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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016

 

EM PAUTA

 

Max Furioso

 

Furious Max

 

Max Furioso

 

 

Nelio Sacramento

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo relata o atendimento psicanalítico de um menino de 12 anos que apresentava um quadro clínico bastante complicado, com comportamento muito destrutivo por conta de um funcionamento psíquico primitivo. A narrativa dessa análise mostra uma fase inicial de "guerra" na situação clínica, seguida por uma fase de "trégua" em que, graças à capacidade do analista em sobreviver à ferocidade inicial, o paciente pôde transitar de uma atitude referente ao auge de seu sadismo, determinada pelo funcionamento da parte psicótica de sua personalidade, para outra em que se observa o desenvolvimento do aparelho para pensar pensamentos, dando sinais da parte neurótica de sua personalidade. A transformação clínica observada permite teorizar sobre as ligações existentes entre a pulsão de conhecimento e o sadismo, desde que haja continência para a destrutividade manifestada, como se pode perceber pela possibilidade de o analista lidar com sua contratransferência.

Palavras-chave: transferência; turbulência; auge do sadismo; aparelho para pensar pensamentos.


ABSTRACT

This paper reports a psychoanalytic attending of a twelve-year-old boy who presented with a pretty complicated clinical condition, and exhibited a very destructive behavior. That behavior was due to a primitive psychic form of functioning. This psychoanalytic case study describes a clinical situation with an initial stage of "war" which is followed by a stage of "truce". In other words, the psychoanalyst's ability to survive (or overcome) the initial ferocity has enabled the patient's transition from an attitude which was representing the height of his sadism, and was determined by the functioning of the psychotic part of his personality, to another attitude in which the development of the thought-thinking apparatus has been observed, and it shows the neurotic part of his personality. That patient's clinical change allows us to theorize about the existing connection between knowledge instinct and sadism. This connection depends on containing the manifest destructiveness as we may realize when the psychoanalyst is able to handle his (or her) own countertransference.

Keywords: transference; turbulence; the height of sadism; thought-thinking apparatus.


RESUMEN

Este artículo relata la atención psicoanalítica de un niño de 12 años con un cuadro clínico bastante complicado, un comportamiento muy destructivo debido a un funcionamiento psíquico primitivo. La presentación de este análisis muestra una etapa inicial de "guerra" en la situación clínica, a la que le siguió una etapa de "tregua" en la que, gracias a la capacidad del analista de sobrevivir a la ferocidad inicial, el paciente pudo transitar de una actitud relacionada al auge de su sadismo, determinada por el funcionamiento de la parte psicótica de su personalidad, a otra actitud en la que se observa el desarrollo del aparato para pensar pensamientos, dando señales de la parte neurótica de su personalidad. La transformación clínica observada permite teorizar sobre las conexiones existentes entre la pulsión de conocimiento y el sadismo, siempre que exista continencia para la destructividad manifestada, como puede percibirse por la posibilidad del analista de lidiar con su contratransferencia.

Palabras clave: transferencia; turbulencia; auge del sadismo; aparato para pensar pensamientos.


 

 

O homem

(tenho esperança) liquidará a bomba.

(Carlos Drummond de Andrade)

 

1. Guerra

T rata-se da experiência de trabalho com um menino de 12 anos. Durante aproximadamente três meses, as sessões com Max foram marcadas por extraordinária turbulência. Não houve, nesses terríveis inícios, aquilo que chamamos de conversa. Era impossível estabelecer algum contato verbal. Toda a minha força e energia se concentravam basicamente na tarefa extenuante de contê-lo fisicamente. Entrava na sala de análise sempre de maneira brutal: irrompia - é a imagem que me ocorre - como um touro furioso e cego. Ele parecia não ver o que havia em sua frente e entrava no consultório gritando e investindo contra mim de modo extremamente violento e quase insuportável: queria a todo custo - e muitas vezes conseguia - pisar no meu pé com toda força, às vezes rindo desbragadamente, ou visava meu rosto e genitais. Quanto a esses alvos, não parecia cego; ao contrário, visava alvos bem específicos. Limitava-me a segurá-lo fisicamente - era preciso muita força de minha parte a fim de que eu me protegesse de seus gestos insanos e desesperados. Era angústia em alto grau. Quando ele não me atingia com tentativas de socos e pontapés - eu conseguia manter-me a certa distância -, ele lançava grandes e certeiras cusparadas das quais me desviava; era necessário colocar-me fora da possibilidade de socos e pontapés. Além disso, introduzia o dedo no ânus e insistia, sorridente, para que eu o cheirasse. A situação era insustentável e eu pensei em interromper o trabalho. Eu tinha medo. Pareceu-me insensato dar prosseguimento à psicanálise naquelas condições. Ele saía da sala batendo portas, abrindo torneiras e revolvendo a cesta de papel higiênico. Tomei providências de ordem prática, adaptando o consultório para aquela circunstância extraordinária. O que possibilitou o prosseguimento foi o fato de que ele dormia durante algum tempo. Como que extenuado, desabava no divã e dormia. Isso me permitia descansar e esperar. Não tomou conhecimento da caixa lúdica. Num certo momento, forcei para que ele visse a caixa e os brinquedos. Após algum tempo, interessou-se pela bola e começou um jogo de futebol enlouquecido comigo. Ele arremessava violentamente a bola e pedia para que eu jogasse do mesmo jeito. Finalmente, resolveu fazer uma espécie de bola com papel amassado e quis jogar com a nova bola. Mas o jogo rapidamente se transformava em tiro ao alvo - eu era naturalmente o alvo. Eu então interrompia a brincadeira e a sessão quando a violência era extrema. Ele vagava pelas salas do meu consultório e pelos corredores do prédio, erraticamente. Muitas vezes, a sessão ocorria na sala de espera com a mãe, a empregada da família ou o motorista, que se tornaram meus auxiliares. Insisti para que ele se sentasse e o obriguei a tentar alguma conversa. Ele gritava e se opunha, girando tresloucado pela sala. Continuei insistindo e comecei eu mesmo a brincar com massa de modelar, a fazer alguns desenhos, aviões e barcos de papel, esperando que ele me acompanhasse. Não se interessou aparentemente e pedia que eu cheirasse seu dedo (previamente introduzido no ânus ou no tênis). Mas aprendeu meu nome - ele me chamava "Seu Nélio" - e, em momentos fugazes, sentava-se junto a mim, esboçando alguma brincadeira com os objetos da caixa e alguma comunicação verbal. Eu tinha a impressão de que as tentativas de um contato mais sereno comigo eram bruscamente interrompidas devido ao surgimento de grande angústia, sempre com o risco de inesperados bombardeios. Ele, então, vagava pela sala ou dormia até o final da sessão.

Até que um dia, surpreendentemente, sentou-se e conversou comigo pela primeira vez, colocando as mãos na cabeça e dizendo que escutava uma música sertaneja o tempo todo. Explicou que uma voz, em meio à música sertaneja, lhe dizia que uma cobra naja causaria a morte de seu pai. Também mencionava, repetindo várias vezes, "um exército, um exército". As mãos na cabeça e a expressão do rosto denotavam grande angústia.

No dia seguinte, ele comentou que a música sertaneja continuava e a voz lhe dizia que eu pretendia envenená-lo, e também: "A voz está dizendo para eu bater em você." Eu lhe respondi, então, que nós dois estávamos conseguindo conversar e que a voz ficava querendo envenenar nossa conversa. Era, naquele instante, a minha voz. Pareceu que ele escutou. Estabeleceu-se um diálogo. A análise tomou outro rumo desde então: não pensei mais em desistir. A violência se amainou.

 

2. Trégua

Retomamos o trabalho após um primeiro período de férias.

Foi surpreendente: um reinicio não exatamente terrível. Ao contrário, ele se mostrava amistoso e aparentemente calmo. Assim, dirigiu-se à minha escrivaninha na sala de adultos, abriu a gaveta e começou a retirar alguns objetos meus ali guardados. Eu fiquei apreensivo e me aproximei dele sugerindo-lhe: "Quem sabe você possa escrever ou desenhar alguma coisa?"

Ele aceitou prontamente a sugestão e começou a desenhar. Mais uma vez, adaptei o consultório para a nova circunstância extraordinária. A partir daí, as sessões transcorreram na sala de adultos e tudo parecia promissor para o desenvolvimento do trabalho. Assim, muitos desenhos foram feitos por Max. Simultaneamente, revelou-me seu interesse por pescaria e culinária, escrevendo receitas, comentando a respeito de seus pratos prediletos e insistindo para que eu também os fizesse em minha casa.

Era impressionante a metamorfose. Ele se mostrava mais adequado, havia um clima amistoso e pacífico durante as sessões - agora era possível alguma conversa. Ao mesmo tempo, ele evidenciava uma espécie de cuidado comigo, pedindo, quando via algum objeto meu sobre a mesa, que eu o guardasse porque "poderiam aparecer umas pessoas esquisitas". "É melhor você guardar suas coisas", avisava.

É bem verdade que ele exalava um cheiro muito desagradável. Max faz cocô nas calças, e eu ficava muito incomodado quando ele se sentava em minha poltrona. Também, de vez em quando, fazia perguntas inadequadas, aparentemente descabidas no contexto daquele momento, que eram, contudo, muito significativas quando se considerava o todo da relação estabelecida comigo. Por exemplo: "Alguém já lhe chamou de filho da puta?"

Naturalmente, não é muito difícil descobrir quem é a pessoa esquisita que poderia aparecer e estragar meus livros ou qualquer propriedade minha. Nem tampouco é difícil imaginar quem é ou poderia ser o tal filho da puta. Naquele clima amistoso e cordial, o ódio mostrava as suas garras, ainda que, digamos assim, de maneira discreta ou condensada. De todo modo, eram verbalizações.

Mesmo assim, considero que ele melhorou muito. Meu interesse e minha curiosidade aumentavam: eu não pensava mais em desistir.

Se eu ficasse mais distante - distância às vezes necessária quando o cheiro era insuportável -, ele me pedia: "Fique aqui comigo"; ou: "Não quer desenhar comigo, Nélio?"

Num daqueles dias, sempre de modo surpreendente, Max me disse: "Eu era muito malvado. Eu batia em você todo dia." Quando lhe perguntei por quê, ele respondeu: "Eu tinha muitos problemas. Agora minha mãe está me ajudando."

Em outro momento, sorrindo e olhando fixamente para mim, falou: "Vou lhe dizer uma coisa: agora o senhor está me fazendo melhor do que eu era antes."

Ele falava muito em reciclagem de materiais, os problemas decorrentes da poluição nas cidades e na importância de "melhorar o meio ambiente". Repetia com frequência essa frase, que se tornou uma espécie de bordão em nossos encontros.

Mas eram conversas curtas, telegráficas, e muitas vezes ele repentinamente dizia: "Tô indo", após dez ou quinze minutos de sessão. Parecia ser o tempo possível para ele, e assim prosseguimos com tempos de duração das sessões muito variáveis.

Certo dia, chegou com um sorriso simpático e olhar enigmático. Trazia algum objeto escondido em suas mãos e me disse, depois de alguns segundos, que tinha um presente para mim. Eu fiquei muito desconfiado, imaginando bombas ou qualquer coisa explosiva. Ele então me mostrou o presente: era um maço de cigarros. Sentou-se, convidando-me a fumar e indagando se eu tinha fósforo ou isqueiro. Eu não tinha e, diante de sua insistência em fumar, sugeri que fumássemos de brincadeira. Com um fósforo imaginário acendi o cigarro que ele tinha entre os dedos. Ele aceitou o faz de conta. Tirava grandes baforadas, fazia o gesto de quem punha a cinza no cinzeiro. Ofereceu-me um cigarro e eu também fumei imaginariamente. Na sessão seguinte, ele trouxe três enormes caixas de fósforo e algumas velas que seriam repelentes de insetos. Outro presente para mim. Max acendeu um cigarro. Combinamos que, embora o cigarro estivesse agora aceso, ele não o levaria à boca, apenas aproximaria e simularíamos estar verdadeiramente fumando. Divertiu-se muito com aquilo e cumpriu rigorosamente o combinado. Observávamos a fumaça do cigarro, e ele sorria: "Eh Seu Nélio!", ou: "Eh Seu Neio!"

Cruzava as pernas, dando-me a impressão de um homem adulto ou uma imitação. Algumas vezes, levantava-se e andava pela sala com o cigarro aceso na mão, e eu percebi que ele se controlava quanto ao desejo de me queimar. Eu o acompanhava vigilante e ele dizia: "Eh Seu Nélio, você não confia?" Mas efetivamente não me queimou.

Noutro dia, começou a caminhar pela sala de modo um tanto estranho, executando uma espécie de dança ritualística, levantando a mão com o cigarro aceso como que incensando a sala e emitindo uns gritos, algo com: "Uh, uh, uh, uh, uh!", entremeado por exclamações: "Seu Nélio! Seu Nélio!", sorrindo. A vela, acesa por ele, estava sobre a mesa, e tudo aquilo era semelhante a uma dança indígena, pajés, cerimônias religiosas. Eu o observava. Num certo instante, segurou minha mão e me puxou, num gesto que indicava o desejo de que eu o acompanhasse, e assim o fiz. Corremos alguns minutos de mãos dadas em torno dos móveis das duas salas, enquanto a fumaça do cigarro envolvia todo o ambiente. A cena foi muito interessante, e ele evidenciava enorme satisfação. Após algum tempo, encerrou-se a sessão e a brincadeira com cigarros.

Ao mesmo tempo, ele parecia ter uma espécie de curiosidade a meu respeito. Silencioso e quieto, me olhava fixamente, como se eu fosse alguém estranho, uma novidade, como se perscrutando algo em mim, algo a ser investigado. Em outros momentos, caminhava pela sala e exclamava: "Eh Seu Nélio! Eh Seu Nélio!", como se me saudasse com entusiasmo ou comemorasse alguma coisa. Com o tempo, percebi que ele tentava tocar em meu corpo. Eu ficava cauteloso, mantendo-me um tanto distante, buscando um equilíbrio entre proximidade e distância. Eu tinha um certo receio e a impressão de alguma coisa perigosa rondando. Então, um dia, inesperadamente, ele quase pulou em cima de mim, segurando minha cabeça de modo peculiar, simultaneamente rude e carinhoso e dizendo sorridente que desejava pentear meus cabelos. A situação era desconfortável. Consegui desvencilhar-me dele. Max acatou meu pedido de que se sentasse, e eu lhe disse que poderíamos conversar, que ele queria me conhecer mais, enfim, algo dessa natureza. A curiosidade era recíproca. Ali havia o inesperado e uma mistura desajeitada de ternura e violência no afago dos meus cabelos.

É bem verdade que, de vez em quando, ele me pedia que eu cheirasse seu tênis e propunha também cheirar meus sapatos. Naturalmente, não aceitei tal convite. Algumas vezes, arremessava uma almofada em mim com certa brandura, mas também havia violência.

Então, com o passar do tempo, surgiu um elemento novo, sempre surpreendente. Max começou a se preocupar muito com a limpeza do meu consultório e meticulosamente descobria pequenas sujeiras, pó, manchas nos vidros das janelas e começava a limpar tudo que estava ou lhe parecia sujo. Tudo isso se foi intensificando de modo inquietante. Ele mesmo limpava a sala com panos e vassoura, indagando a respeito de minha faxineira, se eu gostava de sujeira e dizendo que, se eu aceitasse, ele me indicaria uma faxineira mais competente. Até que descobriu uma maior quantidade de pó debaixo do tapete e gritou: "Vagabunda!" Então, perturbado com aquela visão, já bastante descontrolado, mostrava revoltado o acúmulo de pó e repetia incessantemente: "Vagabunda!", palavra pronunciada com muito gosto. A fúria reaparecia com todo o vigor, e ele insistia para que eu lambesse e limpasse o chão, ameaçando atirar em mim a vassoura que tinha nas mãos.

A situação era exasperante. Ele gritava: "Lamba! Lamba!" Eu me afastei, psicanaliticamente prudente, e lhe disse com muita firmeza: "Isso é que eu não vou fazer mesmo. Vamos pensar como é que a gente faz para limpar... Limpar a sujeira toda... Cocô, xixi, cuspe, pó. "

Ele se acalmou quase imediatamente e começou a varrer as salas. Depois comentou: "Você gosta de sujeira, eu não. " Em seguida, colocou a vassoura no chão e se deitou no divã, muito quieto. Seguiu-se certa pausa e silêncio, interrompido por ele após algum tempo: "Quantos minutos faltam? Já tô indo! Chega! Tchau!" Encerramos a sessão. A psicanálise de Max prossegue.

 

3. Pensar

Penso que experimentei, em meus encontros com Max, algo daquilo que, do ponto de vista conceitual, Melanie Klein (1930/1996) descreve como auge do sadismo. Ela supõe que

há um estágio inicial do desenvolvimento libidinal em que o sadismo se torna ativo em todas as fontes do prazer libidinal. De acordo com minha experiência, o sadismo atinge seu auge nesta fase, que é introduzida pelo desejo sádico-oral de devorar o seio da mãe (ou a própria mãe) e se encerra com o início do estágio anal. No período a que me refiro, o principal objetivo do indivíduo é se apossar do conteúdo do corpo da mãe e destruí-la com todas as armas ao alcance do sadismo. Ao mesmo tempo, essa fase forma a introdução para o conflito edipiano. (p. 251)

Penso no implacável ataque feroz dirigido a mim por Max, e não a outras pessoas no prédio onde trabalho. Pode ser que ele achasse, em algum desvão de sua mente, que um psicanalista serviria para isso mesmo: ser atacado. Daí, talvez, a preconcepção no mundo contemporâneo, desenvolvida nos últimos cem anos, da existência da pessoa certa destinada a tais ações. Por isso ele se dirigia a mim com tanta violência. O universo das preconcepções humanas parece estar em expansão. Mas é possível notar a expectativa de um seio alimentador também destinado a ser atacado em sua origem e função. Os movimentos impulsivos intensos, evidenciados em minha experiência com Max, poderiam ser expressões da existência do instinto de morte, teorizado por Freud. Com o analista existente e disponível, isso poderia ser compartilhado.

No entanto, eu, o psicanalista existente e disponível naqueles momentos, estava impossibilitado de pensar. A tarefa se tornava impossível em meio ao incessante bombardeio, e minha atenção flutuante submergia.

Durante as sessões bárbaras, em pleno campo de batalha, caracterizado pela contenção física, e quando eu já pensava em desistir, surgiu em minha mente combalida a teoria do auge do sadismo. Essa teoria surgiu como um inesperado produto do desespero reinante: eu não pensava propriamente no conteúdo, em que consistia a teoria, mas na expressão; muito menos pensava em sua utilização imediata ou em qualquer outro momento. Dada a aparente gratuidade e incompreensibilidade de tudo aquilo, era um nome, uma designação - auge do sadismo -, e se apresentava como um recurso meu, interno, útil no sentido de me permitir o prosseguimento do trabalho em condições tão adversas, uma espécie de alento ou sustentação emocional e intelectual. É claro que eu já conhecia a teoria, os textos de Melanie Klein, mas quero destacar aqui o modo peculiar como ela surgiu em minha mente. Talvez a qualidade da própria experiência tornasse como que apropriado o aparecimento daquele conceito em mim. Poderia ter sido outro - por exemplo, transformação em alucinóse. Há muitas teorias disponíveis para um psicanalista no mundo contemporâneo, mas era, como eu disse, um recurso meu naquele momento - antes, uma teoria desenvolvida por Melanie Klein. Esse conceito, que nos apresenta crueldade e horrores de todo tipo, agora surge envolto em inesperada beleza, transparecendo no trabalho com Max, num flagrante contraste em relação à experiência como tal. O próprio menino - de início, muito feio e repulsivo - revelou-se bonito. Além disso, como nos explica Jean-Michel Petot (1979/1987) em seu magnífico estudo da obra de Melanie Klein, a expressão alemã por ela utilizada significa, em sentido literal, a mais alta flor do sadismo. Tal expressão verdadeiramente confere beleza a um conceito que envolve fezes, urina, despedaçamentos, escavações, roubos, elementos agressivos não exatamente belos.

Petot nos diz ainda que a fase do auge do sadismo seria o "núcleo do que se pode chamar, depois de Wilfred Bion, a parte psicótica da personalidade". O alvo de tais impulsos, em sua intensidade máxima, será a "imagem compósita dos dois genitores": "Ocorre um apogeu do sadismo quando a criança é levada, pelas pulsões sádico-orais, sádico-anais, sádico-uretrais e pela pulsão do saber, a aniquilar, por todos os meios do sadismo, os pais combinados" (p. 137).

Assim, durante a guerra, compreendo que eu deveria ser assustador de maneira inaudita, já que talvez eu corporificasse, aos olhos de Max, a figura parental combinada ou mil objetos fragmentados e aterrorizantes subitamente fundidos numa massa compacta: eu, síntese inesperada surgindo aos seus sentidos, mas encontrando uma mente incapaz de discernir, de modo que só eram possíveis atos violentos - havia tão somente e apenas agressão livre.

O que eu designo como guerra em minha experiência com Max correspondería ao que Melanie Klein (1932/1997a) descreve muito detalhadamente como ataques imaginários, fantasias e impulsos sádicos "no seu período de força máxima", característicos dos estágios iniciais do desenvolvimento humano, dirigidos ao seio, ao interior do corpo da mãe e seus conteúdos, entre os quais o pênis do pai, representando "uma combinação de pai e mãe em uma só pessoa, sendo essa combinação encarada como particularmente aterradora e ameaçadora" (p. 153).

Ela assinala que, em função de ataques violentos "perpetrados por todos os métodos à disposição de seu sadismo" (p. 154), a criança teme ser punida pelos pais, gerando grande ansiedade, o que tende a intensificar o sadismo e aumentar o desejo de destruir o objeto perigoso e ameaçador.

O objeto perigoso e ameaçador naqueles momentos, como já disse, seria eu. Melanie Klein detalha uma primeira parte dessa fase anal-sádica "onde reina a violência abertamente, os excrementos são encarados como instrumentos de assalto direto", acrescentando que "mais tarde eles adquirem significado como substâncias de tipo explosivo ou venenoso" (p. 154). A concepção kleiniana de fantasias sádicas, cujo número, variedade e riqueza são inesgotáveis, parece corresponder de modo impressionante aos inícios de minha experiência com Max.

Ora, em uma situação em que reina a violência abertamente, gestos violentos, cheiros desagradáveis, desordem, cuspe e cocô, "substâncias de tipo explosivo ou venenoso", é muito difícil pensar.

Tudo se aproximava de guerra, tentativas ininterruptas de destruição. Aquilo não era psicanálise. E, não obstante, era psicanálise. Ou, pelo menos, eu desejava que fosse. A conhecida situação artificialmente criada, ou melhor, civilizadamente criada para fins de psicanálise, inaugurada por Sigmund Freud, ali explodia. Mas não completamente. A partir de certo momento, em meu arsenal, eu dispunha da teoria do auge do sadismo, o que atestava, em certa medida, que eu conseguia pensar.

A propósito, Wilfred Bion (1962/1988) nos esclarece magistralmente quanto ao alvo dos ataques sádicos nos inícios da vida. Tais ataques, dirigidos ao corpo da mãe ou à figura parental combinada, serão afinal feitos pelo bebê ao próprio pensamento em seus primórdios.

Assim, o pensamento e outras funções mentais atacados sofrem "uma minúscula fragmentação", e as minúsculas partículas expulsas instaladas nos objetos externos produzem objetos bizarros. É a chamada parte psicótica da personalidade. Os ataques feitos pelo paciente "excessivamente dotado de destrutividade" atingirão os processos de desenvolvimento do pensamento, "de maneira que os elementos do pensamento, as unidades por assim dizer de que se constitui o pensamento, não se podem articular", e não se desenvolve "um aparelho para pensar os pensamentos", mas "um aparelho para livrar a psique do acúmulo de objetos internos maus". "Em vez disso dá-se o desenvolvimento hipertrofiado do aparelho de identificação projetiva" (p. 103).

Haveria, nos inícios da vida, a predominância do primitivo pensamento de natureza pré-verbal, em que talvez reine abertamente a violência. Tais pensamentos - no período em que o sadismo atinge o seu auge - serão a matéria-prima para a constituição da parte psicótica da personalidade. Em minha experiência com Max, a guerra.

Até que, num certo momento, foi possível a Max referir-se à fantasia de envenenamento. A possibilidade de nomeação, o relato, a verbalização de um conteúdo de sua mente, foi um verdadeiro marco. Eram os primórdios do pensamento verbal, dando-se o início do que eu chamo de sessões civilizadas, os primeiros passos da barbárie à civilização.

Uma sessão de psicanálise é um acontecimento civilizado, culto, um produto requintado da civilização. Assim, o encontro em que Max falou comigo sobre veneno, exército, pai, cobra naja e morte constituiu-se na primeira sessão civilizada, um ponto de inflexão em nosso trabalho. Depois de tanto desespero e brutalidade, Max começava a encontrar outros meios de expressão no contato comigo. Destaco não tanto a natureza delirante-alucinatória da comunicação, mas a própria comunicação.

Wilfred Bion considera "o processo de pensar um desenvolvimento imposto à psique pela pressão dos pensamentos e não o contrário" (1962/1988, p. 102). Ele diz que há, de início, o desenvolvimento de pensamentos e que estes impõem ao psiquismo outro desenvolvimento: um aparelho para pensar os pensamentos. O aparecimento de um pensador.

Assim, outras possibilidades expressivas se manifestavam. Esboços do que se poderia considerar ternura, afeto, consideração por mim. Enfim, surgia um homem no lugar da besta-fera. Parecia ser o fim de tempos sombrios e o aparecimento de primórdios de mecanismos de reparação, evidenciando-se na relação comigo. Seria o declínio do sadismo. Mas algumas manifestações indicavam a presença do ódio. Amor e ódio entre-mesclando-se. Diz Melanie Klein:

Na parte final da fase sádica, os ataques imaginários da criança a seu objeto, que são de uma natureza muito violenta e perpetrados por todos os métodos à disposição do seu sadismo, são ampliados, de modo a incluir ataques secretos e sub-reptícios por meio de métodos particularmente sutis, que os tornam ainda mais perigosos. (1932/1997a, p. 154)

Mas Max parecia gostar de mim, querer a minha presença e, de alguma forma, me agradar. Foi também possível observar com o tempo e numa sequência impressionante o desenvolvimento de uma curiosidade intensa por mim, um especial interesse pela minha cabeça. Era a evidência, aos meus olhos, das íntimas ligações entre pulsão do conhecimento e sadismo, como diz Melanie Klein. Talvez ele quisesse saberem que consistia a minha cabeça ou o que haveria no interior dela. A minha cabeça era, agora, o alvo do desejo de conhecimento e seria, na sessão, representativa do interior do corpo da mãe,

que a criança encara em primeiro lugar como um objeto de gratificação oral e depois como a cena onde se dá a relação sexual dos pais e onde, na sua fantasia, se encontram o pênis do pai e as crianças. Ao mesmo tempo que ela quer abrir caminho à força para dentro do corpo da mãe a fim de tomar posse dos conteúdos e destruí-los, ela quer saber o que está se passando e como são as coisas lá. (Klein, 1932/1997b pp. 193-194)

Eu não mais seria uma massa compacta incompreensível e ameaçadora ou um objeto bizarro, mas agora um objeto passível de ser conhecido. Eu mobilizava intensamente sua curiosidade. Note-se que tais manifestações foram precedidas por um período muito confortável e quase idílico. Ele ganhara, suponho, confiança em mim. Sendo assim, poderia investigar, saber mais a meu respeito, como seria o meu interior.

Talvez, saber como pude sobreviver à ferocidade da guerra.

Em seguida, de modo dramático, começa a aparecer algo novo que se vai configurando de modo assustador, semelhante ao que chamei de guerra, guardadas as proporções. Parece que a ternura se dissolvia, instaurando-se o império da limpeza, que mostrou também características infernais.

Na última sessão que descrevi, quando ele repetia enfática e incessantemente a palavra vagabunda, o ódio se mostrava projetado na faxineira e em mim (o responsável pela manutenção da odiosa funcionária).

Mas, afinal de contas, a relapsa faxineira seria eu, em quem todo o seu sadismo era lançado. Ele, porém, acatou minha intervenção: não me atacou com a vassoura como pretendia. Temos aí algo do homem civilizado em seus esboços; a parte neurótica da personalidade desenvolvendo-se em ensaios, tentativas; repressão, em vez de cisão e identificação projetiva.

É também interessante a impressão de que ele mesmo está fazendo a limpeza: o gari da mente trabalhando. Como não associar à mudança de fraldas? Fraldas são sempre necessárias nos inícios da vida, em bebês ainda incivilizados.

Considerando-se como diz Freud que "a questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição" (1930/1974, p. 170), resta a Max a possibilidade de, constituindo-se como um pensador, aprender a lidar com o mal-estar na civilização.

 

Referências

Bion, W. R. (1988). Uma teoria sobre o processo de pensar. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados: second thoughts (W. M. de M. Dantas, Trad., pp. 101-109). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1962)        [ Links ]

Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 21, pp. 81-171). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

Klein, M. (1996). A importância da formação dos símbolos no desenvolvimento do ego. In M. Klein, Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945) (A. Cardoso, Trad., pp. 249-264). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)        [ Links ]

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Petot, J.-M. (1987). Melanie Klein: estudos (M. Levy, N. M. Kon, B. P. Haber & M. K. Bilenky, Trads., Vol. 1). São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1979)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
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Recebido em 01.08.2016
Aceito em 15.08.2016

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