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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016

 

EM PAUTA

 

Construindo formas de comunicação: revendo o conceito de interpretação na clínica do não representado

 

Building ways of communication: reviewing the concept of interpretation in psychoanalytic practice with the unrepresented

 

La construcción de formas de comunicación: revisión del concepto de interpretación en la clínica de lo no representado

 

 

Audrey Setton Lopes de Souza

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em psicologia e professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Membro e professora do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae.

Correspondência

 

 


RESUMO

Algumas experiências clínicas nos confrontam com impasses quando as palavras parecem incapazes de transmitir o que se deseja comunicar. É preciso encontrar outros modos de escuta e de interpretação nesse campo dos efeitos psíquicos de experiências traumáticas que não alcançam representação. Este trabalho pretende refletir sobre essas questões a partir de alguns relatos clínicos. São exploradas a busca de formas de comunicação possíveis e a concepção da análise como um campo de construção de um objeto continente e como uma experiência de reconhecimento e de esperança que não pôde ser encontrada na relação com os objetos iniciais.

Palavras-chave: representável; irrepresentável; terror noturno; interpretação; simbolização.


ABSTRACT

In psychoanalytic practice, some cases confront us and lead us to impasses. They are situations in which words seem to be unable to send the message that is wanted to be conveyed. We must find alternative ways of listening and interpreting in this field of psychic effects of those traumatic experiences which have not reached a representation. The purpose of this paper is to reflect on these issues by starting from some case studies in the psychoanalytic practice. The author explores the quest for possible ways of communication. She also examines the concept of the analysis as a field where a container (or containable object) is built, and as an experience of recognition and hope - an experience which could not be found in the relation with the initial objects.

Keywords: representable; unrepresentable; night terror; interpretation; symbolization.


RESUMEN

Algunas experiencias clínicas nos confrontan con impasses cuando las palabras no parecen capaces de transmitir lo que se desea comunicar. Tenemos que encontrar otras maneras de escuchar y de interpretación en este campo de efectos psicológicos de experiencias traumatizantes que no tienen representación. Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre estos temas desde algunos informes clínicos. Se exploran la búsqueda de posibles formas de comunicación y la concepción del análisis como un campo de construcción de un objeto continente y como una experiencia de reconocimiento y de esperanza que no se pudo encontrar en la relación con los objetos iniciales.

Palabras clave: representable; irrepresentable; terror nocturno; interpretación; simbolización.


 

 

Algumas experiências clínicas nos confrontam com dificuldades no processo analítico nas quais as palavras se mostram insuficientes - tanto para os pacientes transmitirem o que precisam quanto para o analista entender e comunicar a eles alguma forma de compreensão dessas experiências. É preciso encontrar outros modos de escuta e de interpretação.

A noção de interpretação, fundada a partir do trabalho com pacientes neuróticos adultos, apoia-se em certa concepção do funcionamento psíquico: devido ao recalcamento, apareceriam sintomas cuja função seria encobrir e disfarçar aquilo que foi perdido e que agora não pode mais ser conhecido, sob a ameaça de invasão pela angústia; nesse modelo, a função primordial da interpretação seria tornar o sujeito mais capaz de reencontrar-se com o que foi perdido. A clínica atual nos coloca frequentemente diante de pacientes que demandam não um trabalho com o que foi perdido, mas com o que aparentemente nem chegou a existir, o não representado ou o irrepresentável.

Não é objetivo deste trabalho expor detalhadamente as ricas teorizações dos autores que se debruçaram sobre essas questões, mas, apoiado na clínica, verificar o sentido que tais concepções adquiriram.

Autores como Botella e Botella (2002), Green (2003, 2008, 1993/2010), Marucco (2007), Ogden (2006) e Roussillon (1991/2005) chamam a atenção para os efeitos psíquicos dessas experiências traumáticas que não alcançam qualquer representação - e portanto não podem ser evocadas -, propondo reflexões sobre novas formas de intervenção.

Para Marucco (2007), o trabalho com esses pacientes nos coloca mais próximos do caldeirão do id e mais longe do inconsciente reprimido, que aparece como repetições irrepresentáveis, marcas que ele denomina trauma psíquico/pré-psíquico e que escapam a qualquer possível significação. Assim, a ideia de não representação e de aspectos cindidos do ego coloca novos objetivos para a psicanálise, pois são aspectos que o paciente não poderá relembrar, e sim viver pela primeira vez - experiências que não puderam ser abarcadas pelas representações e que trazem reflexos para a técnica psicanalítica. A insuficiência de simbolização, que implica o predomínio de manifestações através do corpo ou do ato, frequentemente confronta o enquadre analítico e seus recursos, como a clássica posição de neutralidade, o silêncio e a inatividade do analista, as regras do setting, etc.

A necessidade de o paciente vivenciar pela primeira vez os conteúdos cindidos significa uma participação diferente do analista. Seu funcionamento mental torna-se importante. É preciso ajudar o paciente a encontrar algo novo, um objeto analítico - que não é de um e não é de outro - que promova ligaduras com potencial transformador da realidade psíquica (Marucco, 2002, 2007).

A noção de trabalho do negativo, de André Green (1993/2010), também vai nessa direção: esse conceito implica a existência de algo mais do que a ausência, uma presença não presente, um registro apresentado pelo elemento psíquico inexistente, uma qualidade psíquica que se registra pelo negativo. Tal condição de perda de sentido da representação interna será considerada por Green como constituindo a representação interna do negativo; uma presença da ausência do objeto e da ausência de sentido, criando um buraco representacional e produzindo estados de esvaziamento e de falta de sentido.

Azevedo (2009) aponta que Green parte do conceito de negativo em Winnicott, condição considerada normal no desenvolvimento infantil, ligada a uma qualidade do funcionamento psíquico, que pode alcançar a noção de que tudo o que constitui o não eu (aquilo que não é possuído) é o negativo do eu. Essa condição depende da existência de um objeto transicional que perdure como vivo, apesar de ausente. A falha do objeto externo produz um estado de persecutoriedade intolerável e a morte desse frágil objeto interno; como resultado, haveria uma retirada de catexia do objeto que corresponderia ao que Green denomina de função des/objetivante e que atuaria como contrária à vida.

A consequente identificação da vida pulsional com um objeto que jamais irá satisfazer o sujeito leva a uma reivindicação de autonomia cuja meta seria atingir um estado de separação, independência e autossuficiência que se manifestaria na clínica como reações terapêuticas negativas e vivências de branco sem palavras, exigindo do analista uma maior tolerância a certo modo de atividade psíquica para poder desempenhar o papel de receptor de complementaridade e ser capaz de "apreender o que não se soube ou não se pode dizer e que se exprime, então, nas formas extraverbais" (Green, 2003, p. 481). Esses pacientes demonstram grande dificuldade para tolerar o enquadre clássico e exigem do analista certa margem de manobra.

Roussillon (1991/2005) também observa que devemos localizar a raiz dessas dificuldades nas falhas das experiências iniciais mãe-bebê, na elaboração dos paradoxos da destrutividade ou do uso do objeto e do objeto transicional. As manifestações clínicas desses pacientes são reações à revivescência de experiências infantis marcadas pela ausência de respostas maternas e por certa desqualificação de suas necessidades.

O lugar da "matriz original do fantasma" é então deixado vazio; as pacientes são confrontadas a um branco, representando a ausência de representações, vivido como uma profunda ferida narcísica. A angústia assim mobilizada só pode ser contida na urgência do adormecimento ou numa hiperatividade que mantém e evacua, ao mesmo tempo, a excitação não ligável. (p. 210)

Ele acrescenta que, assim como Winnicott propõe que devemos ensinar os pacientes a brincar, nessa clínica somos levados, nem sempre de forma consciente, a "presentear" (formular, pôr em forma) uma atividade comparada ao que Bion descreve como a capacidade de rêverie materna.

Em suas teorizações, tanto Green quanto Roussillon destacam as contribuições de Bion na área do pensamento e não pensamento e do conhecimento negativo (Bion, 1959/1988a) e o conceito de identificação projetiva proposto por Klein (1946/1991).

No trabalho com pacientes psicóticos, Bion questiona a função da interpretação introduzindo a ideia das funções alfa e beta e da função de metabolização dos afetos; enfatiza, assim, a importância do objeto real (do analista real e da mãe real) nesse processo, colocando o analista na função de acolher e significar experiências. Sua concepção de função alfa evoca a função mental de transformar as impressões sensoriais brutas, denominadas elementos beta, em elementos alfa. A ideia de elementos beta também aponta para o irrepresentável, pois essas experiências sensoriais brutas e não processadas são incapazes de vincular-se umas às outras e, portanto, tornam-se impróprias para o pensar, o sonhar, ou mesmo para guardar como lembrança (Ogden, 2006). É a partir da transformação operada pela função alfa que essas experiências podem vincular-se e ser usadas para sonhar e pensar.

A função de rêverie (Bion, 1962/19880) torna-se primordial para o trabalho com os elementos beta. Esse modelo de interação não verbal, característico da relação mãe-bebê, põe o analista no lugar daquele que exerce a função de acolher e transformar as experiências não digeridas de seus pacientes, num trabalho muitas vezes para além das palavras.

Ogden (2006) refere-se a esses fenômenos que não encontram representação trabalhando a diferença entre sonho, pesadelo e terror noturno e destacando o papel da função alfa no processo de sonhar, que ocorre tanto no sono quanto na vida inconsciente de vigília. A pessoa incapaz de transformar as impressões sensoriais brutas em elementos inconscientes de experiência, em elementos alfa que possam se vincular, não pode gerar pensamentos oníricos inconscientes e, consequentemente, não pode sonhar (seja no sono, seja na vida consciente de vigília). O autor alude a fatos psicológicos que ocorrem no sono e se assemelham ao sonhar, mas que não são sonhos; que incluem "sonhos" para os quais nem o paciente nem o analista conseguem gerar quaisquer associações; que são como alucinações durante o sono e assemelham-se aos sonhos imutáveis dos pacientes pós-traumáticos. Essas experiências não envolvem o trabalho psicológico inconsciente do sonhar e se apresentam como terrores noturnos; são "sonhos" que não são sonhos.

Os autores citados se propuseram a pensar a clínica dos pacientes-limite, o campo dos pacientes psicossomáticos, borderline, da angústia do vazio e das dificuldades de simbolização. Nesses casos, o analista é convocado a trabalhar para preencher o vazio, suprimindo o vazio imaginativo do paciente e a ausência simbólica da elaboração psíquica que este foi incapaz de realizar. Eles ressaltam como o analista é, de alguma forma, levado a desenhar imagens que correspondam à vida mental do paciente, ajustando suas possibilidades simbólicas às do paciente.

Na construção de uma história analítica, buscamos desenvolver, dentro da relação, um aparato psíquico capaz de pensar e transformar as experiências emocionais vividas pelos dois membros do par e o que introduz a consideração da disponibilidade analítica para suportar as rupturas do enquadre clássico, utilizando-se de sua capacidade de sonhar.

 

Como entender a dor de Joana

Joana, 9 anos, é uma criança bastante comprometida: tem sérias dificuldades de relacionamento em casa e na escola. Aos 3 anos viveu um período de retração e mutismo que, segundo os pais, "passou após um ano". É filha de um casal em constante conflito: uma mãe pouco acolhedora e exigente, que parece esperar uma filha já adulta, e um pai que tudo permite quando está com a filha.

É uma criança difícil: se pede que eu desenhe algo, logo briga, pois não era isso que eu tinha que desenhar; se propõe uma brincadeira, logo se desentende, porque eu faço tudo errado. É assim que vamos estabelecendo um contato.

Ela dizia que ninguém nunca ia poder compreendê-la porque ninguém tinha vivido o que ela vivera. Frequentemente, se irritava comigo; às vezes, tentava me agredir e precisava ser contida fisicamente.

Um dia, Joana encontra na minha sala uma flor-de-maio florida (essa flor me acompanha há muitos anos, mas nesse ano eu tinha trocado sua localização e ela estava especialmente florida). Joana ridiculariza a planta e sua dona e começa a retirar as flores e amassá-las. Tento conversar sobre como a incomoda ver essas flores bonitas na minha sala, mas o que consigo é despertar ainda mais sua ira: ela destrói todas as flores, apesar de minhas inúteis tentativas de contê-la. Eu quis interromper a sessão, mas ela se negou a sair da sala, continuando a me agredir.

Confesso que, nessa hora, tive vontade de espancá-la e o que consegui foi literalmente ficar emburrada ("de bico") e sair da sala. Tenho uma sala de espera um pouco independente, e lá me instalei de cara fechada. Joana aproxima-se de mim e senta-se ao meu lado. Pergunta por que eu fiquei daquele jeito. Digo que gostava daquela flor e que, quando a gente gosta e cuida de algo, é duro ver alguém destruí-lo (acho que já estava um pouco recuperada). Ela diz que eu sou ridícula, pois era só uma flor, e assim se desenrola uma conversa entre nós, falando sobre essa dor, e em determinado momento ela me diz que isso não é nada comparado com apanhar da própria mãe.

Várias vezes ela me dissera que eu não poderia entendê-la porque eu não apanhara assim da minha mãe e também não batia na minha filha, o que me permitiu nessa ocasião sugerir que hoje eu achava que tinha sentido uma coisa muito parecida com o que ela sentia ao apanhar - quem sabe não foi esse o jeito de entendê-la? Ela me convida a voltar, e retorno para a sala com uma espécie de certeza de que tinha podido compreendê-la e comunicar-me com ela de uma forma muito importante.

 

Paulo e sua luta contra a dependência e a fragilidade

Atendi Paulo vários anos atrás. Ele era advogado e tinha por volta de 30 anos, e eu não estava muito longe de sua faixa etária. Vinha buscar ajuda para sua depressão, mas ao mesmo tempo parecia impossível aceitar qualquer tipo de ajuda. Intuía que necessitava de auxílio, porém, militante do PCdoB, parecia acreditar que isso o colocava no papel de um pequeno-burguês mimado. Frequentava regularmente as sessões - meu consultório ficava no Itaim Bibi, e ele vinha do abc, em horários de pico, levando quase uma hora para chegar.

Conto esses detalhes para destacar o seguinte: eu precisava construir com ele uma possibilidade de conversar sobre o ódio que sentia de reconhecer a importância que dava para aquele encontro. Chegava agitado; não sentava, muito menos deitava; movimentava-se pela sala parecendo precisar descarregar a tensão. Em algumas ocasiões, esmurrava a parede; em outras, me olhava desafiadoramente dizendo que eu não tinha condição de ajudá-lo.

Eu tentava falar de como era difícil para ele sentir-se frágil e necessitado, mas o que eu conseguia era despertar ainda mais aquele tirano. Fui aprendendo a suportar minha sensação de impotência e esperar; às vezes, ele conseguia chorar e podíamos conversar.

Certo dia, ele chega com sua armadura poderosa, e eu aguardo. Ele passa a me encarar desafiadoramente. Incomodada com essa situação, eu lhe pergunto no que está pensando e ele me diz: "Estava pensando em como seria o cu da sua mãe." Eu fico vermelha, acho que até a última raiz dos cabelos. Ele ri, zombando da minha vergonha: "Como você acha que pode ser minha terapeuta se não consegue nem ouvir um palavrão?'"

Fico temporariamente desconcertada, enquanto ele segue me esculachando. Aparentemente recuperada, encontro uma forma de conversar com ele e lhe digo que é possível ser isso o que me permitida ajudá-lo, pois talvez, aceitando que tenho minhas fragilidades e mesmo assim não estou inutilizada, eu possa mostrar um novo jeito de viver com as falhas.

 

O que aprendi com Paulo e Joana

Aprendi com essas experiências a vitalidade dos conceitos de identificação projetiva (Klein), rêverie (Bion) e sonhos não sonhados (Ogden).

Ao acolher essas identificações projetivas e pensar sobre elas pude não só encontrar formas de compreender esses pacientes como também formas de me comunicar com eles e ser compreendida.

Outro aspecto que me chamou a atenção foi como experiências traumáticas iniciais podem gerar uma profunda desconfiança em qualquer situação de dependência (Green, Rosenfeld, Marucco, Roussillon), demandando um trabalho sobre o que foi perdido, o que poderia ter acontecido e não aconteceu. É na relação com o analista que poderá ser construído um continente que dê conta de suportar essas experiências.

Tentarei explorar mais detalhadamente esses aspectos por meio da descrição de outra experiência clínica.

 

Encontrando uma forma de comunicação com Maria

A fim de preservar a identidade da paciente, não utilizarei dados históricos: relatarei apenas a experiência emocional à qual estávamos, ambas, submetidas e tentarei refletir sobre ela.

Trata-se de uma paciente com uma dolorosa vida pessoal, mas que tinha formulado uma interpretação pessoal de sua história e vivia como uma ameaça qualquer tentativa de olhar para essa história sob um novo vértice. Suas experiências traumáticas foram sendo trazidas paulatinamente, sempre carregadas de muita dor e desamparo, mas era como se a análise em nada pudesse transformar essa dor. Era proibido ter esperança, avassaladora qualquer tentativa de compreensão das situações que vivera, e o presente só permitia uma única versão: a sua. Era incapaz de sonhar suas experiências, que se apresentavam como experiências brutas sobre as quais não era possível pensar - na verdade, era impossível qualquer associação; ela produzia explicações inquestionáveis.

A conversa com essa paciente tinha uma marca no início de nossos contatos. Ela relatava o que chamava de sonhos e experiências, nunca fantasias ou sentimentos, e ficava muito incomodada se eu pedisse esclarecimentos ou associações. Quando me parecia possível alguma aproximação, a experiência que se seguia era que, se fosse algo novo e desconhecido para ela, a sua reação era de indignação: ou ela dizia que eu não tinha entendido ("Eu disse..."), repetindo o que dissera, ou com muita raiva dizia: "Vou repetir", como se assim me desse uma nova chance para que eu pudesse ocupar o lugar que me era determinado.

Como analista via-me em um impasse: falar do que ela já sabia ou pensava, a meu ver, não permitiria nenhuma transformação e reforçaria a existência fusionada que ela propunha, mas qualquer coisa diferente disso nos colocava em um campo de batalha. Fui tentando abordar esse assunto e, muitas vezes, parecíamos habitar planetas distintos e falar dialetos incompreensíveis. Repensando, talvez pudesse considerar que, às vezes, minha fala sobre a impossibilidade de ter uma existência separada da dela carregasse ainda um tom de desespero e ressentimento e que ela também reagia a isso. Se por um lado percebia a ameaça de me submeter à história dela, por outro, precisava encontrar uma forma de não me submeter que fosse suportável, para ela e para mim.

Compreender o pânico que ela vivia e poder conversar a partir desse novo vértice talvez tenha contribuído para que uma pequena fresta se abrisse e a menina assustada pudesse me olhar pela porta entreaberta: às vezes, me ouvindo e considerando o que eu falava; às vezes, ao voltar após alguma sessão particularmente tensa e conturbada, dizendo-me que percebera como não havia me dado chances de falar; às vezes, relatando ter podido pensar, de outro modo, sobre o que ouvira, reconsiderando a briga que tivera naquela ocasião. O clima entre nós oscilava continuamente: ora se irritava muito (saindo da sessão com tamanha agitação motora que precisava como que ir batendo com as mãos nos objetos que encontrava pelo caminho ou respirando com força e expulsando o ar para se recuperar de um impacto), ora se mostrava atemorizada, escolhendo as palavras, ora queria retomar a conversa que não tinha podido manter em outra ocasião.

Todas essas réstias de percepção de suas dificuldades ou de sua hostilidade em relação a mim eram seguidas por algumas sessões de caráter extremamente persecutório, pois ela temia que eu pudesse não querer mais atendê-la, não poder mais suportar alguém como ela. É como se intuísse que poderia transformar-se em uma pessoa muito perigosa. Não me parecia que ela falava propriamente dessa pessoa que brigava e discutia comigo (pois esta lhe parecia cheia de razão); era de outra que ela me falava, muito mais feroz e destrutiva.

Tratava-se de uma urgência de me proteger de seus impulsos agressivos, sentidos como extremamente ferozes. Era visível o seu nível de angústia nesses momentos, como uma exteriorização, via identificação projetiva, da relação interna entre um superego sádico e um ego frágil, incapaz de confiar na bondade de seus objetos internos. Quando conseguia falar, contava que pensara em me ligar para saber se eu tinha certeza que continuava desejando atendê-la, que mal conseguira dormir perturbada por essas ideias.

Ao mesmo tempo, qualquer experiência boa ou de maior intimidade e proximidade era seguida de um pânico de ser rejeitada ou de momentos de grande hostilidade ante qualquer aproximação que eu fizesse - sentia-se incompreendida, criticada, etc. Aos poucos, fui me dando conta de que esses movimentos tinham relação com um intenso medo da dependência. Era como se perceber-me como boa e capaz de ajudá-la despertasse sentimentos de ódio e receio da dependência de um objeto torturante. Passei a centrar minhas interpretações na localização e apontamento das experiências boas e do risco que estas pareciam representar. Confesso que era preciso muita coragem e confiança para me manter na ideia de estar oferecendo alguma experiência boa, pois isso despertava, frequentemente, bastante turbulência: desprezo, sessões posteriores muito violentas ou, inclusive, mudança do clima emocional dentro da mesma sessão. Às vezes, enquanto eu falava, ela estremecia, como se tivesse levado um susto ou um choque, e aos poucos fomos podendo notar esses movimentos, que ainda permanecem, mas que podem não ser imediatamente atuados, com a paciente referindo-se a eles como: "Tive um impulso de..."

As ideias de Rosenfeld (1988) sobre a transferência psicótica e as relações objetais narcísicas foram muito úteis para dar sentido às minhas observações. Ao falar da transferência psicótica, Rosenfeld destaca (pp. 46-49): a comunicação muito primitiva por elementos não verbais, como atitudes, posturas, movimentos corporais e expressões faciais, além da comunicação por identificação projetiva; a atmosfera emocional carregada e com fantasias vivenciadas de forma quase delirante; um intenso temor de causar, com suas projeções, dano ao analista, e a importância de que o analista possa suportar essas experiências, evitando o risco de serem vivenciadas como reais; a sensibilidade do analista de perceber o quanto de sua experiência perceptiva pode ser comunicada, bem como a forma e o momento para tal, e também que a relação transferencial com esses pacientes está constantemente em mudança, sempre com o perigo de rompimento da comunicação, ameaças de incompreensão e aumento de impasses e ansiedades.

O autor denomina relações objetais onipotentes e narcisistas (p. 52) essas modalidades de relações objetais usadas como defesas contra o reconhecimento e a constatação da existência de uma separação entre o self e o objeto, na medida em que a consciência da separação levaria a sentimentos de dependência do objeto e à ansiedade estimulada pela inveja e pela agressividade. Na análise desses pacientes, há um grande risco do aparecimento de reações terapêuticas negativas, pois, com a ameaça do rompimento da autoidealização narcísica, o paciente toma consciência de sua necessidade e dependência do objeto, e a ansiedade e a inveja despertadas tendem a reativar o processo de relacionamento objetal narcísico.

Essas ideias aproximam-se das concepções de autores contemporâneos como Green, Roussillon e Ogden, que na clínica com esses pacientes trataram do irrepresentável e desses aspectos que aparecem como materiais em estado bruto e que não encontram sentidos - pacientes que não tinham condições de expressar seus sentimentos e pensamentos, necessitando, antes de tudo, da construção de um aparato mental para processá-los e da superação de uma lógica da desesperança para a possibilidade de confiança no objeto.

Fui, no contato com Maria, vendo a pertinência dessas considerações e notando que as interpretações deveriam dirigir-se à sua dificuldade de perceber o analista como separado e ao seu horror à dependência de um objeto que não esteja sob seu controle onipotente.

Na medida em que perdeu essa espécie de certeza da minha incompetência e já não conseguia desprezar tanto minhas colocações, permitindo, às vezes, uma existência separada, foram se configurando algumas mudanças no campo transferencial, não menos intensas e ameaçadoras para nós a princípio.

Muito assustada, ela se via sentindo-se, diante de mim, muito oprimida, com medo de falar e paralisada. Ao se expressar, parecia escolher as palavras, recitar um discurso internamente antes de verbalizá-lo. Às vezes, parecia brigar consigo mesma. Paralelamente a isso, ficava indignada, não entendia por que se sentia assim diante de mim, pois afinal eu não era sua mãe. Além disso, se perguntava se valia a pena continuar vindo à análise para sentir-se desse modo.

Refletindo sobre esse doloroso processo, considero que a forma como essas experiências eram comunicadas no início, com a mensagem de que só havia uma única maneira de pensar sobre elas, seria uma defesa contra o impacto do risco de repensá-las, olhá-las sob novos vértices. Revê-las como história e como experiência era viver uma ameaça catastrófica, como essa que agora me parecia estar em curso.

Vivíamos um novo impasse: por vezes, eu era sentida concretamente como uma mãe tirana diante de quem qualquer deslize levaria a terríveis castigos. Para ela, isso era o resultado de uma experiência traumática com uma mãe cruel e pouco amorosa, que ela temia repetir-se. Como permitir que ela observasse que esse objeto cruel e pouco amoroso encontrava-se agora dentro dela impedindo qualquer expressão de seus sentimentos? Como fazê-la abandonar essa armadura de mágoa e ressentimento que ela vestira para se defender de qualquer experiência de amor e integração?

Nos momentos em que me ouvia como alguém mais condescendente, eu era tomada como tola e pueril; qualquer fala que introduzisse alguma esperança de contenção ou transformação da experiência era vista como: "Lá vem a Audrey esperançosa", com um certo desprezo. Era como se precisássemos operar, por enquanto, como dois objetos parciais e cindidos.

Era impossível ter esperança, assustador conceber-me como alguém que pudesse ter algo de bom a oferecer. Parecia mais confortável e conhecido conviver com um objeto sentido como mau. A experiência boa ou era negada, ou desprezada, ou seguida de sessões onde tudo parecia muito ruim. Pedir algo e poder recebê-lo gerava emoções semelhantes. Quando conseguiu falar sobre isso, ela me disse que não sabia se conseguiria suportar a sensação de estar em débito. Suas falas e angústias expressavam a condição de extremo perigo em que se sentia.

Definitivamente, amar e correr o risco de depender a colocava em uma situação de grande ameaça. Precisávamos compreender por que era tão difícil viver uma relação amorosa e qual era o perigo de reconhecer o valor do objeto. A experiência de integração, a confiança no objeto bom interno ou externo e a esperança pareciam muito ameaçadoras. Era como se viver qualquer relação que introduzisse tal perspectiva pusesse em xeque todo um modo de conceber-se, conceber o outro e a própria história. Era preciso construir ali um vínculo no qual ela pudesse confiar.

Nessa experiência, pude ir notando que, se por um lado, aos poucos, ela não conseguia mais ter tanta certeza da minha intolerância, rigidez, crítica, etc., por outro, perceber-me como alguém significativa em sua vida a colocava diante do perigo de uma dependência torturante. Ela dizia: "Não sei se aguento aceitar sua ajuda ou precisar de você... Posso me tornar alguém muito desagradável."

Vivíamos uma experiência nova, pois Maria estava habituada a um modelo de relação em que era ela quem ajudava pessoas que a maltratavam e torturavam. Ser ajudada por alguém que ela sentia como generosa parecia uma tortura. Aos poucos, pôde revelar o que sentia, falar da emoção que vivenciava, embora não entendesse qual era a sua causa. "Depois que passa me envergonho, mas na hora é raiva mesmo, tenho vontade de ir embora. "

Klein (1940/1996), ao falar das dificuldades na elaboração da posição depressiva, destaca como elementos dessa dor decorrente da integração: o reconhecimento da dependência e da própria hostilidade, a perda da onipotência, a culpa e o anseio pela reparação.

Era esse o impasse em que nos encontrávamos. Perceber-se como hostil e com medo de perder era quase insuportável. Existia um rigor que tornava inaceitável para ela sentir-se vivendo daquela forma. Seu desejo parecia ser o de não sentir - nem o amor, para não depender, nem o ódio, pois este era imperdoável. Se eu soubesse o que passara por sua cabeça não a perdoaria jamais - esta era sua certeza. Era errado sentir o que ela sentia e isso era inquestionável. Eu apenas, muito delicadamente, fui sugerindo que poderia haver um ponto de vista diferente do dela. Enfim, considerar que o meu mundo poderia não coincidir com o dela era a única concessão possível.

É preciso levar em conta que essas dificuldades remetiam a uma impossibilidade de construção de um objeto bom interno, no qual ela pudesse confiar e considerar que suas experiências reais com seus objetos iniciais interferiram nessa impossibilidade de construção de um continente.

Tal perspectiva remete às ideias de Bick (1967/1991) sobre as experiências de pele em relação aos objetos parciais. Essa função de pele continente, que manteria unidas as partes da personalidade, evitando a sensação de catástrofe, dependeria inicialmente da introjeção de um objeto externo, sentido como capaz de cumprir essa função; até que as funções continentes tivessem sido introjetadas, a concepção de um espaço dentro do self não poderia surgir. Embora a autora não articule esses conceitos com a noção de rêverie e de um aparelho para pensar, parece plausível tal articulação.

Estávamos diante de experiências traumáticas, decorrentes de uma maternagem marcada pelo abandono e pela recriminação, acompanhadas de configurações edípicas nas quais ela era tomada concretamente como rival e inimiga e que culminaram com seu afastamento definitivo da figura materna. Transferencialmente, a desesperança impunha o perigo da repetição das experiências traumáticas, assim como a constante ameaça de defrontar-se com suas exigências pulsionais. Parecia necessária uma ação terapêutica que rompesse com aquela situação e construísse alguma possibilidade de estabelecer laços. No entanto, mais do que reencontrar-se com o objeto mortífero, era preciso construir um objeto continente.

Marucco (2002), discutindo sobre as possibilidades de interpretação com esses pacientes, assinala que nos colocam no que ele chama de lógica da desesperança. O autor alerta para o impacto na experiência clínica da compulsão à repetição, que cria um efeito mortífero de lógica da desesperança, representada pela ação intrusiva e hostil do objeto e do trauma. Aponta ainda para o difícil acesso à lógica da esperança e destaca como hoje, cada vez mais, a intervenção analítica deve dirigir-se para a possibilidade de criação de algo novo, que nunca esteve no campo psíquico, e não só para a revelação daquilo que foi esquecido. Trata-se de iluminar essa lógica da desesperança a fim de permitir a busca de novos objetos dentro e fora do sujeito.

O que pensar dessa situação nessa paciente?

O trabalho com ela deixava claro que, muito mais do que uma experiência de reconstrução, no sentido de reencontrar aspectos perdidos de sua história, era necessária uma experiência de construção de um vínculo que permitisse suportar a dor decorrente do perigo da confiança no objeto, da dependência, da culpa e das terríveis ansiedades daí provenientes.

 

Conversando com o silêncio de Maria e sonhando seus sonhos não sonhados

Um aspecto dessa análise que gostaria de destacar é: a partir do momento em que renunciei a um modelo de interpretação que visava esclarecer significados, pude encontrar uma forma de estabelecer contato com a paciente que permitisse o início da exploração de seu mundo mental.

Descobrir uma via de comunicação com ela era uma tarefa difícil, pois, quando não estava brava e ressentida comigo, porque eu era incapaz de compreender adequadamente o que ela dissera, as sessões se iniciavam com longos silêncios que ela denominava o silêncio. Este era tratado como algo concreto, desvinculado dela mesma e do qual eu deveria me ocupar para eliminá-lo - uma espécie de intruso que eu deveria expulsar da sala para que ela pudesse falar.

Tal situação criava grandes impasses entre nós. De início, eu procurava dar um sentido ao silêncio, algo da ordem de um não dito ou de uma resistência, e me perdia, pois o contato não se estabelecia. O mesmo ocorria se tentava aproximá-la da ideia de que o silêncio era produzido por ela.

Aos poucos, fui percebendo que a paciente não precisava de "palavras" e "interpretações sobre seu silêncio"; ela buscava elementos diferentes da experiência: o tom da minha voz, a confirmação de minha presença afetiva ao seu lado, o reasseguramento de meu interesse por ela. Era disso que se valia, uma espécie de "conforto de estar acompanhada", que permitia que "o silêncio" fosse embora e "a presença" pudesse gerar um encontro. Esse silêncio era um inimigo a ser expulso da relação entre nós; era como se, ao perceber-me como realmente atenta e presente, ela pudesse expulsar ou apaziguar a analista com a qual estivera convivendo na minha ausência.

Fui encontrando formas de me aproximar, apontando determinadas percepções sobre seu estado emocional: o modo como desviava o olhar ao me ver, um pequeno sorriso que se insinuava durante o silêncio, a conversa que suas mãos tinham entre si, mudanças do estado emocional reveladas por movimentos corporais, algumas conversas que ela silenciosamente parecia ter consigo mesma, etc. Isso parecia proporcionar algo que demonstrava que eu a estava acompanhando atentamente. Outras vezes, dava a impressão de que não era o conteúdo da minha fala que importava, e sim a confirmação de meu contato emocional com ela, permitindo que esse "silêncio-objeto terrorífico que não se interessava por ela ou a rejeitava" pudesse ser superado.

Green (2008, p. 11) aponta para a importância da presença do analista nessas situações em que o paciente não consegue suportar o enquadre clássico, alertando para o perigo da conjunção da invisibilidade do analista e de seu silêncio, que nessas condições podem ter como efeito condenar o sujeito a reviver, na idade adulta, o traumático desamparo infantil.

Na medida em que os silêncios iniciais se tornaram mais suportáveis, ela foi tentando comunicar seu estado emocional na relação comigo, mas era como se não dispusesse de meios para fazê-lo. Ela apresentava o que chamava de imagens: "Tive uma imagem", ou "Me veio uma imagem", e precisei encontrar uma forma de acolhê-las. Intuitivamente, pude ousar novas formas de comunicação.

Hoje, retrospectivamente, identifico alguns autores (Green, Ogden, Botella, Ferro) que me auxiliaram a compreender esse modo de comunicação no qual o analista é convocado a preencher o vazio imaginativo do paciente e que apontam como tal possibilidade pode oferecer também uma experiência de reconhecimento e de esperança que não pôde ser encontrada na relação com os objetos iniciais.

As ideias de Ogden (2006) foram particularmente frutíferas: estávamos diante de terrores noturnos, e era preciso encontrar uma forma de transformar esses terrores em sonhos a serem sonhados durante a análise. As experiências da paciente eram constituídas por impressões sensoriais brutas relacionadas a elementos beta que não podiam ser vinculados no processo de sonhar ou de pensar. Ela precisava ser capaz de sonhar seus sonhos não sonhados.

Como analista, eu me via convocada a sonhar seus sonhos e acolhê-la com minha capacidade de rêverie, sustentando através de minha receptividade esses sonhos não sonhados.

Com frequência, depois de longos silêncios, a paciente me dizia: "Tive uma imagem." Não podia associar sobre elas, apenas tê-las e, às vezes, ousar contá-las. Qualquer tentativa de interpretação era vivida como a ameaça de um objeto intrusivo, que eu estaria forçando para dentro dela. O caminho que encontrei foi fornecer associações minhas a respeito dessas imagens, sonhá-las - muitas vezes, temendo o meu próprio superego analítico, que me dizia que isso era proibido. Surpreendentemente, assim foi possível encontrar um caminho.

Após os silêncios, ela costumava me dizer: "Vou por onde dá."

As sessões começavam com imagens: o trapezista, o gato siamés, o monge budista, o porão e o bunker. As imagens eram relatadas de forma quase bruta; não posso saber como ela as vivia, pois apenas podia contá-las. As associações eram minhas, e depois ela confirmava se faziam sentido ou não. A partir daí, era possível sonhá-las a dois e a sessão se ampliava.

Assim, o trapezista se transformava naquele que se solta e parece que vai desabar; o gato siamés era aquele que tanto podia ser amistoso quanto traiçoeiro; o monge budista era aquele que prefere meditar sozinho; as catacumbas, eu associava com os bunkers dos kibutzim em Israel, que após a Guerra dos Seis Dias transformaram-se em boates para a diversão dos jovens; essas e outras imagens eram trazidas para, por meio delas, descobrir formas de falar do clima emocional que ela vivia no encontro comigo.

Com cautela e sofrimento, pudemos caminhar. Apoiada em uma relação comigo, que ela não consegue mais desprezar, e em um vínculo que a acolhe, mesmo não sendo reconhecido como tal, ela vai se permitindo toda uma gama de afetos antes expurgados de sua mente, não sem grande ameaça e sofrimento.

Certa vez, ela me presenteou com um livro chamado Um estreito chamado horizonte - parecia anunciar uma forma de nomear o nosso percurso.

 

Concluindo

Analisar esses pacientes implicou rever, ou mesmo ver, o que significavam conceitos como transferência, interpretação e processo analítico e tomar uma posição a respeito de como tais conceitos apoiavam minha clínica. Manter-me aderida a um conceito de transferência como repetição de experiências infantis, a meu ver, impediria romper com a rígida estrutura que fora montada (sabidamente a duras penas) para lidar com o desamparo. Confiar na identificação projetiva e em sua ação na estruturação das relações de objeto pareceu-me primordial para acolher as angústias e para o manejo do intenso campo emocional que se formava, a fim de encontrar instrumentos que permitissem a modificação das relações de objeto que se estabeleciam. Conceber a análise como um campo de construção de um objeto continente, que possibilite oferecer a experiência de reconhecimento e de esperança que não pôde ser encontrada na relação com os objetos iniciais, também foi revolucionário para minhas referências teórico-clínicas.

O conceito de interpretação também precisou ser revisto: de nada valiam, a princípio, interpretações de conteúdo ou transferenciais que visassem tornar consciente o inconsciente. Foi necessário encontrar novas formas de intervenção para poder alcançar a experiência em curso. Do ponto de vista da experiência como analista, tornou-se evidente que não se tratava de observar e interpretar o que se passava; era necessário viver e sobreviver ao intenso campo emocional que se formava, acolhendo-o com minha capacidade de rêverie e ajudando nesse processo de sonhar, e hoje acredito que grande parte da possibilidade dessas análises foi decorrente disso.

 

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Correspondência:
Audrey Setton Lopes de Souza
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Recebido em 11.8.2016
Aceito em 25.08.2016

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