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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.50 no.3 São Paulo jul./set. 2016

 

DIÁLOGO

 

O lugar do político na prática vincular

 

Placing the political subject in the bonding practice

 

El lugar de lo político en la práctica vincular

 

 

Janine PugetI; Tradução Claudia Berliner

IMembro fundadora da Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupo (AAPPG), membro titular da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (ApdeBA), professora do Departamento de Casal e Família do Instituto Universitário de Saúde Mental (IUSAM-ApdeBA)

Correspondência

 

 


RESUMO

Com o passar do tempo, vamos percebendo que algumas teorias que utilizamos não nos permitem abordar o que concerne à subjetividade social e ao sujeito político nas sessões, isto é, um presente sempre surpreendente, que não corresponde a um passado conhecido. Torna-se necessário, então, ampliar nossos corpos teóricos para abordar esses temas que dizem respeito ao ir pertencendo, a nossas interações em diferentes territórios, à ética social e a responsabilizar-se pelos próprios atos, ou seja, reconhecer-se como sujeito político.

Palavras-chave: subjetividade social; sujeito político; impolítico; opinião; discordância; desentendimento; ir pertencendo.


ABSTRACT

Over time, we have come to realize that some of the theories we use prevent us from discussing what is related to social subjectivity and political subject in sessions. In other words, there is always a surprising present, which does not correspond to the past we have already known. Therefore, we need to broaden our theoretical frameworks in order to approach these matters, which concern the process of belonging, our interactions in different areas, the social ethics, and are also related to taking responsibility for our own acts; in short, we have to recognize ourselves as political subjects.

Keywords: social subjectivity; political subject; impolitic; opinion; disagreement; misunderstanding; belonging.


RESUMEN

A medida que pasa el tiempo nos damos cuenta que algunas teorías que manejamos no nos permiten abordar lo que concierne a la subjetividad social y al sujeto político en las sesiones. O sea que se trata de un presente siempre sorpresivo que no corresponde a un pasado conocido. Es entonces necesario ampliar nuestros cuerpos teóricos para abordar estos temas que hacen al ir perteneciendo, a diferentes territorios, a la ética social y al hacerse responsable de sus actos, reconocerse como sujeto político.

Palabras clave: subjetividad social; sujeto político; impolítico; opinión; desacuerdo; desentendimiento; ir perteneciendo.


 

 

Afinar o ouvido

Parto de uma suposição: na maioria das sessões, nossos pacientes aludem, sem saber, a seu posicionamento como sujeito social, no qual intervêm o eixo do político, sua cultura etc. Muitas vezes, isso não parece ser tema de análise, a não ser pensado como metáfora ou reminiscência de algo ocorrido no contexto familiar e infantil. No entanto, quando um colega apresenta um material clínico, considera necessário fazer algum aparte sobre os valores, os costumes, o posicionamento social de seus pacientes, como se fosse um adendo trivial. Ao fazê-lo, agrega que é para que conheçamos algo além do que é dito manifestamente. Desenha-se, assim, uma zona obscura em que se situam os preconceitos de cada um e, consequentemente, territórios de excluídos, discriminados ou, pelo contrário, de semelhantes e incluídos... O que entendemos por conhecer? Haverá algo a mais que, supostamente, nos daria o que extrapola o âmbito dos dados tradicionalmente indicados como tal? Quais os valores levados em consideração para conhecer o(s) outro(s)?

Na realidade, uma dificuldade surge quando se comprova que não temos o ouvido afinado e, evidentemente, tampouco um corpo teórico que nos permita saber como usar na sessão esse tipo de material, motivo pelo qual nós o deixamos passar... criando zonas de subentendidos a partir das quais se forjam cumplicidades ou rechaços: como se os varrêssemos para debaixo do tapete. Coloca-se, então, um dilema relativo a como escutar, ou seja, o que fazer com o que alude ao posicionamento social e político de nossos analisandos, ao que entendem por pertencer a um conjunto, ao que os confirma como sujeitos sociais ou habitantes de seus diversos mundos e à sua maneira de enfrentar a multiplicidade e a diversidade.

Em suma, pertencer, construir um lugar para si, viver em comunidade, lidar com a diversidade, elucidar em que se apoiam formulações que dizem respeito à ética social, ao que se entende por civilidade, como afirma Balibar (2010), que lugar damos a responsabilizar-se pelos próprios atos e reconhecer-se como sujeito político, descobrir que tipo de exigências provém dos conjuntos que habitamos, aceitar as regras da política são, por ora, alguns dos temas que teremos de incluir pouco a pouco no vocabulário psicanalítico.

Nós, psicanalistas, dispomos de vários sistemas de decodificação para abordar alguns aspectos do material clínico; cada um escuta com seu corpo teórico e, evidentemente, com sua própria mente e seu interesse. Quando o material adquire conotações relativas à vida política da instituição ou do país ou das famílias, produzem-se obstáculos que tingem as relações de tensões específicas, muitas vezes ocultadas sob outras roupagens - por exemplo, remetendo-as ao mundo infantil e ao histórico familiar.

Urge começar a descobrir estratégias analíticas adequadas para analisar como nossos analisandos vão construindo sua subjetividade social e a sustentam. Sabemos que conviver em conjuntos sociais requer um trabalho constante, devido, em parte, ao fato de que a todo o momento a violência inerente às relações entre humanos o exige e, além disso, porque o pertencimento a conjuntos não está dado, tem de ser construído diariamente. Portanto, será preciso inventar maneiras de transformar a violência básica, já que, em estado bruto, ela ameaça a governabilidade das relações. Isso não irá diluir um fundo de insegurança sempre presente, que corresponde à vida no meio de outros. Alternam-se, assim, momentos de criatividade com outros de inércia ou impotência ante esse mundo que se impõe sem que encontremos o modo de habitá-lo em um "para sempre" sólido.

 

De política não se fala

Na Argentina, desde 2014, a vida política e econômica do país é às vezes mencionada no discurso cotidiano apenas como repetição de notícias jornalísticas. Algumas frases, tais como "de política não se fala", denotam o conflito, como se existissem dispositivos adequados para trocar ideias e opiniões. O enquadre analítico não parece reunir essas condições. Será que o tema requer estratégias de discussão não contempladas pela relação analítica...? Será possível intervir quando um paciente diz, de passagem: "Saímos com amigos, mas, por sorte, não se falou de política"? Ou: "Em família, é melhor a gente não falar, porque ninguém concorda com ninguém"? O que implica essa declaração de que, graças ao fato de que algo não aconteceu, foi possível manter um vínculo afetivo, emocional, amistoso.? Será este o preço a pagar para pertencer a um vínculo, inclusive o analítico? Se um paciente afirma com desprezo e dando por subentendido que compartilhamos o mesmo critério sobre X (partido político), será possível questionar ou pensar juntos como ele sustenta tal afirmação, sem que isso pareça ser uma transgressão da tarefa que nos convoca? O que se constata é que, ao se evitarem zonas de conflito, pode haver empobrecimento da relação.

 

Porta de entrada

Por onde entrar...? Analisando o que se entende por opiniões, crenças, preconceitos, afirmações categóricas, valores relacionados com a cultura e a filiação política de cada um, de cada conjunto. Às vezes, prestando atenção ao modo de conceber os governos e a governabilidade dos conjuntos aos quais pertencem, o lugar que ocupam as leis e regras válidas para esse dado conjunto. As regras e a necessidade de habitar espaços ou territórios delimitados trazem consigo a possibilidade de transgressão, bem como a de se instalar em uma posição de queixa vitimizada pelo que a vida impõe. Por esse caminho, e às vezes de forma imperceptível, introduzem-se comentários que tornam normal a corrupção franca ou endêmica, o que também se manifesta comentando, de passagem, pequenos atos que parecem naturalizados, logo, sem importância.

 

Mudanças de nomeação

O espaço analítico foi ganhando diversas denominações com o aparecimento de novos problemas. Desde a noção de enquadre, de campo, de dispositivo, de contexto, até nossa incursão, agora, na territorialidade e sua complexidade. Esta permite pensar as relações como criadoras de territórios com suas linhas de fuga, segundo a concepção de Deleuze e Guattari (1980/1988). Esses territórios analíticos contêm tanto o que diz respeito à dinâmica transferencial quanto o que chamamos, com Berenstein, de dinâmica da interferência, na qual o analista é um sujeito em relação com outro(s) sujeito(s) e o que surja disso provém do espaço entre dois, o da ignorância e o do descobrimento.

 

As opiniões

As opiniões são uma porta de entrada para tentar dar lugar às diferenças inerentes a qualquer conjunto ou a qualquer comunidade. Se não houvesse diferenças, não haveria comunidade. Como escutá-las e como intervir sem propor uma opinião, a boa, a verdadeira? As opiniões aparecem como blocos compactos de saberes sobre o funcionamento do mundo, do conjunto etc., ou, pior ainda, sobre como deveria funcionar. Essas opiniões são emitidas sem o consequente sentimento de responsabilidade pelo dito, com certa impunidade e tratando o conjunto como se fosse um Um, ou seja, um conjunto de iguais: dirigem-se a um Alguém, que é quem deveria agir. E costumam exigir, conscientemente ou não, que haja concordância, com um adendo de cumplicidade entre quem emite as opiniões e quem as escuta. Se fosse assim, seria plausível crer que comunidade equivale a um conglomerado de iguais ou complementares, e que, se algo não cabe nesse conjunto, não tem valor ou simplesmente não existe, ou, então, quem defende essa opinião passa a ser o expulso, o sem-lugar...

Com que elementos foram construídas essas opiniões-convicções? Com múltiplos fragmentos que, pouco a pouco, podem se organizar como convicção, perdendo a margem de dúvida que qualquer opinião tem. Nas reuniões científicas, costumam-se usar frases que começam com: "Parece-me...", "Penso...", "Eu vejo assim...", que não agregam, na verdade fecham, já que é evidente que quem fala o faz desde seu ponto de vista.

Entre os múltiplos fragmentos contidos numa opinião, estão as influências que exercem seu poder no presente, como aquelas provenientes dos meios de comunicação ou de fontes aparentemente seguras que fornecem um saber que vai além daquele maciçamente divulgado. Então, esse representante da opinião correta se arroga o direito de opinar e predizer. "Uma pessoa me disse...", ou "É óbvio que...". Ou seja, nem todo mundo teria esse direito, só os entendidos.

Para nós, questionar uma opinião no contexto de uma sessão é complicado porque - pelo menos aconteceu comigo e ouvi que aconteceu com outros - fazer isso nos coloca numa zona em que o analista é outro e não só sujeito da transferência: vira discussão política, inadequada. Ou talvez toque em uma zona tão sensível e insegura, relacionada com a constituição subjetiva social, que qualquer questionamento se transforma em um ataque à solidez da subjetividade social.

No espaço das relações familiares ou de casal, as opiniões aparecem como convicções, embora, em algumas oportunidades, se perceba uma sobreposição entre o espaço familiar privado e o espaço público, já que os filhos podem transitar de um para o outro, motivo pelo qual haveria que tomar certos cuidados. Os pactos de silêncio podem falhar. Mas isso não suscita o mesmo tipo de conflito como o que surge quando, domingo, um ou vários membros da família gostam de assistir ao futebol e o outro ou outros se irritam com isso. Existem valores que se inserem no contexto familiar e inclusive no herdado e que, então, confirmam amavelmente o pertencimento a uma genealogia.

 

O político, a política, o impolítico

Chegou o momento de fazer algumas pontuações sobre o que entendo por posicionamento político, que, em cada contexto, adquire um significado próprio. Como costuma acontecer, algumas leituras ajudam a pensar temas específicos e, para este, me ajudaram Badiou, Rancière, Tatián e outros, possibilitando aberturas que ampliam o vocabulário psicanalítico.

O propriamente político alude ao "vínculo comunitário e a sua representação numa autoridade", como sugere Badiou (1985, p. 15), e tinge de uma qualidade específica a vida comunitária, dando-lhe uma coerência que abarca, como diz Rancière (2005), tanto o social como o econômico e o estético. São espaços de trocas, seja de ideias, seja de bens, dentro de um coletivo, o que simultaneamente suscita temores, desejos, angústias, quando se percebe que ele necessariamente contém zonas irrepresentáveis, impróprias, que relativizam o poder singular, as decisões e pareceres de um só sujeito. Superpõem-se conflitos inerentes ao que chamamos de individual e ao espaço comum em alguma de suas vertentes. É difícil aceitar que, em uma comunidade, a voz de um indivíduo não seja mais do que uma dentre várias e não produza os mesmos efeitos que em vínculos como os de casal ou de família estendida. Parecem nutrir a ilusão de que a voz própria poderia se impor como se desse conta da totalidade.

A dimensão do político cria categorias que incluem habitar espaços comuns, construir opiniões basicamente centradas nos valores que dizem respeito à diversidade etc. Exige dispositivos adequados que protejam de enfrentamentos disruptivos, como são, por exemplo, em alguns meios, as "mesas de debate". De todo modo, assim como com um dispositivo adequado as trocas parecem possíveis, ela não salva das vicissitudes das trocas em zonas não protegidas. Exige inventar procedimentos de diálogo que partam da tensão inerente ao entre dois, do ponto cego, o da ignorância, criar interrogantes às vezes difíceis de sustentar e, sobretudo, deveria ativar uma espécie de criatividade que nos afaste do "já sei" para deixar emergir a curiosidade e o "não sei".

Não é fácil fazer algo em comum a serviço de uma instituição, por exemplo, organizar um congresso ou simplesmente um simpósio, pois costuma despertar tensões e coalizões de todo tipo. Aceitar uma política, uma organização, compatibilizar critérios diferentes é da ordem da dinâmica grupal, que muitas vezes não é levada em conta.

A política se ocupa da gerência das relações de poder em seus diversos matizes. Se não fosse assim, teríamos um mundo sem matizes, sem diferenças, um mundo de ninguéns que tende a se extinguir. Na clínica, cabe a nós indagar como nossos pacientes concebem a política de suas vidas diárias, claro que com base numa infinita quantidade de variáveis difíceis de descobrir, mas certamente apoiadas na ideia de evitar conflitos ou de conseguir construir mundos os mais homogêneos possíveis.

A política define o território da administração das desigualdades, do desentendimento, e depende dos interesses em jogo, dos afetos, preconceitos e ideias sobre como as pessoas deveriam viver e se agrupar. Na medida em que viver é conviver, trata-se, de acordo com Nancy (2000), de fazer algo com o impróprio... o inapropriável, o que não é próprio: apropriar-se é sempre incompleto, tem um limite e sobretudo deveria seguir algumas regras relacionadas com a produção de um diálogo.

Concerne também à tomada de decisões. Como são tomadas? Quem as toma? Para quê? Por quê?...

Concerne ao desentendimento, signo, como diz Rancière (2005) a partir da filosofia política do irreconciliável, da política atinente à vida em comunidades ou na multidão, como a chamou Negri (2003), ou na vida plural. No comum, há o risco, como sugere Nancy (2000), da despos-sessão, o deslocamento indeterminável e interminável do e dos sujeitos. Algo assim como viver em areias movediças, na condição de errantes. Isso desloca a ideia de apropriação equivalente a tornar-se dono. dando um lugar complexo às leis e regras necessárias para ordenar o caos. Apropriação às vezes necessária quando se trata de tornar próprio algo alheio com sua devida transformação.

Discordância e desentendimento têm algum parentesco, embora o des-entendimento esteja associado a desinteresse e distanciamento, ao passo que a discordância se refere a efeitos que nascem quando o outro diz, sente e pensa algo que acredita dever ser igual embora cada um pense diferente acreditando que isso não deveria acontecer. Está intimamente ligada à opinião, é inerente às relações humanas e adquire virulência em determinados momentos. Nas análises de casal e de família, a discordância é pensada como um signo negativo, ou seja, haveria a obrigatoriedade de criar acordos. Talvez nós mesmos tenhamos ajudado a que se estabeleçam relações sem conflitos, tanto na vida pessoal como na vida institucional. Sustentar diferentes posições faz parte do argumentável, ou seja, do próprio pertencimento e do fazer com vários. Uma maneira de anular a discordância é exercendo o Poder, a Potestade como dominação, impondo a política do Um.

Comecei mencionando o impróprio, termo complexo que associo ao impolítico e, para tanto, inspiro-me nas colocações de Diego Tatián (2012), de Esposito (2006) e de outros para falar de um território que habitamos, mas no qual há algo que não pertence a ninguém e de que, como diz Tatián, não é possível se apropriar. É algo impessoal que propõe uma ética para além da cultura, condição necessária para uma política emancipatória.

Será preciso assumir que a única realidade política é o conflito no presente, em que a memória, ou seja, a história, vai sendo construída, embora se trate de uma memória com a qualidade de atualizar as lembranças sem por isso utilizá-las defensivamente para anular o presente. Será preciso desconstruir as categorias políticas modernas e introduzir o impensado, o irrepresentável, que surge desse centro de que venho falando em termos de vazio. Trabalha-se nas bordas, o que não implica o exterior à política, mas aquele espaço que parece não ter lugar nem no político nem na política. O conflito é da ordem de uma prática que abarca o impensado e o inexpressável, o impróprio... A comunidade não pode nos pertencer nunca e, contudo, vivemos nela. A impolítica não se opõe à política.

 

Ir pertencendo ao comum

Como se vai sendo sujeito social? É um sentimento? É uma produção conjunta em que intervêm ações específicas? Requer movimentos da ordem da apropriação do alheio e, portanto, das relações de poder? É impossível não pertencer e, por isso, trata-se de algo da ordem da imposição consciente, ou não? Implica o risco de ficar imobilizado passivamente, tendo perdido a capacidade inerente ao ser humano, que é a de escolher? Trata-se de dividir ou fragmentar os conjuntos para torná-los habitáveis ou menos temidos?

Certos aspectos do pertencimento, ou seja, dos valores herdados relacionados com isso, convivem com os modos de pertencimento atuais, contemporâneos, e entram em permanente conflito. Não podem nem devem coincidir, porque se isso ocorresse se poderia pensar que o sujeito não pôde perambular pelo mundo ocupando lugares em diferentes âmbitos.

 

Preço a pagar para pertencer

A título de exercício, imaginemos o percurso necessário para pertencer a uma instituição, desde a escolha prévia, sem levar em conta que escolher é algo eterno, diário e uma condição humanizante. Supõe-se, pelo contrário, que pertencer corresponde a uma obrigação penosa, a de viver entre outros em espaços supostamente sólidos e com futuros já traçados. Esta seria uma maneira de evitar o custo de se vincular, custo que chamo de imposto a pagar. É, em seus diversos significados, uma obrigação, um trabalho, um direito, um prazer, quando o trabalho se associa a criatividade. As imposições são de diversas ordens, a começar pela alteridade e alheidade, não só do outro como da situação, as regras de convivência e uma exigência do conjunto que tem algo de vago e que às vezes se expressa por significantes - Alguém, A Instituição, Eles... -, que funcionam como inatingíveis e alimentam queixas e acusações. Pertencimento e adaptação têm algum parentesco. Pertencer ativa, então, um processo de destruição de marcas imaginadas, ou passadas, e a inclusão de novas marcas que têm algo de inapreensível e das quais se exige solidez. Conjuntos nos quais se vive em função da vida laboral, dos interesses do momento, do acaso e do país que se habita, ou seja, de um presente histórico e atual. Conjuntos familiares diversificados, que tornam evidente que não há uma única maneira de criar funções parentais em determinados conjuntos.

Pergunto-me e pergunto a vocês por que os pertencimentos sociais são tão frágeis e são considerados como um direito, um dado que não deveria ser questionado. É tentador pensar essa crença em termos de narcisismo, mas isso seria extrapolar um conceito para um espaço que exige seu próprio vocabulário. Será preciso criar um conceito que dê conta da tentação de reduzir a pluralidade ao Um quando a pluralidade aparece como um atentado à possibilidade de pertencer dignamente.

Volto à clínica para me referir mais uma vez às dificuldades de questionar um comentário político. Em geral, isso suscita respostas estranhas... por exemplo, assombro... já que é tão óbvio, é o que todos dizem, ou: não viemos aqui para discutir esses temas... ou: na minha família cada um pensa uma coisa, então, não se pode falar porque começa uma... etc.

Num caso em que eu disse que chamava minha atenção o fato de que pudessem discutir tantas coisas, mas que dessem esse tema por encerrado... que talvez entendessem que discutir é se opor ou que não houvesse nada para pensar... o casal olhou para mim assombrado, sem saber se continuavam falando do que supunham ser importante ou, por cortesia, tentavam pensar o que eu propunha. Dali fomos para as importantes diferenças entre eles, dada a origem social de cada um. E isso estava relacionado especialmente com a situação econômica de cada uma das famílias. Algo que poderia parecer não modificável, já que provinha do laço de sangue.

 

Viver em sociedade é possível

Badiou, ao comentar um poema de Gramsci, afirma que podemos ter a convicção de que uma verdade é possível. Quanto a mim, estou convencida de que é possível viver em sociedade sem aniquilar o outro, mas que isso requer uma dose de respeito, uma ética adequada e responsável. Para tanto, é preciso acabar com o lugar privilegiado dado às relações baseadas em funcionamentos identitários para dar espaço ao que corresponde à imposição do alheio e ficar alerta quando decretamos que isso é impossível. Como viver entre vários ativa mecanismos relacionados com governar para controlar a violência inerente aos seres humanos, inicia-se uma tarefa infinita, às vezes pensada como finita, que abre caminhos insuspeitados, que dependem de legislações datadas. O resultado do fazer entre vários é sempre imprevisível e circunstancial e, portanto, governar, educar e curar é possível desde que se admita que seja surpreendente. Torna-se impossível se só depende do saber e da vontade de Um, de um só sujeito ou conjunto pensados como aquele que detém o poder onímodo. O fazer é coprodução possível quando se sabe que só concerne a um presente, depende do que ocorre entre vários e constrói futuros aleatórios que se tenta tornar previsíveis.

 

Referências a posicionamento político desde modelos econômicos

Notei que em muitas ocasiões falar em sessão é pensado a partir de um mote capitalista custo-benefício. Espera-se que cada sessão renda, isto é, que tenha algum efeito, seja porque dá uma explicação, seja porque foi proveitosa, seja porque foi útil etc. Daí à tomada de consciência do que possa ser uma experiência falta muito. Um casal fazia uma espécie de contabilidade das sessões que serviram e das que não...

 

E para terminar

Continuemos averiguando por que é tão difícil intervir no espaço político nas mentes e organizações, o que faz com que o tema seja facilmente remetido às séries complementares, à transmissão ou à vida pulsional.

Pensemos quantas vezes, em assembleias, um comentário começa com "não concordo", fórmula mediante a qual se nega a força da discordância como poder Potentia tentando impor sua própria verdade. Um paciente se zangava comigo e me dizia: "Não concordo...", como se tivéssemos de concordar, e quando, uma vez, eu lhe disse que era uma questão de opinião, ele me respondeu muito zangado que ali se falava de fatos e não de opiniões.1 De alguma maneira falava de uma verdade irrefutável e eu sugeria diversidade. Ainda temos um longo caminho pela frente, muito apaixonante e que seria perigoso não percorrer.

 

Nota

1 J. Moreno me sugeriu que, nesse caso, seria preciso poder intervir desde o centro, a tensão entre dois, e produzir algo que não anule a subjetividade de cada um, mas crie outra ideia.

 

Referências

Badiou, A. (1985). Peut-on penser la politique? Paris: Seuil.         [ Links ]

Balibar, E. (2010). Violence et civilité. Paris: Galilée.         [ Links ]

Deleuze, G. & Guattari, F. (1988). Mil mesetas: capitalismo y esquizofrenia (J. Vázquez Pérez & U. Larraceleta, Trads.). Valencia: Pre-textos. (Trabalho original publicado em 1980)        [ Links ]

Esposito, R. (2006). Bíos: biopolítica y filosofía. Buenos Aires: Amorrortu.         [ Links ]

Nancy, J.-L. (2000). La pensée dérobée. Paris: Galilée.         [ Links ]

Negri, T., Cocco, A., Altamira, C. & Horowicz, A. (2003). Diálogo sobre la globalización, la "multitud" y la experiencia argentina. Buenos Aires: Paidós.         [ Links ]

Rancière, J. (2005). La haine de la démocratie. Paris: La Fabrique.         [ Links ]

Tatián, D. (2012). Lo impropio. Buenos Aires: Excursiones.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Janine Puget
Paraguay, 2.475, piso 7
(CP 1121) caba, Buenos Aires, Argentina
Tel: 54 11 4961-3445
janinepuget@gmail.com

Recebido em 10.5.2016
Aceito em 24.5.2016

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