas" (2005). Esta segunda versão aqui publicada, escrita 18 anos após a primeira, surge do interesse do autor em efetuar uma revisão, em que descreve as modificações fundamentais quanto à posição do analista diante de seus pacientes na atualidade. Lembramos que o artigo recebeu o Prêmio Durval Marcondes, dividido com Paulo Cesar Sandler.

 

Referências

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Marchon, P. (2005). A imagem sob a perspectiva de algumas teorias psicanalíticas. In J. R. Avzaradel (Org.), Linguagem e construção do pensamento (pp. 137-168). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Segal, H. (1983). A obra de Hanna Segal (E. Nick, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Paulo Marchon
Rua Nunes Valente, 1.450, ap. 1.002
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Tel: 85 3261-7488
marchonpaulo@gmail.com

Recebido em 29.5.2016
Aceito em 13.6.2016

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